segunda-feira, 29 de agosto de 2022

O mundo nem tanto essencial como relacional



Essencialismo não significa forçosamente que todas as propriedades de uma coisa são essenciais a ela. Mas também é excessivo assumir que há sempre um hiato intransponível entre o conhecedor e o conhecido. Podemos concordar com Hegel: o mundo é relacional por natureza, e o conhecimento também. Não se pode afirmar que há sempre uma propriedade central que caracteriza aquilo que uma coisa é. 

O essencialismo não é necessariamente uma forma de reducionismo. É conhecido o exemplo do ‘barco de Teseu’. O navio com que Teseu e os jovens de Atenas regressaram de Creta tinha trinta remos, e foi preservado pelos atenienses até ao tempo de Demétrio de Falero. À medida que partes do navio apodreciam eram substituídas por tábuas novas. Os filósofos discutiam o ser e a essência das coisas quando se lembraram de utilizar o barco de Teseu como modelo prático da discussão teórica. O que podia diferenciar o barco inicial do barco atualmente existente? Ao fim de muito tempo, o mesmo barco já não tinha nada do barco inicial. Assim, não podia ser a substância material o elemento essencial da identidade do navio, mas sim a sua forma. Ou o seu nome. Todas as tábuas foram substituídas por tábuas novas ao longo do tempo. Será que isso modificou a natureza essencial do barco?

Agora passemos para a natureza humana. Podemos argumentar que o que se considera essencial nos seres humanos e em suas instituições varia historicamente. Não se encontram muitos filósofos que duvidariam que existem certas propriedades que fazem de uma coisa o que ela é, ou que as coisas que pertencem à mesma classe devem ter algo em comum, mesmo que esse algo não passe de uma série de “semelhanças de família”. A ideia de essencialismo não significa forçosamente que todas as propriedades de uma coisa são essenciais a ela. Por exemplo, Karl Marx defendia ideias essencialistas; Jeremy Bentham, um utilitarista, era um crítico convicto do essencialismo; John Locke, pai do liberalismo inglês e investidor no comércio de escravos, acreditava que algumas propriedades eram essenciais, enquanto outras eram meramente nominais ou contingentes. 

Uma essência humana é ser cultural. Não porque a cultura seja tudo para os seres humanos, mas porque a cultura faz parte da sua natureza. A natureza humana é sempre corporizada em algum modo cultural específico, assim como todas as línguas que se falam são específicas. Certo tipo de humanistas liberais desvalorizam isso, afirmando que existe uma essência central de valores imutáveis por baixo da insignificância relativa de nossas diferenças culturais. Isto dificulta a nossa visão do que se propõe aqui como culturalmente específico. Afirmar que todas as línguas são específicas significaria que não há essa coisa genérica chamada linguagem que é única na vida animal. 

Departamentos das academias de estudos culturais, de cultura pós-moderna, que ensinam uma forma de nominalismo filosófico através de categorias gerais irreais, acabaram por imprimir um preconceito em relação ao que os empiristas modernos chamaram factos. Conceitos como “feminismo”, que cobrem um campo complexo de crenças e atividades, geraram imensas controvérsias e desentendimentos quanto ao significado de iluminismo e modernidade. Uma linguagem “perfeita” não teria qualquer serventia para a vida social. Hoje em dia podemos encontrar pessoas que rejeitam a teoria do valor do trabalho, a ideia da falsa consciência, o modelo de base e superestrutura, a noção de revolução política, os princípios do materialismo dialético, a doutrina do conflito entre as forças e as relações de produção. E essas pessoas ainda insistem em se intitular marxistas. Por isso, não basta dizer-se feminista e ao mesmo tempo obrigar mulheres a trabalhar em excesso em troca de um salário de fome. De feminista não teria nada, embora assim pensasse. Não acreditaríamos nele, por mais que proclamasse com impostura a validade de sua experiência. O pós-modernismo opõe-se ao essencialismo; mas também se opõe às metanarrativas da razão crítica universal. 

Quase ninguém acredita que a História vai deslizando tranquilamente para um objetivo predeterminado. Mas todo o mundo acredita em propósitos e intenções, de projetos definidos e direcionados por seus fins específicos. E a maioria das pessoas, salvo alguns epígonos do estruturalismo, aceitam a noção de condições necessárias: a proposição banal de que há momentos em que, para chegar a Y, é preciso antes ter alcançado X. Se isso representa uma verdade óbvia para os indivíduos, o mesmo se aplica à história em geral. E, nesse sentido, pelo menos nesse sentido ínfimo, a História é uma questão de Necessidade e não de “vale-tudo”. 
Não existe, portanto, a possibilidade de uma escolha simplista entre a História como formato de história; e a História como um grande caos. Se as narrativas são o que vivemos e relatamos, não há então como ver a História material como um texto de todo insolúvel, à espera dos arranjos artificiosos do relato selecionado ao acaso por algum teórico. Essa é a visão privilegiada daqueles sortudos o bastante para desconhecer que os projetos históricos às vezes têm metas muitíssimo determinadas segundo a perspectiva de suas vítimas. 

Se a História é fundamentalmente aleatória, no sentido, por exemplo, de que não há relações causais significativas entre uma parte dela e outra, torna-se difícil saber como se poderia evitar, digamos, um Hitler ou um Stalin. Não seria possível construir o socialismo nas condições mais impróprias, sem a ajuda de forças produtivas desenvolvidas, de aliados abastados, de vizinhos não hostis, de camponeses cooperativos, de uma tradição liberal e democrática vigorosa, de uma sociedade civil funcionando bem, de uma classe trabalhadora razoavelmente bem preparada e afins. 

É difícil imaginar uma condição humana mais desejável, independentemente de ela poder um dia realizar-se, como a que Marx tinha em mente com o comunismo, em que o indivíduo viveria enfim em plenitude. Não existe teleologia uma vez que esse estado de coisas até agora está presente de maneira imprecisa no fim da História, esperando pacientemente que o alcancemos. A teleologia em geral envolve a admissão de que há algum potencial no presente que poderia resultar num tipo específico de futuro. O que não quer dizer, entretanto, que esse potencial se esconde dentro do presente, como se de uma semente se tratasse. Trata-se de um sentido que diz mais respeito ao individual que ao histórico, e que vamos encontrar na discussão de Aristóteles sobre a vida boa. A ética de Aristóteles não é do tipo moderno, concentrada ao estilo kantiano nos conceitos de dever, do sujeito moral solitário e da correção ou incorreção de suas ações isoláveis. Ela enfoca mais a ideia de virtude, o que equivale a dizer a forma, substância e qualidade de uma vida inteira em seu contexto social prático. A virtude é uma questão da realização gratificante, plena das forças humanas da pessoa, ao mesmo tempo uma prática e um objeto de prática. 

A condição humana representa um conjunto de ideias teleológicas uma vez que envolvem a trajetória de uma vida inteira no seu devido desenrolar. O que quer que se pense disso, essas são noções sugestivas que Kant nos deixou com os seus fetiches de dever, imperativos, proibições, a supressão do prazer e afins. Isto não quer dizer que essas ideias não têm lugar no discurso moral (muitas proibições são progressivas), apenas que as poucas incursões que o pós-modernismo fez até agora no campo da ética infelizmente basearam-se nessa terminologia kantiana. Assim como alguns marxistas mecanicistas da Segunda Internacional se voltaram incongruentemente para Kant em busca de seus valores morais, porque estava se provando impossível gerar esses valores fora de seus pontos de vista positivistas da história, o pós-modernismo, que tem sua própria versão de positivismo, pelo menos no seu receio da profundidade metafísica, também parece ter resolvido repetir o gesto. E também nesse sentido ele é um filho da modernidade que se arroga ter suplantado.


terça-feira, 23 de agosto de 2022

Max Weber



Max Weber [21 de abril de 1864 – 14 de junho de 1920] foi um sociólogo e economista político alemão que rejeitou o positivismo e destacou a nossa compreensão subjetiva dos fenómenos sociais. Tendo sido o principal arquiteto das ciências sociais do século XX, Weber estava interessado no que acontece com os indivíduos dentro dos grupos como resultado da ação social. Como consequência disso, ele levou as ciências sociais para além dos tratamentos empíricos propostos por seus precursores: Auguste Comte e Émile Durkheim. Oriundo da Turíngia, estudou direito nas universidades de Heidelberg e Berlim. Um documento de política social [A situação dos trabalhadores rurais na Alemanha nas províncias para lá do Elba], publicado em 1892, proporcionou-lhe o primeiro cargo de professor em Heidelberg. Em 1903 pediu a demissão do cargo na universidade. Só voltaria à vida académica em 1919. Ao contrário de Marx, que buscava derivar leis históricas do seu estudo com dados empíricos, Weber não acreditava que as ligações complexas obtidas em relações sociais e económicas fossem redutíveis a leis. Tal hipótese anularia o papel do sujeito, o que para ele redundava numa simplificação excessiva do papel do sujeito.

O trabalho mais conhecido de Max Weber, “A ética protestante e o espírito do capitalismo” (1905), é um texto fundamental para as ciências sociais modernas. Trata-se de uma análise brilhante sobre os motivos pelos quais protestantes, e não católicos romanos, chegaram ao domínio do empreendimento capitalista, uma versão não marxista do capitalismo. O conhecimento que permitiu a Weber analisar o capitalismo e o espírito ascético do protestantismo tem origem em seus estudos iniciais sobre as estruturas económicas da Idade Média.

Como filósofo, Weber foi profundamente influenciado por Friedrich Nietzsche. Por sua vez influenciou pensadores como Martin Heidegger, Karl Jaspers, Martin Buber e Michel Foucault, para citar apenas alguns. Para Nietzsche as ciências sociais não eram bem ciências, uma vez que todos os julgamentos partiam necessariamente de uma perspetiva subjetiva e, portanto, não eram cientificamente objetivos. Weber era sensível a essa opinião, mas seu método – até onde se pode dizer que teve um – consistia em analisar os dados, explorá-los no contexto de múltiplas perspetivas eventualmente relacionadas com eles. Depois de equacionadas essas perspetivas, então construía-se um juízo objetivo, mas enriquecido pelo entendimento do que significa o fundamento baseado na interpretação.

Embora Weber fosse um crítico do capitalismo, ele discordava de Marx quanto à ideia de que o socialismo libertaria o homem de suas correntes; o socialismo ao ocupar o lugar do capitalismo, argumentava ele, o socialismo não resolveria as doenças do capitalismo, mas, em vez disso, as incorporaria, porque precisaria criar uma máquina burocrática ainda maior, o que fatalmente levaria a uma nova racionalização e a uma nova “gaiola de ferro”, assim como a novas restrições à liberdade.

Por ação social, Weber se referia a “todo comportamento humano ao qual o indivíduo que age vincula um significado subjetivo”. Essa definição estabeleceu para Weber uma linha de pesquisa que conduziria a uma consideração do modo como fatores sociais, políticos e económicos influenciavam a felicidade do homem, que ele considerava cada vez mais ameaçada pelo processo de racionalização segundo o qual burocracias modernas transformavam seres humanos em engrenagens de uma máquina. Racionalização é o processo pelo qual ações sociais projetadas para levar à eficiência económica se tornavam cada vez mais predominantes em sociedades capitalistas. Essas ações sociais substituíam as que anteriormente haviam guiado o desenvolvimento de sociedades, por exemplo: tradições; interesse comum; moralidade.

Weber foi um estudioso dos mecanismos de poder, tendo sido um dos primeiros a defini-los como tema de estudo sério – o início de uma tradição que chegaria à maturidade com o trabalho de Michel Foucault. Em Política como vocação (1919), identificou o Estado como: Única fonte do ‘direito’ de usar a violência. Portanto, ‘política’ significa lutar para dividir o poder ou lutar para influenciar a distribuição do poder, seja entre Estados ou entre grupos dentro de um Estado. Weber definiu o poder como “a oportunidade de um homem ou um grupo de homens satisfazer a sua própria vontade em uma ação comum, até mesmo contra a resistência de outros que participam da ação”. Ele listou três tipos de poder: tradicional (estabelecido há muito tempo pelo costume, como a monarquia); carismático (autoridade com origem no apelo de um líder individual); legal e racional (autoridade com origem na constituição). Weber explorou o conflito que surgia na chegada de um líder carismático a uma burocracia legal e racional. 

Max Weber teve grande influência no trabalho de Jürgen Habermas, devendo-lhe tributo quanto ao conceito de “esfera pública”, análise do capitalismo, da democracia e do direito. Karl Jaspers, um dos fundadores do existencialismo, também absorveu muita da análise social de Weber, que sustentou as teorias da intersubjetividade deste filósofo. A influência de Weber pode ser ainda sentida, ainda que mais silenciosamente, no pano de fundo do trabalho de Hannah Arendt, embora discordasse quanto ao tema da violência política. O conceito de gaiola de ferro, de Weber, descrevia precisamente como Adolf Eichmann veio a colocar-se à frente da administração do transporte de judeus para campos de concentração nazis.

O principal interesse filosófico de Weber era o mesmo de Kant: a situação da liberdade do homem em um mundo no qual o ritmo de mudança estava a começar a acelerar. A preocupação de Weber com a liberdade surgiu no momento em que o capitalismo ascendia e a velocidade do crescimento tecnológico e das mudanças sociais aumentava de modo nunca antes visto, com consequências desconhecidas. Weber buscava identificar os problemas que a liberdade humana encarava em uma sociedade cada vez mais racionalizada. Ele fez isso de modo não programático; e seu singular método não metodológico continua a fornecer uma maneira prática de compreender a situação do indivíduo na sociedade e identificar as circunstâncias que reforçam ou ameaçam a liberdade.

A ideia da obrigação do homem perante as possessões que lhe são confiadas, às quais ele se subordina como servo e administrador, ou até como “máquina de fazer dinheiro”, repousa sobre a vida com seu peso frio. Se ele somente persevera no caminho ascético, então quanto mais bens ele possui, mais pesado se torna o sentimento de responsabilidade por preservá-los inalterados para a glória de Deus e ampliá-los pelo trabalho incansável. Algumas das raízes desse estilo de vida estão na Idade Média, assim como tantos elementos do espírito capitalista, mas foi somente na ética do protestantismo ascético que ele encontrou um fundamento ético consistente. Sua significância para o desenvolvimento do capitalismo é óbvia. Ela elimina os grilhões na luta pelo ganho, pelo lucro, não somente ao legalizá-lo, vê-o como algo desejado diretamente por Deus.

Max Weber é amplamente reconhecido como a maior figura na história das ciências sociais e, como Karl Marx ou Adam Smith – que poderiam ser considerados concorrentes deste título –, Weber foi muito mais que um estudioso de disciplinas. Ao contrário de Smith e Marx, não existe um “Weber ideológico”. Ninguém transformou o pensamento de Weber diretamente numa visão de mundo política, ou num conjunto de receitas políticas para consumo do público em geral. Mas existe um “Weber político” extremamente importante, cujo estudo da moralidade da vida política influenciou diversos políticos e pensadores, e permanece essencial nas questões a respeito da natureza da responsabilidade política.


quinta-feira, 18 de agosto de 2022

A Estética em Baumgarten e os seus particulares



A Estética, como conceito, nasceu como um discurso sobre o corpo. Para Baumgarten, o termo grego “aisthesis” não tem a ver com arte, mas com a sensação e percepção humanas em contraponto com o pensamento e o domínio dos conceitos e das ideias. Assim, no tempo de Baumgarten, em meados do século XVIII, a estética não é tanto a distinção entre “arte” e “vida”, mas entre material e imaterial; entre coisas e pensamentos; sensações e ideias; entre o que está ligado à nossa vida e o que eleva para recessos da mente sombria. 
Alexander Gottlieb Baumgarten (Berlim, 17 de julho de 1714 –  Frankfurt do Oder, 27 de maio de 1762) foi um filósofo e educador alemão que cunhou o termo estética e estabeleceu essa disciplina como um campo distinto da investigação filosófica.

A demanda por uma estética, na Alemanha do século XVIII, é, entre outras coisas, uma resposta ao problema do absolutismo político. A Alemanha desse período era um território com um emparcelamento de estados feudais absolutistas, marcados por particularismos idiossincráticos de uma cultura que não era comum mas tinha muitas coisas em comum como a língua germânica e o Sacro Império Romano Germânico. Os príncipes ligavam os seus caprichos ao Sacro Império através de intrincadas burocracias. E o campesinato era mantido em condições de submissão feudal. Abaixo deste controlo autocrático, uma burguesia ineficaz era imobilizada pela política mercantilista da nobreza, com a indústria controlada pelo Estado e o comércio pelos impostos submetido ao poder generalizado dos tribunais. 

Entretanto, os estratos profissionais e intelectuais do povo alemão iam crescendo a bom ritmo, produzindo, pela primeira vez, no final do século XVIII, uma casta considerável de gente erudita que exercia uma liderança cultural e espiritual para além dos interesses da aristocracia. Sem bases no poder político e económico, no entanto, esse esclarecimento burguês mantinha-se em muitos aspetos hipotecado ao absolutismo feudal, marcado por um profundo respeito à autoridade. O caso de Immanuel Kant, corajoso Aufklärer e súbdito dócil do rei da Prússia, pode ser tomado como o pináculo do paradigma. O que germina no século XVIII com o novo e estranho discurso da Estética não é um desafio à autoridade política. No entanto, pode ser lido como sintomático do dilema ideológico inerente ao poder absolutista. Este poder necessita, para seus próprios propósitos, de algo que dê conta da vida “sensível”, pois sem um entendimento dela nenhum domínio pode ser seguro. O mundo dos sentimentos e das sensações não pode ser simplesmente ignorado como “subjetivo”. Kant, desdenhosamente, desmascara o “egoísmo do gosto” catapultando-o para dentro do escopo da crítica da razão.

E é assim que Baumgarten agarra a abstração genérica da Estética à Razão, e os seus particulares aos sentidos. A Estética, sendo agarrada pela Razão, estende-se aos sentidos numa espécie de fusão. Na sua interpenetração orgânica, os elementos da representação estética resistem àquela discriminação em unidades discretas característica do pensamento conceptual. A Estética, escreve Baumgarten, é a “irmã” da Lógica, uma espécie de rácio inferior da razão no nível das sensações. Sua função é ordenar este domínio em representações claras ou perfeitamente determinadas, de uma forma semelhante às operações da razão propriamente dita. A Estética nasceu do reconhecimento de que o mundo da perceção e da experiência não pode ser simplesmente derivado de leis universais abstratas, mas requer um discurso mais apropriado à manifestação dos particulares ao nível do corpo. Como uma espécie de pensamento concreto, ou análogo sensual do conceito, a estética participa ao mesmo tempo do racional e do real, suspensa entre os dois. Podemos concordar sobre o belo, não a partir de argumentações e análises, mas bastando olhar para ver, nascendo de um consenso espontâneo da própria vida corpórea, trazendo consigo a promessa de que essa vida, apesar de toda a sua obscuridade e arbitrariedade aparentes, possa funcionar, de algum modo, muito semelhante a uma lei. Isto é, nós podemos ver parte do significado da Estética entre o rigor do entendimento e a errância fugidia dos sentimentos.

Husserl em “A Crise da Ciência Europeia” procura precisamente resgatar o mundo-da-vida à opacidade da razão ocidental, desligada de modo alarmante das suas raízes somáticas. A filosofia não pode cumprir o seu papel fundacional se deixar o mundo-da-vida abandonado ao anonimato. O corpo, antes mesmo de chegar a pensar, é sempre um organismo sensivelmente experimentador e está em seu mundo de um modo bastante diverso do de um objeto aprisionado no espaço e no tempo. O conhecimento científico de uma realidade objetiva é sempre fundado numa intuição dada a priori a um corpo preceptivo situado no mundo. Husserl observa que um racionalismo mal dirigido ignorou este facto.

Husserl, vítima do fascismo nos anos de 1930, avisa que é preciso recuperar o ‘Lebenswelt’ para uma nova “ciência universal da subjetividade”. Husserl adverte para considerarmos o mundo-da-vida, que nos envolve de modo concreto, intuitivamente, com seus seres reais.  ele fala, no sentido original do termo, como um esteta. Não se trata, certamente, de nos abandonarmos ao “fluxo heraclitiano totalmente subjetivo e aparentemente incompreensível” de nossa experiência quotidiana, mas de formalizá-lo rigorosamente. Pois o mundo-da-vida mostra uma estrutura geral, e esta estrutura, à qual tudo o que existe relativamente está ligado, não é relativa.

Será deixada a Merleau-Ponty a tarefa de desenvolver este “retorno à história vivida e à palavra falada”. Ao fazê-lo, ele deve colocar em questão a pretensão de que se trata de “um passo preparatório a ser seguido pela atividade propriamente filosófica da constituição universal”. Os costumes, as devoções, a intuição e a opinião devem agora dar coerência a uma ordem social, que de outro modo se mantém atomizada e abstrata. Ao derrubar o poder absolutista, cada sujeito deve funcionar como sua própria sede de autogoverno. Contar com o sentimento como fonte da coesão social não é algo tão precário quanto parece. É na própria carne que se pode criar uma existência verdadeiramente cooperativa.

Não é fácil aderir ao apelo do gosto e ao sentimento como alternativas à autocracia. Há uma enorme diferença política entre uma lei que o sujeito realmente cria para si mesmo dentro do estilo democrático radical, e um decreto que desce do alto e é simplesmente “legitimado” pelo sujeito. O consenso livre pode ser assim a antítese do poder opressor, ou uma forma sedutora de conluio com ele. A Estética é assim, desde o início, um conceito contraditório, de dupla entrada. A Estética oferece à classe média um modelo extremamente versátil para as suas aspirações políticas, exemplificando novas formas de autonomia e autodeterminação, modificando as relações entre lei e desejo, moralidade e conhecimento. E assim se reformulam os vínculos entre o individual e o coletivo, revendo as relações sociais com base nos costumes, nos afetos e na simpatia.

domingo, 14 de agosto de 2022

A narrativa do sujeito pós-moderno



A História da Filosofia Ocidental Moderna é de um modo geral a narrativa do sujeito completamente autónomo. A ortodoxia pós-moderna rompe com esse paradigma para afirmar o sujeito disperso. O pós-modernismo não aceita sem questionar aquilo que apelida de paródia - uma narrativa dogmática da filosofia ocidental. Por exemplo, para um filósofo dos primórdios da modernidade racionalista como Espinosa o sujeito resulta de um determinismo implacável. A Liberdade, que tanto preza, nada mais é que a Necessidade. Aqui, o conceito de Necessário contrapõe-se a Contingente . Por outro lado, por exemplo, David Hume questionou a existência do "eu", uma ficção conveniente, que não passaria de um feixe de ideias e experiências cuja unidade só poderíamos admitir por hipótese.

O sujeito moral de Kant mostra-se, de facto, autónomo e autodeterminado, mas de uma maneira misteriosa em total conflito com a sua determinação empírica. Para Schelling, Hegel e outros idealistas, o sujeito está relacionado às suas raízes, como certamente também acredita Marx; para Kierkegaard e Sartre, o "eu" é agonizantemente não auto idêntico e, para Nietzsche, mera espuma na onda da vontade ubíqua de poder. Deixemos então de lado a grande narrativa do sujeito unificado. Não se questiona a existência desse animal atormentando: o sujeito no pensamento ocidental; mas o relato é muito menos convenientemente homogéneo do que alguns devotos pós-modernos da heterogeneidade nos levariam a pensar.

A tradição liberal não tem necessidade alguma de postular um individualismo ontológico. Qualquer liberal razoavelmente sofisticado pode concordar que o sujeito é culturalmente construído e historicamente condicionado; ele pode estar carecendo menos de uma antropologia filosófica que de uma doutrina política que trate dos direitos desse sujeito diante do poder do Estado. E também não há por que só considerar esses direitos no sentido implausível naturalista de Rousseau. O termo “direitos” pode referir-se apenas àquelas necessidades e capacidades que, de tão vitais para nossa prosperidade e bem-estar, o Estado se vê constrangido a dar-lhes especial tratamento e proteção.

Para Kant, ponderar os possíveis efeitos benéficos de uma ação já significa macular a sua pureza moral; para uma corrente mais inflexível do Utilitarismo, o que interessa é a promoção do bem-estar geral, mesmo que isso signifique sacrificar a liberdade ou o bem-estar de indivíduos específicos. E é neste balanço constante do pêndulo social entre kantianos e utilitaristas que o debate moral se tem feito há dois séculos a esta parte.

A maioria de nós provavelmente concordaria em que há limites para o que se pode exigir de um indivíduo em prol do bem comum — que, como diria Rawls, o bem de cada pessoa importa igualmente, de tal forma que limita a busca do bem de todos; mas muitos de nós também achariam convincente a alegação teleológica de que o discurso moral não se deveria restringir às precondições da vida boa — a distribuição equânime de liberdade, por exemplo —, mas também examinar, à maneira da antiguidade clássica, em que deveria consistir a vida boa e qual a melhor maneira de garanti-la. Houve quem afirmasse, por exemplo, que Marx era um “deontologista misto”, que entendia o bem moral como a promoção do bem-estar geral, mas não, digamos, à custa do imperativo deontológico de que todos os homens e mulheres têm direito de participar desse processo.

O Estado liberal vai gerar precisamente os tipos de desigualdade e exploração que subvertem a busca do bem-estar que ele devia promover. Com efeito, nem todos estarão de posse dos bens básicos necessários para traçar o próprio caminho para a felicidade. A alguns faltarão recursos materiais e espirituais, inclusive a estima dos outros que se pode reputar como um componente vital do bem-estar humano. Tomás de Aquino e Wittgenstein, leva em conta as raízes culturais e históricas do "eu", sua incorporação na tradição e na comunidade, e, segundo esse ponto de vista, reprova o que vê como o atomismo iluminista abstrato do sujeito liberal, com sua ética acima da História e especiosamente universalista.

Alegar que a atividade política não serve só de instrumento para o bem privado, mas em vez disso pertence ao domínio da virtude, é uma outra maneira de dizer que a democracia não consiste apenas numa forma opcional de governo entre várias, a ser julgada segundo os padrões utilitaristas, mas num bem moral em si. Nesse sentido ela é uma questão deontológica em vez de teleológica, que não poderia, por exemplo, ser negociada no espírito utilitarista, por um aumento maior de outros bens de modo geral. Não optaríamos por uma ditadura só por ela manter os pubs abertos até mais tarde. Se essas decisões não são nossas, assim proclama a modernidade, seu valor diminui, por mais sagazes que se apresentem. Pode-se dizer que o liberalismo leva esse caso a um extremo formalista, do qual o existencialismo talvez se constitua o reductio ad absurdum: importa menos o que eu escolho do que o facto de ser eu a escolhê-lo. Um tipo de ética adolescente, em suma. Mas a democracia política também é teleológica, já que o governo democrático não existe em benefício próprio. Ele existe, entre outras coisas, como nos lembram os liberais, para permitir que o bem-estar pessoal prospere. As esferas públicas e privadas permanecem distintas, como querem os liberais; mas estão ligadas, o que eles não reconhecem tão facilmente, pela prática compartilhada da virtude, tanto na forma da autodeterminação democrática, como no que isso contribui para a busca da felicidade individual.

Ambos os credos - deontológico e teleológico - reciclados pelos pós-modernos, representam tipos de culturalismo. A ação certa e a vida boa não podem ser definidas separadamente das práticas culturais contingentes que herdámos. O "eu" (sujeito), para as duas doutrinas, encaixa numa história puramente paroquial (expressão de Wittgenstein), de forma que os julgamentos não podem ser universais. O que tem tornado menos simpático no pós-modernismo é o seu relativismo moral hostil aos Universais. E é por via desse relativismo que o sujeito corre o risco de implodir. 
O sujeito liberal clássico, pelo menos, lutava para preservar a sua identidade e autonomia juntamente com a sua pluralidade, ainda que isso nunca tenha sido fácil; agora, numa deterioração drástica desse processo, o sujeito de uma fase mais avançada da sociedade de classe média vê-se compelido a sacrificar a sua verdade e identidade em nome da pluralidade, a que passam a chamar ilusoriamente "liberal". Ou seja, o sujeito da criatividade, neste mundo capitalista de pendor liberal, está cedendo a sua criatividade ao sujeito consumista, o último estádio do sujeito moderno. 

Sucede que no mundo marxista, o sujeito se viu refreado, pelo menos em teoria, 
o sujeito só seria livre de si mesmo. É um mundo sem sujeito, que sugere que o que estava atrapalhando a liberdade do sujeito era nada menos que o próprio sujeito. Mas sem esse respeito, o sujeito entra em colapso, uma vez que os outros também não iam respeitar a sua autonomia. E essa é uma imagem muito apropriada da sociedade comunista, em que, para Marx, o limite do capital é o próprio capital.

Já vimos que o sujeito pós-moderno é, paradoxalmente, ao mesmo tempo “livre” e determinado, “livre” porque constituído até à alma por um conjunto difuso de forças. Nesse sentido, ele é simultaneamente mais e menos livre que o sujeito autónomo que o precedeu. Por outro lado, a tendência culturalista do pós-modernismo pode levar a um autêntico determinismo: o poder, o desejo, as convenções ou as comunidades interpretativas nos moldam, sem que possamos evitá-lo, a comportamentos e crenças específicas. A desculpa de excesso de determinação não afasta as implicações degradantes disso — que, afinal de contas, integramos sistemas múltiplos e conflitantes em vez de monolíticos, de forma a deixar o sujeito carente de identidade fixa, o que pode vir a confundir-se com a sua liberdade.

Mergulhamos aqui na oposição poderosa entre deontologia e teleologia, entre kantianos e utilitaristas. Uma dialética dos novos direitos entre a manutenção da primazia à justiça, em antítese com o favor à virtude da felicidade. Os teóricos deontológicos, como Kant ou o grande estudioso liberal contemporâneo John Rawls, dão prioridade ao direito sobre o bem, a justiça sobre a felicidade. Por seu turno, os pós-modernos consideram que devemos concentrar a nossa atenção na felicidade ou na vida boa, e que a questão dos direitos só faz sentido se inserida nesse contexto.

sábado, 13 de agosto de 2022

O que diziam os filósofos no dealbar do fascismo e do comunismo?



Em oposição aos pensadores alemães que projetaram a II Guerra Mundial, quatro exemplos podem ser mencionados, dois dos quais foram alunos de Edmund Husserl, que definiu o núcleo moral da filosofia alemã em crise e demonstrou como ela podia ser desenvolvida: foi o caso de Edith Stein, Hannah Arendt, Karl Jaspers e Dietrich Bonhoeffer. Edith Stein lutou tanto como mulher quanto judia no sistema universitário alemão. Ela se tornou assistente pessoal de Edmund Husserl e prometia tornar-se uma fenomenóloga de destaque, mas se converteu ao catolicismo romano e tornou-se freira. Por algum tempo, ela conseguiu evitar a deportação devido ao estatuto de freira; mas pouco depois de ser transferida para um convento nos Países Baixos, elementos da SS (Schutzstaffel, organização paramilitar criada por Hitler na Segunda Guerra Mundial) encontraram-na (assim como à sua irmã, que estava com ela) deportando-a para Auschwitz, onde morreu em 1942. Seu trabalho sobre a empatia foi influenciado não somente por Husserl e pela tradição agostiniana, mas também por sua experiência como enfermeira assistente na Primeira Guerra Mundial e pelas mortes nesse conflito de pessoas que ela amava. A luta por dominação total de toda a população do mundo, a eliminação de toda a realidade não totalitária concorrente, é inerente aos próprios regimes totalitários.

Karl Jaspers é o herói desconhecido da filosofia de meados do século XX – um "Mahler" para o "Wagner" de Heidegger. Sua filosofia existencialista era, como aquela de Stein e Bonhoeffer, baseada na comunicação por meio do amor e em movimentos empáticos para com o outro. Ele resistiu com firmeza aos nazis e protegeu a sua esposa judia, ao lado da qual sobreviveu à guerra. Também assumiu a supervisão de Hannah Arendt, ex-aluna e amante de Heidegger. Também no trabalho dela, aparece o tema agostiniano do amor. Depois de fugir da Alemanha, e então da França, Arendt fixou-se em Nova York, onde se tornou a mais eminente filósofa política, trabalhando na tradição fenomenológica segundo as modificações realizadas por Heidegger. Em 1948, Jaspers deixou a Alemanha para assumir um cargo em Basileia, onde permaneceu até à morte.

O fascismo, para alguns filósofos e politólogos, é mais uma tendência do que um programa sistemático. Isso não significa que não seja uma ideologia, e que o nazismo não se tenha inspirado nele. O nazismo é mais difícil de tipificar em filosofia política na medida em que foi um fenómeno imanente ao partido nacional-socialista alemão, nascido do inconformismo em relação à humilhação alemã decorrente da sua condição de vencida na Primeira Guerra Mundial 1914/1918. Para os partidos de inspiração marxista - Partidos Socialistas e Partidos Comunistas - o Partido Nacional-Socialista alemão era um partido fascista. O fascismo, da maneira como nasceu a partir de Itália, depois propagou-se a outros países com as respetivas adaptações idiossincráticas de cada país. O resultado do fascismo na Alemanha com o nazismo, é muito diferente da história do fascismo em Portugal ou Espanha. Para os alemães, que sofriam com o peso do Tratado de Versalhes, o fascismo para se implantar utilizou os judeus como bode expiatório.

Quando em 1922 Mussolini se tornou primeiro-ministro, o socialismo já estava maduro desde 1848, quando Karl Marx e Friedrich Engels publicaram em coautoria o Manifesto Comunista que culminou na filosofia política e económica do socialismo. O Manifesto Comunista havia sido escrito no meio do grande processo de lutas urbanas das Revoluções de 1848, chamadas também de Primavera dos Povos, um processo revolucionário de quase um ano que atingiu os principais países europeus. Tinha passado quase um século desde os alvores da chamada Revolução Industrial a partir de 1760. Duas de suas maiores reivindicações foram reformas sociais: a conquista da diminuição da jornada diária de trabalho de doze para dez horas e o voto universal, embora apenas para os homens.

Lenine (1870-1924) foi o primeiro político a implementar o socialismo a sério contra a previsibilidade de Marx, posto em prática pelos bolcheviques na Rússia após a Revolução Russa de outubro de 1917. Marx e Engels viam a organização social como o resultado de relações económicas historicamente determinadas. Para eles, a história do homem moderno era definida pelo conflito entre trabalho e capital, o que necessariamente exigia uma política radical. O paraíso dos trabalhadores que Marx e Engels tinham em mente quando escreveram O Manifesto Comunista provou-se no século XX ser uma utopia. A ascensão de Joseph Stalin (1879-1953) à liderança da União Soviética levou quase 20 milhões de pessoas à morte que para uns resultou pura e simplesmente da fome. Mas é incalculável o número de mortes resultantes dos expurgos e das deportações.

Os cidadãos soviéticos tinham trabalho garantido, mas a sua qualidade de vida, em termos de confortos materiais, e dignidade pessoal, estava muito longe do resto do mundo ocidental, onde o capitalismo produzia lucros recordes, inaugurando um novo mundo de prosperidade para os americanos e, com o tempo, também para os europeus. Além disso, enquanto os governos nos Estados Unidos e grande parte da Europa resultavam de eleições livres e democráticas, a liderança na União Soviética era exercida por um Comité Central de um único partido de massas – o Partido Comunista, que se materializava na governação por uma nata desse comité central denominado Politburo. A filiação ao Partido Comunista era restrita a uma minoria privilegiada, e um elaborado Estado Policial mantinha a população agrilhoada a uma ordem totalitária concentracionária por uma polícia política de cariz secreto chamada KGB que sucedeu ao serviço secreto NKVD.

Quando os nazis começaram a perseguir os judeus na Alemanha em 1933, preparando o terreno para os horrores da Segunda Guerra Mundial, tanto os Estados Unidos como a Grã-Bretanha beneficiaram com a chegada em suas terras de filósofos e cientistas que fugiam dos nazis na tentativa de salvarem a pele. Anos depois, os Estados Unidos seriam a primeira nação a desenvolver uma arma nuclear, utilizando a ciência trazida por refugiados alemães, como foi o caso de Einstein (1879-1955). Enquanto os físicos estavam ocupados a explodir o mundo e, ao mesmo tempo descobrindo como se dera a sua existência, biólogos e geneticistas voltavam-se para o mundo interno. Enquanto os físicos exploravam o mundo externo, os filósofos exploravam o mundo interno da mente humana. A biologia – particularmente a genética – ainda estava na meninice a dar os seus primeiros passos. Entretanto, na Alemanha, Mengele, o anjo da morte de Auschwitz, entrava nos corpos para descobrir como eles funcionavam da forma mais infame que a humanidade jamais conheceu.

Daí o medo da genética, com a possibilidade de alterar o que acontece dentro de nossos corpos ao ser manipulado o DNA para a produção de clones, que reúne os blocos de construção de toda a vida. Charles Darwin (1809-82) havia inaugurado uma tendência que teria um impacto sobre a humanidade comparável ao da obra de Karl Marx. Daí o medo dos criacionistas americanos. Se a humanidade evoluiu de acordo com a seleção natural de Darwin, foi um acaso genético e uma necessidade ambiental que criaram as espécies. A divindade ainda pode ser buscada na origem se perguntarmos aos ateístas “porque há algo em vez de nada”. Mas não na origem do Homem. Por mais que embelezemos esta simples conclusão com metáforas e imaginação, ela continua o legado filosófico do último século de pesquisa científica. E. O. Wilson, em “Da natureza humana” (1978) afirma que “A teoria de Darwin”, da seleção natural continua a insuflar debates e a evidenciar a distância que existe entre conhecimento e crença mítica. Essa disjunção gerou um clima anti-intelectual no final do século XX com os ditos criacionistas como arautos da verdade.

Depois da II Guerra Mundial, enquanto a Filosofia cedia espaço à Psicologia, os filósofos foram apanhados pelo tsunami ideológico que viria a ser conhecido por Pós-modernidade. Entretanto u outro movimento de inspiração nas filosofias de cariz orientalista também ia emergindo com a designação "New Age". As preocupações no rescaldo da filosofia existencialista pelo "eu interior" e o comportamento modelado pelas emoções, tornou-se no Alfa e no Ómega da cartilha do multiculturalismo. A Filosofia foi momentaneamente expurgada de todo o perfume metafisico que tanto impregnara a filosofia da Idade Moderna e Iluminista.  Foi, por assim dizer, a captura do Iluminismo por parte do idealismo e o historicismo hegeliano. 

É da tradição filosófica idealista o envolvimento da psicologia em cada pensamento. É a mente que exerce um papel na constituição do mundo para além do sujeito; ela é o suporte do empirismo, na medida em que a mente é o recipiente para as impressões dos sentidos. Para essa transição Sigmund Freud foi fundamental com a descoberta do inconsciente. A contribuição de Freud foi indubitavelmente vigorosa, ao ponto de as suas ondas de choque se terem repercutido também no grupo dos marxistas. Jacques-Marie Émile Lacan foi o filósofo francês psicanalista, que depois dos estudos em Medicina, se orientou numa missão quase impossível de casar o freudismo com o marxismo. Tal assombro desencadeou em filósofos da tradição analítica anglo-saxónica, mais interessados na filosofia da ciência, a necessidade de virem a terreiro insurgirem-se com tanta irracionalidade. 

Karl Popper (1902-1994) foi um desses filósofos que criticou com veemência as teorias de Freud, que considerou que de científico nada tinham. Uma descrição topográfica da mente humana comportando três partes (id, ego e superego), não sendo suscetível de ser falsificável, não podia de modo nenhum ser uma teoria científica. A falsificação de Karl Popper defende que a ciência se diferencia da pseudociência ou da superstição, porque o que caracteriza uma hipótese científica é podermos ser capazes de a invalidar, se não for verdadeira, por meio da observação experimental. 

quarta-feira, 10 de agosto de 2022

O Japão e o general MacArthur



O general MacArthur, homem profundamente religioso, em tempos de guerra alimentava a ideia de que a “mentalidade oriental” era infantil, mas ao mesmo tempo brutal e marcadamente primitiva. E meteu na cabeça que estava destinado a reeducar os japoneses. Tinha como guias para essa missão: George Washington, Abraham Lincoln e Jesus Cristo. Idealmente, os japoneses deveriam converter-se à fé cristã. Mas, de qualquer maneira — e aqui as ideias de MacArthur eram consonantes com as de Konrad Adenauer —, a renovação tinha de ser espiritual tanto quanto política, social e económica. MacArthur, no entanto, foi além de tudo o que concebera o democrata-cristão alemão. A ocupação do Japão resultaria numa “revolução espiritual" sem paralelo.

Herbert Hoover, depois de uma visita a Tóquio, descreveu MacArthur como “a reencarnação de são Paulo”. Mas esse vice-rei americano não tinha interesse em explorar a cultura japonesa ou aprender muito sobre o país. Ele passava a maior parte das noites em casa, assistindo a filmes de caubóis. Seu intérprete, Faubion Bowers, lembrou mais tarde que, durante os cinco anos de MacArthur no Japão, “apenas dezasseis japoneses falaram com ele mais do que duas vezes, e nenhum desses tinha uma hierarquia inferior, digamos, à de primeiro-ministro, presidente do Supremo Tribunal, ou reitor da maior universidade”.

Ao contrário da Alemanha, o Japão não se dividiu em zonas aliadas. Os soviéticos queriam reivindicar a ilha setentrional de Hokkaido, mas não criaram problemas quando os Estados Unidos recusaram. A ocupação japonesa foi um espetáculo americano, e MacArthur, como comandante supremo das Forças Aliadas, tinha autoridade quase absoluta, estando acima inclusive de um governo japonês eleito, que se encarregava da maior parte da governação efetiva. Havia vários motivos para o zelo pela reeducação ser maior no Japão do que na Alemanha. Talvez as experiências na Alemanha tenham preparado o cenário para o que se seguiu no Japão.

Considerando quão violenta foi a Guerra do Pacífico e quão brutal foi a propaganda de guerra de ambos os lados, os japoneses, como alunos, demonstraram surpreendente boa vontade. A maneira como os japoneses prestaram o seu tributo a MacArthur quando ele deixou o país, em 1951, exonerado de seu posto pelo presidente Truman por insubordinação na Guerra da Coreia, seria impensável na Alemanha. Foi promulgada uma lei que o tornava cidadão honorário do Japão. Foram feitos planos para a construção de um memorial ao comandante supremo na baía de Tóquio. Centenas de milhares de japoneses margearam o seu percurso até ao aeroporto, muitos deles em pranto, gritando agradecimentos para o homem que passava na limusine. Um dos principais jornais japoneses exclamou em seu editorial: “Ó general MacArthur — general, general, que salvou o Japão da confusão e da fome”.

Uma forma de interpretar o comportamento japonês é encará-lo como um exemplo da bajulação oriental, insincero, visando interesse próprio, e encaixado numa longa tradição de apaziguar governantes poderosos. Esse pode ter sido um dos fatores, mas está longe de constituir a história toda. Grande parte dessa gratidão era autêntica. Em comparação com a maioria dos civis alemães (não judeus), cujas condições de vida, engordadas com a pilhagem dos países conquistados, não eram más até às últimas etapas da guerra, os japoneses sofreram mais. Não só a maioria de suas cidades ardeu em chamas, como também aconteceu na Alemanha, mas os japoneses tiveram de conviver vários anos com um racionamento de comida quase no limite da fome. E as intimidações por parte das autoridades militares e das forças de segurança da polícia japonesa com certeza eram ainda mais intrusivas do que na Alemanha. Diferentemente de muitos alemães, que em 1945 ainda falavam do Führer com afeto, poucos japoneses tinham alguma coisa de bom a dizer sobre o seu regime militar, que não lhes trouxera nada além de desgraça.

Assim, quando os americanos — tão ricos e extrovertidos, tão altos e geralmente tão livres e acessíveis — se estabeleceram, foram de facto vistos como libertadores, e muitos japoneses estavam dispostos a aprender com eles como se tornar mais livres e acessíveis também. Não era a primeira vez na história japonesa que o povo decidia aprender com uma grande potência estrangeira. A China tinha sido o modelo durante muitos séculos, e a Europa e os Estados Unidos foram os exemplos a seguir desde a segunda metade do século XIX. O nacionalismo militante japonês no século XX foi, em certo sentido, uma reação ao extraordinário avanço da ocidentalização na forma de liberalismo económico, comunicação de massa, filmes de Hollywood, partidos políticos, marxismo, individualismo, beisebol, jazz e assim por diante. Após o desastre da Segunda Guerra Mundial, os japoneses em sua maioria ficaram mais do que felizes de voltar à modernidade, que associavam ao mundo ocidental e, após 1945, aos americanos em particular.

Nada que, mesmo remotamente, pudesse ser associado a “feudalismo” era permitido. Até mesmo a representação do monte Fuji — um lugar sagrado na antiga religião da natureza que é o xintoísmo — foi banida de filmes, de obras de arte e das paredes de tijolos dos banhos públicos, onde era um adorno popular. Desde o século XIX, o xintoísmo havia de facto sido transformado numa espécie de culto estatal para promover a adoração ao imperador e a noção de que os japoneses são uma raça única, abençoada com uma linhagem divina, destinada a governar estirpes inferiores na Ásia. A proibição de utilizar o xintoísmo como religião oficial não foi, na verdade, uma má ideia. Ordenar ao imperador Hirohito que anunciasse na rádio que era um ser humano como todos os outros tampouco pareceu má ideia. O que o imperador efetivamente disse foi que suas ligações com o povo japonês não se “fundamentavam na falsa noção de que o imperador é divino”. Isso satisfez os americanos.

A cidade de Omi, no interior do país, não muito longe de Kyoto, pode ser considerada um equivalente japonês de Aachen. No outono de 1945, uma patrulha do exército americano decidiu inspecionar uma escola primária local. A presença dos soldados americanos aterrorizou tanto os alunos que eles começaram a gritar. Quando lhes perguntaram se “gostavam de americanos”, responderam negativamente balançando a cabeça com veemência. As classes ainda estavam decoradas com posters dos tempos da guerra, mostrando soldados japoneses em poses heroicas. Um dos professores era um ex-oficial do Exército. Um gorro ensanguentado de marinheiro foi encontrado na gaveta de uma carteira. Isso não poderia ser tolerado, e o diretor da escola foi intimado a despedir o ex-oficial do Exército e garantir que todas as referências à guerra fossem removidas.

Seis meses depois, alguns dos mesmos americanos retornaram ao local, num jipe. Dessa vez, os alunos pareceram não ter tanto medo. Um dos oficiais começou a assobiar “Swanee River” e, para a imensa satisfação da comitiva americana, as crianças entoaram a canção em japonês, seguida de interpretações de “Auld Lang Syne” e “Maine Stein Song”. O grupo também ficou contente ao notar que os livros didáticos tinham sido adequadamente corrigidos; todas as passagens “feudais”, referentes à guerra, ao passado guerreiro do Japão, ao imperador etc. haviam sido cobertas com nanquim. O diretor, cheio de boa vontade, falou com eles em inglês. Prometeu que todos os posters dos tempos de guerra seriam queimados e que vários outros professores, três dos quais tinham servido no Exército, seriam demitidos.

Por mais aliviados que muitos japoneses possam ter-se sentido com o comportamento relativamente benevolente dos vitoriosos americanos, ou por mais agradecidos pelas reformas democráticas impostas a suas elites políticas, havia também sentimentos mais complicados quanto à reeducação em estilo americano. Para algumas pessoas, a demokurashii do pós-guerra tinha vindo um pouco fácil demais, como uma espécie de brinde dos conquistadores estrangeiros. Um cartum famoso de Etsuro Kato mostrava uma multidão japonesa extática, alguns ainda com seus bonés militares, erguendo as mãos para o céu, do qual as latas caíam de paraquedas como um maná, com as palavras “revolução democrática”. Receber de mão beijada alguma coisa que deveria ter sido conquistada por mérito próprio era um pouco humilhante.

Em parte, essa humilhação era intencional, mas não dirigida às pessoas comuns do Japão. A fotografia mais emblemática da ocupação, publicada em setembro de 1945, foi tirada na ocasião da visita oficial do imperador Hirohito (na verdade, mais uma audiência do que uma visita) ao general MacArthur. O imperador, de 44 anos, que parecia um rapazinho se comparado ao comandante supremo, do alto de seus 65 anos, mantinha-se em posição de sentido num traje matinal formal. De pé a seu lado está MacArthur, com a sua autoridade superior visível não só em sua alta estatura, mas também numa atitude estudada, informal. A camisa cáqui com o colarinho aberto, as mãos confortavelmente acomodadas atrás dos quadris.




A foto saiu em todos os principais jornais, e o governo japonês, chocado com uma imagem que cheirava a lesa-majestade, de imediato proibiu que continuasse a ser publicada. No dia seguinte, MacArthur revogou a proibição e ordenou novas medidas para garantir a liberdade de imprensa. Isso não queria dizer que os americanos não censuravam ativamente as notícias, como faziam na Alemanha. Eles censuravam. Era proibido mencionar Hiroxima, por exemplo, assim como relatos negativos sobre os Estados Unidos.

O sentimento é compreensível, mas esse tipo de pronunciamento é enganador. Um dos conceitos sobre a ocupação, ainda mencionado com frequência, é o de que os americanos construíram as modernas instituições japonesas a partir do zero, de que a “ocidentalização” começou em 1945, e os japoneses, graças à benevolente orientação dos Estados Unidos, saltaram do “feudalismo” para a democracia em um ou dois anos após a derrota na guerra. Na verdade, as instituições democráticas, por mais falíveis e frágeis que pudessem ser, já existiam na década de 1920. No Japão, como nas zonas ocidentais na Alemanha, os Aliados ocidentais criaram as condições para que essas instituições fossem restauradas em bases mais firmes depois da guerra. Isso nem sempre se deu de forma automática. Os políticos e burocratas japoneses muitas vezes tiveram de ser obrigados a realizar reformas democráticas, que a maioria das pessoas considerou bem-vindas. Contudo, o que ninguém poderia ter previsto foi que a única coisa que os americanos tinham concebido totalmente por si mesmos se tornaria ao mesmo tempo a pedra angular e o grande fardo da identidade japonesa do pós-guerra.

terça-feira, 9 de agosto de 2022

Nagasaki. 9 de agosto de 1945





Em 9 de agosto de 1945, é uma hora e cinquenta e seis minutos, enquanto numerosos bombardeiros americanos partiam para um ataque aéreo maciço contra alvos militares na ilha de Honshu, um segundo bombardeiro especial, o Bock’s Car, levantou voo na ilha de Tinian, transportando a segunda bomba atómica. O nome homenageava o comandante do bombardeiro naval, Frederick Bock, mas, nesse voo, o aparelho foi pilotado pelo major Charles W. Sweeney. O alvo deveria ser Kokura, mas, se a cidade estivesse encoberta pelas nuvens, havia um alvo alternativo: Nagasaki.

Ao aproximar-se de Kokura, o bombardeiro deparou-se com uma cidade coberta por nuvens de vapores industriais. Como as instruções de Sweeney permitiam-lhe apenas largar a bomba contra um alvo visível, ele infletiu o voo em direção a Nagasaki. Às 11:02, nove horas após a descolagem em Tinian, uma segunda bomba atómica explodia, quinhentos metros acima da cidade. Em poucos instantes, mais de quarenta mil pessoas morreram. Outras cinco mil morreriam até ao fim do ano; passados trinta anos, o número de mortos de Nagasaki era calculado em 48.857.

***
Em 8 de junho de 1945, em Tóquio, numa reunião do governo realizada na presença de Hirohito, o gabinete japonês decidiu “continuar na guerra até ao fim”. No mesmo dia, os americanos continuaram a avançar em Okinawa, pelo extremo sul da ilha, contra as posições fortificadas em Yuza Hill e os cumes de Kunishi, mas depararam-se novamente com uma resistência empenhada, cuja força ainda era formidável. Apesar do bombardeamento maciço da artilharia, os japoneses conservavam-se em suas posições, escondidos nas encostas do monte, sendo a bomba de napalm o único meio para desalojá-los, ou melhor, aniquilá-los. A decisão dos defensores japoneses causou um enorme número de baixas entre os fuzileiros. Em média, um atirador americano combateria por apenas três semanas antes de se transformar numa baixa. Em numerosas companhias das linhas da frente, todos os soldados acabavam feridos e temporariamente substituídos por outros, que por seu turno acabavam também feridos. Alguns reforços eram mortos antes que pudessem disparar um único tiro.

Em 13 de junho, durante a operação Oboé III, os australianos libertaram Brunei, no extremo Oriente. Na ilha filipina de Mindanau, a resistência organizada foi suprimida em 18 de junho; durante algum tempo, os defensores japoneses viram-se reduzidos a comer raízes e cascas de árvore. Também em 18 de junho, os bombardeiros americanos iniciaram uma série de ataques contra 23 cidades japonesas. Em Okinawa, as últimas forças nos montes Kunishi eram lentamente esmagadas. Ainda em 18 de junho, o comandante das forças americanas na ilha, general Simon Buckner, saiu de seu quartel-general no norte para presenciar o fim da batalha no sul. Enquanto assistia ao combate, foi morto por uma granada antitanque japonesa. Dois outros oficiais superiores seriam igualmente mortos ao longo das 24 horas seguintes, o coronel e comandante dos fuzileiros, Harold C. Roberts, atingido por um franco atirador, e o brigadeiro Claudius M. Easley. Ao cair da noite de 21 de junho, porém, os fuzileiros haviam chegado à entrada do posto de comando inimigo, num abrigo subterrâneo em Mabuni. Nessa noite, os dois generais japoneses que se encontravam no reduto, Ushijima e Sho, organizaram um banquete; depois, antes do romper do dia, fardaram-se, usando suas espadas e medalhas, viraram-se para o norte, na direção do palácio de Hirohito, em Tóquio, e suicidaram-se com sabres. Numa mensagem final, o general Sho escrevera: “Parto sem pena, sem vergonha, sem deveres por cumprir.”

Mais de 127 mil soldados japoneses haviam sido mortos em Okinawa, junto com oitenta mil civis habitantes da ilha. Os americanos também sofreram baixas pesadas durante a guerra: 7.613 americanos foram mortos em terra firme e outros 4.907 em ataques de pilotos suicidas e no mar – além de 36 navios de guerra afundados. Os japoneses perderam enormes forças de aviação em Okinawa: 7.800 aviões contra 763 aparelhos americanos. Por meio de banhos de sangue, como em Okinawa, por meio de grandes carnificinas, como em Luzon e em Mindanau, ou com mais facilidade, como no norte de Bornéu, os japoneses eram lenta, mas ininterruptamente, expulsos de territórios conquistados. Era evidente, para o governo japonês, que a perspetiva de pesadas baixas não impediria o avanço americano nem evitaria novos desembarques, incluindo aqueles claramente em preparação contra as ilhas japonesas. 

Em 20 de junho, Hirohito convocou o primeiro-ministro, o ministro das Relações Estrangeiras e seus chefes militares para uma conferência, assumindo uma iniciativa insólita e exortando-os a fazerem todos os esforços possíveis para terminar a guerra por meios diplomáticos. Mesmo o ministro da Guerra e o chefe do estado-maior do exército reconheceriam a lógica no apelo do imperador. Interessado numa paz negociada, o governo japonês decidiu abordar o governo soviético, pedindo-lhe que atuasse como intermediário. Os contactos foram estabelecidos pelo ministro das Relações Estrangeiras, Tojo, através do embaixador do Japão em Moscovo, Sato Naotake; sem que Tojo o soubesse, suas mensagens ultrassecretas, enviadas por rádio no aparentemente “indecifrável” código Magia, foram lidas pelos serviços especiais americanos. Infelizmente, a leitura das mensagens tornou evidente que, embora os japoneses estivessem dispostos a negociações de paz com os Estados Unidos, não aceitariam a rendição incondicional. Assim, os americanos decidiram, ainda mais resolutamente, obrigar o inimigo a ajoelhar-se. A manutenção da paz seria responsabilidade de um conselho de segurança composto pelas cinco grandes potências – Grã-Bretanha, União Soviética, Estados Unidos, China e França –, todas com direito a veto.

A 4 de julho, um novo desembarque americano em Mindanau, perto do porto de Davao, no sul das Filipinas, restringiria ainda mais a zona sob controlo japonês. No dia seguinte, o general MacArthur anunciou que fora concluída a libertação das Filipinas. Na mesma semana de vitórias aliadas sobre os japoneses, ocorreria, porém, o trágico fim da ação de uma força especial britânica composta por 23 homens e chefiada pelo tenente-coronel Ivan Lyon, que iniciara suas operações atrás das linhas japonesas na ilha de Merapas, perto de Singapura, em setembro anterior. Numa série de combates contra os japoneses, doze membros do grupo, incluindo Lyon, foram mortos e os outros onze, capturados. Um deles morreria em consequência de ferimentos recebidos. Ao fim de seis meses de cativeiro, os dez sobreviventes seriam decapitados. 

Em 11 e 12 de julho, várias toneladas de bombas de napalm foram lançadas contra as forças japonesas ainda na ilha filipina de Luzon – estando quarenta mil homens na região em torno de Kiangan. Em 12 de julho, no decurso da operação Maçã, uma força de comandos nacionalistas atacava o território continental chinês, perto de Kaiping, visando cortar linhas de comunicação japonesas. Em todas as fronteiras, mesmo naquelas que pareciam mais seguras, a Nova Ordem dos japoneses, na Ásia e no Pacífico, era arrasada.

Enquanto os ex-dirigentes nazis esperavam julgamento, uma ex-aliada da Alemanha, a Itália, declarava guerra ao Japão, num dos episódios finais da desagregação do Eixo, outrora um bloco militar tão poderoso. A data marcada para a invasão ao território japonês propriamente dito continuava a ser 1º de novembro, quando, três meses e meio antes, em 14 de julho, alguns navios de guerra americanos, entre os quais o Massachusetts, iniciaram o bombardeamento de certos alvos específicos nas ilhas japonesas. O objetivo, durante o primeiro dia, foram as fábricas de aço imperiais em Kamaishi. No dia seguinte, partindo de Nápoles, um primeiro navio americano iniciava a transferência de tropas da Europa para o Pacífico. A medida enquadrava-se nos preparativos para a invasão no 1º de novembro.

Os japoneses, que sabiam apenas que a data dos desembarques americanos em Kyushu e Honshu não estaria longe, começavam a preparar-se para o confronto, mobilizando não somente as tenazes defesas que haviam utilizado no Pacífico, mas intensificando os ataques suicidas. Milhares de homens eram treinados para atuar como tripulantes de aviões e torpedeiros suicidas. Além disso, uma nova arma suicida, no formato de mina, entrava em cena: um mergulhador colocaria uma mina no casco de um navio inimigo e a explodiria, sendo destruído juntamente com o seu alvo. Os mergulhadores suicidas eram conhecidos como “fukuryu” – ou seja, dragões rastejantes. Sua principal missão seria atacar os navios de desembarque e de abastecimentos junto às praias que os americanos tinham como alvo. Em novembro, os fukuryu começaram a ser treinados, entrando no mar, com suas minas, e mergulhando até quinze metros de profundidade. Ao mesmo tempo, eram feitas experiências em abrigos submarinos de cimento, onde unidades de seis mergulhadores poderiam aguardar, durante um período de dez horas, a aproximação de forças invasoras.

***
Entre aqueles que viram a explosão da bomba sobre Nagasaki, contava-se o piloto britânico Leonard Cheshire, a bordo como observador. Mais tarde, recordaria a nuvem contorcida, “obscena em sua avidez devoradora da terra, transbordando como se vomitasse toda a vida que consumira”. No momento em que a bomba explodiu sobre Nagasaki, o Supremo Conselho de Guerra do Japão estava reunido em Tóquio. A notícia reacendeu a discussão acerca da rendição incondicional do país. O conselho estava fortemente dividido: três generais eram partidários da rendição; outros três defendiam a continuação da guerra. O ministro das Relações Estrangeiras, Shigenori Tojo, votara a favor da rendição, tal como o primeiro-ministro, almirante Suzuki. Contudo, o ministro da Guerra, general Anami, fora categórico em sua recusa: «É muito cedo para termos certeza de que perdemos a guerra. É evidente que infligiremos pesadas baixas ao inimigo quando tentar invadir o Japão e não é impossível invertermos a situação, transformando a derrota em vitória. Além disso, nossos soldados não aceitarão ser desmobilizados. E como sabem que não podem render-se, como sabem que um combatente que se rende poderá receber os castigos mais duros, não há realmente alternativa a não ser continuarmos na guerra.»

O impasse era completo, mas Tojo e Suzuki estavam decididos a conter a guerra imediatamente e, durante uma reunião secreta com Hirohito, convenceram-no a convocar uma nova reunião e a presidir pessoalmente os trabalhos. A reunião aconteceu pouco depois de meia-noite, no abrigo subterrâneo do imperador. Na abertura, Suzuki leu a Declaração de Potsdam. Depois, Tojo advogou pela aceitação da proposta aliada, contanto que a posição do imperador e do trono fossem respeitadas. Suzuki defendeu a ideia de Tojo, mas o general Anami opôs-se. A discussão prolongou-se por cerca de duas horas. Por fim, Hirohito falou: «Continuar na guerra levará somente ao aniquilamento do povo japonês e ao prolongar do sofrimento de toda a humanidade. Parece evidente que a nação não tem condições de vencer a guerra e é duvidoso que possa sequer defender as suas praias.» Chegara o momento, explicou Hirohito ao conselho, de “suportar o insuportável”

O imperador aprovava a proposta de Tojo, defendendo que o Japão aceitasse a rendição incondicional. A mensagem resultante dessa decisão, aceitando formalmente a Declaração de Potsdam, foi enviada para os embaixadores japoneses na Suíça e na Suécia na manhã de 10 de agosto, a fim de ser comunicada, em seguida, aos Aliados. “O governo japonês”, dizia a mensagem, “está pronto a aceitar os termos da declaração conjunta emitida em Potsdam, em 26 de julho de 1945, pelos chefes de governo dos Estados Unidos, da Grã-Bretanha e da China e, mais tarde, subscrita pelo governo soviético, na convicção de que os termos em causa não incluem qualquer exigência que prejudique as prerrogativas de Sua Majestade como autoridade soberana”.

Na manhã de 10 de agosto, o presidente Truman e seus conselheiros debateram se a nota referente ao imperador do Japão cabia ou não no quadro da “rendição incondicional”. Uma fórmula, concebida pelo Secretário de Estado Byrnes, estabeleceu que o Japão precisaria aceitar, a partir do momento em que se rendesse, que “a autoridade do imperador e do governo na direção do estado ficaria subordinada ao supremo comando das potências aliadas”. Na mesma manhã, enquanto começavam os contactos diplomáticos, Truman deu ordens para que não fossem lançadas novas bombas atómicas. O presidente declarou, segundo escreveu o secretário de Comércio em seu diário, que «a ideia de matar mais cem mil pessoas era terrível demais. Não lhe agradava a ideia de matar ‘todos esses rapazes’».

Na Manchúria, o Exército Vermelho avançava contra os japoneses; num duro combate em Pingyanchen, em 10 de agosto, 650 soldados japoneses, entre os 850 em ação, foram mortos ou feridos. No dia seguinte, as forças da marinha soviética iniciavam um bombardeamento à região sul da ilha Sacalina. Os contactos diplomáticos entre Tóquio e Washington, feitos ainda através de potências neutras, continuaram em 11 e 12 de agosto. Na noite desse segundo dia, a leste de Okinawa, um submarino japonês afundou o navio de desembarque americano Oak Hill e o contratorpedeiro Thomas F. Nickel. No mesmo dia, as forças soviéticas, depois de ferozes e prolongados combates, venceram os defensores japoneses da fortaleza de Hutou, regando com petróleo os respiradouros da construção e ateando-lhes fogo, de modo a asfixiar os soldados japoneses escondidos nos redutos subterrâneos. Ao longo de 12 de agosto, os japoneses utilizaram soldados de infantaria suicidas para tentar deter os tanques soviéticos. No dia seguinte, porém, os tanques conseguiram atingir os reforços de infantaria, em Hualin, enquanto ainda se encontravam a bordo do comboio, matando novecentos homens antes que pudessem escapar dos vagões.

Na manhã de 14 de agosto, mais de oitocentos bombardeiros americanos atacaram instalações militares japonesas na ilha de Honshu. Durante a tarde, a agência de notícias oficial do Japão expediu uma nota internacional, declarando que, em breve, o imperador emitiria uma comunicação “aceitando a Declaração de Potsdam”. Sem que os ouvintes soubessem, o imperador já gravara a proclamação. Nessa noite, mais de mil militares japoneses atacaram o palácio imperial, na esperança de descobrir a gravação e impedir que fosse transmitida. Tudo o que conseguiram, porém, foi assassinar o comandante da guarda imperial, que, leal ao imperador, encabeçou suas tropas, vencendo os assaltantes. Pouco depois, o general Anami, que se opunha à rendição, mas se recusou a participar da revolta, suicidava-se, para, segundo explicara, poupar-se de ouvir a proclamação e de “expiar” a derrota do Japão. Por volta da meia-noite de 14 de agosto, as forças soviéticas haviam avançado mais de 400 Km pelo interior da Manchúria, ocupando Mukden; ao mesmo tempo, haviam desembarcado na ilha Sacalina e nas ilhas Curilas, tornando ainda mais urgente que os americanos e os britânicos forçassem os japoneses à rendição.

Na Manchúria, e especialmente ao redor de Mutanchiang, de 16 a 19 de agosto as forças japonesas ainda lutavam contra os atacantes soviéticos. No fim das batalhas, haviam morrido 8.219 soldados soviéticos. Os japoneses haviam perdido mais de 40.000 homens. Na noite de 19 de agosto, após novos avanços soviéticos em Hutou, centenas de japoneses se suicidaram com granadas para evitar a desonra da captura. Também em 19 de agosto, o dirigente da guerrilha comunista vietnamita, Ho Chi-minh, tomava o poder no Vietname do Norte; três dias mais tarde, uma força militar da França Livre entrava de paraquedas no Vietname do Sul, transportada pela aviação britânica. Um novo conflito começara.

Em 23 de agosto, os russos ocuparam Port Arthur; a derrota perante os japoneses, quarenta anos antes, fora vingada. A conquista russa do sul da Sacalina completava-se passados dois dias. A Rússia, como os Estados Unidos, era agora uma potência vitoriosa no Pacífico. Por toda a parte, entretanto, eclodiam novos conflitos. Em 25 de agosto, um grupo dos serviços especiais americanos, composto por quatro homens e comandado pelo capitão John Birch, foi intercetado por uma patrulha das forças comunistas chinesas; seguiu-se uma discussão, foram trocados insultos e Birch foi morto. Nos Estados Unidos, houve quem, orgulhosamente, designasse Birch como a primeira baixa da Terceira Guerra Mundial com os comunistas. 

Em 25 de agosto, as tropas americanas entraram num campo de concentração em Haichow, na ilha de Hainan. Entre os 273 prisioneiros de guerra australianos presentes na abertura do campo, somente 130 ainda estavam vivos. Entre estes, somente oito estavam em condições de participar das últimas cerimónias fúnebres. Contudo, nenhum soldado aliado, à exceção dos prisioneiros, pisara em território japonês propriamente dito. Em 28 de agosto, um americano seria o primeiro a fazê-lo. Tratava-se do coronel Charles Tench, membro do estado-maior do general MacArthur, que, após desembarcar, à frente de uma pequena força de 150 homens, no aeródromo de Atsugi, perto de Yokohama, telegrafou para o quartel-general de seu superior em Manila: “Não encontramos quaisquer ações hostis.” No dia seguinte, uma divisão americana aerotransportada desembarcou na base naval de Yokosuka. A ocupação do Japão começava. Na baía de Tóquio, diante de Yokohama, entravam os navios de guerra aliados, entre eles, em 29 de agosto, o couraçado americano Missouri e o couraçado britânico Duke of York.

Em 30 de agosto, uma força naval britânica reocupava Hong Kong. No mesmo dia, alguns oficiais médicos britânicos eram enviados, em paraquedas, para o campo de prisioneiros de guerra de Changi, em Singapura; as tropas ainda estavam a caminho, por mar. Enquanto os médicos cumpriam a missão junto aos prisioneiros, os ex-guardas japoneses continuaram a trabalhar, agora ao serviço de seus antigos cativos. Na mesma data, o general MacArthur chegou ao Japão; numa cena extraordinária, que alarmou muitos americanos que acompanhavam o general, mais de trinta mil soldados japoneses formaram filas nas laterais da estrada, mantendo as baionetas erguidas enquanto MacArthur percorria os 24 Km que levam do aeroporto de Atsugi a Yokohama. No segundo dia de sua estada em Yokohama, o general impressionou-se com a imagem esquelética do general Jonathan M. Wainwright, a quem entregara o comando de Bataan e de Corregidor em 1942, quando Roosevelt lhe ordenara que deslocasse o quartel-general para a Austrália. O general Wainright fora descoberto pelos russos num campo de concentração na Manchúria; depois, seguira de comboio para Mukden e, daí, a bordo de um bombardeiro, até Chungking, Manila e, finalmente, através do Pacífico, alcançara Atsugi e Yokohama. Os quatro anos de cativeiro deixaram Wainright esquelético e confuso, com cabelos brancos como neve e uma pele enrugada como pergaminho. 



MacArthur profundamente chocado com o estado de Jonathan M. Wainwright. Naquela noite, não conseguiu comer nem dormir. 

segunda-feira, 8 de agosto de 2022

Michel de Montaigne





Montaigne – enquanto testemunhava as hecatombes provocadas na França pela Reforma, de um lado os católicos leais à autoridade eclesiástica de Roma e à liderança espiritual do papa; do outro, uma variedade de congregações cristãs “reformadas”, as quais afirmavam ser corrupta a autoridade do papado romano e que, em vez disso, admitiam formas novas e purificadas de louvor, todas associadas a líderes cristãos dissidentes, como os protestantes Martinho Lutero e João Calvino – ia registando nos seus apontamentos, a que chamou “Ensaios”, conclusões ácidas da loucura dos santos. Homens de boa-vontade e fé sólida, em parte inspirados pelo exemplo de cristãos sábios como Agostinho, elaboravam uma série de crenças e condutas que aspiravam à perfeição espiritual.

O morticínio sacrificial organizado pelos fiéis cristãos dessas comunidades rivais ultrajava Montaigne. Com a sua impiedosa clareza, elas revelavam uma dura verdade: como, na busca pela perfeita virtude, o ser humano era capaz de se tornar uma perfeita besta – e “não há besta no mundo”, escreve, “a ser tão temida quanto o próprio homem”.

Os Ensaios, elaborados entre 1572 e 1592 –, valeu-lhe a posição de filósofo francês mais importante do seu tempo. Consistindo em 107 capítulos agrupados em três livros, os primeiros Ensaios têm como modelo, em parte, os breves escritos morais de Plutarco e os Discursos Sobre a Primeira Década de Tito Lívio (1531), de Nicolau Maquiavel. São uma série de reflexões históricas que analisam as virtudes cívicas e marciais próprias dos povos livres; e, por fim, os Adágios de Erasmo de Roterdão, o trabalho mais popular daquele que talvez tenha sido o humanista cristão mais famoso do Renascimento.

Michel de Montaigne nasceu em 1533 no Château de Montaigne, propriedade de sua família localizada a 50 Km a leste da cidade portuária de Bordéus. Seu bisavô paterno, mercador próspero que comprava e vendia vinhos, peixes e corante índigo, adquirira o castelo três gerações antes. A família floresceu nas décadas que se seguiram. Porém, o primeiro membro a alcançar as virtudes cívicas e marciais adequadas a um homem nobre foi o pai de Michel, Pierre Eyquem de Montaigne. Nessa época, as congregações calvinistas haviam-se espalhado por toda a França. Tentativas de conciliar diferenças doutrinárias fracassavam repetidamente, e esforços para reprimir a heresia apenas criavam mártires e mais violência. Católicos queimavam calvinistas na fogueira. Protestantes incendiavam igrejas católicas.

Montaigne certamente sabia o básico sobre a linhagem de sua mãe. No entanto, ele não achava que isso tivesse implicações relevantes. Afinal, segundo ele mesmo afirma numa espinhosa passagem dos Ensaios, “os costumes e o passar do tempo são conselheiros muito mais fortes do que qualquer outra compulsão”.

Mais ou menos na época em que completou 21 anos de idade, Montaigne herdou do pai (ou talvez do tio) um cargo na Cour des Aides de Périgueux, recentemente fundada para ser o novo braço judicial do rei. Os advogados que ocupavam o posto recebiam um salário que era complementado pelos encargos cobrados de todos os envolvidos em disputas judiciais. No ano de 1557, a nova corte foi dissolvida e seus membros, incorporados ao Parlamento de Bordéus, onde Montaigne trabalhou por mais de 13 anos como magistrado.

Montaigne, na década de 1560, trabalhou algumas vezes como embaixador do Parlamento de Bordéus na corte real em Paris. No retrato de si mesmo encontrado nos Ensaios, Montaigne descreve um homem de comportamento casual, nada meticuloso no que diz respeito ao vestuário e às normas de conduta. Inquieto por natureza, ele acha difícil ficar parado. “Tenho aversão à autoridade”, escreve, e sua aversão se estende à disciplina exigida pelo autocontrolo perfeito. Montaigne, às vezes, era impulsivo. Além disso, a liberdade que tanto estima – a franqueza de seu discurso – às vezes o faz parecer indiscreto. Magistrado com acesso à corte de Paris, Montaigne passou a conhecer por dentro como a administração legislativa funcionava – uma experiência que não lhe permitia ilusões. “Agora, não é por serem justas que as leis recebem crédito, mas por serem leis”, observa sarcasticamente nos Ensaios.

Montaigne conheceu o jovem que se tornaria a figura mais importante de sua vida: Étienne de La Boétie (1530-1563). Dois anos e meio mais velho que Montaigne, La Boétie era um verdadeiro renascentista, um erudito formado pela Universidade de Orleães, onde o estudo do direito era visto como faceta da ampla busca pela sabedoria (e onde, em 1559, seu primeiro professor seria queimado na fogueira, acusado de ser um herege huguenote). Aos 18 anos, La Boétie escrevera o Discurso da Servidão Voluntária, dissertação contra a tirania então ensinada que demonstrava a familiaridade do autor com Platão, Aristóteles, Tácito, Dante, Thomas More, Erasmo e Maquiavel, entre outras autoridades do mundo antigo e moderno. Nos anos que se seguiram, o discurso de La Boétie circulou amplamente entre os magistrados de Bordéus. O próprio Montaigne relata a admiração juvenil que sentia diante da impressionante retórica da obra.


Depois de anos como décimo assessor da Chambre des Enquêtes, candidata-se a ascender à Grande Câmara. No dia 14 de novembro de 1569, no entanto, decidem não o aceitar, sob o pretexto de que o seu sogro é presidente e um cunhado, conselheiro. A decisão é contra ele, mas no sentido mais amplo lhe é favorável, pois com isso Montaigne tem um motivo ou pretexto para dizer adeus ao serviço público. Renuncia ao cargo – ou melhor, vende-o – e, a partir desse dia, passa a servir ao público apenas como gosta: ocasionalmente, ou quando uma tarefa especial o atrai. É difícil dizer se outros motivos secretos contribuíram para determinar sua retirada para a vida privada. Seja como for, Montaigne deve ter percebido que estava na hora de decidir, e ele não amava as decisões. A atmosfera pública novamente ficara envenenada. Os protestantes voltaram a pegar em armas, e a Noite de São Bartolomeu se aproximava. Como seu amigo La Boétie, Montaigne via seu dever político apenas em agir no sentido da conciliação e da tolerância. Por natureza, mediador nato entre os partidos, a sua verdadeira realização era serviço público. Mas esses tempos haviam terminado. A França terá de se tornar huguenote ou católica. Os próximos anos irão impor enormes responsabilidades a quem se ocupar com os destinos do país, e Montaigne é um inimigo ferrenho de qualquer responsabilidade. Quer fugir das decisões. Um sábio na época de fanatismos, busca a retirada e a fuga.


E como se fosse para cortar o caminho de volta para o mundo, manda gravar a seguinte inscrição em latim na parede de sua biblioteca:
No ano do Senhor de 1571, aos trinta e sete anos, na véspera das calendas de março, no dia do seu aniversário, Michel de Montaigne, há muito tempo desgostoso com o trabalho escravo na corte e as responsabilidades dos cargos públicos, mas ainda em posse de todas as suas forças, decidiu repousar no seio virgem das musas. Aqui, na calma e na segurança, completará o ciclo descendente de uma vida cuja maior parte já transcorreu – se o destino lhe permitir conservar essa habitação e pacífica sede de seus pais. Consagrou esse espaço à liberdade, à tranquilidade e ao lazer.

A missão a que Montaigne se impôs foi ser sincero consigo próprio, conforme a sabedoria de Píndaro que anotou: “Ser sincero é o começo de uma grande virtude”. Quem sou eu? Qui suis-je? pergunta. Três ou quatro pessoas antes dele se puseram essa questão. Ele se assusta diante da tarefa que se impôs. Sua primeira descoberta: é difícil dizer quem somos. Tenta se colocar do lado de fora, ver-se “como um outro”. Escuta, observa, se estuda e se torna, como diz, “minha metafísica e física”. Não se perde de vista e diz que há anos nada lhe escapou: “Desconheço qualquer movimento que se esconda da minha razão.” Não está mais só, ele se tornou duplo. E descobre que esse divertimento, esse “amusement”, é infindável, que esse “eu” não é imutável, que está sempre se transformando em ondas, “ondulante”, que o Montaigne de hoje não se parece com o Montaigne de ontem. Constata que só podemos desenvolver fases, estados, detalhes.

Montaigne, o homem que mandou gravar “Que sais-je?” em sua medalha como lema, não execrava nada mais do que afirmações perentórias. Nunca tentou aconselhar os outros sobre o que não sabia precisar muito bem para si mesmo: “Isso aqui não é a minha doutrina, é o meu esforço pelo conhecimento, e não é a sabedoria de outrem, e sim a minha.” Outros podem tirar vantagens disso, ele não vê nenhum inconveniente. O que ele diz pode ser insensatez ou equívoco, mas ninguém deve ser prejudicado. “Se eu me comporto como um tolo, pago o preço, sem prejuízo para quem quer que seja, pois é uma insensatez que fica dentro de mim e não tem nenhuma consequência.”

Quando, em 1570, aos trinta e oito anos, Michel de Montaigne se retira para a sua torre, acredita ter dado à sua vida a conclusão definitiva. Como mais tarde Shakespeare, reconheceu com seu olhar perscrutador a fragilidade das coisas, “a arrogância dos cargos, a insensatez dos políticos, a humilhação do serviço na corte, o tédio do serviço de magistrado” e, acima de tudo, a sua própria inadaptação para agir no mundo. 
Não quer mais ver o mundo, quer apenas espelhar-se em seu gabinete de trabalho. Abdicou, resignou-se. Às vezes, ainda sai da torre para uma excursão; como cavaleiro da Ordem de São Miguel, viaja para o funeral de Carlos IX; quando lhe pedem, encarrega-se de vez em quando de uma mediação política, mas está decidido a não participar mais com a alma, a superar a atualidade, a ver as batalhas do duque de Guise e Coligny como a de Plateias. 

Montaigne passou dez anos em sua torre, isolado do mundo, e acreditou que fosse o fim. Mas agora reconhece o seu equívoco, ou melhor, os seus equívocos, e Montaigne é sempre o homem que admite seus enganos. O primeiro engano foi acreditar estar velho aos trinta e oito anos, preparando-se muito cedo para a morte e, na verdade, deitando-se no caixão ainda com vida. Agora tem quarenta e oito e descobre, surpreso, que os sentidos não se turvaram, mas antes ficaram mais claros, o pensamento mais lúcido, a alma mais adequada a isso, mais curiosa, mais impaciente. Não conseguimos renunciar tão cedo, fechar o livro da vida como se já estivéssemos na última página. Foi bom ler livros, passar uma hora com Platão na Grécia, fruir uma hora da sabedoria de Séneca, foi repouso e calma viver com esses companheiros de outros séculos, com os melhores do mundo. Mas, queiramos ou não, vivemos no nosso próprio século, e o ar da nossa época penetra mesmo nos espaços fechados, especialmente quando é um ar carregado, abafado, febril e tormentoso. Todos vivenciamos isso, mesmo na reclusão a alma não pode permanecer tranquila quando o país se subleva. Através da torre e das janelas sentimos a vibração da época; podemos nos permitir uma pausa, mas não podemos escapar totalmente dela.

E, depois, outro engano que Montaigne reconheceu pouco a pouco: ele buscou a liberdade, retirando-se do grande mundo da política, dos cargos e dos negócios para o mundo pequeno da casa e da família, dando-se logo conta de que apenas trocou uma amarra por outra. De nada adiantou enraizar-se em seu próprio solo, a hera e as ervas daninhas sobem pelo tronco, os pequenos roedores dos problemas roem as raízes. Não adiantou nada a torre que ele construiu e em que ninguém pode entrar. Quando olha pela janela, vê o orvalho nos campos e pensa no vinho estragado. 
Não é a solidão do anacoreta, pois ele tem posses, e posses só servem a quem tiver prazer com elas. Todas essas razões que, aos quarenta e oito anos, depois do tempo de reclusão, voltam a despertar nele um “ânimo vagabundo”. Montaigne sempre e em todo lugar buscou a liberdade e a renovação, mas a família também é uma limitação e o casamento, uma monotonia, e tem-se a impressão de que não foi totalmente feliz na vida doméstica. O casamento, afirma, tem uma utilidade própria, a ligação legal, a honra, a constância – “tudo prazeres enfadonhos e uniformes”. E Montaigne é um homem da transformação, nunca amou os prazeres enfadonhos e uniformes.

Que seu casamento não foi uma união por amor, e sim pela razão, e que condenava essas uniões por amor, defendendo mais o “casamento por razão”, ele repetiu incontáveis vezes, precisando que apenas se submetera a um “hábito”. Durante séculos foi rigidamente criticado por, em sua inquebrantável sinceridade, ter assegurado mais às mulheres que aos homens o direito de ter um amante; muitos biógrafos duvidaram, por isso, da paternidade de seus últimos rebentos. Vê-se que os dez anos de solidão foram bons, mas suficientes e até excessivos. Ele sente que está esclerosando, tornando-se pequeno e medíocre, e a vida inteira Montaigne sempre se defendeu contra o imobilismo. Com o instinto que sempre dita ao homem criativo quando deve modificar sua vida, ele reconhece o momento correto. Levou o manuscrito de seus Ensaios para a impressão e os dois volumes, essa cristalização de sua vida, estão impressos; um ciclo terminou, ele deixou os livros para trás como a pele de uma serpente, para empregar a expressão favorita de Goethe. Agora chegou a hora de recomeçar. Ele expirou, agora deve inspirar. Enraizou-se, agora precisa voltar a se desenraizar. Começa um novo trecho de sua vida. No dia 22de junho de 1580, aos quarenta e oito anos, depois de uma reclusão voluntária de dez anos – Montaigne nunca fez nada a não ser por livre vontade –, ele parte para uma viagem que o separa por dois anos da mulher e da torre e da pátria e do trabalho, de tudo menos de si próprio.

Sua vida, durante muito tempo, foi sempre igual. Agora, ele quer outra coisa, e quanto mais diferente, melhor! Aqueles que se satisfazem em casa que sejam felizes nessa limitação; ele não os inveja. Só a mudança o seduz, só dela espera algum ganho. Nada o atrai mais nessa viagem do que o facto de que tudo será diferente, a língua e o céu e os costumes e as pessoas, a atmosfera e as cozinhas, as ruas e a cama. Montaigne viaja para se libertar, e durante toda a viagem ele dá um exemplo de liberdade. Ele viaja, por assim dizer, sem rumo. Evita tudo o que lembra qualquer compromisso, ainda que seja um compromisso consigo mesmo. Não faz planos. Que a estrada o leve para onde quiser, que o humor o conduza para onde for. Ele quer, por assim dizer, se deixar viajar, mais do que viajar. Em Bordéus, o sr. Michel de Montaigne não quer saber onde o sr. Michel de Montaigne vai querer estar na semana seguinte, em Paris ou Augsburg. Quem determinará isso com toda a liberdade será o outro Montaigne, o Montaigne de Augsburg ou o Montaigne de Paris. Quer se manter livre em relação a si próprio.

Ele não busca atrações, pois tudo o que é diferente lhe parece digno de ser visto. Ao contrário, quando um lugar é muito famoso, ele prefere evitá-lo, porque muitos outros já o viram e descreveram. Roma, a meta de todos, é-lhe quase desagradável antecipadamente por ser a meta de todos, e o seu secretário anota no diário: “Acredito que, se estivesse totalmente sozinho, ele teria preferido viajar até Cracóvia ou, por terra, para a Grécia, do que rodar a Itália.” Esse é sempre o princípio de Montaigne: quanto mais diferente, melhor, e mesmo que não encontre o que esperava ou outros o fizeram esperar, não fica descontente. 

Com uma última inquietação – perceptível na resposta que ele dá – parece que, em casa, tentam reter o viajante impetuoso. “O que acontecerá se caíres doente no estrangeiro?”. De facto, há três anos Montaigne sofre do mal que atinge todos os eruditos de sua época, consequência provável de uma vida sedentária e alimentação mal equilibrada. Como Erasmo, como Calvino, sofre de pedras na vesícula, e parece uma dura prova passar meses a cavalo em estradas estranhas. Mas Montaigne, que parte não apenas para reencontrar a sua liberdade, mas, se possível, também a sua saúde, dá de ombros, indiferente: “Se estiver mal à direita, vou para a esquerda, se eu não me sentir bem para subir no cavalo, paro. Se eu esqueci alguma coisa, volto – ainda é o meu caminho.” Da mesma forma, tem uma resposta para a preocupação de que ele possa morrer no estrangeiro: se ele devesse temer isso, não poderia nem sair da paróquia de Montaigne, e menos ainda das fronteiras da França. A morte está por toda a parte, e ele preferiria encontrá-la a cavalo do que na cama.

No dia 22 de junho de 1580, Montaigne cruza o portão do seu castelo rumo à liberdade. Acompanham-no o cunhado, alguns amigos e um irmão de vinte anos. Infeliz escolha: companheiros que ele considerará depois como não sendo os melhores, e eles, de sua parte, haverão de sofrer bastante com o modo insólito, caprichoso e muito pessoal de Montaigne de “visitar os países desconhecidos”. Não é a partida de um grande senhor, mas, de qualquer maneira, um empreendimento de porte. O mais importante é que ele sai sem levar preconceitos, arrogância ou opiniões peremptórias. O caminho o leva primeiro a Paris, a cidade que sempre amou e que sempre o encanta novamente. Alguns exemplares do seu livro já o precederam, mas ele leva consigo dois volumes para entregar ao rei. Na verdade, Henrique III não está muito a fim disso; como de hábito, está em guerra. Mas como todo o mundo na corte lê o livro e parece encantado, ele também o lê e convida Montaigne a assistir ao cerco de La Fère. Interessado em tudo, depois de muitos anos Montaigne volta a ver a guerra de verdade e, ao mesmo tempo, seus horrores, pois um de seus amigos, Philibert de Gramont, é morto lá por uma bala. Ele acompanha os restos mortais para Soissons e começa no dia 5 de setembro de 1580 o notável Diário. 

A primeira visita os leva à estação de banhos de Plombières, onde Montaigne tenta curar a sua moléstia com uma temporada de dez dias; depois para Basileia, Schaffhausen, Constança, Augsburg, Munique e o Tirol, então Verona, Vicenza, Pádua, Veneza e, de lá, passando por Ferrara, Bolonha e Florença, até Roma, onde Montaigne chega no dia 15 de novembro. O relato de viagem não é nenhuma obra-prima, tanto mais que só uma mínima parte foi escrita por Montaigne, e nem tudo em sua língua. Não mostra o artista em Montaigne, mas nos mostra o homem com todas as suas qualidades e até suas pequenas fraquezas.

Montaigne está de bom humor e a curiosidade é maior do que sua doença. O homem de quarenta e oito anos, que sempre zomba de sua “idade avançada”, supera todos os jovens em persistência. Já desde cedo na sela, tendo comido apenas um pedaço de pão, ele parte. Os maus albergues mais o divertem do que incomodam. Sua maior alegria é ver gente, pessoas e costumes sempre diferentes e novos. Por toda parte, procura gente, e gente de outras condições sociais. Montaigne vê a Suíça e a Itália enquanto vida. Para ele, toda vida tem o mesmo valor. Ele assiste à missa do papa, é recebido por ele, mantém longas conversações com os altos dignitários eclesiásticos que lhe dão conselhos respeitosos para a próxima edição do seu livro e só pedem ao grande cético que abandone a palavra “fortuna”, a qual emprega com muita frequência, substituindo-a por “Deus” ou “Divina Providência”. Permite que o festejem, é solenemente nomeado cidadão de Roma, e até se esforça por isso, orgulhoso com essa honraria. A doença estraga-lhe a última parte de sua viagem. Ele faz um tratamento nos banhos de Luca, e o tratamento é bárbaro. Seu ódio aos médicos o leva a inventar terapias; livre de tudo, ele quer também ser o seu próprio médico. 

Quando, no dia 7 de setembro de 1581, ele recebe a carta comunicando ter sido nomeado à revelia e “por unanimidade” prefeito de Bordéus, pedindo que, “por amor à pátria, aceite o cargo” – na verdade, uma carga para Montaigne –, ele não parece decidido a renunciar à sua liberdade. Sente-se doente e tão torturado pelas pedras biliares que, às vezes, considera até o suicídio. “Se não for possível eliminar esses sofrimentos, temos que ter coragem e dar logo um fim, é o único remédio, a única regra e ciência.” Para que ainda aceitar um cargo, depois que ele identificou sua própria tarefa interna, ainda por cima um cargo que só lhe trará trabalho, mas nem dinheiro, nem honras de qualquer espécie? Mas quando Montaigne chega ao seu castelo, encontra uma carta do rei datada do dia 25 de novembro e que transforma nitidamente o mero desejo dos cidadãos de Bordéus em uma ordem. O rei começa educadamente com sua alegria em ratificar uma escolha feita sem intervenção de Montaigne, na sua ausência – portanto, de maneira absolutamente espontânea. Mas ordena que assuma o serviço “sem desculpas nem adiamento”. E a última frase corta qualquer possibilidade de recusa: “E, assim, dareis um passo que me será muito agradável, e o contrário me desagradaria grandemente.” Não há como desobedecer a tal ordem real. Com o mesmo desprazer com que herdou de seu pai os cálculos biliares, ele assume então esse outro legado, a prefeitura da cidade.

Sua primeira providência, correspondendo à sua extraordinária sinceridade, é advertir seus eleitores que não esperem dele uma dedicação total como a de seu pai, cuja alma viu “cruelmente conturbada por esses fardos públicos” e que sacrificou seus melhores anos, sua saúde e seu lar a essa responsabilidade. Ele sabe que não tem ódio, ambição, cobiça ou violência, mas também conhece seus defeitos: faltam-lhe a memória, a vigilância, experiência e energia. Como sempre, Montaigne está determinado a conservar para si o que tem de último, de melhor, “sua essência”, a cumprir tudo o que dele se exige com todo o cuidado e toda fidelidade, mas não mais do que isso. Para manifestar externamente que não vai se afastar de si próprio, permanece em seu castelo de Montaigne, em vez de ir para Bordéus. Mas parece que, como em seus escritos, mesmo investindo apenas uma parte do seu esforço, das suas preocupações e do seu tempo, ainda consegue mais do que outros, graças à rapidez do seu julgamento e ao seu profundo conhecimento do mundo. Prova de que a insatisfação não era grande é que, em julho de 1583, ao final do seu primeiro mandato, os burgueses o reelegem por mais dois anos.

Durante muitos anos, os poderosos tinham olhado para Montaigne com certa desconfiança que os homens de partido e políticos profissionais sempre têm em relação ao homem livre e independente. Acusaram-no de passividade em uma época na qual, como ele diz, “o mundo inteiro era ativo demais”. Mas agora, depois das horríveis devastações da guerra civil, depois que o fanatismo foi às raias do absurdo, o apartidarismo, até então visto como defeito, de repente se torna uma vantagem na política, e um homem que sempre se manteve livre de julgamentos e preconceitos, que se manteve entre os partidos, incorruptível por vantagens ou fama, torna-se o mediador ideal. A situação na França passou por estranhas mudanças. Depois da morte do duque d’Anjou, Henrique de Navarra (futuro Henrique IV), marido da filha de Catarina de Médici, é segundo a lei sálica o herdeiro legítimo do trono de Henrique III. Mas Henrique de Navarra é huguenote e chefe do partido huguenote. Com isso, está em franca oposição à corte, que tenta reprimir os huguenotes; ao castelo real, de cujas janelas saiu, uma década antes, a ordem para a Noite de São Bartolomeu; e o partido adversário dos Guise tenta impedir a sucessão legítima. 

Mas, como Henrique de Navarra não tem a intenção de renunciar ao seu direito, a nova guerra civil parece inevitável, se o entendimento entre ele e o rei Henrique III não for possível. Para essa grande missão de importância histórica universal, que deve assegurar a paz na França, um homem como Montaigne parece ser o mediador ideal, não apenas por causa do seu temperamento tolerante, mas também porque pessoalmente ele é homem de confiança tanto do rei Henrique III como do copretendente ao trono, Henrique de Navarra. Uma espécie de amizade o liga a esse jovem príncipe, e Montaigne a conserva mesmo em um tempo em que Henrique de Navarra é excomungado pela Igreja e Montaigne precisa confessar ao seu pároco como sendo pecado ter mantido a relação com ele, como escreverá mais tarde. Henrique de Navarra visita Montaigne em seu castelo em 1584 com um séquito de quarenta nobres e toda a sua criadagem e dorme na sua cama. Confia-lhe as missões mais secretas, e a probidade e fidelidade com que Montaigne as cumpriu ficam provadas pelo facto de que, alguns anos mais tarde, quando explode uma nova crise, a mais grave de todas, entre Henrique III e o futuro Henrique IV ambos o chamam novamente para ser mediador.

No ano de 1585, o segundo mandato de Montaigne como prefeito de Bordéus teria terminado, e ele poderia ter tido uma despedida gloriosa, com discursos e honras. Mas o destino não quer uma saída tão bela para ele. Ele resistiu com firmeza e energia enquanto a cidade estava ameaçada na nova guerra civil entre os huguenotes e as ligas. Armou a cidade, manteve vigília de dia e até de noite com os soldados e preparou a defesa. Mas diante de outro inimigo, a peste que atinge Bordéus nesse ano, ele foge em pânico e abandona a cidade. Para sua natureza egocêntrica, a saúde sempre foi o mais importante. Ele nunca foi nenhum herói, nem jamais pretendeu ser.

Na cidade de Bordéus, morrem dezessete mil pessoas, metade da população, em menos de seis meses. Quem tem carro, cavalo, foge; só o “povo menor” fica para trás. A peste também chega à casa de Montaigne. Assim ele decide abandoná-la. Todos saem. Ele sofre pesadas perdas de património, precisa deixar para trás a casa vazia e desprotegida, onde qualquer um pode pegar o que quiser, o que deve ter acontecido. Sem sobretudo, vestido como está, foge de casa e não sabe para onde, pois ninguém acolhe a família fugida de uma cidade pestilenta. “Os amigos tinham medo dela, todos tinham medo, o medo tomava conta das pessoas junto às quais se buscava abrigo, e era preciso mudar para outro lugar de repente, quando uma única pessoa começava a se queixar de uma dor na ponta do dedo.” A viagem é terrível; no caminho veem os campos abandonados, as aldeias vazias, os cadáveres insepultos. Durante seis meses ele é obrigado a “servir miseravelmente de guia dessa caravana”, enquanto os jurados, aos quais deixara a administração da cidade, escrevem uma carta depois da outra. Visivelmente exasperados com a fuga de Montaigne, exigem seu retorno e lhe anunciam finalmente que seu mandato expirou. Mas Montaigne não volta nem para a data da despedida.

Um pouco de glória, um pouco de honra, um pouco de dignidade se perderam durante essa fuga em pânico da peste. Mas a “essência” se salvou. Em dezembro, depois que a peste terminou, Montaigne volta para o seu castelo após errar por seis meses e retoma a antiga tarefa: buscar a si mesmo, conhecer-se a si mesmo. Começa a escrever um novo livro de ensaios, o terceiro. Voltou a ter paz, está livre dos incómodos, exceto a dor dos cálculos. Ficar quieto, até chegar a morte, que já o “tocou várias vezes com as mãos”. 

Mas mais uma vez, o mundo o chama. A situação entre Henrique de Navarra e Henrique III ficou perigosamente tensa. O rei mandou um exército comandado por Joyeuse contra o herdeiro do trono, e Henrique de Navarra aniquilou completamente esse exército em Coutras no dia 23 de outubro de 1587. Agora, Henrique de Navarra poderia marchar contra Paris na condição de vencedor, obtendo à força seu legítimo direito ou até o trono. Mas sua sabedoria o dissuade de colocar seu êxito em risco. Quer tentar negociar mais uma vez. Três dias depois dessa batalha, uma tropa de cavaleiros parte rumo ao castelo de Montaigne. O comandante pede para entrar, o que lhe é imediatamente concedido. É Henrique de Navarra que depois de sua vitória vem pedir conselho a Montaigne sobre a melhor forma de explorar essa vitória, diplomática e pacificamente. É uma missão secreta. Quer que Montaigne viaje para Paris na condição de mediador e transmita ao rei suas propostas. Parece que não foi nada menos do que o ponto decisivo que depois garantiria a paz na França e a sua grandeza por vários séculos: a conversão de Henrique de Navarra ao catolicismo.

Em pleno inverno, Montaigne empreende imediatamente a viagem. Na mala, leva um exemplar corrigido dos ensaios e o manuscrito do novo livro, o terceiro. Mas não será uma viagem tranquila. No caminho, é assaltado e saqueado por soldados. Pela segunda vez, experimenta na própria pele a guerra civil, e mal chega a Paris, onde o rei não se encontra, é detido e levado para a Bastilha. É verdade que passa apenas um dia lá, porque Catarina de Médici logo manda libertá-lo. No entanto, mais uma vez o homem que busca a liberdade por toda parte experimentou também dessa forma o que significa ser privado da liberdade. Ele viaja então ainda para Chartres, Rouen e Blois para conversar com o rei. Com isso, sua missão termina e ele volta para o seu castelo.

No velho castelo, ocupa o seu gabinete na torre. Envelheceu, os cabelos caíram, uma careca redonda, ele cortou a bela barba castanha desde que começou a ficar grisalha. A casa ficou vazia; com quase noventa anos, a velha mãe ainda passa pelos aposentos como uma sombra. Os irmãos foram embora, a filha se casa. Ele tem uma casa e não sabe quem vai ficar com ela depois da morte. Ele tem um brasão e é o último. Tudo parece ter acabado. Mas precisamente nessa última hora, tudo chega a ele; agora que é tarde demais, as coisas se oferecem àquele que despreza as coisas. Em 1590, Henrique de Navarra, de quem foi amigo e conselheiro, tornou-se Henrique IV, rei de França. Bastaria a Montaigne correr para a corte, como todos o fazem, e a maior posição lhe seria certa junto àquele que ele aconselhou, e tão bem. 

Contenta-se em saudar o rei por carta, desculpando-se por não ter ido. Mas os reis não gostam de quem busca seus favores e muito menos de quem não os procura. Alguns meses depois, o rei escreve ao seu antigo conselheiro em um tom mais duro a fim de conquistá-lo para o seu serviço e parece que lhe fez uma proposta financeira. Mas se Montaigne já não está mais disposto a servir, muito menos quer ser suspeito de se vender. Orgulhoso, responde ao rei: “Jamais obtive quaisquer vantagens materiais pela graça dos reis, nem as cobicei e nem as mereci.

Algum tempo antes da morte, os mais altos dignitários chamaram o homem que já não os deseja nem espera mais. Algum tempo antes da morte, o homem que se sente velho, que já não é mais do que uma parte e uma sombra de si mesmo, experimenta algo que há muito já não mais espera, um raio de ternura e de amor. Melancólico, ele disse que só o amor talvez pudesse voltar a despertá-lo. E ocorre então o inacreditável. Uma jovem de uma das principais famílias da França, Marie de Gournay, pouco mais velha do que a mais jovem de suas filhas, que acabou de casar, é tomada de paixão pelos livros de Montaigne. Ela os adora, endeusa, busca seu ideal nesse homem. Como sempre em casos como esse, é difícil constatar em que medida esse amor não foi dirigido apenas ao autor, ao escritor, mas também ao homem. Mas ele empreende várias viagens para encontrá-la, fica alguns meses no castelo da família, perto de Paris, e ela se torna sua “fille d’alliance”, ele lhe confia sua herança mais preciosa: a edição de seus Essais após sua morte.

Montaigne morreu sabiamente, como viveu sabiamente. Seu amigo Pierre de Brach escreve que sua morte foi suave “depois de uma vida feliz”, e que precisa ser considerada um alívio para uma gota paralisante e para seus cálculos dolorosos. Mas, acrescenta, os frutos de seu espírito jamais cessarão de encantar os homens de espírito e de bom gosto em todos os tempos. Michel de Montaigne recebe a extrema-unção no dia 13 de setembro de 1592 e falece pouco depois. Com ele, apaga-se a linhagem dos Eyquem e dos Paçagon. Ele não repousa entre seus antepassados, como seu pai: repousa sozinho na igreja de Feuillants, em Bordéus, o primeiro e o último dos Montaigne, e o único que legou esse nome à posteridade.