terça-feira, 30 de março de 2021

Da Alma (Self, Selbst, Si mesmo)




Platão e Aristóteles definiram a psiché  (alma) como um intelecto imortal e perpétuo. 
Aristóteles enfatiza a alma observada nos seus atos. Por exemplo, é como se uma faca tivesse uma alma: o ato de cortar seria considerado essa alma, porque "cortar" faz parte da essência do que é ser uma faca. Mais precisamente, a alma é a "primeira atividade" de um corpo vivo. Este é um estado, ou um potencial para a atividade real. A qualidade 'cortar' do machado é idêntica à qualidade 'pensar' do ser humano. O potencial para atividade racional constituía, assim, a essência de uma alma humana. Ele afirma: "A alma é uma realidade ou essência formulável de algo que possui uma potencialidade de ser animada", e também: "Quando a mente é libertada das suas condições atuais, ela aparece exatamente como é, e nada mais". " De Anima" é a obra principal de Aristóteles sobre o assunto.

Civilizações ocidentais e orientais têm-se ocupado todo o tempo com o autoconhecimento, precisamente aquilo que nos distingue definitivamente da restante criação. Para Sócrates, o objetivo da filosofia era o nosso autoconhecimento. E por outras palavras é o que Lao Tzu diz no Tao Te Ching, e o mesmo dizem os Upanishads e o Bhagavad Gita. O autoconhecimento descreve a capacidade de detetar que as sensações, pensamentos, estados mentais e atitudes são nossas. A teoria racionalista, inspirada em Kant, também afirma que a nossa capacidade de alcançar o autoconhecimento através da reflexão racional deriva, em parte, do facto de nos vermos como agentes racionais. Esta escola rejeita que o autoconhecimento seja meramente derivado da observação, pois reconhece o sujeito como autónomo, devido à sua capacidade de agência, é capaz de moldar os seus próprios estados de consciência. 

As experiências com pacientes que sofreram o corte do corpo caloso como medida cirúrgica para resolver certas epilepsias resistentes a todos os tratamentos farmacológicos, mostraram-se inconciliáveis com a antiga ideia de Alma, um termo equivalente ao hebraico Néfesh, ao sânscrito Ātman, ao grego Psykhé e à Anima em latimUma divisão física do cérebro produz como que duas almas diferentes que possuem propósitos, gostos, opiniões, personalidade e pensamentos diversos, embora compartilhem lembranças de factos anteriores à separação dos hemisférios. De uma forma geral, a ciência moderna estuda o cérebro humano sem fazer referências a uma alma imaterial, uma vez que, se existe, não pode ser observada nem medida pelos instrumentos da tecnologia. Apesar disso, os cientistas também são humanos como as outras pessoas, com as suas fraquezas e suas fantasias, e alguns cientistas não têm resistido à tentação de procurar evidências da existência de uma alma humana.

Numa experiência feita a um indivíduo que tinha os dois hemisférios separados, isto é, sem a comunicação normal feita pelo corpo caloso entre os dois hemisférios cerebrais, verificou-se algo de extraordinário quando se lhe perguntou: se pudesse escolher a profissão ideal, qual era a que escolheria para si. Verbalmente, o paciente respondeu: "Arquiteto". No entanto, quando lhe pediram que escrevesse a resposta com a mão esquerda, o resultado foi surpreendente: “Piloto de Fórmula 1”. Ora, sabemos que os centros da fala estão localizados no hemisfério esquerdo; e para a escrita com a mão esquerda, os destros precisam do hemisfério direito. No corte do corpo caloso, o hemisfério esquerdo (o que fala) deixa de ter acesso ao hemisfério direito, a comunicação entre os dois hemisférios está cortada. E como o hemisfério direito não tem acesso aos centros da linguagem, a fonte da informação deixa de coincidir com a informação dos centros da linguagem que estão no hemisfério esquerdo. Neste caso, a pessoa parece que tem duas consciências independentes. E sabe-se que enquanto o hemisfério esquerdo é a fonte da razão, o hemisfério direito é a fonte da emoção e da intuição, que no estado normal trabalham em conjunto para obter o resultado final. Ou seja, na tomada de decisão é o lado emocional que tempera o lado racional.

Muitas das receitas atuais para uma alma saudável - que hoje vemos receitar nos programas de entretenimento dos canais de televisão ocidentais, para termos uma vida psíquica e física mais saudáveis - têm origem em teorias meditativas vindas do Oriente. O ser humano está constantemente na ilusão de que a sua existência individual nada tem a ver com as outras espécies da criação. Mas esse sentido de si, ou sentido de existência individual, convive bem com essa natureza que cada um de nós possui para a luta num mundo que não deixa de ser selvagem. E é isso que choca. Pensamos que a identidade do sujeito da experiência é distinto de tudo o resto. Mas as discussões filosóficas contemporâneas sobre a natureza do self não são discussões sobre a natureza da personalidade ou da identidade pessoal. O self não é uma uma substância imaterial, a que todas as tradições deram o nome de alma.

Estamos no campo da subjetividade. A neurociência dá objetividade científica àquilo que é o domínio do sujeito. O sentimento, com a sua natural subjetividade, e tudo isso, se estendeu a outras subjetividades. O que temos é uma grande possibilidade, muito rica, de juntar subjetividades dentro da nossa mente. A nossa mente é toda feita de subjetividades. Sensação, emoção e sentimento são três coisas diferentes. Sensação é o que toda a espécie viva tem. As respostas mais complexas, classificadas como emoções, muitos outros seres, considerados inferiores, também as têm. Organismos simples, se lhes tocarmos, eles retraem-se, movem-se, e é o movimento que está na raiz do conceito de emoção.  São reações de movimento. O movimento está do lado das emoções. E estar do lado das emoções é estar do lado daquilo que é visível para os outros. Sensação basicamente não tem nada a ver com a emoção propriamente dita. A emoção é uma reposta complexa de movimento em relação a um estímulo que foi sentido. 

Já o sentimento, a experiência que se pensa que é apenas a criatura humana que o temé a experiência mental daquilo que se passou no organismo quando houve sensação e emoção, um terceiro degrau na escalada da menteEu, como centro de gravidade de uma narrativa, é um conceito deflacionário utilizado por Daniel Dennett, um filósofo fisicalista funcionalista, para dizer que Eus não são fisicamente detetáveis. Em vez disso, são uma espécie de ficção conveniente numa estratégia intensional (com 's', para se diferenciar do intencional de intenção), mas importado do conceito de Intencionalidade da Fenomenologia de Husserl. Segundo o conceito dennettiano de mente, que contempla vários tipos de mente, animal e artificial, das mais simples às mais complexas. 

O conceito de self, tal como conceito de mente, é entendido de muitas maneiras diferentes por diversas tradições culturais, filosóficas e religiosas. Alguns veem a mente como uma propriedade exclusiva dos seres humanos, enquanto outros atribuem propriedades mentais a todo o Universo, incluindo entidades não vivas onde cabem as divindades. Mas as visões modernas intituladas 'fisicalistas', como as de Daniel Dennett,  também não ajudam, ao reduzirem todas as propriedades mentais à física, uma entidade física pura e dura. Onde encaixar o self -“Eu”? No cérebro! E então, e os qualia? Ou seja, a fenomenologia? A única forma que Daniel Dennett arranjou para responder a isso, pelo menos no início, foi não reconhecer a existência sequer dos qualia.  E assim, deixou de fora aquela coisa difícil de definir: os qualia da consciência (em línguas anglo-saxónicas); a fenomenologia (em línguas franco-alemãs).  

segunda-feira, 29 de março de 2021

Estados Federados da Micronésia





País da Oceânia, os Estados Federados da Micronésia, coloquialmente chamados apenas de Micronésia, são uma nação insular composta por cerca de 607 ilhas que se estendem por 2 900 km pelo arquipélago das Ilhas Carolinas no Oceano Pacífico, a leste das Filipinas e a norte da Papua-Nova Guiné. Segundo o Banco Mundial, a população em 2018 era de 112.640 habitantes, falantes de vários idiomas regionais, sendo reconhecidos: o chuquês; língua kosreana; língua pohnpeica; língua yap.



A capital é Palikir, mas a maior cidade é Weno. A moeda é o dólar dos Estados Unidos.

Quanto ao coronavírus, é contabilizado apenas um caso infetado, que recuperou. Para esta contabilidade a população é de 115.912 habitantes. Quem quiser entrar na Micronésia tem primeiro de demonstrar que esteve pelo menos 14 dias num país livre do vírus. As restrições implicam igualmente os próprios cidadãos que estão proibidos de viajar para os países afetados.

Os Estados Federados da Micronésia são governados por um congresso com catorze membros eleitos por voto popular. Quatro senadores — um de cada estado — têm mandatos de quatro anos; os restantes dez senadores representam os distritos de acordo com a correspondente população e têm mandatos de dois anos. O presidente, e o vice-presidente, são eleitos pelo Congresso, de entre os quatro representantes dos estados, para mandatos de quatro anos. As suas posições no Congresso são depois preenchidas por eleições especiais. Não existem partidos políticos organizados.

Contabilidade da Covid-19 - Europa

 

1900, um filme de Bernardo Bertolucci, 1976




1900, um filme de Bernardo Bertolucci, 1976 - é conhecido por ser um dos filmes mais longos alguma vez realizados. 317 minutos na sua versão original, em muitos países foi apresentado em duas partes. O filme estreia em 25 de abril de 1945, o dia em que a Itália é libertada dos fascistas.

Os camponeses de uma propriedade na Emília-Romagna juntam-se com os seus partidários para mandar para a prisão o latifundiário Alfredo Berlinghieri [Robert De Niro]. Um homem de meia-idade chamado Átila Mellanchini [Donald Sutherland] e uma mulher chamada Regina [Laura Betti] são vistos a fugir da fazenda, mas são atacados por mulheres.

A narrativa volta para o início do século. Nascido no dia da morte do compositor Giuseppe Verdi – 27 de janeiro de 1901 – Alfredo Berlinghieri [Robert De Niro] e Olmo Dalcò [Gérard Depardieu] vêm de lados opostos do espectro social. Alfredo é de uma família de ricos latifundiários liderados por seu popular avô (também chamado Alfredo ou Alfredo, o Velho) e cresce com a sua prima Regina. Olmo é um camponês ilegítimo nascido de uma jovem solteira que já teve vários filhos. Seu avô, Leo, é o capataz e porta-voz dos camponeses que realiza um duelo de inteligência com o ancião Alfredo, que mascara um profundo respeito mútuo. Como Alfredo é um pouco rebelde e despreza a falsidade da sua família, em particular o pai cínico e covarde Giovanni, ele faz amizade com Olmo, um socialista. Durante esse tempo, Leo lidera insurgências contra as condições injustas na fazenda.

Alfredo Berlinghieri e Olmo Dalcò  conservam uma pura amizade durante toda a infância, apesar das diferenças sociais das suas famílias, e passam muito tempo na companhia um do outro. Olmo é alistado no exército italiano em 1917, durante a Primeira Guerra Mundial. Alfredo é ensinado a administrar a grande plantação familiar sob a orientação de seu pai. Quando Olmo regressa da guerra passado mais de um ano, a amizade com Alfredo mantém-se sólida. No entanto, Giovanni, depois do suicídio do ancião Alfredo, contrata para capataz Átila Mellanchini. Tomado pelo fascismo incutido por Giovanni, Átila passa a aplicar o sistema de crenças fascista na sua relação com os trabalhadores. Vivem-se os conturbados anos 20 e Olmo relaciona-se num namoro com Anita 
[Stefania Sandrelli], uma mulher que compartilha o seu entusiasmo pela causa dos direitos dos trabalhadores. Juntos, Olmo e Anita lideram vários protestos, com fervor, contra os proprietários de terras.

Entretanto Giovanni morre, e Alfredo assume o seu lugar. Casa com Ada [Dominique Sanda], uma linda e recatada francesa, e já entrada a década de 1930, ele se mostra o seu lado fraco, curvando-se aos fascistas. Ada, confrontada com a realidade do vazio do seu casamento com Alfredo, refugia-se na bebida. Ganha a simpatia dos trabalhadores, desprezando a sua subjugação ao capataz Átila Mellanchini. Anita, morre no parto, mas o bebé sobrevive, uma menina, que Olmo lhe põe o mesmo nome - Anita. Já adolescente a jovem apoia as crenças socialistas do pai. Enquanto Olmo assume o seu fatídico papel de líder entre os pobres agricultores e as suas famílias, ele entra em conflito várias vezes com Átila, que revela as suas  tendências psicopáticas, quando mata um gato, e uma criança no casamento de Alfredo e Ada, imputando as culpas a Olmo. E vai cometendo mais atrocidades, como matar a velha Pioppi para lhe ficar com a propriedade. Ada acaba por deixar Alfredo.

Dando um salto, ultrapassando a Segunda Guerra Mundial, a classe dominante fica à mercê da classe trabalhadora. Átila confessa os assassinatos que cometeu ao longo dos anos, e é morto. Olmo regressa à propriedade a tempo de ver Alfredo a ser levado a um tribunal de trabalhadores para ser julgado. Alfredo é condenado à morte, mas a sua execução é impedida depois de Olmo testemunhar e sua defesa, que não era um fascista. E o sistema foi derrubado com o fim da guerra. Assim que o veredicto é alcançado, no entanto, Alfredo declara "O padrone está vivo", indicando que a luta entre as classes trabalhadora e dominante está destinada a continuar.

Bertolucci esboça um gigantesco painel do século XX, do início até ao fim da Segunda Guerra Mundial. Se o fascismo é a preocupação recorrente de Bertolucci, nada mais natural que ele fosse em busca das suas raízes. Daí o painel, cujo esboço começa com a oposição entre latifundiários e camponeses no início do século e o acirramento de posições entre uns e outros. Os apelos do comunismo de um lado e os do fascismo do outro, com as posições sendo progressivamente endurecidas pelo conflito. Essa ideia cinematográfica ganha corpo na história dos dois jovens que crescem juntos, que se separam, mas depois voltam a encontrar-se. Uma Itália contra a outra. Amando-se e odiando-se, conforme a circunstância, pessoal ou histórica. Numa dialética da convivência entre contrários, Bertolucci pensa uma Itália permanentemente dividida - como é até hoje, dois países que se odeiam.




O Quarto Estado é o pano de abertura do filme de 
Bertolucci - 1900. Quadro do pintor italiano Giuseppe Pellizza da Volpedo. O Quarto Estado, uma pintura a óleo sobre tela (293×545 cm) descreve um grupo de trabalhadores marchando em protesto numa praça, presumivelmente a Malaspina de Volpedo. O avanço do desfile não é violento, mas lento e seguro, para sugerir uma sensação de inevitável vitóriaː foi intenção de Pellizza dar vida a "uma massa popular, de trabalhadores da terra, que inteligentes, fortes, robustos, unidos, marcham como torrente esmagadora vencendo todos os obstáculos que surjam pela frente." Torrente (Fiumana) – uma outra pintura que Giuseppe Pellizza realizou três anos antes do Quarto Estado, à luz do brutal Massacre de Bava-Beccaris em Milão, 1898.

A pintura do Quarto Estado foi apresentado ao público pela primeira vez na Exposição Internacional de Arte Decorativa Moderna/Quadrienal de Turim de 1902, juntamente com outro quadro importante de Pellizza, Il tramonto. A obra não teve reconhecimento. O sucesso de O Quarto Estado junto do público não começou nas salas de exposições - como esperava Pellizza - mas na imprensa socialista e em inúmeras reproduções. No entanto, a conceção do Quarto Estado foi absolutamente exemplar: Giovanni Cena, depois da Quadrienal, escreveu que "é algo que vai permanecer e sem medo do tempo, porque o tempo o vai beneficiar".

Foi durante a permanência no Palácio Marino, lugar de elevado valor simbólico (como sublinhou o então prefeito de Milão, Antonio Greppi, que o culto de O Quarto Estado foi revivido; isto deveu-se principalmente ao magistério crítico de Corrado Maltese, que classificou a pintura como o "monumento maior que o movimento operário se podia vangloriar em Itália". Graças a Maltese, a pintura foi objeto da redescoberta pelos críticos contemporâneos, tornando-se o centro de inúmeras exposições e trabalhos de investigação, entre elas as monografias de Aurora Scotti - "Il quarto stato e Pellizza da Volpedo". E de Gabriella Pelissero - "Pellizza per il Quarto Stato". 

domingo, 28 de março de 2021

A nossa mesada, e a conta da martelada





A única razão por que o investidor privado deseja adquirir bens públicos, que geralmente nunca dão lucro, e que doem tanto – ao contribuinte/utilizador/consumidor – por tanta ineficiência, é porque o Estado elimina, reduz ou poupa o investidor à sua exposição do risco. Em alguns casos, como por exemplo os CTT, o privado viria não apenas a ter prejuízos, como ainda por cima a derramar mais ineficiências do que a antiga gestão pública. Em suma, o fito dos privados é rapar lucros e cobrar os prejuízos ao Estado.

O resultado é o pior dos mundos possíveis para os cidadãos. Na saúde, a mania da privatização começou paulatinamente a operar desde os "tempos Thatcher" com as parcerias público privados, conhecidas pelo acrónimo PPP. É claro, no Reino Unido, onde estas coisas começam sempre mais cedo do que em Portugal, as PPP ruíram em 2007, mas os privados não deixaram de ir ter com o Estado para receber a conta.

Com a reprivatização da EDP, aquando do resgate financeiro dos anos da troika, o Estado português abdicou da golden share e fez um encaixe de 2,7 mil milhões de euros. E a EDP adquiriu uma posição maioritária na estrutura acionista, e como tal, assumiu o controlo da empresa. Agora a EDP vende 6 barragens das 27 que comprou, digamos que pelo mesmo preço, a um consorcio de investidores com a Engie à cabeça, por 2,2 mil milhões de euros. E muita gente fica perplexa com este tipo de negócios, ou seja, estima-se que essas 6 barragens ficaram à EDP por um preço, e vendeu-as por um valor cerca de dez vezes mais. Há negócios que não se explicam. Mas, ainda não satisfeita, a EDP engendrou uma manobra jurídica para isentar o negócio do imposto de selo no valor de cento e tal milhões de euros. 

Quando o descalabro sucede em série, como é o caso das companhias de aviação por causa da pandemia, o efeito é a renacionalização insidiosa, de facto, sem nenhuma das vantagens do controlo público como é o caso da TAP. É certo que em Portugal as coisas na Saúde não chegaram a esse ponto, ainda que no início do governo da Geringonça, as PPP de gestão privada que havia de alguns hospitais começaram a ser revertidas "a tempo" para as mãos do Estado. E agora com a Pandemia, o golpe de misericórdia dado às PPP foi definitivo, com a unânime reabilitação laudatória do Serviço Nacional de Saúde (SNS).

Não se pode deixar que companhias de eletricidade ou redes de controlo de tráfego aéreo parem devido a má gestão ou incompetência financeira. E é claro que os gestores sabem disso. Dado que nunca seria permitido a serviços nacionais, que são vitais, desintegrarem-se. Os privados podem correr riscos à vontade, desbaratar recursos, ou apropriar-se indevidamente deles, porque sabem que o governo acaba sempre por pagar a conta com o dinheiro dos contribuintes.

Estas coisas são de tal modo pornográficas, do ponto de vista da relação da lei com a moral na política, que às vezes precisamos de umas anedotas para desanuviar a mente, e não começarmos a partir tudo. E a história do "vender por dez vezes mais do que comprou" traz-me à memória um conto daqueles do meu tempo de rapaz. E o conto que vou contar tem a ver com "mesada"“martelada”. No tempo em que o processo iniciático da performance sexual dos rapazes se fazia em lupanares guardados por veneráveis senhoras de meia-idade.
Quando eu contei esta cena ao meu amigo, ele não fez nenhum comentário. O comentário foi trocado por uma anedota a propósito. Um rapaz como nós, a estudar em Coimbra, recebia a mesada por vales dos CTT, e mantinha correspondência com o pai por carta, dando-lhe conta das despesas numa lista, dado que só ia a casa nas férias do Natal, da Páscoa e férias grandes. Numa das cartas ele apresentou um item com o nome de "martelada", mas uma martelada muito cara. O pai não se fez de desentendido, e na volta do correio enviou-lhe um vale no valor que ele pedia, mas recomendava-lhe que procurasse uma "martelada" mais barata. No mês seguinte, o pai recebe uma lista com mais um item a seguir ao item da martelada, num valor baratinho. Era o conserto do martelo, num valor dez vezes superior ao da martelada.

Nesse tempo, era quando se saía de casa para estudar, Coimbra era o arquétipo, que se começava a receber uma mesada e a ter que a gerir da melhor maneira sem entrar em conflito com o pai por causa dos desmandos. "Cuidado com as dívidas!" Era o sacrossanto slogan. É claro que os primeiros tempos eram muito tortuosos, dado que com dezasseis anos de idade, completamente à solta, e com chave de casa no bolso, entrando às horas que se quer, exigia muita acrobacia num roteiro iniciático cheio de alçapões e ratoeiras, numa partilha de quartos em casas com o nome de repúblicas, comida fraca, cachorros-quentes e sandes de chouriça de lata em azeite, entremeadas com umas tacadas de snooker.

Até que chegava o dia de saber como era o ambiente na rua dos lupanares. Tempos de manobras sui generis, da rata e da gata, entre meretrizes, polícias e juízes. E nada mais. E um dia, armados em sabichões, a fazer de cicerones a uns fulanos lá da terra, adultos já feitos, ou a casar dali a dias. A ensinar-lhes as táticas da penetração na casa onde estavam as melhores. Mas eles naquela altura, nada! Depois, nas férias, antes de mais nada confrontavam-se com os pais a chamarem-nos ao quarto escuro, e a falar de uns zunzuns chegados aos ouvidos, estás a perceber . . .

sábado, 27 de março de 2021

Trava-línguas ou a trava da língua?






Trava-línguas são conjuntos de palavras, como por exemplo: "Três pratos de trigo para três tigres tristes" – não frases no sentido proposicional. E dá-se pelo nome de trava-línguas precisamente pela sua dificuldade de pronunciar rapidinho e de uma assentada. Podendo ser um bom exercício, sobretudo com crianças, para aperfeiçoar a pronúncia. De resto, são também uma boa diversão. Os trava-línguas fazem parte das diversões orais da cultura popular. O que as torna apelativas é o desafio de reproduzi-los sem errar. E não há melhor entusiasmo numa criança do que um bom desafio. Portanto, uma brincadeira que agrada sempre, e mais ainda quando certas palavras, na atrapalhação, descambam para a asneira, ou seja, o palavrão obsceno.




Por outro lado, existe a parlenda – sequência discursiva composta por palavras rimadas e/ou repetidas, que lhe conferem um carácter musical. Outro divertimento infantil que não tem apenas uma utilidade lúdica, mas também uma utilidade em mnemónica (uma lengalenga para facilitar a memorização de algo, ligando ideias e factos). Rimas fáceis, infantis, rápidas e rítmicas. É usada, em muitas ocasiões, para brincadeiras populares. Normalmente é uma arrumação de palavras sem acompanhamento de melodia, mas às vezes rimada, obedecendo a um ritmo que a própria metrificação lhe empresta. A finalidade é entreter a criança, ensinando-lhe algo. As parlendas parecendo cantilenas não são cantadas. São lengalengas declamadas, sendo em forma de texto, na medida em que preenchem uma grande variedade de livros infantis, mas com acentuações performativas ou prosódicas. Portanto, um dos processos iniciáticos da criança na leitura dos livros. E que os adultos adoram, porque lhes dão fórmulas verbais indeléveis para a sua memória futura. 





A trava da língua ou freio, é uma “prega” fina de tecido fibroso (tipo membrana), presente na boca por baixo da língua. Isto deteta-se logo nos primeiros meses em que o bebé tem dificuldade em alimentar-se, mas em certos casos pode passar despercebido até à idade em que a criança começa a falar e apresenta dificuldade em pronunciar os L, R, N e Z. E também atrapalha a criança se lhe dermos uma flauta, ou outro instrumento de sopro, e se verifica então a sua dificuldade em soprar. Ora isto é fácil de resolver, basta dar um pequeno golpe nessa membrana com uma tesoura. Bem entendido, por um profissional de saúde, que tanto pode ser uma médica como uma enfermeira. Tecnicamente chama-se frenectomia.

Naturalmente, este assunto remete-me para as minhas memórias de infância, e mais uma vez para a minha avó Maria, com quem eu me criei, e um dia lhe ouvi estas palavras: “Este rapaz está a precisar que lhe cortem a trava da língua”. Mas ouvi-lhe muito mais vezes dizer: “Fecha, mas é, a taramela”, quando já não estava para nos ouvir dizer mais disparates. Mas noutras ocasiões dizia: “Parece que se te entaramelou a língua, meu filho . . .”, quando tivemos um mau desempenho numa prova oral na Escola; ou quando interrogado sobre alguma patifaria, ficava embaraçado e começava a titubear.




Ora, a taramela é uma peça de madeira que gira em torno de um prego, ou desliza por uma calha na madeira, para fechar as portas das lojas das alfaias agrícolas, ou das cortes do gado. Em certas regiões também lhe dão o nome de cravelho. Mas em jargão popular das nossas terras campestres também significa língua, vozearia ou falatório. Portanto, qualquer pessoa que é tagarela, o povo diz que dá à taramela. Daí que quando ficamos enrascados o povo também diga: “que se nos entaramelou a língua”.


Travões

 







sexta-feira, 26 de março de 2021

O percurso multissecular do parecer: lifestyle e boutiques




Depois da divulgação de que Tory Burch estava a vender camisolas poveiras a 695 euros, duras críticas por centenas de pessoas não se fizeram esperar nas redes sociais. Ameaçada pelo município da Póvoa de Varzim, que lhe enviou uma carta dando conta da intenção de agir judicialmente, a estilista reagiu, esta quinta-feira à tarde, à avalanche de críticas por estar a vender camisolas poveiras como criação sua. A empresária assume o erro de ter referido a influência mexicana da peça, omitindo que ela é, na verdade, uma tradição dos pescadores da Póvoa de Varzim e, numa publicação no Twitter, diz estar já a trabalhar com o município para corrigir a situação e para valorizar o trabalho das artesãs que continuam a fazer estas camisolas. Pediu desculpa nas redes sociais. A câmara municipal confirmou o contacto.




Enquanto os indivíduos buscam antes de tudo parecer-se com seus contemporâneos e não mais com seus antepassados, os fluxos de imitação se desprendem dos grupos familiares e dos meios de origem. Ao invés dos determinismos fechados de corpos, de classes, de país, manifestam-se influências múltiplas, transversais, recíprocas. O terminal da moda assinala “o domínio livre e não entravado da imitação”.

O termo boutique e também designer, com algumas diferenças, remetem para bens e serviços que estão contendo algum elemento que se diz justificar um preço extremamente alto. Assim como no mercado de Belas-Artes se passou a usar a Arte em esquemas de lavandaria, algumas boutiques se especializaram em objetos feitos à mão, e outros produtos exclusivos a preços muito altos, tentando imitar o negócio da Arte.

Dentre as várias formas de nudez que a humanidade experimentou, deixemos a nudez como contingência da natureza, e falemos da nudez como realização do ideal do belo. Refiro-me aos gregos e romanos antigos, a nudez dos indígenas ou dos homens das cavernas nada tem a ver com esta nudez. Trata-se de uma solução da ordem da estética, com amplo lastro filosófico. Os jovens do sexo masculino andavam nus a maior parte do tempo - conforme podemos perceber ao analisar a estatuária e pintura grega - mas tinham sempre uma espécie de manto ou capa ao ombro, para solenidades cívicas ou para o interior das habitações. Com o helenismo, e a expansão das letras e das artes gregas por toda a bacia do Mediterrâneo, as várias culturas se mesclam ocasionando uma mudança nas formas de representação. No términus da forma sincrética helenística, começam a aparecer, pela primeira vez, mulheres representadas nuas, como é o caso da famosa Vénus de Milo.

Na Antiguidade Oriental as vestes passaram a ser usadas para diferenciação social: as diferentes castas na Índia usavam cores e padrões diferentes. Desta maneira, foram surgindo nas sociedades orientais várias formas de indumentária e ornamentos, para que as pessoas pudessem ser facilmente identificadas, em relação ao papel que desempenhavam. As grandes civilizações – Índia, China, Japão – desenvolveram estilos e modismos próprios, extremamente diferenciados, sendo que a principal inovação foi no campo das texturas, pelo uso da seda, e do tingimento.

No tempo do Império Bizantino, era proibida a nudez, e as roupas tornaram-se nitidamente mais amplas e mais longas, sendo que foram estas as vestimentas que deram origem aos hábitos dos monges e freiras; e às batinas dos padres. Dava-se valor, por exemplo, às roupas na cor roxa, chamada "púrpura", pois essa cor era derivada de um pigmento muito raro que só a nobreza tinha condições de adquirir.

Na Idade Média Ocidental as vestimentas passaram a ser produzidas artesanalmente, com fibras naturais e em cores cruas, tornando-se raras e exclusivas, apesar de extremamente básicas. A forma se assemelhava às bizantinas e a elite, formada pelos guerreiros e sacerdotes, se distinguia dos camponeses também através do vestuário, o qual era colorido (normalmente vermelho ou verde). As roupas eram confecionadas em casa, evoluindo das túnicas merovíngias (de comprimento até à altura dos joelhos, bordadas nas pontas e amarradas por cintos) até as ricas vestes da época carolíngia, com enfeites de brocado. Com o passar do tempo, os camponeses começaram a tingir tecidos em tom azul, pois este é facilmente conseguido através da ureia. Com o desenvolvimento das cidades e a reorganização da vida das cortes, a aproximação das pessoas na área urbana levou ao desejo de imitar. Enriquecidos pelo comércio, os burgueses passaram a copiar as roupas dos nobres. Ao tentarem variar as suas roupas, para diferenciar-se dos burgueses, os nobres inventavam algo novo e assim por diante.

Quando a influência dos ancestrais cede o passo para a submissão às sugestões dos inovadores, as eras do costume dão lugar às eras da moda. Enquanto nos séculos do costume se obedece às regras dos antepassados, nos séculos da moda imitam-se as novidades de fora e aquelas que nos cercam. A moda é uma lógica social independente dos conteúdos; todas as condutas, todas as instituições são suscetíveis de serem levadas pelo espírito da moda, pelo fascínio do novo e a atração dos modernos.

Certamente em matéria cultural e artística a nossa relação com o passado é mais complexa. Com efeito, em parte alguma as obras “clássicas” se veem desqualificadas; bem ao contrário, são admiradas e apreciadas no mais alto grau. Mas isso não é o que se passa na cultura de massa. Com o modernismo artístico e as vanguardas, as obras deixaram explicitamente de ligar-se ao passado; tratava-se de romper todos os laços com a tradição e de abrir a arte à empresa de rutura radical e de renovação permanente. A arte de vanguarda insurgiu-se contra o gosto do público e as normas do belo em nome de uma criação sem limites e do valor último da inovação. O desenvolvimento das vanguardas coincidiu cada vez mais com a preponderância da moda. A Arte viu desencadear-se a busca da originalidade e da novidade a qualquer preço, o boom da desconstrução, do conceptual e do minimalismo. Happening, não Arte, ações e performances, body-art, land-art. O excesso, o paradoxo, a gratuidade, o jogo ou o despropositado, o insólito. 

O fosso entre a criação da moda, e a criação artística, não cessa de reduzir-se. Enquanto os artistas não conseguem mais provocar escândalo, os desfiles de moda se tornam cada vez mais criativos. A Democratização da Arte e da Cultura, doravante, coloca no mesmo nível fashion e bela-arte. É o espetacular. A A
rte acampa, de preferência, no terreno do “efeito”, no “piscar de olhos”, no palco das combinações e recombinações lúdicas. Tudo pode voltar, todas as formas do museu imaginário podem ser exploradas e contribuir para desclassificar mais depressa o que está em evidência. A Arte entra no ciclo moda, nas oscilações do efémero, da novidade.




Gabriel de Tarde foi o primeiro estudioso a conseguir teorizar a moda para além das aparências frívolas, tendo-lhe dado uma dignidade conceptual especial. O primeiro a ter visto na moda uma forma geral de sociabilidade, a ter definido épocas e civilizações inteiras pelo próprio princípio da moda. Parte desse momento em que a moda não remete mais exclusivamente ao domínio das futilidades e designa uma lógica e uma temporalidade social de conjunto. No campo da filosofia social, Gabriel de Tarde desenvolveu uma teoria segundo a qual o processo da história social corresponde a um ciclo infinito onde a inovação se faz com base na imitação. Para este autor, os hábitos existem porque as invenções se sucedem e repetem por imitação. Tudo o que é criado é na verdade produto da imitação e é conforme à capacidade de aceitação da sociedade que envolve o criador. A moda é essencialmente uma forma de relação entre os seres, um laço social caracterizado pela imitação dos contemporâneos e pelo amor das novidades estrangeiras. A moda e o costume são as duas grandes formas de assimilação social das pessoas.

Gabriel de Tarde não chegou a apreender o elo consubstancial que une a moda às sociedades modernas. Em busca das leis universais da imitação e da sua marcha irreversível, Gabriel de Tarde não reconheceu que a moda tenha sido uma invenção do Ocidente moderno. A moda tem a ver com as fases transitórias e revolucionárias entre duas eras de costumes. A vida social é universal e necessariamente ritmada pela oscilação de fases tradicionalistas, onde grassa a imitação dos modelos antigos e autóctones, e de fases de moda, onde se manifestam vagas de imitação de novidades estrangeiras abalando o equilíbrio dos usos e costumes. Depois a moda volta a ser costume

Tal é a fórmula geral que resume o desenvolvimento total de uma civilização qualquer: a Grécia do século V a.C.; Florença no século XV; Paris no século XIX. É na Europa dos séculos XVIII e XIX, que a imitação-moda ganha sincronicamente todas as esferas da atividade social. O século XVIII inaugurou o reino da moda em grande escala, um período de imitação-moda notável que ultrapassa o clássico "meio dos trapinhos". É o império da moda a assinalar a imensa inversão da temporalidade social, consagrando a ditadura do presente sobre o passado, o advento de um espaço social apoiado no presente, o próprio 'tempo da moda'. Passou a ser a moda a ditar as regas, a governar os nossos hábitos e costumes. O passado deixa de ser o polo que ordena o detalhe de nossas ações, de nossos gostos, e até das nossas crenças. O legado ancestral já não estrutura mais, no essencial, os comportamentos e as opiniões. A moda está no comando porque o passado legislador não é mais regulador, mas sim o amor pelas novidades sem limites, ordenado pelos valores hedonistas. Legitimidade do bem-estar e dos gozos materiais, sexualidade livre e desculpabilizada, convite a viver mais, a satisfazer os desejos, a “aproveitar a vida”. A cultura hedonista a orientar os seres para o prazer do presente imediato. O espírito de tradição está coletivamente morto, é o presente que comanda a nossa relação com o passado. A era da tradição já terminou, sepultada pela era do individualismo. 

quinta-feira, 25 de março de 2021

À carga! Os Paladinos




«Os vários movimentos que usam o termo “pela verdade” são, sem qualquer dúvida, negacionistas. O “pela verdade” faz parte da nada inocente novinlíngua da desinformação. Aquela manifestação nasce da arrogância da ignorância, que se julga sempre mais sabedora do que todos os outros, incluindo os que produzem prova científica depois de uma vida dedicada ao estudo de vírus, de epidemias e de doenças respiratórias. Com as redes sociais, o tempo parece ter andado para trás na relação de muitos com a ciência.» [Daniel Oliveira]

Os Paladinos originais foram os 12 pares de Carlos Magno, que aparecem na Canção de Rolando evocando a Batalha de Roncesvalles. Também podem ser considerados Paladinos os lendários Rei Artur e os Cavaleiros da Távola Redonda, das lendas célticas. Paladino também é um tipo de personagem da ficção muito conhecido em épocas medievais, nas quais ele dispunha de poder sagrado e cujo lema era proteger os fracos, seguir a ordem e levar luz onde houvesse escuridão. Um Paladino é um herói cavalheiresco, errante e destemido, de carater inquestionável, que segue sempre o caminho da verdade, da lei e da ordem. O Paladino, cheio de bondade e justiça, viaja por entre os lugares mais obscuros do mundo, pronto para dar a sua vida a fim de proteger os fracos e/ou seus companheiros, e acabar com a escuridão trazendo a luz e esperança para os corações dos que estão ao lado dessa figura resplandecente.

Carga, aqui, tem um sentido polifónico, ou duplo. Podia ser “carga policial sobre os manifestantes”. Mas também pode ser “carga” (charge) no sentido da palavra francesa “charge” – uma ilustração de algo burlesco. Mais do que um simples desenho, charge é uma crítica político-social onde o artista expressa graficamente a sua visão sobre determinadas situações quotidianas através do humor e da sátira. Para entender uma charge, não é preciso ser necessariamente uma pessoa culta, basta estar a par do que acontece. A charge pode ter um alcance maior do que um editorial. Como desenho crítico, é temida pelas pessoas com poder. Grande parte das charges trabalham com a questão do exagero. As charges procuram expor situações ridículas, ou mostrar de forma não convencional temas normalmente tratados com maior seriedade. Uma charge nunca será autoexplicativa. Muitas charges dialogam com notícias e editoriais do próprio jornal em que foram publicadas. Essa interdisciplinaridade é utilizada de forma implícita, o que exige do leitor um conhecimento prévio dos discursos correntes para que possa entender a charge.



Os Paladin -  uma banda britânica de rock progressivo fundada em 1970. Eles atuavam ao vivo por todo o Reino Unido, enquanto trabalhavam para desenvolver o seu som, tocando uma mistura de rock, blues, soul, jazz e música latina. Criaram um som único com o uso de teclados duplos. Essas performances foram notadas pela “Bronze Records" (que também gravou Uriah Heep e Manfred Mann). Em 8 de janeiro de 1971, Os Paladin entraram no Olympic Studios em Londres para gravar o seu primeiro álbum homónimo, produzido por Philamore Lincoln. As críticas foram boas, mas as vendas foram dececionantes. Em 1972 lançaram o álbum “Paladin’s Charge!”, sendo Geoff Emerick o produtor, engenheiro do álbum Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band, dos Beatles.

Lado 2 - 2. "Mix Your Mind With The Moonbeams" - (Solley) - 6:00

Mix your mind with the moonbeams
Watch your sorrows in their rays
Let the cosmic light diffuse itself
In all its magic ways
Spread your mind from the moonbeams
To the distant skies beyond
Let the universe explain to you
You're just a ripple on the pond
And when you feel you're near the end
Then you reach out for a friend
You got to know where to go
You musn't impede the flow
It's there for you to show


quarta-feira, 24 de março de 2021

Frases – separando o essencial do acessório




De Magdalena Andersson, social-democrata, Ministra das Finanças da Suécia, acerca da isenção de impostos dos suecos reformados que vivem em Portugal:
 
“Se um paciente sueco e um paciente português estiveram lado a lado num hospital em Portugal, o português pagou impostos pelos dois. Muito interessante observar a forma como os cidadãos comuns em Portugal aceitam isto”.

De Henrique Monteiro:
Isto o quê? “A possibilidade de os mais ricos pagarem zero ou 10%, enquanto os cidadãos comuns pagam muito mais, uma injustiça que mina a credibilidade do sistema fiscal. Portugal é um enorme ‘offshore’ para reformados ricos. Gente que vem da Europa, com boas pensões, que pode comprar boas casas e que não é taxada, ou é-o em apenas 10% dos seus rendimentos de pensionista. Apesar dessas pensões atingirem valores que em Portugal teriam, de imposto, pelo menos 45%, e nos seus países de origem, tanto ou mais do que por cá. De facto, é impressionante como aceitamos esta desigualdade gigantesca. E dá-nos vontade de perguntar por onde anda o PCP, o Bloco e os restantes caça-desigualdades. O negócio para o nosso país é fantástico: se eles não viessem para Portugal também não pagariam nada às nossas finanças. Vivendo cá, pelo menos boa parte do ano, deixam o IVA e a miríade de taxas e taxinhas que vêm agarradas às transações mais diversas. É igualmente um bom negócio para um pensionista que aufira 10 mil euros. Na Suécia deixaria mais de cinco mil nos cofres do Estado. Aqui, não deixa nada, ou segundo legislação mais recente, deixa mil. A diferença (e tendo em conta o custo de vida mais baixo, o clima e a consequente qualidade de vida) provoca uma tentação óbvia.

De Daniel Oliveira:
"A cegueira perante regras erradas ou pouco claras poupa dinheiro ao Estado na relação com os pequenos, tira dinheiro ao Estado na relação com os grandes. O que o Estado perderia com o “planeamento fiscal” no negócio das barragens daria para salvar 12.500 restaurantes familiares, como o da ex-desempregada que não teve apoios por critérios objetivamente errados. O labirinto do burocrata serve para que o grande seja criativo e o pequeno seja tramado. O formalismo cego é a injustiça mascarada de rigor."

De Sérgio Sousa Pinto, numa entrevista a Maria João Avilez:

 


 

"Vivemos um período marcado por duas narrativas alternativas: uma diz-nos que o regime está esgotado, sem capacidade de se reconstituir, não se vislumbrando ninguém à altura de o fazer. Seria então preciso passar a outra coisa qualquer. O novo partido Chega, juntamente com um populismo torrencial, vive da revolta de muita gente que perdeu a fé no regime e no atual sistema de partidos; a outra narrativa diz-nos que o grande problema de Portugal consiste na direita! Ou seja, que derrotar a direita e resolver os problemas nacionais é, afinal, a mesma coisa. O que está por detrás disto é um quadro mental quase de tipo religioso, profundamente maniqueísta, em que o tal 'lado certo da história' — expressão pavorosa —, apropriado pela esquerda, defrontaria a reação, a inimiga da verdade, do bem e da virtude; o 'lado certo da História' consiste, portanto, na concertação entre as esquerdas e contra o quê? Não contra o atraso, as desigualdades, a pouca produtividade, a pobreza endémica — as nossas reais misérias — mas contra a direita, padroeira de todas as desgraças.

Ou mudamos ou acabaremos uma Suécia fiscal implantada numa Albânia económica. A classe média já exporta os filhos licenciados para fora. Um dia esses filhos enviarão remessas para financiar a velhice dos pais. O colapso da classe média significará a inviabilidade do país e do nosso regime democrático. Chega de propaganda, chega de atirar palavras contra a realidade. A realidade vence sempre.

Mário Soares era um homem do seu tempo. E na geração dele os populares eram os populares. Às vezes fazia-me lembrar o Clement Attlee quando andava de casa em casa pela Inglaterra a falar aos militantes do Labour e deixava os sapatinhos à porta, alguém havia de os engraxar porque naquele meio social era o que se fazia. Soares tinha essas marcas, mas, ao mesmo tempo, tinha essa familiaridade com o povo, apreciava-a verdadeiramente e divertia-se com ela. Aquilo não era fingido, nem um número penoso para bater todos os recordes da popularidade. Fazia as campanhas eleitorais com felicidade e enorme empenho, sabia como lhe eram indispensáveis à perceção da realidade. Nunca eram um ato gratuito. Eram uma condição sine qua non para que as transformações que considerava desejáveis pudessem vir a ocorrer. O que vemos agora são episódios: o Presidente da República a cortar o cabelo, a ir buscar uns bifes num saco de plástico... No fundo, é a continuação da cultura que Guterres tentou instaurar, só que agora nos surge de uma forma desabrida e descontrolada: Guterres inventou a teoria da dessacralização do poder e Marcelo — muito parecido com Guterres, no modo de pensar e na sua mundividência — elevou a dessacralização do poder a este extremo. Começou com Guterres a dizer que preferia ficar parado no trânsito sem batedores. E, então, primeiro tiraram-se os batedores, depois o carro oficial e por fim vai-se ali comprar uns pastéis de bacalhau."


De António Guterres, o secretário-geral das Nações Unidas: 

"Teorias de conspiração estão a infetar a internet. O ódio tornou-se viral, estigmatizando pessoas e grupos. O mundo tem de se unir também contra esta doença. Excesso de informação sobre determinado tema, por vezes incorreta e produzida por fontes não verificadas ou pouco fiáveis, que se propaga velozmente (ex.: infodemia de notícias falsas nas redes sociais). A infodemia global está a espalhar-se". 


De David Marçal, especialista em comunicação de ciência: 

"O facto de acreditarem em mentiras torna-se numa dimensão identitária. As pessoas têm hoje um bilhete de entrada nesse clube restrito por acreditarem num disparate qualquer. Seja acreditarem que a terra é plana. Ou acreditarem que as máscaras não são úteis no combate ou na prevenção da Covid-19. Também tem a ver um pouco com a questão do efeito Dunning-Kruger. As pessoas são demasiado incompetentes para reconhecerem a sua própria incompetência. Nós tendemos sempre para eliminar a dissonância cognitiva. E, portanto, o que nós fazemos no caso de um enviesamento de confirmação é preencher tudo, vamos ao encontro e tentamos fazer o retrato que está de acordo com os retratos que já temos. Pensamos para tentar encontrar as provas que temos razão. É algo que todos fazemos. Mas quando estamos, emocionalmente, com um problema psicológico, estamos mais vulneráveis a fazer isso. Não acreditem na palavra de ninguém, porque é por aqui que entram os processos cognitivos que nos levam a acreditar e a disseminar Fake News. A sociedade científica mais antiga do mundo, a Royal Scociety, tem escrito em latim na porta o seu lema: 'Nullius in Verba'."

De David Dunning, psicólogo social: David Dunning desenvolveu em finais da década de 90 do século passado um estudo, acerca da confiança que as pessoas podem ter, o que sabem e o que não sabem, a ignorância que carregam quando pensam que sabem, mas não sabem. O que o efeito Dunning-Kruger mostra é que não sabemos o que não sabemos. A nossa ignorância é invisível para nós. Para quem sofre de ignorância, e somos todos nós em algum momento, e algumas pessoas mais vezes, sofrem de superioridade ilusória. Não conseguem reconhecer quando o seu conhecimento é inferior.

"Saber distinguir um verdadeiro perito de um falso perito também é uma aptidão. E à medida que avançamos na era da Internet, onde há tanta informação, esta vai ser uma aptidão chave que as pessoas devem aprofundar. saber separar um falso perito de um verdadeiro".
Por isso tem surgido a necessidade de se formarem grupos de jornalistas dedicados a esta temática infernal, a separar a verdade da mentira, a demonstrarem falácias. Tal como o 'Polígrafo SIC', são parte de um todo que tenta repor, a cada instante, a verdade. O contexto da pandemia da Covid-19 tem merecido a maior atenção, o que naturalmente se entende dadas as graves implicações que essas falsidades desempenham na saúde pública e estabilidade social. E depois os governos, e as organizações internacionais, também estão muito preocupadas com tudo o que se está passar com o fenómeno da pós-verdade. Por exemplo, um estudo levado a cabo pela Universidade de Bristol, em Inglaterra, refere que alguns pacientes com Covid-19 prolongada sentiram alívio dos sintomas após a toma da vacina. Mas isto é um dado muito duvidoso, porque os cientistas ainda não conseguem identificar se o fenómeno é realmente físico (biológico), ou apenas efeito placebo. De qualquer modo, se se concluir que se trata de efeito placebo, o que significa de sugestão psicológica, não deixa de ser um efeito positivo no que respeita ao bem-estar das pessoas do ponto de vista da saúde. E nesse caso, não faria sentido estar a desvirtuá-lo.

Repare-se nas implicações práticas do que se acabou de dizer, em defesa do princípio de separação entre o essencial e o acessório, ou a realidade tal como ela é, versus 'a ideologia'.  Porque para a ciência o que importa são as provas e os factos. Por isso não partilhe com ninguém o que outros colocam nos seus murais por mero sentimento. À medida que a pandemia avançou, disseminaram-se também nas redes fluxos de teorias, de mentiras, de falácias. Negacionistas e elementos de grupos anti-vacinas tornaram-se ativos na tentativa de colocar em causa os factos produzidos pela ciência. Vídeos, textos e fotografias foram usados com o objetivo de alimentar essas mesmas teorias. Supostos cientistas, médicos - alguns que perderam a licença para exercer, como é o caso do norte-americano Thomas Cowan, autor e médico antroposófico - especialistas e peritos juntaram-se em movimentos para erguer uma alegada verdade, sobre a doença, ou sobe as vacinas. Esses falsos especialistas, pseudocientistas, assentam na autoridade que têm: 'acreditem em mim que sou médico'.

A própria Comissão Europeia lançou um manual que tenta servir de guia, ou de farol, perante a escuridão que a mentira pode criar. Definiu as características que estas teorias têm em comum: um alegado plano secreto, um grupo de conspiradores, supostos elementos de prova que confirmam a teoria, falsas sugestões de que nada acontece por acaso e tudo está interligado, a divisão entre bons e maus e os bodes expiatórios.


terça-feira, 23 de março de 2021

Servidões




cheirava mal, a morto, até me purificarem pelo fogo,
e alguém pegou nas cinzas e deitou-as na retrete e puxou o autoclismo,
requiescat in pace,
e eu não descanso em paz nas retretes terrestres,
a água puxaram-na talvez para inspirar o epitáfio,
como quem diz:
aqui vai mais um poeta antigo, já defunto, é certo, mas em vernáculo
e tudo,
que Deus, ou o equívoco dos peixes, ou a ressaca,
o receba como ambrosia sutilíssima nas profundas dos esgotos,
merda perpétua,
e fique enfim liberto do peso e agrura do seu nome:
vita nuova para este rouxinol dos desvãos do mundo,
passarão a quem aos poucos foi falhando o sopro
até a noite desfazer o canto,
errático canto e errado no coração da garganta,
canto que o traspassava pela metade das músicas
— e ao toque no autoclismo ascendia a golfada de merda enquanto as turvas águas últimas
se misturavam com as águas primeiras



Herberto Helder morreu em Cascais a 23 de março de 2015. Nasceu em 1930 no Funchal. Estudou na terra natal até ao 5.º ano. Em 1948 matriculou-se em Direito, mas cedo abandonou esse curso para se inscrever em Filologia Românica, que frequentou durante três anos. Teve inúmeros trabalhos e colaborou em vários periódicos como A Briosa, Re-nhau-nhau, Búzio, Folhas de Poesia, Graal, Cadernos do Meio-dia, Pirâmide, Távola Redonda, Jornal de Letras e Artes. Em 1969 trabalhou como diretor literário da editorial Estampa. Viajou pela Bélgica, Holanda, Dinamarca e em 1971 partiu para África onde fez uma série de reportagens para a revista Notícias. Escreveu diversas obras em vários géneros, mas sempre com maior afeição pela poesia. Entre tantos títulos que poderia enumerar, deixo aqui os dois últimos: ServidõesMorte sem Mestre, 2013. Em 1994 foi-lhe atribuído o Prémio Pessoa, que recusou. 

Observada pelo ângulo da continuidade com que desde sempre a poesia de Herberto Helder se deu a ler, A Morte sem Mestre corresponde, à partida, a um ponto extremo: o da forçada interrupção de um corpo pela brutal emergência do fim, a liquidação da sua biologia. O livro, ele mesmo, constitui como tal um lugar-limite que acolhe um pensamento-limite e sobre o limite, lugar e pensamento que tendem assim a um inevitável fora de cena, a um radical impudor que é também afirmação de um "impoder". Se o lermos sobre o traço do tempo, na extremidade 'ad quem' do itinerário orgânico da sua escrita, como etapa seguinte de um trajeto de irrevogável corrupção e ruína, provavelmente - e num sentido estritamente demoníaco -, A Morte sem Mestre não poderia deixar de ser o que é: mais do que esse objeto estranho que chocou a crítica, um objeto desastroso, 'exemplum' perfeitamente imperfeito de uma espécie de corpo-desastre que se apresenta como postergação (calculada?) do fulgor poético, assumindo essa «tarefa da poesia prostituída» segundo António Guerreiro, colocando-a sob a presumível égide de Sade ou de Bataille.

Neste caso, o poeta dedicou-se a condensar fragmentos do mundo em movimento primitivo e, para tal, deu a sua própria vida à linguagem. Hoje, diz-se e diz-nos: "filhos não te são nada, carne da tua carne são os poemas/ que escreveste contra tudo, pais e filhos,/ lugar e tempo, […] filha é a palavra carregada que arrancas aos dicionários quando dormem,/ essa palavra escolheu-te e tu escolheste as roucas linhas/ onde hás de ter o trabalho artesanal da morte".

Agora, o poeta está nu, no final da vida como no começo do mundo (ou na poesia da juventude) e por isso pede "que um qualquer erro de ortografia ou sentido/ seja um grão de sal aberto na boca do bom leitor impuro». Mais irónica, livre, fulgurante e moderna do que nunca, a metapoesia de Herberto Helder é a confissão magnífica de quem «queria fechar-se inteiro num poema/ lavrado em língua ao mesmo tempo plana e plena».

A Morte Sem Mestre é uma elegia, um lamento confessional, alimentado pela mensagem fúnebre dos poemas antigos, "tão fortes eram que sobreviveram à língua morta" e ainda vibram "entre os objetos técnicos no apartamento,/ rádio, TV, telemóvel,/ relógios de pulso". O poeta continua a cantar o presente das coisas mesmas, ainda em busca de uma luz de dentro, iluminando e despedaçando tudo. O acaso, o hermético, o concreto uniram-se após décadas de experiência da palavra, garimpando poesia como "um organismo internamente coerente e bastante". O que espanta é o arrojo, a vitalidade furiosa e orgânica deste livro, escrito aos 83 anos do poeta, e na sua melhor forma.




segunda-feira, 22 de março de 2021

O espanto em relação aos negacionistas da covid

 

O protesto que juntou mais de duas mil pessoas, começou por volta das 15:00 no Parque Eduardo VII. Os manifestantes desceram a Avenida da Liberdade em direção à Praça do Rossio, em Lisboa. Na sua maioria negacionistas, reclamam a posição das autoridades e dos meios de comunicação social perante a pandemia. A maioria dos mais de dois mil que saíram à rua na capital apresentou-se sem máscara e pareceu ignorar o distanciamento social. Perante as advertências das autoridades alguns contestaram, mas muitos acabaram por dispersar.

As crenças das pessoas assentam em conteúdos proposicionais. Qualquer crença tem de ter um conteúdo proposicional. Qualquer crença pode ser considerada verdadeira ou falsa. E qualquer crença pode ser justificada ou injustificada, racional ou irracional. Ora, como é possível, que por esta Europa venham para a rua pessoas provocar distúrbios porque não acreditam que o SARS-CoV-2, o vírus causador desta pandemia, e que os obriga a ficar em casa, exista? A crença dessas pessoas é falsa, injustificada e irracional. Mas é um facto que essas pessoas existem.

Um conteúdo proposicional é construído a partir de conceitos. Teríamos de admitir que essas pessoas são incompetentes no manejo conceptual acerca de vírus e pandemias. Mas será isto suficiente para justificar essa "bacorada", ou será que tem de haver mais alguma coisa, como certo tipo de "lavagens maliciosas ao cérebro" das pessoas mais ignorantes e mais vulneráveis, por parte de gente mal-formada com agendas perniciosas?

Em Kassel, uma cidade no centro da Alemanha, vários milhares de manifestantes reuniram-se numa praça, sem distanciamento físico e sem máscara, tendo um grupo tentado forçar a passagem através de um cordão policial o que levou as autoridades a dispersá-los usando gás pimenta. Alguns manifestantes mostravam cartazes onde se lia "fim do confinamento" e "rebeldes do corona". O protesto foi convocado pelo movimento "Querdenker" ou "Anti-conformista", que organizou algumas das maiores manifestações "anti-corona" (contra as restrições impostas para combater a covid-19) na Alemanha desde o início da pandemia. O movimento reúne membros da extrema-esquerda, seguidores de teorias da conspiração, críticos da vacinação, bem como partidários da extrema-direita. A incidência acumulada de covid-19 na Alemanha nos últimos sete dias voltou a subir e está próximo de 100 novos casos por 100.000 habitantes, nível que, a manter-se, implicará um passo atrás na reabertura da sociedade alemã.

Por outro lado, há pessoas que estão contaminadas pelo fenómeno da pós-verdade ou das verdades alternativas, que inserem na proposição da crença a cláusula "para mim". Assim, eles dizem: "para mim, a covid é uma invenção das farmacêuticas." É uma 'verdade alternativa', para elas. Isto só pode ocorrer no contexto de um grupo de seres humanos estarem organizados de uma maneira particular. Ou seja, pode haver razões 'não epistémicas' para certas crenças (que não importa a verdade da crença, mas apenas vantagens pragmáticas dessa crença). E é aqui que reside o problema das falsas crenças, em que as pessoas se agarram a razões pragmáticas, não epistémicas, para terem como verdadeiras crenças estapafúrdias.

Seja como for que essas pessoas construam a racionalidade das suas crenças, elas acham, por exemplo, que têm boas razões para acreditar, por exemplo, que a Terra é plana, ainda que seja redonda como toda a gente sabe. E não são tão poucas assim as pessoas nos Estados Unidos que se batem pela tese da Terra plana. Os nossos antepassados pensavam que sabiam que a Terra era plana, e tinham essa crença como conhecimento. Mas estavam errados. É caso para dizer que os atuais crentes da Terra plana deitaram às urtigas o conceito de conhecimento, que tem de ser não apenas justificado, mas também verdadeiro.

Existe uma corrente de pensamento filosófico que defende a teoria da construção social do conhecimento. E não é a construção de 'coisas' que está aqui em causa, mas a construção de 'factos'. É um facto que 'um dólar' vale Xis euros e Y libras. E é um facto que uma peça de metal não é uma peça de metal, mas 'um euro'. O facto de um pedaço de papel ser 'um dólar' é um facto socialmente construído. Mas é um facto contingente. Poderia não ter existido se as necessidades e as circunstâncias tivessem sido outras.

Até aqui nenhum problema. Mas aquilo que disse Kant já nem todos os filósofos o acompanharam. E então o que disse Kant? Que o mundo tal como o vemos, uma parte é construída pela nossa mente. Mas também disse que não é à vontade do freguês. Pelo contrário, a nossa mente é obrigada a construir um mundo obedecendo a leis da natureza.

sábado, 20 de março de 2021

A invasão das profundezas humanas pelos processos automáticos




Quem usa um smartphone sabe certamente o que são apps. E sabe que está constantemente a ser solicitada por alertas escritos no seu telemóvel a fim de tomar uma decisão na personalização. As apps têm o propósito de facilitar o dia-a-dia à pessoa, fornecendo-lhe as mais diversas funcionalidades com infinitas possibilidades. As apps podem ser utilizadas em qualquer dispositivo móvel com a funcionalidade da localização. A consulta de mapas é o exemplo clássico para o interesse da localização, mas também pode servir para obter vales de descontos de lojas nas proximidades, ou para sugerir pontos de interesse para o viajante.

Uma das áreas em que as apps têm um enorme potencial é a área da saúde. Um exemplo recente foi a app da Stayaway Covid, que por acaso resultou num grande fiasco. 
Segundo a Siddiqui (2013), os dispositivos móveis podem ajudar na manutenção da saúde e prevenção da doença. As apps desenvolvidas para este efeito publicitam funcionalidades que ajudam a melhorar a acessibilidade a tratamentos bem como a rapidez e a exatidão dos exames de diagnóstico. As apps possuem funcionalidades que aproximam pacientes e entidades prestadoras de cuidados. Ou podem ajudar em coisas tão simples como a adesão à terapêutica, lembrando, por exemplo, que a pessoa não se esqueça da toma de um medicamento.

Mas o que neste artigo me interessa mais explorar no tema das apps é o seu reverso da medalha no que concerne à privacidade das pessoas, e o que está escondido das pessoas que as utilizam e desconhecem completamente. Estamos a falar de inteligência automática e os especialistas têm jargões próprios para falar desse lado sombra das apps. A invasão da privacidade por parte de um autodenominado "assistente pessoal digital", é um deles. Qual Cavalo de Tróia a assaltar o nosso interior psíquico. Em 2016, Satya Nadella, CEO da Microsoft, na conferência anual Ignite da empresa, apresentou o seu assistente pessoal digital - Cortana - dizendo que ele conhece-nos profundamente, seja através de entradas de texto, seja de fala. Não tem limites de conhecimento, seja a nosso respeito, seja a respeito do mundo. Cuida de nós, acompanha-nos para toda a parte.

A Cortana é um assistente pessoal digital desenvolvido pela Microsoft que usa o mecanismo de busca Bing para executar tarefas, definir lembretes, e responder a perguntas do utilizador. Depois a Microsoft passou a reduzir a presença da Cortana à frente do utilizador e converteu-o em assistente de diferentes integrações de software em 2019. Ele foi retirado da barra de pesquisa do Windows 10, em abril de 2019, e foi removido do iOS e Android em certos mercados, em 31 de janeiro do ano seguinte. A Microsoft integrou a Cortana no browser Microsoft Edge, instalado com o Windows 10. A Microsoft anunciou no final de abril de 2016 que bloquearia qualquer motor de busca que não fosse o Bing, o que levantou logo grande celeuma porque se tratava de uma prática que feria as regras da concorrência. 
Enfim, a Cortana pode reconhecer a voz natural sem a necessidade de entrada do teclado e responder a perguntas feitas pela busca do Bing: trânsito, meteorologia, desporto, bolsa, etc. Assim, com o Windows 10 o Microsoft Bing e todos os links seriam abertos com o Microsoft Edge. Mas o fito da Cortana é indexar e armazenar informações acerca dos utilizadores. Desligar a Cortana, por si só, não excluiria os dados do utilizador armazenados nos servidores da Microsoft. No Menu Iniciar do meu computador com o Windows 10 home aparece o Cortana. No entanto, ao clicar nele, aparece uma janela a dizer: "A Cortana não está disponível na sua região". Mas isto é a gozar connosco, porque esta personalização é uma forma de individualizar as operações que abastecem as bases de dados por forma a garantir um fluxo contínuo de informação acerca do nosso comportamento. 

Em 2017, o Facebook reduzira as suas ambições de inteligência automática para focar o assistente pessoal na missão fundamental: o comércio. Agora também há uma política de privacidade da TV, tal é a avidez de vigilância dos interesses comerciais que atuam nas nossas casas sem percebermos. Aleksandr Kogan, que também usou brevemente o nome de Dr. Specter, um cientista de dados americano nascido na Moldávia, ficou conhecido por ter desenvolvido a aplicação que permitiu à Cambridge Analytica recolher dados pessoais de 80 milhões de utilizadores do Facebook. A aplicação de Kogan deu-lhe acesso aos perfis do Facebook sem que os próprios soubessem. Os dados foram vendidos à Cambridge Analytica. Quando o Facebook lhe perguntou sobre esta aplicação, Kogan jurou que a sua pesquisa se destinava a fins meramente académicos.

Em 2015, uma startup criada oito anos antes com o nome Realeyes, recebeu um subsídio de 3,6 milhões de euros da Comissão Europeia pelo projeto chamado SEWA (Sentiment Wild Automatic Analysis). O objetivo era desenvolver tecnologia automatizada para ler a emoção de uma pessoa ao ver um conteúdo, e depois determinar a relação com o seu apreço por esse conteúdo. Não tardou um prémio dos analistas de mercado, dado o interesse na publicidade. Ora, o SEWA usa um software especializado para vasculhar rostos, vozes, gestos, captados por sensores biométricos e microcâmaras. Captam os comportamentos mais subtis e profundos que escapam à mente humana. A mímica facial e as expressões corporais não verbais, que fogem ao controlo individual, que dá origem à fuga de informação da nossa subjetividade emocional, é capturada pelos algoritmos. Em 2016, Kaliouby, o CEO da empresa de pesquisa de mercado - Millward Brown, afirmou que o software de inteligência artificial roubava informação sobre as nossas emoções sem darmos conta disso. E mais, possuía 4,8 milhões de vídeos faciais provenientes de 75 países a partir de visualizações online. Kaliouby imagina que o rastreio emocional disseminado acabará por ser tão garantido como um cookie plantado no nosso computador e que rastreia a navegação online. Antevê que o YouTube conseguirá rastrear as emoções de quem assiste aos vídeos.

Moral da história, estamos na era da computação ubíqua, a era dos sensores espalhados por todo o lado. Entramos em mais uma transição de fase, que é semelhante ao que aconteceu nos finais dos anos de 1990 com a entrada em cena da internet. Ainda me lembro da minha excitação com o Navigator da Netscape quando adquiri o primeiro modem e abri uma conta de e-mail na Telepac, e a minha página pessoal no TerraVista. O Sapo veio depois. Estávamos em 1994, e os meus amigos diziam que eu era maluco com a extravagância da internet. E não era para menos, pois é difícil manter a sanidade mental quando tudo à nossa volta enlouquece.

Os governos europeus arrastados pela chamada "transição digital" estão a fazer um esforço no sentido de não ficarem para trás. O Orçamento de Estado Português para 2021 inclui medidas enquadradas no plano de recuperação económica de Portugal 2020-2030 e o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) dividido em três áreas principais: resiliência; transição climática; transição digital. A transição digital dispõe de um orçamento é de 3 mil milhões de euros, num total de 13 milhões.

Shoshana Zuboff, professora emérita da Harvard Business School, que se interessa pelo efeito social das novas tecnologias, com uma vasta obra publicada, no seu ultimo livro "A Era do Capitalismo da Vigilância", dedicado ao modo como os utilizadores deixaram de ser simples clientes para passar a ser a matéria-prima de um novo sistema industrial, considera a revolução digital em curso a maldição deste século - a automação do eu entregue ao Grande Outro de bandeja, como condição necessária da automação da sociedade, tudo em prol de resultados garantidos para o Grande Outro. Numa retoma da perspetiva comportamentalista de cunho 'skinneriano', o Grande Outro 'googliano' e 'facebookiano' marca golos com a sua esperteza instrumental digital, ao transformar o 'famigerado mercado' num projeto de certeza total, à custa do excedente comportamental dos habitantes das redes sociais. É neste contexto que o chamado 'capitalismo da vigilância googliano e facebookiano' é capaz de instrumentalizar e controlar a experiência humana, e moldar o seu comportamento com fins lucrativos.

Todos os séculos têm a sua maldição, e esta é a 'maldição deste século': os utilizadores das plataformas das redes sociais a serem vistos por parte do Grande Outro Capitalista como meros organismos animais, à moda de Skinner, que servem as novas leis do capital impostas sobre todos os comportamentos de forma total. Uma nova forma de totalitarismo, portanto.

Hannah Arendt, que escreveu um tratado magistral - "As Origens do Totalitarismo" - previu o potencial destrutivo do behaviorismo de Skinner, quando lamentava a degenerescência do nosso conceito de pensamento, quando este é transferido para instrumentos eletrónicos. Nas palavras de Arendt: "A última etapa da sociedade laboral, a sociedade dos funcionários, que eufemisticamente são colaboradores, impõe automatismo e abdicação da vida individual. Um deixar-se ir ao abandono da sua individualidade entorpecida, num términos letal da história humana."

Até agora temos estado a falar em termos ocidentais. Mas falemos agora segundo os termos da China. Usando os mesmos instrumentos, o governo chinês desenvolveu um sistema de "crédito social" abrangente, que parece ser uma cópia do "1974" de George Orwell. O sistema classifica os comportamentos como bons e maus, visando a automatização da sociedade através da afinação, condução e condicionamento das pessoas, para que produzam comportamentos previamente escolhidos pelo Comité Central, considerados os mais desejáveis, e, portanto, capazes de evitar a instabilidade.

Tal como escreve a jornalista Amy Hawkins, num artigo para a revista Foreign Policy, ao invés de promover o regresso orgânico da moralidade tradicional para reduzir o abismo da desconfiança, o governo chinês preferiu investir a sua energia nas soluções tecnológicas, E é acolhido por um público farto de não saber em quem pode confiar, visto que não tem outra alternativa. O objetivo do governo chinês é tomar conta do controlo do sistema de algoritmos, e assim acabar com uma sociedade dissoluta com eficácia, mas sem grande esforço, uma vez que isso é feito automaticamente através dos dados trabalhados por esses algoritmos. Os algoritmos são uma espécie de "texto-sombra", mantido fora do alcance dos cidadãos, obrigando-os a adivinhar as melhores formas de aumentarem a pontuação do tal bom comportamento. Esta estratégia de adivinhação do "politicamente correto imposto de cima para baixo", por parte do cidadão, implica, por exemplo, cada um desfazer-se de amigos com baixa pontuação, e fazer outras amizades com pontuações elevadas, as quais, acreditam, a melhor forma de conseguir aumentar a pontuação. Por outro lado, quem estiver na lista negra, temendo que os amigos descubram e os risquem das suas listas de amigos, terão de fazer alguma coisa para não baixar a pontuação. Isto porque, é de forma dissimulada que cada um é riscado da lista de contactos dos outros. Tudo isto feito pelo algoritmo: a pontuação dos "mal-comportados" a cair a pique.

Ninguém sabe onde isto nos pode levar. Para já há muitos especialistas que acreditam que um sistema deste género, para 1,5 mil milhões de pessoas, com esta escala e com esse nível de complexidade, será difícil ou mesmo impossível de alcançar. É sabido que a cultura chinesa lida com a privacidade de uma maneira muito diferente da cultura ocidental. E habituaram-se a ter a sua vida escrutinada e guardada numa ficha, à qual não têm acesso desde os tempos de Mao Tsé-Tung.