André Ventura constrói-se – e é percebido – como uma espécie de avatar do “homem comum” português, mas não de um “português genérico”: trata-se, sobretudo, do homem ressentido, de classe média-baixa ou média insegura, que sente ter perdido lugar num mundo em mutação, tanto económica como culturalmente. Ventura dá voz àquela figura que se sente preterida por um sistema que favorece elites urbanas, tecnocráticas e cosmopolitas – elites que, de facto, vivem uma realidade muito diferente.
O “homem comum” sente-se invisível e desrespeitado. E Ventura aparece como aquele que o reconhece e o vinga simbolicamente, desafiando os códigos do politicamente correto, falando “sem filtros”, e atacando precisamente os que esse eleitor vê como cúmplices do seu declínio.
Pierre Bourdieu falava da “miséria simbólica” das classes populares e médias-baixas – ou seja, do sentimento de invisibilidade social, de falta de reconhecimento e prestígio. Quando a economia, a cultura e o discurso público se tornam dominados pelas elites cosmopolitas, altamente escolarizadas e urbanas, o homem das periferias, do campo, ou do subúrbio, sente-se despossuído do seu capital simbólico: já não é o chefe da família, o provedor, o trabalhador respeitado. O que surge, então, é o fenómeno da virilidade dominada – o homem que ainda acredita em valores tradicionais (força, honra, lealdade, autoridade), mas vive num mundo que já não os legitima. Ventura canaliza esse mal-estar: ele reabilita a virilidade humilhada, o orgulho masculino ferido, transformando-o em revolta política. O seu discurso “sem papas na língua” funciona como vingança simbólica contra um sistema que esse homem sente que o censura, ridiculariza e exclui. Neste sentido, Ventura encarna a inversão do estigma: aquilo que antes era considerado “atraso” (ser rude, autoritário, desconfiar do politicamente correto) torna-se, na sua retórica, autenticidade e coragem. O homem que se sentia invisível passa a sentir-se representado e até glorificado.
Ventura encarna o arquétipo do “guerreiro ferido” ou “guerreiro ressentido” = uma forma sombria do herói masculino que luta contra um mundo que considera corrompido e injusto. Este arquétipo surge sempre em tempos de crise civilizacional, quando as antigas certezas (autoridade, religião, trabalho, pátria) perdem o seu poder de coesão. O “guerreiro” sente-se traído pelas elites e despojado de um propósito coletivo. No caso português, isso é amplificado por um fundo cultural: o homem português foi educado num imaginário de estoicismo, sacrifício e obediência à ordem (do Império à ditadura salazarista). A democracia trouxe liberdade, mas também incerteza, fragmentação e perda de um papel social claro para o masculino. Ventura reaparece como aquele que restabelece a ordem simbólica — que promete devolver ao homem comum a sensação de ser novamente o centro da história, o sujeito ativo, e não o objeto passivo das decisões “lá de cima”. Ventura ativa a “sombra coletiva” – os impulsos reprimidos da sociedade, o ressentimento, o medo, a raiva – e dá-lhes forma discursiva e política. O problema é que essa sombra, quando não é integrada, tende a transformar-se em destrutividade ou intolerância.
Assim, Ventura é simultaneamente espelho e sintoma: espelho do homem comum que perdeu o seu lugar e quer reconhecimento; sintoma de uma sociedade que não soube integrar a crise do masculino nem criar novos modos de dignidade para quem não pertence às elites simbólicas. Ele não é a causa do mal-estar – é o canalizador de uma energia social latente. E enquanto as elites continuarem a tratar esse “homem comum” com condescendência ou ironia, Ventura continuará a prosperar como o seu avatar político e emocional. É precisamente aí, na ausência simbólica do feminino, que o fenómeno Ventura ganha a sua densidade mais profunda, porque o “homem comum” que ele encarna e mobiliza só se compreende plenamente através da relação truncada com o feminino, tanto na esfera individual como na social.
Analisando esta “persona” pelo lado do nível psicológico/arquetípico – todo o homem traz dentro de si um princípio feminino interior – a Anima – que representa a sensibilidade, a empatia, a intuição e a capacidade de relação. Ora, quando esse princípio é reprimido, o resultado é uma masculinidade defensiva, ressentida, que tenta afirmar-se por oposição ao que considera “fraco”, “mole” ou “sentimental”. É exatamente esse padrão que Ventura ativa: o homem que teme o feminino, porque o identifica com vulnerabilidade, submissão ou desordem. A sua linguagem agressiva, a teatralidade do confronto, a exibição constante de força e autoridade. Tudo isso é, de facto, uma máscara (persona) construída para esconder a fragilidade de uma identidade em crise.
Num plano social, o que está em jogo é a redistribuição simbólica de poder nas últimas décadas. As sociedades democráticas e liberais deslocaram do centro da vida pública a autoridade patriarcal. O discurso dominante passou a valorizar a empatia, a inclusão e o diálogo, traços tradicionalmente associados ao feminino. O “homem comum” sente-se, assim, destronado. Não apenas economicamente, mas simbolicamente. Ventura fala para esse sentimento: ele reintroduz, na linguagem política, uma forma de masculinidade hierárquica, em que o “mando”, o “castigo” e a “lei” recuperam o protagonismo. É por isso que neste imaginário a mulher ideal é simbólica, não política: é a mãe, a mártir, a protetora dos filhos, nunca a dirigente, intelectual, ou a legisladora.
Portugal tem um longo lastro de masculinidade moralista e clerical, herdada tanto do catolicismo tradicional quanto do salazarismo. O pai representava a autoridade, e a mãe, a devoção. Com o declínio dessas estruturas, o homem comum perdeu o espelho do “pai” – e ficou órfão de um modelo viril legítimo. Ventura surge como uma figura paternal substituta, que promete restaurar a autoridade perdida e proteger a “família” ameaçada. No fundo, ele não é apenas o avatar do homem comum; é também o fantasma do pai que regressa, para disciplinar o caos e restaurar a hierarquia. Mas – e aqui está o paradoxo – esse pai regressa sem mãe. O seu poder é estéril, porque carece de mediação, compaixão e equilíbrio. É o retorno da Lei, mas sem Amor. E, portanto, condenado a gerar medo e não comunhão. Enquanto o imaginário coletivo português não integrar o feminino como princípio de sabedoria e não apenas como função biológica ou moral, figuras como Ventura continuarão a servir de válvula de escape a um inconsciente social que se sente castrado e abandonado.
