sexta-feira, 28 de novembro de 2025

A ordem do mundo em transição


O Ocidente, durante séculos, construiu a sua força sobre uma racionalidade instrumental e hierárquica, herdeira do pensamento grego (logos), temperada pela teologia cristã (moral teleológica) e refinada pela ciência iluminista. Essa racionalidade - cartesiana - permitiu à Europa dominar o mundo. Entretanto, com as duas guerras mundiais [1914-1919; 1939-1945] o Ocidente entrou num movimento de autoflagelação. O horror das duas guerras, e do Holocausto, gerou uma reação ética centrada na pessoa. Eram os Direitos Humanos supervisionados pela Organização da Nações Unidas. As democracias liberais passaram a medir a sua legitimidade, não pela eficácia estratégica, mas pela empatia e pela expressão moral. Esse movimento produziu o que poderíamos chamar de Estado Social: uma ideologia de bem-estar, de psicologia aplicada, de comunicação afetiva e de culto da autenticidade. 

Tudo isso gerou uma ideia de política que se traduziu na incapacidade de tomar decisões depois de se ter implantado a CEE, hoje com o nome de União Europeia. Hoje a racionalidade é diferente, com o aproximar da hegemonia a Oriente por parte da China. Mais paciente, mais hierárquica, planificando a economia em tempos longos, em suma, levou a que Deng Xiaoping tenha virado a página do maoismo para de novo para o confucionismo. E assim preparou o caminho para que hoje Xi Jinping se dê ao luxo de disputar a hegemonia do poder mundial com Donald Trump e Vladimir Putin. O seu poder é visto como parte de uma ordem cósmica; não é para ser questionado, mas para ser exercido sabiamente, em que a História é uma espiral, não uma linha de progresso. O futuro pertence a quem sabe esperar. 

A estabilidade social é mais importante que a autodeterminação individual. Xi Jinping compreendeu que a China podia usar as próprias virtudes liberais do Ocidente pela via do comércio livre em circulação pelo mundo, e foi assim que abriu canais de infiltração gradual para Ocidente. Em vez de entrar em choque direto, foi entrando lentamente e absorvendo. Xi Jinping adopta a este tempo a “Arte da Guerra” de Sun Tzu: vencer sem lutar nem guerrear.

Enquanto isso, o Ocidente enfraqueceu a sua musculatura estratégica ao moralizar o poder. Seja pelo discurso do trauma, seja pela igualdade afetiva e empática. É um humanismo bonito, mas inoperante na lógica das potências. Ao mesmo tempo, essa cultura emocional é altamente instável: muda ao ritmo das redes sociais, das indignações mediáticas e da emoção pública. A consequência é que a política tornou-se refém do humor coletivo, algo que Confúcio teria considerado impensável. Xi entende que a vitória não virá de uma guerra frontal (seria contraproducente), mas de uma erosão sistemática da confiança do Ocidente em si mesmo. Incentiva divisões ideológicas internas espartilhadas por geografias que já se desatualizaram em espetros como: esquerda/direita volver; globalismo/nacionalismo; capitalismo/socialismo; liberalismo/marxismo. Em suma, Xi não precisa invadir, basta-lhe esperar que o Ocidente, emocionalmente fragmentado, se desgaste a si mesmo.

Desde a Segunda Guerra Mundial, o Ocidente - sobretudo a Europa e, depois, os Estados Unidos - passou a legitimar o poder político através da emoção moral. O trauma das guerras levou à crença de que a paz só seria possível se o poder fosse controlado pela emoção. Daí o surgimento de toda uma gramática política: direitos humanos, igualdade, diversidade, justiça social, inclusão. Tudo isso é nobre e civilizado. Mas, em termos geopolíticos, tem um preço: a incapacidade de decidir. Cada decisão tem de passar pelo filtro da opinião pública. As decisões mais certas são as racionais. Mas são as que mais doem no corpo da cidadania. Ora, particularmente na Europa, os governantes preferiram o "bem-estar" dos cidadãos em detrimento do "tem-de-ser e o que tem-de-ser tem muita força". 

A União Europeia tem sido paradigmática na aversão ao risco, seguindo a via do consenso, da unanimidade, não a via da eficácia, da impopularidade. E os EUA, por sua vez, alternam entre moralismo democrático (Democratas) e populismo ressentido (Republicanos), sem uma coerência estratégica que sobreviva mais do que quatro anos. Xi Jinping não precisa justificar nada: a moral não é um critério político. O seu cálculo é estritamente confuciano. Cada movimento é uma peça num jogo de harmonia e poder a longo prazo. Por isso, ele pode cometer ações que o Ocidente considera “inaceitáveis” (como repressões internas ou expansão no Mar do Sul da China) sem perder legitimidade interna. A China procura influência através de projetos duradouros, ofertas económicas e redes de dependência (construção de infraestruturas, financiamento de portos, corredores e centros logísticos). A lógica é não confrontar frontalmente, mas criar interdependência e ganhos legítimos que depois se transformam em alavancas políticas. Isto é exatamente o papel do Belt & Road: investimento e ligação material que geram influência estratégica a longo prazo. 

O Ocidente, por contraste, tende a reagir de forma episódica e moral: sanções pontuais, declarações de condenação, ajuda condicionada a reformas. Resultado prático: ganhos morais mas pouca capacidade de construir lealdades duradouras quando comparados com contratos de desenvolvimento e infraestrutura que chegam hoje. E ficam. O que explica porque muitos países do Sul preferem a previsibilidade chinesa. A China combina diplomacia coerciva e presença naval/paramilitar em zonas sensíveis como o Mar do Sul da China, apoiada por legislação, guardas costeiras e projeção gradual de força. O facto consumado sem guerra aberta. As frequentes e intensas operações navais contra os navios de outros Estados é um exemplo dessa estratégia de pressão sustentada. O Ocidente, e sobretudo as democracias, respondem com patrulhas, alegações jurídicas, sanções e alianças reativas - úteis, mas muitas vezes insuficientes para contrariar um processo de erosão lenta quando falta um horizonte estratégico unitário e persistente.

quinta-feira, 27 de novembro de 2025

Símbolos florais em revoluções



Embora o cravo vermelho se tenha tornado um símbolo único e profundamente associado ao 25 de Abril de 1974, existem paralelos interessantes noutras revoluções ou movimentos anteriores. Por exemplo, a rosa vermelha foi um símbolo importante nos movimentos socialistas e trabalhistas europeus. Representava a luta pelos direitos dos trabalhadores, justiça social e solidariedade. Curiosamente, há referência a uma “Revolução dos Cravos” protagonizada por um movimento na Macedónia, em1903. Mas apenas nominal, sem ter acontecido efetivamente. Na Rússia, durante a queda do czar em 1917, há relatos de floristas oferecendo flores aos soldados, em que estes as colocavam no cano das espingardas. E é icónica a fotografia de George Harris a colocar uma flor no cano da espingarda de um soldado durante um protesto contra a Guerra do Vietname, em 1967.

Daí a ideia de alguns semiólogos que “alguém esclarecido forjou o símbolo dos cravos”. E isso é compreensível como hipótese intuitiva. Afinal, o uso de um símbolo tão forte parece ter uma intenção prévia. Mas as evidências históricas disponíveis não apontam para uma ação organizada ou planeada. Tudo o que sabemos indica que o surgimento dos cravos foi espontâneo e contingente, resultado de circunstâncias muito particulares naquele dia. Celeste Caeiro era empregada de um restaurante que celebrava o aniversário naquele dia. E foi apanhada de manhã cedo, quando ia trabalhar, com um grande cesto de cravos para serem oferecidos nesse dia aos clientes. Com a cidade tomada pelos militares, ela viu-se envolvida naquele tipo de situação em que nem ela nem ninguém sabe explicar muito bem como aconteceu. A verdade é que, às tantas, os cravos se espalharam por mãos de transeuntes anónimos e soldados no caminho de Celeste Caeiro. E o que acabou intuitivamente por acontecer foi quando os militares começaram a colocá-los no cano das espingardas.

A adesão foi imediata porque o símbolo encaixou no espírito do movimento. O MFA queria uma revolução sem sangue, e espalhou os soldados pelas ruas. E isso coincidiu, mal foram vistos, com a simpatia popular que há muito ansiava por aquele dia [como tão bem disse a poeta Sophia de Mello Breyner Andresen]. Uma flor encaixou perfeitamente nesse ambiente. Não há indício de premeditação. As revoluções têm símbolos que às vezes emergem de modo orgânico. Após o dia 25, jornais, rádio e fotógrafos amplificaram a imagem. Os cravos tornaram-se símbolo oficial gradualmente, não pela mão de um “mentor” secreto. Não houve mão esclarecida. Houve sincronia histórica.

quarta-feira, 26 de novembro de 2025

Museu Nacional Romano





O Museu Nacional Romano é um museu estatal italiano sediado em Roma. Abriga coleções sobre a história e cultura da cidade nos tempos antigos. É propriedade do Ministério da Cultura, que desde 2016 o inclui entre os institutos museológicos com autonomia especial. Originalmente inaugurado em 1889, o museu estava localizado nas Termas de Diocleciano e no mosteiro adjacente da Basílica de Santa Maria degli Angeli e dei Martiri, obtidas de estruturas pertencentes ao mesmo complexo termal. Na década de 1990, o museu passou por extensas remodelações, o que levou à subdivisão das obras entre o local original e outros três espaços de exposição.

O museu é considerado por alguns textos como um dos mais importantes do mundo, também porque preserva algumas obras-primas absolutas da escultura antiga, incluindo o Boxeador em Repouso, o Príncipe Helenístico, o Niobida Ferido, o Gaulês Suicida e, da coleção Ludovisi: o Trono, o Acólito e o Sarcófago de Portonaccio.


O Sarcófago de Portonaccio - é um sarcófago romano antigo, do século II, encontrado no bairro de Portonaccio em Roma, mantido no Museu Nacional Romano - Palácio Massimo. Datado entre 190 e 200, foi usado como sepultura de um general romano envolvido nas campanhas de Marco Aurélio. Apresenta influências semelhantes às da Coluna de Marco Aurélio.

O sarcófago faz parte de um grupo de cerca de 25 sarcófagos de batalha romanos tardios, com uma excepção, todos aparentemente datando de 170-210, feitos em Roma ou, em alguns casos, Atenas. Estes derivam de monumentos helenísticos de Pergamon na Ásia Menor, mostrando as vitórias de Pergamene sobre os gauleses, e foram todos presumivelmente comissionados para comandantes militares. O Sarcófago de Portonaccio é o mais conhecido e elaborado do grupo principal de Antonino e mostra semelhanças consideráveis com o Sarcófago de Ludovisi, o sarcófago tardio de cerca de 250, e um contraste considerável em estilo.



Discobolus no Museu Nacional - Palazzo  Massimo alle Terme



Palazzo Massimo alle Terme 
viso da Piazza dei Cinquecento

terça-feira, 25 de novembro de 2025

Uma teoria para justificar a chegada de Hitler a chanceler


É a teoria de que o comunismo foi a principal causa política que moveu o eleitorado a votar no partido nazi. Porque se não fosse o comunismo o eleitorado não votaria nos nazis. Hitler chegou ao poder pelo jogo lícito democrático, e não por nenhum golpe militar, como tantos nesse século XX. Mas não foi o comunismo que “gerou” o nazismo. Foi o pavor do comunismo, num contexto de colapso das instituições liberais, que deu ao nazismo a aparência de uma alternativa de ordem.

A República de Weimar, oficialmente conhecida como Reich Alemão, foi um período histórico da Alemanha de 9 de novembro de 1918 a 23 de março de 1933, durante o qual foi uma república federal constitucional pela primeira vez na história. O nome informal do período é derivado da cidade de Weimar, que sediou a assembleia constituinte que estabeleceu o governo. Após a devastação da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), a Alemanha estava exausta. A consciência da derrota iminente desencadeou uma revolução, a abdicação do Kaiser Guilherme II, a rendição formal aos Aliados e a proclamação da República de Weimar em 9 de novembro de 1918.

Nos seus primeiros anos, graves problemas assolaram a República, como a hiperinflação e o extremismo político, incluindo assassinatos políticos e duas tentativas de tomada de poder por paramilitares rivais. Em 1924, uma grande estabilidade monetária e política foi restaurada e a república desfrutou de relativa prosperidade durante os cinco anos seguintes. Este período, às vezes conhecido como os Anos 20 Dourados, foi caracterizado por um florescimento cultural significativo, progresso social e melhoria gradual nas relações externas. Em 1920 aderiu à Liga das Nações, o que marcou a sua reintegração na comunidade internacional. No entanto, especialmente na direita política, permaneceu um ressentimento forte e generalizado contra o tratado e aqueles que o assinaram e apoiaram.

A Grande Depressão de outubro de 1929 impactou severamente o ténue progresso da Alemanha. O alto desemprego e a subsequente agitação social e política levaram ao colapso da coligação liderada pelo chanceler Hermann Müller. A partir de março de 1930, o presidente Paul von Hindenburg usou poderes de emergência para apoiar os chanceleres Heinrich Brüning, Franz von Papen e o general Kurt von Schleicher. A Grande Depressão, exacerbada pela política de deflação de Brüning, levou a um aumento do desemprego. Em 30 de janeiro de 1933, Hindenburg nomeou Adolf Hitler como chanceler para chefiar um governo de coligação. No final de março de 1933, o incêndio do Reichstag foi aproveitado por Hitler para reforçar o seu poder. Hitler utilizou este pretexto para impedir a governação constitucional e suspender as liberdades civis. O que provocou o rápido colapso da democracia a nível federal e estatal, e a criação de uma ditadura de partido único sob a sua liderança.

Em 1918/19, houve revoltas comunistas, como a da Liga Espartaquista, de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, que tentaram implantar uma república soviética à semelhança da Rússia bolchevique. Essas tentativas foram sangrentas e deixaram uma memória de pavor entre as classes média e alta. E mesmo entre muitos trabalhadores, que temiam perder a pouca estabilidade que tinham. Por isso, quando o Partido Comunista Alemão (KPD) cresceu eleitoralmente durante a Grande Depressão, grande parte da população passou a ver o nacional-socialismo como um "mal necessário" para evitar o comunismo.

O NSDAP – o partido de Hitler – chegou ao poder através de eleições legítimas. Hitler foi nomeado chanceler em janeiro de 1933 após o partido se ter tornado o maior do Reichstag, embora sem maioria absoluta. Muitos votaram nele não por antissemitismo, nem por convicção ideológica, mas porque viam no nazismo a única força capaz de manter a ordem e impedir uma revolução vermelha. O próprio Joseph Goebbels explorava esse medo. Um especialista da propaganda, difundia a ideia de que o comunismo era o provocador do caos, do fogo, da destruição da família, da propriedade e da religião. Sem o espectro do comunismo, o nazismo talvez nunca tivesse tido o impulso eleitoral que o levou ao poder. O comunismo foi o inimigo imaginário que Hitler explorou para mobilizar as massas. Mas é importante notar que isto não absolve o nazismo – um totalitarismo simétrico – cada um à sua maneira, expressões distintas da mesma crise da modernidade. Ambos provocaram uma anomia e tal desespero que levou ao colapso do liberalismo democrático.

Pode-se argumentar que o comunismo, pela sua difusão global e longevidade, causou mais mortes e destruição ao longo do século XX do que o nazismo. Mas, em termos lógicos, usar o comunismo como causa do nazismo é manifestamente exagerado. O comunismo pode ter criado o contexto que levou ao medo. O medo é que determinou o triunfo do nazismo. Mas havia muitos outros fatores: o Tratado de Versalhes; a crise de 1929; a humilhação nacional e o ressentimento social; e o vazio espiritual da época.

Nas eleições parlamentares de maio de 1928, o NSDAP (partido nazi) tinha apenas 2,6% dos votos. Era um grupo marginal. O Partido Comunista Alemão (KPD), por sua vez, já tinha 10,6%. Mas depois da crise de 1929, o desemprego disparou para 6 milhões, e tudo mudou.


Pesquisas posteriores (como as de Jürgen Falter e Detlef Mühlberger) mostram que nas regiões industriais (Berlim, Ruhr, Saxónia), o voto comunista era forte. Nas regiões rurais, protestantes e de classe média, o voto nazi cresceu com força em resposta direta ao avanço do KPD. O historiador Ian Kershaw, biógrafo de Hitler, resume isto assim: “O medo do comunismo foi o cimento que uniu a burguesia e a classe média em torno de Hitler. Ele prometia ser o único capaz de conter o colapso total.” Assim, o voto nazi foi, em grande parte, um voto de autodefesa de classe contra a ameaça da revolução proletária.

Estudos de comportamento eleitoral - Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt - mostram que o NSDAP atraiu sobretudo as classes médias em declínio – pequenos comerciantes, funcionários, agricultores endividados – que se sentiam ameaçados pela proletarização. O KPD atraía os operários industriais urbanos, muitos desempregados e radicalizados. Entre 1930 e 1932, à medida que o Partido Comunista crescia nos centros urbanos, o Partido Nazi consolidava-se nas periferias e no interior, com uma mensagem de “ordem contra o caos”. A polarização entre comunistas e nazis acabou por esvaziar o centro político. Os dois grandes partidos moderados – o Social-Democrata (SPD) e o Católico (Zentrum) – foram esmagados entre esses extremos. O resultado foi que Hitler chegou ao poder pelo voto (com o apoio da direita tradicional e do medo das elites), sem precisar de golpe militar. Foi uma autodestruição democrática, catalisada pelo terror ao comunismo. O nazismo foi, em parte, a reação patológica da sociedade liberal alemã ao trauma comunista: uma espécie de doença autoimune que acabou por matar o próprio corpo político.


segunda-feira, 24 de novembro de 2025

Retrato de uma Jovem

 


Domenico Ghirlandaio

Retrato de uma Jovem [Ritratto di Giovane Donna, em italiano] -- Pintura a têmpera sobre madeira (44 x 32 cm) do pintor italiano da Renascença - Domenico Ghirlandaio (1490). Museu Calouste Gulbenkian, Lisboa.

A personagem retratada nesta tábua lembra as figuras da família Sassetti pintadas a fresco pelo artista para a Capela Sassetti da Igreja da Santa Trindade, em Florença. Traja à moda florentina da época da Renascença com indumentária sobreposta e ajustada ao corpo com decote enfeitado com um colar de coral.

As representações femininas de Ghirlandaio, como as de Botticelli, adequam-se ao compromisso estético que privilegia a estilização idealista numa unidade decorativa de conjunto. É a época em que se assiste à difusão do retrato da burguesia. É ao gosto da caracterização realista do retrato. O delicado equilíbrio da forma, e a harmonia das associações cromáticas, deixam adivinhar a aspiração a um ideal de ordem como princípio de composição. Este fenómeno corresponde a uma tendência generalizada da arte que tinha a ver com a filosofia humanista . 

Este retrato é um belo exemplar das representações do Quatrocento. Apresenta a cabeça voltada a três quartos, sobre fundo neutro, de acordo com a prática anterior à introdução de paisagem em segundo plano. O corte situa-se um pouco abaixo dos ombros e o rosto, embora tratado sem excessiva atenção ao detalhe, manifesta uma procura de figuração naturalista, uma vontade de “fazer verdadeiro”.

De acordo com a página do Museu Gulbenkian, os proprietários da obra foram os seguintes: Conde Savonelli, Roma, 1860; George Spiridon, 1860-1887; Joseph Spiridon, Paris, 1887-1929; venda por Joseph Spiridon a Cassirer & Helbing, em Berlim, a 31 de maio de 1929. Adquirida por Calouste Gulbenkian por intermédio de Duveen a Arthur Julius Goldschmidt, em junho de 1929.



Retrato idealizado de uma jovem como Flora

Retrato Idealizado de uma Jovem como Flora é uma pintura a óleo de Bartolomeo Veneto, datada de cerca de 1520, na coleção Städel, Frankfurt. A imagem foi pintada em têmpera e óleo em um painel de madeira de álamo medindo 43,6 cm por 34,6 cm. A imagem era, com base em uma tradição, anteriormente considerada um retrato de Lucretia Borgia, a notória filha de Rodrigo Borgia, mais conhecido como Papa Alexandre VI. No entanto, o Städel, descreve o retrato apenas como uma "senhora desconhecida", que está vestida e estilizada como Flora, a deusa romana da primavera e das flores.

A imagem pertencia a Friedrich Jakob Gsell (1812–1871) e foi listada como parte de sua propriedade em 1871. Foi vendido por Georg Plach a Louis Kohlbacher (para o Frankfurter Kunstverein) em 14 de março de 1872. Foi vendido como uma obra da "Escola Florentina" para o Städel em 11 de abril de 1872. 

quinta-feira, 20 de novembro de 2025

O sentido evolutivo do instinto à intuição


Instinto, comportamento inato e intuição: parecem, à primeira vista, designar o mesmo tipo de fenómeno – algo que surge “de dentro”, sem raciocínio consciente –, mas pertencem a níveis diferentes da experiência e da evolução mental.

Comportamento inato = é programado geneticamente, isto é, transmitido pela herança biológica e partilhado por toda a espécie. Instinto = é o nome que damos, em linguagem comum e etológica, a esse tipo de comportamento automático, adaptativo e orientado para a sobrevivência. Esses atos não exigem experiência, nem cultura ou reflexão – são pré-programas da vida. Podemos dizer que o instinto é o inato em ação. A intuição é um fenómeno diferente. Não é puramente biológica. Ela envolve a mente, a experiência e a aprendizagem. Mas opera abaixo do limiar da consciência racional. A intuição é um tipo de conhecimento imediato, que não passa pelo raciocínio lógico nem pela análise deliberada. Surge como uma síntese rápida do que o cérebro já aprendeu e armazenou, mesmo que não saibamos explicar como. Por exemplo: um médico experiente “sente” que algo está errado com um paciente antes dos exames; um artista “sabe” que certa cor ou forma funciona melhor; um motorista evita um acidente num reflexo inteligente que não é puro instinto.

Enquanto o instinto/inato é meramente biológico, do nível pré-racional, a intuição é já dum nível superior, digamos mental, ainda que não ciente. Alguns filósofos e psicólogos consideram a intuição uma forma superior de instinto, um instinto intelectualizado, que se manifesta como orientação simbólica ou criadora. Enquanto o instinto “sabe o que fazer” na prática do corpo no espaço físico, a intuição “sente o que é verdadeiro” no espaço do mental. Vejamos brevemente como Jung, Bergson, Kant e Merleau-Ponty entenderam a intuição.

Jung = A intuição é uma das quatro funções fundamentais da consciência, ao lado do pensamento, sentimento e sensação. Mas é também a mais misteriosa, porque não depende dos sentidos nem da lógica. Ela capta possibilidades, significados e direções antes que a mente racional os reconheça. A intuição, para Jung, é um instinto espiritualizado. Assim como o instinto “sabe o que fazer” no plano da sobrevivência, a intuição “sabe para onde ir” no plano simbólico e existencial. Ela liga o consciente ao inconsciente coletivo, a essa reserva de imagens e arquétipos que orientam o comportamento humano desde tempos imemoriais. Por isso, a intuição é também uma ponte entre o biológico e o mítico, entre a natureza e o espírito.

Bergson = Vai ainda mais fundo na dimensão filosófica. Para ele, a intuição é a forma de conhecimento que se liga mais verdadeiramente à vida. Um mistério para se dizer, mas é o que temos de mais direto na ligação a esse mistério do que é a vida. É, por assim dizer, o interior de tudo aquilo que se move no tempo num fluxo contínuo. O intelecto através da ciência congela a realidade em conceitos e abstrações. A intuição, pelo contrário, penetra no movimento, acompanha a vida por dentro. Instinto tornado consciente de si: isto mostra que Bergson vê a intuição como uma evolução do instinto, um salto qualitativo da vida que, ao chegar ao humano se transforma em compreensão interior do mundo.

Kant = Usa a palavra “intuição” - Anschauung - num sentido totalmente diferente. Não místico, nem psicológico, mas epistemológico. Para Kant, a intuição é a forma como o sujeito apreende o objeto na sensibilidade. É a base do conhecimento empírico. Não é um “sexto sentido” ou “pressentimento”, mas a capacidade de receber representações imediatas: ver, ouvir, tocar são intuições sensíveis. O espaço e o tempo, para ele, são as formas puras da intuição humana, isto é, moldes internos que estruturam toda a percepção. “Intuição é a representação imediata de um objeto.” Kant, diz isso na Crítica da Razão Pura. Assim, Kant distingue intuição sensível de intuição intelectual. É como se a intuição sensível estivesse acessível a todos os seres humanos, acessível a gente comum; ao passo que a intuição intelectual fosse um privilégio acessível a uma percentagem de gente privilegiada, a que os antigos chamavam sábios ou profetas. O homem comum, portanto, intui apenas o que aparece, nunca a coisa em si.

Maurice Merleau-Ponty = A intuição é como o corpo em presença. Merleau-Ponty faz a síntese: biologia + fenomenologia. Ele retoma o sentido kantiano da percepção, mas de uma forma corpórea ou embutida na carne. A intuição é o contacto direto e corporizado com o mundo, antes da linguagem e do pensamento. Quando comtemplo uma paisagem, o meu corpo já compreende as suas formas pela mera presença. O mundo incorpora-nos, fazemos parte dele, não estamos separados. Intuir é ser tocado pelo mundo, e não apenas percebê-lo. O corpo é o lugar dessa reciprocidade. A intuição é a presença total do ser em si mesmo. Merleau-Ponty diz isso na Fenomenologia da Percepção. Assim, podíamos dizer que a intuição é como o fio contínuo da vida. Desde os primeiros seres vivos, há uma sabedoria implícita que orienta a sobrevivência e a adaptação. Esse saber não é pensado nem aprendido: é vivido. O instinto é a primeira expressão dessa sabedoria da vida, um saber fazer sem consciência.

À medida que a complexidade dos organismos em evolução aumentou, o instinto começou a abrir espaço à experiência. Passou a ser mais do que apenas ação reflexa. Quando a vida se reflete sobre si mesma – isto é, quando o homem aparece –, o instinto transforma-se em intuição: uma consciência obscura, mas já simbólica da direção das coisas. Podemos imaginar a evolução do conhecimento como uma escada e os seus degraus: Instinto, como o saber da espécie, do corpo e dos genes, atua automaticamente, sem deliberação. Intuição, como o saber do indivíduo em sintonia com o todo. É a antecipação, o pressentimento, o sentido da direção. Une a memória inconsciente, a percepção sensível e o campo simbólico. Razão, é o saber que se explica a si mesmo. É o conhecimento discursivo, analítico, que traduz em conceitos o que a intuição capta de forma imediata. A razão não é superior, mas posterior. É como o eco da compreensão ou entendimento, mais profunda e silenciosa.

Há um momento na evolução da vida em que surge a intuição, acrescentando, ao ditame da sobrevivência, a verdade. O homo sapiens começa a intuir não apenas o útil ou essencial, mas também o supérfluo: o bom e o belo. O sentido de justiça deriva de uma síntese ou simbiose do bom e do belo. Dito por outras palavras: ética e estética como sentido simbólico da vida. É neste ponto que o "físico" passa a “metafísico”. Uma comunhão direta com o Ser. Os místicos antigos chamaram-lhe iluminação. Os filósofos modernos chamam-lhe consciência pura.

terça-feira, 18 de novembro de 2025

A intuição política como “olfato do tempo”


Há políticos que “sentem o tempo histórico” antes que ele se formule racionalmente, e isso está muito próximo do que Bergson ou Jung chamariam de intuição vital ou intuição simbólica, um saber pré-conceptual do rumo das forças coletivas. A política, antes de ser gestão, é leitura da emoção e estados de alma. O político intuitivo não parte de números, sondagens ou relatórios, cheira a mudança no ar, percebe as emoções subterrâneas que a maioria ainda não verbalizou. É uma espécie de radar da emoção coletiva. Pode-se, assim, sintetizar numa frase: 
“A intuição política é a arte de compreender o estado invisível do povo”. Um Mandela, ou um Mário Soares tiveram intuição profética, sentiram as forças do seu tempo.

Essa sensibilidade é poderosa, porque antecipa o que está para vir, o poder das massas. Os líderes populistas demonstram uma forma de intuição que não é intelectual. Não se funda em leitura sistemática, mas em ressonância afetiva com certos estados latentes da sociedade: ressentimento, cansaço moral, desconfiança nas elites, e desejo de simplificação. Há nisso algo que os intelectuais frequentemente ignoram. A política não é movida por dados, mas por representações emocionais. Quem capta essas emoções, mesmo que de modo visceral, antecipa o campo de batalha antes dos racionalistas chegarem com os seus gráficos. É intuição sociológica empírica, que se alimenta da escuta inconsciente do corpo social.

O excesso de lógica e de dados científicos ofusca a intuição. Bergson já o dissera de modo quase profético: a inteligência tende a cristalizar a vida, a fixar o móvel, a perder o contacto com o real que se move. A razão analisa o que já aconteceu; a intuição sente o que está a acontecer; e o instinto político, quando elevado, sente o que vai acontecer. Assim, muitos políticos tecnocratas, mergulhados em relatórios, tornam-se epistemologicamente lentos. Percebem o que mudou só depois de a mudança se ter instalado. O intuitivo, ao contrário, atua no germe da transformação, quando ela ainda é sentimento difuso.

A intuição não é, contudo, o alfa e o ómega. Ela pode servir tanto para unir como para dividir. Um político intuitivo sente o medo, o orgulho, a humilhação coletiva, e pode escolher acalmar ou explorar esses sentimentos. Ventura, nesse sentido, domina a temperatura emocional, mas não necessariamente a orienta para um bem coletivo. Outros políticos, mais racionais, têm boas intenções mas não sentem o pulso da época, e, por isso, vivem da memória passada, quando o povo já vive na memória futura.

A diferença entre um profeta e um demagogo está precisamente no uso da intuição. O profeta sente as dores do tempo e tenta redimir o povo através da verdade. O demagogo sente as mesmas dores, mas tenta explorá-las em proveito próprio. Ambos são intuitivos, o que os distingue é o nível de consciência moral. E talvez o drama das democracias contemporâneas seja: o facto de o inconsciente coletivo estar no seu limiar inferior, e ser vulnerável aos demagogos populistas; e o facto de a racionalidade se ter debilitado pela benevolência e pelo otimismo utópico; e
 os povos oscilam entre fascínio e medo.

A intuição política autêntica nasce de uma escuta profunda. O político sente os medos, esperanças e tensões do seu tempo, e procura dar-lhes forma racional ou ética. Mas há um momento perigoso em que essa escuta se converte em mimetismo: o político já não interpreta o povo, apenas repete os seus impulsos. O verdadeiro estadista consciencializa; o populista acentua o inconsciente coletivo do medo. Essa inversão é o coração do populismo: a substituição da mediação pela amplificação. A democracia degrada-se quando deixa de estar ligada à compreensão simbólica do real e passa a ser usada como mecanismo de ressonância emocional. Em termos junguianos, poderíamos dizer que o político intuitivo, ao invés de integrar os conteúdos do inconsciente coletivo, é possuído por eles. Na fase saudável, ele capta o que é difuso e dá-lhe forma (liderança simbólica); na fase degenerada, ele dissolve-se nas pulsões do grupo (liderança tribal). Daí o paradoxo: o populista não lidera o povo, é liderado por ele, ainda que o povo não o perceba. A multidão fala por sua boca.

Gustave Le Bon, na sua célebre Psicologia das Multidões (1895), antecipou este fenómeno: quando o líder compreende intuitivamente o imaginário coletivo e o reflete, a massa sente-se compreendida e confia nele sem exigir coerência. O político torna-se um espelho mágico: diz o que as pessoas sentem, não o que elas sabem; transforma o descontentamento em identidade; converte a emoção difusa em narrativa moral. Essa alquimia é uma forma de intuição social degenerada, porque ela não ilumina o inconsciente coletivo, apenas o excita.

É a tragédia das elites racionalistas e tecnocráticas. Na ânsia de se afastarem da irracionalidade, elas perdem o contacto com o imaginário popular. Mas, ao fazê-lo, deixam o campo livre para os intuitivos sem ética, que ocupam o espaço simbólico com mensagens simples e viscerais. O racional descreve os factos; o intuitivo sem ética dramatiza os factos; o populista transforma o drama em espetáculo. E o povo, carente de representação emocional, prefere o espetáculo à análise.

O processo racional de recolher dados, fazer estudos e projetar políticas é mais lento que o processo emocional e intuitivo. 
A opinião pública reage em “tempo curto”, sobretudo quando há mudanças visíveis, por exemplo, aumento rápido da presença de imigrantes em certos bairros, pressão sobre serviços públicos, etc. Os decisores políticos que dependem de relatórios e consensos institucionais costumam responder em “tempo longo”. Daí a vantagem momentânea do político intuitivo: ele capta o mal-estar antes de ele ser avaliado. Mas captar não é o mesmo que compreender; é apenas o primeiro passo. Em qualquer democracia, há uma lacuna entre a percepção popular (“estamos a ser invadidos”; “não há controlo”); e a análise técnica (estatísticas, comparações europeias, efeitos económicos). Esse desfasamento cria o terreno onde floresce a acusação de “cedência”: quando um governo começa a ajustar políticas em resposta à percepção pública, os adversários interpretam isso como se tivesse rendido ao discurso do populista.

Há um valor na intuição política: ela acorda a classe dirigente para realidades ignoradas. Mas, se o ajuste for feito por reflexo emocional e não por planeamento, o resultado é um pêndulo: políticas apressadas seguidas de recuos. A esquerda tende a enfatizar valores humanitários e benefícios da imigração. A direita moderada (como Montenegro e a AD) procura equilíbrio entre acolhimento e controlo. Os partidos populistas ganham espaço por dramatizarem o tema e falarem o idioma emocional do eleitorado. A direita tradicional, para não perder contacto com o sentimento coletivo, ajusta o discurso, o que é visto pela esquerda como “cedência”. Este fenómeno não é exclusivo de Portugal. É estrutural nas democracias com fluxos migratórios intensos.

segunda-feira, 17 de novembro de 2025

Êxtase de Santa Teresa



Êxtase de Santa Teresa Santa Maria della Vittoria em Roma - é uma obra-prima de Bernini. Foi baseada num episódio relatado por Santa Teresa de Ávila em sua autobiografia. Santa Teresa sentiu um serafim atravessar o seu coração com uma lança dourada que lhe causou intensa dor em êxtase. A roupa esvoaçante e a pose contorcida revelam um transe apaixonado e voluptuoso.

Santa Maria della Vittoria é uma igreja titular dedicada a Nossa Senhora. A igreja fica no rione Sallustiano, na esquina da Via XX Settembre com o Largo Santa Susanna, ao lado da Fontana dell'Acqua Felice, e a sua fachada espelha a de Santa Susanna, do outro lado do largo. A igreja data de 1605 como uma capela dedicada a São Paulo, utilizada pelos carmelitas descalços. Depois da vitória católica na Batalha da Montanha Branca em 1620, que interrompeu o avanço da Reforma na Boémia, a igreja foi dedicada à Nossa Senhora. Estandartes otomanos capturados no Cerco de Viena (1683) foram pendurados na igreja como parte do tema da "Vitória".


Santa Maria della Vittoria

Esculpida durante o período de 1645-1652, seguindo as tendências do estilo barroco, a escultura, em mármore e bronze dourado, está localizada na Capela Cornaro da Igreja de Santa Maria della Vittoria, Roma. É considerada uma das maiores obras-primas do Barroco e um exemplo clássico da teatralidade barroca. A beleza da obra se deve ao uso da iluminação e da fidelidade da escultura, que conferem à obra sensibilidade, pois o escultor aplicava em suas esculturas o uso de corpos alongados, gestos expressivos, expressões mais simples, porém mais emocionadas. Nesta obra, Bernini, valendo-se de sua experiência direta como organizador de espetáculos teatrais, transforma, não num sentido metafórico, mas literal, o espaço da capela num teatro.

Bernini seguia as determinações da Igreja Católica Romana, que diziam que a arte religiosa deveria ser inteligível e realista, e servir, acima de tudo, como um estímulo emocional à religiosidade. Bernini serviu a Cidade do Vaticano durante muito tempo, criando esculturas feitas por pedido.

A representação dos êxtases místicos dos santos e das suas visões do divino representa um dos temas mais caros da arte barroca: os santos com os olhos elevados ao céu ajudam - seguindo as recomendações dos Jesuítas sobre as funções pedagógicas da arte sacra - a sentir emocionalmente, com sangue e carne, o que significa a inspiração mística que conduz à comunicação com Cristo e que é apanágio da mais profunda devoção. Ainda sob este aspecto, da representação do êxtase, a obra realizada por Bernini na capela Cornaro estará destinada a abrir um precedente e a ser tomada como modelo inúmeras vezes na história da arte sacra.

A crise do SNS em Portugal


A crise do SNS [Serviço Nacional de Saúde] em Portugal, que é análoga à do Reino Unido, não é apenas técnica ou orçamental. É também sociocultural: expectativas de prolongamento da vida a todo o custo; recursos limitados. Em Portugal, cerca de 30% da despesa em saúde já é paga diretamente pelos cidadãos. A disposição constitucional do "tendencialmente gratuita" o que tende é cada vez mais para uma miragem. Precisa-se de uma campanha de saúde pública sobre envelhecimento saudável e aceitação do fim de vida – dando informação sobre expectativas realistas, e prestando cuidados mais focados na qualidade de vida do que na quantidade de anos de vida. Este é o maior desafio de política pública e de civilização.

A solução não é técnica isoladamente: exige reformas ao nível do financiamento e da reconfiguração do Serviço. É preciso engajar profissionais e sociedade numa conversa séria sobre o que é razoável esperar da medicina moderna. Portugal chegou a um nível no orçamento para a Saúde que é incomportável para o nível da riqueza que o país produz. O corporativismo médico é um dos nós mais estruturais que bloqueiam a reforma do SNS. Não se trata de desrespeitar a medicina enquanto ciência e vocação, mas de reconhecer que o modelo de autorregulação profissional, criado no passado, tornou-se incompatível com as exigências democráticas, transparentes e de prestação de contas do momento atual. A Ordem dos Médicos (como as suas congéneres europeias) nasceu para defender a profissão liberal (num tempo em que os médicos exerciam a sua profissão de forma autónoma, não como funcionários do Estado, ou trabalhadores por conta de outrem. Esse papel foi essencial num tempo em que não havia um Serviço Nacional de Saúde. Mas, desde que o Estado passou a ser o principal empregador e financiador do setor, a ordem profissional tornou-se um ator político e não apenas regulador.

O que acontece hoje é o fenómeno clássico de “captura do Estado pelo regulador”. A Ordem detém poder quase exclusivo sobre licenciamento, formação especializada e deontologia, sem mecanismos externos de escrutínio eficaz. Atua como grupo de pressão corporativa (lobby), interferindo em políticas de saúde pública, gestão hospitalar e definição de carreiras, sob o manto de “autoridade técnica”. Bloqueia as reformas estruturais, nomeadamente a expansão de competências para a profissão de enfermagem. E o fica pé no número de elementos nas equipas de urgência com o argumento falacioso da “defesa da qualidade”, quando o mesmo critério não é exigido ao setor privado.

Este corporativismo produz custos elevados e ineficiências: entradas controladas artificialmente (numerus clausus e estágios) que criaram a escassez relativa em certas especialidades. E por fim, mas o principal, a promiscuidade do "duplo emprego" público/privado. 
Em termos de economia política, é um exemplo de “renda de posição”: o grupo profissional usa o controlo sobre um recurso essencial (licença para exercer) para extrair benefícios sem aumento proporcional de produtividade ou valor social. Os governos, receosos de conflito com uma classe altamente prestigiada e organizada, têm sistematicamente evitado confrontar o poder corporativo médico. E é assim que a população se vê refém de um sistema que protege o médico mais do que o doente. Em suma, o modelo que fazia sentido no tempo da profissão liberal individual está agora desajustado a um sistema público universal, onde a medicina é uma função de Estado e de interesse coletivo. Enquanto o Estado for capturado por interesses de grupo, o SNS não poderá cumprir a promessa de universalidade e justiça.

domingo, 16 de novembro de 2025

A questão migratória em Portugal


Aplicar a grelha = política - social - moral =, especificamente à questão migratória em Portugal, tem de se fazer com menos ruído mediático em cima e no meio de uma ponte pênsil onde se abraçam as elites políticas e a sociedade civil. Portugal, por razões históricas e culturais, manteve durante muito tempo uma moral generosa. Um povo de emigrantes, com memória do partir, tem alimentado uma empatia espontânea com quem chega. Um povo eminentemente católico, em que ainda recentemente acolheu o Papa Francisco na grande Jornada Universal da Juventude. As elites políticas e mediáticas associaram-se. Ou seja, o português tem sido benevolente, animado por uma ética de hospitalidade convicto de que não é por aí além racista, se comparado com povos com os quais nos podemos comparar. 

Contudo, chegados a estes novos tempos, começou-se a perder o passo no compasso com a realidade. Os fluxos migratórios cresceram imenso na Europa da última década. No contexto da mortandade de migrantes afogados no Mediterrâneo às portas da Europa rica e civilizada, originários da Síria, mas não só, em 2015, a chanceler Angela Merkel anunciou que acolheria centenas de milhares de refugiados. E a Alemanha reagiu com humanismo. Havia o trauma europeu das guerras e a convicção de que a Alemanha, potência rica e estável, podia suportar esse esforço económico-demográfico. O país precisava de mão-de-obra jovem e qualificada. A decisão foi vista por muitos como uma reafirmação dos valores europeus: hospitalidade, solidariedade e direitos humanos. A integração revelou-se desigual: houve histórias de sucesso e outras de isolamento social. O sistema de acolhimento ficou sobrecarregado em algumas regiões. Grupos de extrema-direita, que são anti-imigração, ganharam terreno ao explorar sentimentos de insegurança cultural e económica. Partidos como a AfD conseguiram transformar esse ressentimento em capital político, sobretudo no leste do país. Apesar de esses fatores explicarem o crescimento de forças populistas, não significa que a decisão inicial tenha sido “certa” ou “errada”. Apenas significa que gerou uma reconfiguração duradoura no debate político. Em todos os casos, o tempo emocional do eleitorado reagiu mais depressa que o tempo administrativo da integração.

No tempo político da governação "Costa", até há pouco, as instituições subestimaram o ritmo e a escala do fenómeno. O discurso político manteve-se moralmente correto, mas logisticamente ingénuo. A integração foi deixada em grande parte a ONGs, autarquias e iniciativas locais, sem um plano central robusto. Costa, confiando na ausência de tensões étnicas históricas, não antecipou a reação social. Agora, com a pressão pública crescente, o tempo político de Montenegro tenta reequilibrar-se, reconhecendo as falhas. Mas ao fazê-lo, Montenegro é acusado de “ceder ao Chega. Na verdade, não se trata de ceder, mas de sincronizar o tempo político com o tempo social, que mudou mais rapidamente do que se previa.

O tempo social português está agora num ponto de inflexão. Durante muito tempo, o tema da imigração não existia como preocupação central. Mas a súbita emergência de certas realidades: habitação escassa; serviços públicos saturados; casos de criminalidade amplificados pelos media; transformações visíveis em certos bairros e escolas - criou um choque perceptivo. Mesmo que os dados empíricos não confirmem uma degradação dramática, a percepção coletiva já mudou. E, parafraseando Durkheim, “na política, a percepção é tão real como os factos”. É isso que o tempo moral (idealista) tende a esquecer. O povo sente antes de compreender. E a intuição popular reage antes dos relatórios oficiais.

Daí o ruído atual de idiomas com línguas de pau. Quem vive no tempo moral chama "fascistas" aos que reagem. E quem vive no tempo social chama “hipócritas” aos que vivem o tempo moral. Ora, este tempo é o tempo de políticos como André Ventura, cuja intuição política é particularmente afinada para o tempo social. É a intuição do mal-estar latente dos tais "abandonados" antes de ele ser mensurável. Mas atenção: essa intuição, por si só, não é nem boa nem má. Depende do uso ético que se faz dela. Se é usada para antecipar soluções, é uma virtude política. Se é usada para inflamar divisões, torna-se uma forma de manipulação. Os políticos mais lúcidos são os que conseguem aliar intuição e razão, em vez de jogar uma contra a outra.


Portugal ainda está numa fase atrasada do processo. O crescimento rápido da imigração gera um choque de percepção, mesmo que os indicadores económicos mostrem benefícios em certas áreas. A experiência europeia mostra quão essencial é a gestão transparente dos fenómenos migratórios. Não bastam dados, ou planeamento urbano, mas uma comunicação política transparente para que o espaço emocional não seja ocupado por discursos simplificadores. A intuição deve servir de alerta, mas a resposta tem de vir da razão e da ética democrática. O caso alemão mostra como o tempo moral e o tempo político raramente coincidem. O gesto moral de 2015 foi rápido. Mas quem tem estudado estes fenómenos, sabe que a integração, para além de ser lenta, muitas vezes é incompleta. A percepção pública muda muito rapidamente. Governar bem, em qualquer país, significa conseguir sincronizar os três tempos: moral; administrativo; político/social.

O tempo moral está ligado ao impulso imediato da consciência. É o do coração humano e das convicções éticas. Ele reage de forma instantânea diante da dor ou da injustiça. É o tempo dos princípios, da empatia, da indignação e do dever. Quando Merkel abriu as fronteiras, em 2015, agiu sobretudo em nome desse tempo: “Diante do sofrimento, não podemos hesitar” - disse Ela. Esse é o tempo de Kant e do imperativo categórico: o dever é o dever, independentemente das consequências. O tempo moral é impaciente, não mede a capacidade humana no terreno, apenas a urgência do ideal.

Quem governa precisa de conciliar princípios com realidades. É o tempo do cálculo, da negociação e da adaptação. Enquanto o tempo moral se move por impulso, o político precisa de traduzir valores em instituições. Se age rápido demais, é acusado de imprudência. Se age devagar demais, é acusado de insensibilidade. Os governos vivem nesse intervalo impossível - entre o grito moral da sociedade e a lentidão das estruturas. O tempo social é o da assimilação coletiva. O tempo social é o mais lento de todos. É o tempo das mentalidades, dos costumes, da aceitação cultural. Mudar leis é rápido; mudar percepções é uma obra de décadas. Por isso, políticas socialmente avançadas em prol da igualdade atingem a sociedade antes de a sociedade estar pronta para elas. Surge então o que Tocqueville chamaria de reação democrática: o povo sente-se ultrapassado, e o ressentimento cresce. E é assim esse desalinhamento de tempos que cai num terreno propício para populismos que se polarizam para as duas extremas do relvado político que em pouco tempo o transformam num pântano.

Mas o que é isso de equilibrar uma democracia? Neste cenário, e recorrendo às metáforas futebolísticas e o seu jargão, do que se precisa é de um avançado centro. É libertar um dos médios mais recuados para apoiar o ataque. Que em jargão futebolístico se designa por trinco. O papel de um trinco é exatamente preencher os espaços vazios por um jogador que dentro do seu raio de ação se tenha libertado da sua posição no momento em que a equipa ataca, precaver possíveis transições rápidas do adversário encurtando-lhe o espaço. No fundo, é deixar a sua formação organizada. No entanto, quando a sua equipa não tem a bola, independentemente da atitude pressionante ou expectante que tenha de ter em determinada zona do campo, torna-se importantíssimo quando o adversário está no último terço do terreno, fundamental a preencher espaços, tapar linhas de passe, garantir a organização coletiva e conseguir superioridade numérica.

A intuição política pode servir de trinco entre esses tempos: traduzir o sentimento moral em linguagem compreensível; acelera o tempo político sem atropelar o social; detectar a sociedade a mudar antes que os indicadores o mostrem. Os extremos deformam esse trinco e transformam o descompasso em clivagem. A torre de marfim deixa de ser intérprete e torna-se amplificador da desordem. As sociedades que melhor lidam com crises partilham um tipo de comunicação pedagógica preparando o povo antes das mudanças. É gradualista, combinando o ideal moral com a viabilidade prática. Educam o tempo social para que o povo acompanhe o tempo moral. E não deitam fora a memória, mantendo estabilidade geracional mesmo durante choques rápidos. A arte de governar consiste em harmonizar esses três ritmos, não os fundindo, mas fazendo-os jogar sem que se choquem.

sexta-feira, 14 de novembro de 2025

Museu Alexandre Villedieu


Localizado em Loos-en-Gohelle, o Museu Alexandre Villedieu reúne uma coleção de objetos da Primeira Guerra Mundial encontrados em grande parte na zona à volta da cidade.



No Museu Alexandre Villedieu, em Loos-en-Gohelle, um cartaz avisa: "Visitante, lembre-se que por trás de cada objeto havia um homem". Gilles Payen, presidente da associação Loos, nas pegadas da Grande Guerra, que gere o museu, aproxima-se de uma vitrine: aquilo é a faca de abrir cartas do meu bisavô. O abridor de cartas é exibido no meio de centenas de armas, medalhas, cartões, uniformes, mas também colheres e garrafas. Todos os objetos estiveram nas mãos dos soldados: franceses, escoceses, canadianos. Gilles Payen e os voluntários da associação fazem com que os objetos falem para contar a história da Grande Guerra através deles.


A caneta Waterman de Alexandre Villedieu

Em 4 de agosto de 1908 a Waterman's Fountain Pen Company gravou a data de fabrico numa das suas novas canetas de tinta permanente com aparo de ouro. A caneta viria a tornar-se propriedade de um francês chamado Alexandre Villedieu. Entretanto Alexandre acabou por ser alistado na Frente Ocidental da Primeira Grande Guerra. Ora, Villedieu, enquanto combatia, levava no bolso a tal caneta, e ainda a tinha em maio de 1915. Mas foi morto em batalha e, o seu corpo, tal como o corpo de dezenas de milhar de outros, não foi encontrado até chegar à primavera de 1996, quando um agricultor o encontrou quando lavrava a terra para a nova sementeira. Foi assim que o corpo de Alexandre Villedieu voltou à luz do dia, bem como o seu cachimbo, um canivete suíço, o cinto militar, e a dita caneta Waterman.


O Museu Alexandre Villedieu, havia sido fundado por Duparcq em 1992. Depois passou a ter o nome do dono da caneta Waterman, que ainda funciona. Todos os objetos apresentados no museu foram encontrados de forma semelhante, ou proveniente de doações: "Muitas vezes, as pessoas trazem-nos de volta porque não conseguem deitar fora um pedaço da sua história. Em breve não teremos espaço suficiente!"

Os objetos às vezes vêm de muito longe: Loos foi palco de três batalhas. Aqui as forças alemãs lutaram contra os franceses, os britânicos e os canadenses. A associação mantém ligações em todo o mundo com os descendentes dos soldados. Nos dias 12 e 13 de outubro de 2019, o museu comemorou a Batalha de Loos, que começou em 25 de setembro de 1915. Uma oportunidade para mergulhar neste período da história através de um desfile musical. Não esquecendo o que aqui se passou, preservando e transmitindo a memória dos soldados, sensibilizando os mais novos. É isso que move Gilles Payen e todos os membros da associação.

quinta-feira, 13 de novembro de 2025

As famosas gárgulas de Notre Dame




As famosas gárgulas de Notre Dame - depois do incêndio - já começaram a ser reinstaladas na catedral parisiense. Os escultores tiveram de reconstruir algumas gárgulas que haviam sido destruídas no incêndio de 2019. Destruídas total ou parcialmente as figuras fantásticas de ar assustador foram reconstruídas uma a uma. Na arquitetura, especificamente na arquitetura gótica, uma gárgula é um ser grotesco esculpido ou formado com um bico projetado para transportar água do telhado, evitando assim que a água da chuva escorra pelas paredes. Os arquitetos costumavam usar várias gárgulas neste tipo de edifícios para dividir o fluxo de água da chuva do telhado a fim de minimizar os danos potenciais das tempestades. Uma calha é cortada na parte de trás da gárgula e a água da chuva normalmente sai pela boca aberta. 

Gárgulas são geralmente animais fantásticos alongados porque o seu comprimento determina a que distância a água é direcionada da parede. Gárgulas, especialmente na Idade Média, eram ornadas com figuras monstruosas, humanas ou animalescas, comumente presentes na arquitetura gótica. O termo vem do francês - gargouille, gargalo ou garganta (latim gurgulio, gula). Palavras similares derivam da raiz gar (engolir) - palavra onomatopaica do gorgulhante som da água.


Por assim dizer, as gárgulas, que fazem parte de toda uma mitologia religiosa supersticiosa, eram colocadas nas Catedrais Medievais para indicar que o demónio nunca dormia, exigindo a vigilância contínua das pessoas, mesmo nos locais sagrados. Uma lenda francesa gira em torno do nome de São Romano, primeiro chanceler do rei merovíngio Clotário II, que foi bispo de Ruão. A história relata como ele e mais um prisioneiro voluntário derrotaram a Gargouille (um dragão-do-rio ou serpente-do-rio) que vivia nos pântanos da margem esquerda do rio Sena, em Ruão, e que afundava os barcos e comia as pessoas e os animais da região. Um dia, o bispo atraiu a gárgula para fora do rio com um crucifixo, e usando o seu lenço como cabresto, levou o monstro até à praça principal. Lá, os aldeões queimaram-na até à morte.

O aspectos surpreendente dos monstros e o lado místico que os envolve não passou despercebido dos artistas que viam neles criaturas fabulosas, integrando-as as suas histórias. Assim, Victor Hugo, em seu romance - Notre-Dame de Paris -, concedeu um espaço importante da sua estória às gárgulas. Elas fazem referência, por causa da sua feiura aparente e função de salvação, ao corcunda Quasimodo.



quarta-feira, 12 de novembro de 2025

Leonor de Portugal = Imperatriz Romano-Germânica = e os Painéis de São Vicente de Fora



O Painel do Infante _ terceiro a contar da esquerda dos Painéis de São Vicente de Fora _ agrupa várias figuras, tradicionalmente identificadas como membros da corte de Portugal e outros estratos sociais. A figura central de destaque, que lhe dá o nome, é consensualmente identificada como sendo o Infante D. Henrique, o Navegador, devido à sua semelhança com outras representações conhecidas, como uma iluminura da Crónica da Guiné. O Infante D. Henrique é retratado de forma imponente, com um semblante sério e expressivo. A imagem central reveste-se de mistério. Pensa-se que representa São Vicente, retratado noutros quadros do mesmo autor. Nas mãos, carrega um livro religioso cujas palavras se inspiram na autoridade de Deus que é investida na figura que ante ele se ajoelha, supostamente Afonso V, ainda jovem, que é assumido rei aos 14 anos. A figura de véu branco deve representar Dona Leonor, mulher de Dom Duarte, e mãe deste jovem Afonso V. A jovem em oposição a Afonso V deve ser Isabel de Coimbra - filha de D. Pedro, tio de Afonso V - com quem casou. 

Leonor de Portugal [1434 - 1467] é filha do rei Dom Duarte e de Leonor de Aragão. Portanto, o
 irmão – é precisamente Afonso V [1432 – 1481], apelidado de "o Africano" pelas suas conquistas em África = Rei de Portugal e dos Algarves de 1438 até à sua morte. Afonso ascendeu ao trono com apenas seis anos de idade. A regência, inicialmente assumida pela a mãe = Leonor de Aragão, no entanto pouco depois foi passada para o tio Pedro = Duque de Coimbra. Este procurou concentrar o poder no rei em detrimento da aristocracia.


Leonor de Portugal
Hans Burgkmair, o velho - [1473-1531]

Quando o pai morreu, Leonor tinha quatro anos de idade. A mãe = Leonor de Aragão, viu-se forçada a abandoná-la doente em Almeirim, sob a tutela de Dom Pedro, Duque de Coimbra, para se refugiar em Castela. Havia perdido a contenda palaciana pelo controlo da Regência. A partir de 1445, após a morte de sua mãe, com 11 anos de idade [1445-1448] o destino de Leonor é negociado nas mãos dos dois tios: Dom Pedro e Dona Isabel, casada com Filipe III, Duque de Borgonha. Dom Pedro, por sua vez, casou com outra Isabel, sendo esta a Isabel de Aragão, que poderia ter sido a herdeira do trono de Aragão não se tivesse dado o caso de seu pai o ter perdido para Fernando de Atenquerra após disputa. Como tal, Dom Pedro era naturalmente hostil à Casa de Aragão. Já Isabel, a Duquesa de Borgonha, pretende capitalizar o casamento da sobrinha em seu próprio proveito. Estavam então em disputa duas hipóteses para o casamento de Leonor de Portugal para alianças: ou com França, através de Luís de Valois, filho de Carlos VII e que viria a ser o Luís XI;  ou com Frederico III = do Sacro Império Romano-Germânico.


O império aragonês em 1443

O projeto inicial seria o casamento de Leonor com Luís, o filho de Carlos VII de França. Mas na lógica da Guerra dos Cem Anos (1337-1453), como conflito maior no palco europeu e como força polarizadora de fações políticas da época, o casamento continuava a política da Borgonha na procura dos melhores interesses para o Ducado. E assim, ora se aliava com a França, ora com a Inglaterra. E dado que, à data, a guerra se abeirava de uma esmagadora vitória francesa, à Borgonha seria necessário esquecer o passado recente e aliar-se ao antigo inimigo. Em suma, as duas alianças ajudariam porventura a desequilibrar a balança de poder na Europa a favor da França e de Castela e contra Inglaterra e Aragão. Com Portugal, Borgonha só precisava de fortalecer. À coroa francesa não passou com certeza despercebida a importância das negociações de Portugal com Borgonha, embora palco secundário dos jogos de influências dos conflitos anglo-franceses.

Ao Sacro Imperador Romano-Germânico não passou despercebida a grande riqueza da Casa de Avis. O comércio de açúcar das ilhas atlânticas e de escravos, ouro e malagueta da costa africana, tornavam o Portugal do século XV um país em franco crescimento económico. Ainda mais tendo em conta o clima de paz do Reino, em que as únicas operações militares da época se situavam no Norte de África, não perturbando a economia interna. Frederico III era um governante constantemente atormentado com problemas pecuniários. Os seus rendimentos esvaíam-se entre as tentativas de unificar o património dos Habsburgos na Suábia, nos Alpes e na Baixa Áustria dispersos por inúmeras linhas colaterais.

A política interna portuguesa sofre uma reviravolta em julho de 1448, quando o irmão de Leonor = Afonso, atinge a maioridade e começa o seu reinado como Afonso V de Portugal. Ora, Afonso era apoiante da rainha D. Leonor de Aragão, surgindo como natural aliado dos interesses aragoneses. Inglaterra e Aragão opunham-se à união de Leonor com Luís de França. De facto, um outro Afonso = Afonso V de Aragão (1396-1458) -- herdara os Reinos da Sicília e Nápoles. Daí procurar uma aliança com o Império Romano-Germânico para assegurar os seus domínios italianos que eram reclamados pela Casa de Anjou. Disputa que no final do século XV originaria as Guerras Italianas. E é assim que o tio materno de Leonor = Afonso de Aragão = desempenha esse papel.

Animosidades, manipulações e insídias entre Dom Pedro e o sobrinho Afonso V culminariam na Batalha de Alfarrobeira a 20 de Maio de 1449, com a morte de Dom Pedro. Em junho de 1450 parte para Nápoles João Fernandes da Silveira, o futuro 1º Barão de Alvito, para dar lugar às negociações com os enviados imperiais: D. Eneas, Bispo de Trieste, D. Jorge de Vollesdorff, barão do ducado de Áustria, os seus conselheiros e o seu secretário, Miguel de Phullendorf. As negociações devem ter sido complexas pois prosseguem por quarenta dias até à assinatura a 10 de dezembro de 1450. O contrato é celebrado na solene presença do Duque da Calábria, do Duque de Cleves e dos embaixadores das Repúblicas de Veneza e Florença.

Em finais de outubro de 1451, após os festejos, D. Leonor embarca na nau italiana Doria. A viagem marítima pelo Mediterrâneo Ocidental foi atribulada, como eram sempre as longas viagens naquele tempo. Após temporais que dispersaram a Armada, até combates com piratas, de tudo houve entre os curtos períodos que passaram ao abrigo dos portos de escala (Ceuta a 20 de novembro, Marselha a 8 de dezembro e Grimaud a 24 de dezembro). Chegam finalmente a Livorno em janeiro de 1452, mas não desembarcam por não se conhecer ainda a vontade do Imperador que se encontrava em Florença. O Imperador concede finalmente a Leonor e à sua comitiva permissão para desembarcar a 7 de fevereiro. São recebidos em Livorno por grande embaixada de nobres, que conduzem a comitiva portuguesa a Pisa para alguns dias de repouso.

A 19 de Novembro, D. Leonor parte para Siena. É recebida às portas da cidade pelo Arquiduque Alberto VI da Áustria, irmão mais novo do Imperador e pelo Rei da Hungria e Duque da Áustria Ladislau Póstumo, primo de Frederico III. Apenas após transpor as portas da cidade é que Leonor se encontrou com Frederico III. Ruma então o casal imperial a Roma, onde chegam a 8 de março de 1452. Foram recebidos pelo Papa Nicolau V às portas da antiga Basílica de São Pedro numa demonstração de agradecimento deste pelo apoio do Imperador contra o cismático Antipapa Félix V. O Papa abençoou o casamento em cerimónia realizada a 16 de março de 1452. Não se seguiram festejos porque se observava o período da Quaresma. No Domingo seguinte, 19 de março, dia de Nossa Senhora da Rosa, celebrou-se em São Pedro a coroação do Imperador e da Imperatriz pelo Sumo-Pontífice. O próprio ungiu D. Leonor nas espáduas e braço direito e lhe colocou a coroa.


Frederico III
Sacro Império Romano-Germânico

Após estadia em Roma, partiram para sul, onde se quedaram no Reino de Nápoles para as festividades da Páscoa e, passados os interditos da Quaresma, para celebrações nupciais oferecidas pelo tio da Imperatriz, o Rei Afonso V de Aragão. Tiveram cinco filhos. Um deles viria a ser o conhecido Maximiliano I, sucessor de Frederico III. Leonor de Portugal morreu aos 32 anos de disenteria em Wiener Neustadt, a 3 de setembro de 1467, e foi enterrada no mosteiro cisterciense de Neukloster ou da Santíssima Trindade, onde o seu túmulo ainda pode ser visto.


Maximiliano I
Albrecht Dürer

Maximiliano
 [1459 - 1519] era, portanto, primo direito do futuro rei de Portugal - D. João II . Em 1486, Maximiliano foi eleito em Frankfurt, ascendendo ao trono do Sacro Império Romano-Germânico após a morte de Frederico III, em 1493. Durante quase toda a vida o imperador manteve fortes relações com os seus familiares da Casa de Avis. Com D. João II, Maximiliano I criou laços amigáveis que ganharam os seus contornos mais evidentes em 1494. Em Junho desse ano, os dois monarcas prometeram mutuamente eterna amizade e aliança em caso de guerra nos denominados Capítulos de Pazes. Com a subida ao trono de Portugal por Dom Manuel I, aparentemente, as boas relações diplomáticas, até aí existentes entre as Casas de Habsburgo e de Avis, esfriaram. Maximiliano havia reclamado também a herança da coroa portuguesa. Apenas no ano de 1499 se constata um primeiro indício de um entendimento e de uma retomada das relações diplomáticas entre as duas dinastias. Neste ano, o Venturoso informou orgulhosamente o seu primo acerca dos resultados da primeira viagem de Vasco da Gama à Índia. É de notar que Maximiliano seguia, desde os anos 90 do século XV, atentamente o desenvolvimento da Expansão Portuguesa. 

Carlos o Temerário – 1460
usando o colar da Ordem do Tosão de Ouro
Pintado por Rogier van der Weyden.

Agora, trago para a cena os da BorgonhaO Ducado da Borgonha foi fundado em 880 a partir do Reino da Borgonha pelos reis carolíngios = Luís III e Carlomano II, bem como pelos membros principescos de sua família que compartilhavam o Império Carolíngio de Carlos Magno e Luís, o Piedoso, que eles haviam herdado. Eles feudalizaram todos os reinos carolíngios em ducados e condados vassalos dos reis da Frância Ocidental.

Um reino da Borgonha deve seu nascimento a Rodolfo, da grande família dos Welf, filho de Conrado, Conde de Auxerre. Com o título de marquês, exerceu a sua autoridade sobre a região entre o Jura e os Alpes quando, em 888, com a morte de Carlos, o Gordo, e a dissolução definitiva do império de Carlos Magno, transformou este em um reino. talvez com uma parte da diocese de Besançon. Rodolfo conseguiu ser reconhecido como soberano pelos nobres e prelados reunidos em Saint-Maurice d'Agaune e criou o "Reino da Borgonha". Seu poder também se estendeu sobre a diocese de Besançon. Em 933, Rodolfo II acrescentou o reino da Provença ao seu reino da Borgonha Transjurana. Assim nasceu o reino de Arles. Após a morte de Rodolfo III em 1032, esses territórios ficaram sujeitos à autoridade do Saint-Emprire. No século XII, o reino de Arles foi reduzido à sua expressão mais simples e os imperadores da Alemanha, que ainda se consideravam reis de Arles, exerciam apenas autoridade nominal lá; no entanto, permaneceu até o século XIV. Formaram-se assim quatro Borgonhas: o Ducado da Borgonha; o Condado da Borgonha; a Borgonha Transjurana; a Borgonha Cisjurana com a Provença. Em 1032, as três últimas já eram terras do Sacro Império Romano-Germânico.

Borgonha é uma região histórica e cultural, localizada no centro/leste da França, e que diz muito aos portuguesesPara os portugueses a Borgonha releva para as fundações de Portugal que começam com Henrique da Borgonha, pai de Dom Afonso Henriques. Henrique de Borgonha = Conde Dom Henrique [1066 – 1112] foi conde de Portugal de 1095 até morrer no cerco de Astorga em 1112. Inicia a sua vida na França, mas logo parte para a Península Ibérica para a Reconquista. Nascido em 1066 em Dijon, no Ducado da Borgonha, o Conde Dom Henrique era o filho mais novo de Henrique da Borgonha e neto do duque Roberto. Seus dois irmãos mais velhos, Hugo I e Eudes I, herdaram o Ducado da Borgonha. Uma de suas tias paternas era Constança de Borgonha, esposa de Afonso VI de Leão. E um dos seus tios-avós era Hugo de Cluny, uma das figuras mais influentes do seu tempo. A família do Conde Dom Henrique era muito poderosa, e governava muitas cidades do Reino da França: Chalon, Auxerre, Autun, Nevers, Dijon, Mâcon e Semur. Borgonha deve seu nome aos burgúndios da época anterior aos merovíngios, que criaram o reino da Borgonha. Mais tarde, foi feita uma distinção entre o Condado de Borgonha (ou Franche-Comté de Bourgogne), que corresponde ao atual Franche-Comté, e o Ducado da Borgonha, que corresponde mais ou menos à atual Borgonha.


Túmulo do Conde Dom Henrique
Sé de Braga

O rei Roberto, o Piedoso, tomou posse do ducado, mas ainda teve que lutar contra a hostilidade de Brunon de Roucy. Ele teve que esperar até a morte do bispo em 31 de janeiro de 1016 para colocar as mãos no castrum de Dijon. O rei Roberto passou o título ducal para seu segundo filho, Henrique. Dada a sua tenra idade, Roberto assumiu o governo do ducado. A morte de Hugo, seu irmão mais velho, fez de Henrique o herdeiro da coroa da França. O rei Roberto morreu em 1031 depois de designar seu filho mais novo, também chamado Roberto, como duque da Borgonha, cujos descendentes reinaram até 1361. Por sua vez, do ano de 1031 ao ano de 1361, doze duques capetos da Borgonha reinaram no trono ducal. Roberto I da Borgonha, o primeiro da linhagem, foi duque da Borgonha de 1031 a 1076. Seu filho Henrique morreu prematuramente, seu neto Hugo I da Borgonha o sucedeu em 1075. Seu reinado durou apenas três anos. Ouvindo o conselho de Hugues de Semur, abade de Cluny, ele deixou a vida secular para se tornar um monge em Cluny, onde morreu em 1093. Seu irmão Eudes I coroou a coroa ducal e reinou sobre o ducado entre 1078 e 1102, que passou para seu filho Hugo II em 1101. O reinado de Hugo II terminou em 1143.

A vida religiosa era intensa e os habitantes ainda veneravam antigas divindades gaulesas, como o deus chifre Cernunnos, a deusa Rosmerta encontrada no complexo termal de Escolives-Sainte-Camille, o "deus com o martelo" de Moux-en-Morvan Sucellus. Mas eles também adoram divindades romanas; assim, outras representações de divindades mostram a influência greco-romana: Apolo, que igualou Belenos, Borvo, bem como várias outras divindades, Mercúrio, o deus da petasis, que César afirma ser o mais venerado na Gália. Há também evidências do estabelecimento de cultos orientais. Há muitos locais na Borgonha que testemunham essa intensa vida religiosa: Alésia, as nascentes do Sena, os Bolards (uma antiga vila galo-romana perto de Nuits-Saint-Georges) estão entre eles. As fontes do Sena são o lugar onde o culto da divindade curadora de Sequana é celebrado. Do Oriente chegou então, pouco a pouco, o cristianismo. Subindo o eixo do Ródano e do Saône, mercadores e soldados do Oriente se estabeleceram em Augustodunum, a futura Autun e a cidade mais próspera e brilhante da região, e de lá se espalharam a nova religião. Tal influência também foi encontrada em Sedelocus (Saulieu). A partir do século III, a sucessiva onda de ondas de povos do leste aumentou a instabilidade do poder do Império Romano do Ocidente e pôs fim ao período de prosperidade na Borgonha. O primeiro ataque dos Alamanos atingiu a região por volta de 256-259 e semeou ruína em todos os lugares. Eles reapareceram em 275-276 e começaram a devastação novamente, agravadas pelo novo perigo dos bagaudes, esses bandos de camponeses expulsos de suas terras que saquearam por conta própria. Foi sob o reinado de Aureliano, em meio ao perigo alamano com a grande invasão de 276, que as muralhas de Dijon foram fortificadas. 

Três séculos e meio de continuidade dinástica favoreceram o desenvolvimento da Borgonha e permitiram que ela escrevesse sua história livre de qualquer convulsão de sucessão. No final deste período, os capetianos da Borgonha conseguiram fazer do ducado um principado coerente, onde sua autoridade, baseada na terra e na riqueza monetária que haviam desenvolvido, deu-lhes um poder ao qual, após o século XII, nenhum de seus vassalos tentou se opor. A Borgonha brilha intelectualmente, artisticamente e economicamente. A proteção dos duques permitiu a construção de muitos mosteiros. Os monges de Cluny e os de Cîteaux com seu carismático abade Bernardo de Claraval fizeram suas vozes serem ouvidas em toda a Europa através de suas ações espirituais, políticas e eclesiásticas. No século XIV, os descendentes borgonheses de Hugo Capeto passaram para Filipe, o Ousado, o primeiro duque Valois, um ducado unido e coerente, as primeiras premissas do estado principesco do duque Filipe, o Bom (Filipe III da Borgonha).

A Borgonha era uma terra de escolha para o monaquismo. No século IX, apesar de alguns centros ativos de vida religiosa, como a abadia de Saint-Germain d'Auxerre e as fundações de abadias, incluindo, entre as mais famosas, as de Sainte-Marie de Vercellacus (Saint-Père sous Vézelay) para as freiras (Vézelay) e Saints-Pierre-et-Paul de Pothières para os monges, (858-859), devido à generosidade de Girart de Roussillon, conde de Vienne, e sua esposa Berthe, as abadias que sofreram com as invasões na Borgonha experimentaram declínio. O renascimento veio com a fundação em 909 da Abadia de Cluny, devido à doação de uma villa, um simples ponto de encontro de caça, do duque da Aquitânia Guilherme, o Piedoso, ao monge Bernon para que um "mosteiro regular pudesse ser construído lá em homenagem aos apóstolos Pedro e Paulo"[UMA 21] e colocados sob a proteção imediata da Santa Sé. Depois de um início difícil, com uma sucessão de grandes abades à sua frente (Mayeul, Odilon de Mercœur, Hugues, cunhado do duque de Borgonha Robert I), a abadia aumentou sua influência no século XI e atingiu seu apogeu no século XII século. Naquela época, quase 1500 mosteiros foram colocados sob sua autoridade.

 Por volta de 1475–1477, a Europa central vivia um momento de transição: o ideal cavalheiresco borgonhês estava no seu auge estético, mas já declinava perante o novo realismo político e militar dos tempos modernos. Carlos, o Temerário, duque da Borgonha, 1433–1477, sonhava criar um reino independente entre a França e o Sacro Império Romano-Germânico. O seu ducado, a Borgonha, era um dos territórios mais ricos e culturalmente refinados da Europa, com gente esplendorosa, torneios fastuosos e uma cultura cavaleiresca herdada do ciclo arturiano. Em 1477, após a morte de Carlos na batalha de Nancy, o seu imenso património territorial passou para a sua filha, Maria de Borgonha.


A Borgonha

Antes mesmo da morte de Carlos, o duque buscava assegurar alianças fortes contra a França. Para tal, negociou o casamento de Maria (Duquesa da Borgonha) com Maximiliano. As negociações começaram em 1475, e a contenda de Neuss (ou Neuber) está relacionada a esse contexto político e militar. A “Contenda de Neuss” (1474–1475) refere-se ao cerco da cidade de Neuss por Carlos, o Temerário, contra o arcebispo de Colónia, um episódio marcante nas Guerras da Borgonha. O cerco fracassou, e o Imperador Frederico III aproveitou o momento para aproximar-se do duque da Borgonha, propondo o casamento entre Maria e o seu filho Maximiliano, como forma de pacificação e aliança. Após o cerco de Neuss e a celebração dos esponsais de Maximiliano e Maria (1477), ocorreram vários torneios e festas cavalheirescas, especialmente nas cortes de Gante e Bruges, que se tornaram símbolos da transição entre o cavalheirismo medieval e o renascimento cortesão.


Maria de Borgonha, Duquesa da Borgonha [1457-1482] foi a última e quinta duquesa da Borgonha do ramo Valois-Borgonha. O terceiro havia sido Filipe III, o Bom, e o quarto foi Carlos o Temerário. O seu antepassado Hugo de Cluny já estava muito distante quando em 1049 assumiu a liderança da Abadia se Cluny, um ilustre da família dos duques da Borgonha.


Filipe III, o Bom

A Borgonha, na Idade Média, viu nascer os maiores movimentos de reforma monástica com as abadias de Cluny e Cister. As duas famosas abadias foram durante vários séculos ao mesmo tempo centros de ciência dogmática, de pensamento reformador, centros de atividade econômica e social, artística e até política de primeira ordem para toda a Europa. Edifícios como a basílica de Vézelay e a abadia de Fontenay ainda testemunham essa influência. Alguns séculos depois, o empreendimento dos duques de Valois marcou profundamente a sua história. Filipe, o Bom e Carlos, o Temerário, fizeram do seu estado uma grande potência europeia que abrangia a atual Bélgica e Holanda e se tornou rival do reino da França. Filipe, o Bom, fundador da Ordem do Tosão de Ouro, fez brilhar a sua corte e espalhou a sua fama para o Oriente. Seu filho Carlos, o Temerário, reprimiu as revoltas de Gante na Flandres e Liège. Ele elevou o estado da Borgonha ao seu apogeu, mas a sua morte na Batalha de Nancy em 1477 trouxe o Ducado da Borgonha para o domínio da coroa francesa para sempre. 

A filha de Carlos o Temerário - Maria da Borgonha - salvou o seu poder sobre os estados do Norte, dando à luz Filipe I de Castela, o que viria a ser pai de Carlos V, cuja mãe era Joana I de Castela. Nascido em Gante, em 24 de fevereiro de 1500, nunca deixou de reivindicar a Borgonha, fonte de conflitos incessantes com a monarquia francesa. Carlos V casou com Isabel de Portugal, filha do rei Dom Manuel I de Portugal e de Maria de Aragão e Castela.