sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

A Palestina vista por Helena Salem





Texto baseado em Helena Salem 1948-1999], jornalista brasileira correspondente no Médio Oriente. 

Helena Salem, filha de imigrantes judeus, graduou-se em Ciências Sociais na Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 1970, no auge da ditadura militar. Mas, desde meados da faculdade, começou a trabalhar na editoria internacional do Jornal do Brasil, onde se especializou em Médio Oriente. Depois de passar um ano em Itália, com uma bolsa de pós-graduação em Política Internacional, cobriu a Guerra do Yom Kippur, em 1973, nos países árabes, para o mesmo JB, permanecendo na região durante quatro meses. Ainda que de origem judaica, escreveu com abertura e simpatia sobre a Questão Palestiniana, o que haveria de lhe custar um alto preço. A partir daí teve uma vida profissional movimentada. Foi editora internacional do jornal Opinião, conheceu o exílio em Portugal, onde seria correspondente na Revista o Expresso. De volta ao Brasil, com a amnistia em 1979, trabalhou no Jornal da República e colaborou com diversos meios de comunicação, entre eles Folha de S. Paulo, até regressar ao quotidiano da redacção, como repórter especial de O Globo. Decidiu então dedicar-se à cobertura de cinema, sua (também) velha paixão. Cobriu os principais festivais nacionais e internacionais, e, com o cineasta Jorge Bodanzky, correalizou o documentário Igreja dos Oprimidos, inspirado num livro de sua autoria; esta coprodução franco-brasileira para a televisão francesa ganhou o prémio Margarida de Prata, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Nos últimos anos de vida trabalhou como repórter especial para o jornal O Estado de São Paulo, escrevendo sobre cinema.
«Depois que voltei, certa vez, um editor de jornal, quando eu saía para uma chamada “grande reportagem”, advertiu-me: "Helena, ao falar com a fulaninha, não deixe de olhar para os pés dela, os dedos, como toma café, tudo, isso é que é importante, mais do que o que ela disser. Jornalismo é isso, o colorido, as fofocas"»
«Como, no caso, se tratasse de uma excelente atriz, inteligente, com várias coisas a dizer, não resisti em ponderar para o tal editor (que mais tarde cairia em desgraça): “Fulaninho, jornalismo é isso para você. Pode ser que tenha razão. Inclusive como sua repórter tenho de fazer o que você me pede. Mas te asseguro que para o La República, de Roma, jornalismo pode ser outra coisa; para o Expresso, de Lisboa, uma outra; para o Libération, de Paris, ainda outra, e o The Guardian, de Londres, também. Para só te citar alguns. Então, fulaninho, seja mais humilde, diz que você quer isso, porque a tua opinião sobre jornalismo é isso.” Também eu não fui humilde na resposta e ele certamente quis me esganar com os olhos. Mas era impossível, mais uma vez, engolir aquela ideia de uma verdade indiscutível, com que se tenta impor como universal um ponto de vista particular. No Brasil, a forte influência do jornalismo americano, supostamente imparcial, sem conotações políticas, verdadeiro, contribuiu muito para a difusão desse mito do jornalismo sem ideologia, sem cor, puro. Que, a propósito, de puro geralmente não tem nada. Como se a verdade revelada em cada linha não se ligasse à luz utilizada, ao local onde você escolhe colocar a câmara.»
Para ir de Belém para Jerusalém, o dono do hotel é que nos dá as coordenadas: toma-se o autocarro 21, na Hebron Road, perto de Beit-Jala. E não esquecer de o passaporte sempre à mão. A passagem custa 6 shekels. É sentar-se e aguardar que chegue o motorista. Se olharmos à volta pela janela do autocarro é possível que chegue a hora de algum homem estender o tapete no chão e voltar-se para Meca para orar à hora certa. Essa disciplina para a reza é uma imagem de marca no mundo muçulmano. Não importa o que estejam a fazer, param e rezam. A maioria de nós ocidentais, com agendas superlotadas, não consegue nem uma vez sequer no dia esses dez minutos para se comprometer com seja lá o que for: com a respiração, com um pouco de meditação, de reflexão. Terminada a reza, enrola-se o tapete e prossegue-se o que se estava a fazer.

O percurso é rápido, cerca de vinte minutos, se não tivermos problemas no checkpoint. O motorista entra em Beit-Jala e segue por uma rua bastante íngreme e longa que cruza a cidade. Passamos por um checkpoint volante do qual se avista o checkpoint de Jerusalém. O motorista pára neste checkpoint. Um soldado aparece no primeiro degrau com uma metralhadora em punho. Dá uma olhada geral e desce. O motorista recolhe os documentos de todos os passageiros, no caso o passaporte, e manda-nos descer do autocarro, em fila do lado de fora. Um dos soldados sobe novamente e faz a vistoria à procura de alguma coisa, como armas, explosivos, bombas, facas, qualquer objeto que possa ser usado num atentado. Outro soldado inspeciona a mala ou o saco dos passageiros. E um terceiro soldado confere os documentos. É cada vez menor o número de palestinos que têm autorização para entrar em Jerusalém: só doentes graves que precisam de tratamento especializado, quem têm emprego comprovado, e alguns casos especiais que recebem autorização temporária. E eles recebem uma permissão de acesso. Esses documentos é que são conferidos. Os soldados são muito jovens. Em Israel, é obrigatório adolescentes, homens e mulheres, a partir dos 17 anos, alistarem-se. E a mistura de tanta juventude com uma arma dessas na mão só poderia assustar.

Israel começou a restringir a movimentação dos palestinos principalmente a partir da Guerra dos Seis Dias, em 1967, quando ocupou mais terras árabes, deixando os palestinos, na época, com 22% dos 43,5% da parte que havia sido destinada a eles pela partilha definida pelas Nações Unidas, em 1947. A Resolução 242 da ONU dava aos israelitas 56,5% da área. Hoje, com o crescente aumento dos assentamentos ilegais e com a construção do Muro de Israel, os palestinos vivem em menos de 11% do território dividido pela ONU. Na Cisjordânia, são cerca de setecentos postos de controle, entre checkpoints, cercas de arame farpado, trincheiras e tipos diversos de bloqueios. Setenta e quatro por cento das ruas e estradas dos territórios ocupados são controlados pelo exército israelita. Esses dados são da organização não governamental Palestine Monitor.

A partir da primeira intifada, em 1987, foi implementado o sistema de permissão de acesso a Jerusalém, ao que o governo de Israel denomina território judeu. Depois, em 1988, proibiu a viagem de Gaza à Cisjordânia e vice-versa. Isso até hoje só é possível em datas e casos especiais, com autorização. Outra data marcante foi 1991; com a Guerra do Golfo, Israel, que é aliado dos Estados Unidos, se sentia entre inimigos e, vendo-se ameaçado de todos os lados, quis fechar mais as fronteiras. O sistema de permissão de acesso ao território israelita ficou mais rigoroso e individualizado. 
Desde 2000, quando aconteceu a segunda revolta palestina contra a ocupação, o cerco se fechou ainda mais. E com a construção do Muro de Israel, a partir de 2002, os palestinos dizem que vivem numa prisão a céu aberto.

Os atentados suicidas começaram em 2001, pelos chamados homens-bomba, e mulheres-bomba também, do Hamas, da Jihad Islâmica e da Brigada dos Mártires de Al-Aqsa. Em 2006, uma mulher-bomba, com 57 anos,
 Fátima Omar Mahmud Al-Najar, era mãe de 9 filhos e avó de 41 crianças. Dias antes de cometer suicídio, Fátima havia participado no cordão humano formado por dezenas de mulheres palestinas em torno da mesquita de Beit Hanun, em Gaza, para proteger militantes palestinos sitiados por soldados israelitas. No dia 3 de novembro de 2006, o exército de Israel atirou contra mulheres e crianças que estavam ali com a justificação de que os homens estavam tentando fugir vestidos de mulheres. O exército ocupou Beit Hanun por duas semanas. Dezanove pessoas morreram, a maioria mulheres e crianças. No dia 23 de novembro, Fátima se aproximou de um grupo de soldados e detonou os explosivos. Ela morreu e cinco militares ficaram feridos.

Junto ao muro da Cidade Velha de Jerusalém h
á bastante judeus ortodoxos, roupa preta e cabelo com tranças a cair à frente das orelhas, com o livrinho da Torá pertinho dos olhos. A rua movimentada é a Jaffa Road, uma rua comercial famosa da cidade. Vê-se que há uma boa mistura de judeus e árabes por aqui. Os árabes que estão aqui moram ou trabalham na cidade, porque a maioria que vem dos territórios ocupados não pode circular por Jerusalém. Eles têm um destino certo, e se forem apanhados fora do itinerário são mandados de volta e podem até ser presos. A Cidade Velha ou Cidade Antiga de Jerusalém é retangular e cercada por uma enorme muralha. Em 1981, o lugar foi nomeado pela Unesco Património Mundial da Humanidade. Foi construída, provavelmente, pelo rei Salomão, entre 1000 e 900 a.C. Existem oito portões. A cidade concentra os principais locais sagrados e está dividida em quatro partes: a judaica, a cristã, a arménia e a muçulmana.

O bairro cristão está na parte noroeste. A Basílica do Santo Sepulcro é o lugar mais visitado, junto com a Via Dolorosa, o caminho percorrido por Jesus. A sudoeste, está o bairro arménio. O bairro muçulmano fica a nordeste, onde estão localizadas as duas mesquitas — a Cúpula da Rocha e a Mesquita de Al-Aqsa — e o Haram Ash-Sharif, chamado pelos judeus de Monte do Templo. O bairro judeu fica a sudeste, onde também ficam o monte Sião e o túmulo do rei David. Para entrar no bairro árabe tem de se encontrar o portal de Jaffa. As ruas da Cidade Velha são bastante estreitas e cheias de gente, muitos turistas, europeus, muitos africanos, orientais, gente de todos os lugares. E, além dos lugares sagrados, lojas, árabes ou beduínos que veem a alma das pessoas através dos olhos, muitas lojinhas de lembranças ou recordações.

Já é final de tarde. Os trabalhadores estão voltando para casa, e é hora também de nós regressarmos a Belém, o nosso hotel. O autocarro está lotado. São palestinos bastante simples que encontram serviço braçal em Jerusalém. A maioria trabalha na construção civil, como pedreiro. Muitos trabalham, inclusive, em assentamentos ilegais, construindo casas e prédios em terras palestinas, em terras que foram tomadas deles mesmos. No checkpoint, a mesma rotina: descemos, mostramos os documentos e, desta vez, temos de trocar de autocarro. 

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

Génios e QIs





Christopher Langan alcançou uma espécie estranha de fama. N
ascido em 25 de março de 1952 é um fazendeiro de cavalos e autodidata americano relatado por ter a pontuação mais elevada de QI estimado no 20/20 da ABC entre 195 e 210. Em 1999 foi descrito por alguns jornalistas como "o homem mais inteligente da América" ou "do mundo".

Tornou-se a face pública do 'génio' na vida americana, uma celebridade fora de série. Convidado a participar em programas televisivos de atualidade, e abordado para entrevistas por várias revistas do jet-set, chegou a ser tema de um documentário do cineasta Errol Morris – tudo por causa de um cérebro que parecia desafiar qualquer descrição. O seu QI, medido com precisão, rebentava todas as escalas. Por causa disso, foi inventado um teste de QI especial para pessoas extraordinariamente inteligentes, e Langan foi submetido a esse teste, complicado demais para gente comum. Resultado: acertou todas as perguntas, exceto uma. 

No seu historial, Langan aos seis meses já falava com desenvoltura. Com três anos, ouvia na rádio aos domingos o locutor ler em voz alta banda desenhada, e ele acompanhava o text, aprendendo sozinho a ler. Aos cinco anos, começou a fazer perguntas ao avô sobre a existência de Deus – e lembra que se dececionou com as respostas. Na escola, Langan conseguia sair-se muito bem em testes de idiomas que nunca havia estudado. E mais: se tivesse a chance de dar uma olhadela na matéria por dois ou três minutos antes da chegada do professor, acertava todas as questões. No início da adolescência, quando trabalhava numa fazenda, começou a ler tudo o que encontrava sobre física teórica. Aos 16 anos, conseguiu decifrar uma obra-prima reconhecidamente intrincada – Principia Mathematica, de Bertrand Russell e Alfred North Whitehead. Obteve nota máxima no exame padronizado que era aplicado a alunos do ensino médio na candidatura à universidade.




Quando Christopher tinha cerca de 14 anos, conta um irmão: “costumava desenhar coisas só de brincadeira, e pareciam fotografias. Aos 15 anos, imitava Jimi Hendrix perfeitamente na guitarra. Christopher faltava às aulas, aparecendo apenas nos testes, e ninguém podia fazer nada em relação a isso. Ele conseguia assimilar a matéria de um semestre inteiro em apenas dois dias. Em seguida, resolvia o que tinha de resolver e, depois, retomava o que estava fazendo antes.

O pai biológico de Langan, partiu antes de ele nascer, e constou que morreu no México. A mãe de Langan casou mais três vezes e teve um filho com cada marido. Seu segundo marido foi assassinado e o terceiro morreu por suicídio. Langan cresceu com o quarto marido, que foi descrito como um "jornalista fracassado" que continuou bebendo. Trancou os armários da cozinha para que os quatro meninos não pudessem chegar, e usou um chicote como medida disciplinar. A família era muito pobre; Langan lembra que todos eles tinham apenas um conjunto de roupas cada. A família mudou-se, vivendo por um tempo numa tenda de uma reserva indígena. Depois, em Virgínia City, no Nevada. Quando as crianças estavam na escola primária, a família mudou-se para Bozeman, no Montana, onde Langan passou a maior parte da infância. 

Na sequência de bulling na escola primária, aos 12 anos começou a treinar pesos motivado pelo desejo de lutar contra os agressores. Langan frequentou o ensino médio, mas passou os últimos anos envolvido em estudos por conta própria. Ele fez isso depois de os professores lhe terem negado os seus pedidos peculiares. Sozinho, entrou pela matemática avançada, física, filosofia, latim e grego. Langan recebeu duas bolsas de estudo integrais, uma para o Reed College, em Oregon, e outra para a Universidade de Chicago. Ele escolheu o primeiro, que mais tarde chamou de "um grande erro". Teve um "caso real de choque cultural" no ambiente urbano desconhecido. Ele perdeu a bolsa de estudo uma vez que sua mãe não enviou as informações financeiras necessárias. 

Langan regressou a Bozeman e integrou a corporação de Bombeiros do Serviço Florestal por 18 meses antes de se matricular na Montana State University-Bozeman. Diante de problemas financeiros e de transporte, e acreditando que ele poderia ensinar os professores mais do que eles poderiam ensinar a ele, desistiu. Ele assumiu uma série de empregos em mão-de-obra intensiva por algum tempo, como trabalhador da construção civil. E depois passou a ser um fazendeiro ao estilo dos tradicionais cowboys.

Segundo Gladwell, quando Oppenheimer tentou envenenar o tutor em Cambridge, ele usou seu conhecimento social e seus pais usaram sua influência para que Oppenheimer simplesmente fosse enviado para ajuda psiquiátrica sem quaisquer consequências criminais ou académicas; em contraste, quando a mãe de Langan perdeu um prazo para ajuda financeira, Langan perdeu a bolsa de estudo e quando Langan tentou convencer a administração da faculdade no Reed College a mudar uma classe para um momento posterior, seu pedido foi negado. Langan cresceu na pobreza e teve um início de vida instável, cheio de abusos, o que criou um ressentimento de autoridade décadas após as dificuldades académicas. Ele teve pouca ou nenhuma orientação dos pais ou professores, e nunca desenvolveu as habilidades sociais necessárias para lidar e superar os desafios.

Em 1999, Langan e outros formaram uma Associação sem fins lucrativos chamada Mega Foundation para aqueles com QI de 164 ou acima. Em 2004, Langan mudou-se com sua esposa, uma neuropsicóloga clínica, para o Norte do Missouri, onde instalou um rancho de cavalos no qual realiza atividades para a Mega Foundation. Em 2008, ele apareceu nu programa tipo "Quem quer ser milionário" tendo ganhado US $ 250.000. 

Langan desenvolveu uma ideia que ele chama de "Modelo Cognitivo-Teórico do Universo", uma conexão mente-realidade através da qual pretende construir a tal Teoria de Tudo. Nada de dogmas religiosos. Todavia, não há bela sem senão, dado ter-se tornado num espatifado teórico de conspirações com seguidores da estafada "alt-righ" e outros da extrema-direita.


quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023

Ludwig Wittgenstein e o golpe de asa de 1,7 toneladas de ouro entregues ao Reichsbank



Quando a Alemanha anexou a Áustria no Anschluss, em 1938, a família vienense Wittgenstein passava a ser uma família de judeus abrangida pelas leis de Nuremberga de 1935.Três dos avós de Ludwig Wittgenstein eram judeus. E os Wittgenstein, como austríacos, também eram por lei cidadãos da Grande Alemanha. A 13 de março de 1938 a Alemanha anuncia oficialmente a anexação da República da Áustria, tornando-a mais uma província do 3º Reich. E a 18 de março de 1938, Ludwig Wittgenstein, estando em Cambridge, no Trinity Colege, escreve uma carta a Keynes pedindo-lhe a opinião, uma vez que passando a ser cidadão alemão, e segundo a lei alemã, seria um judeu alemão. Portanto, tornar-se britânico era agora imperativo.

Wittgenstein começou a investigar a aquisição da cidadania britânica ou irlandesa com a ajuda de Keynes, e aparentemente teve de confessar a seus amigos na Inglaterra que ele já havia deturpado a ascendência com um avô judeu, quando na verdade ele tinha três. Na qualidade de judeu alemão, se fosse agora viajar para a Áustria, poderia não conseguir voltar a sair de lá. O mundo dá muitas voltas, e o Anschluss colocou Wittgenstein face a face com a realidade étnica da sua família, obrigando-o a ter de lidar com nazis de alta patente em Berlim. Ludwig Wittgenstein ficou muito preocupado com a vida das irmãs a viver em Viena, quando Hitler avisou: “se os judeus conseguirem uma vez mais mergulhar as nações numa outra guerra mundial, a consequência será a aniquilação da raça judia na Europa”.

Paul Wittgenstein, irmão mais velho de Ludwig, famoso pianista de uma só mão (havia perdido o braço direito na linha da frente russa da Primeira Guerra Mundial ao serviço da Alemanha), por sua vez, ao ver por onde ia o verão de 1938, decidiu emigrar rumando a Inglaterra antes de ir para os EUA. 
Paul Wittgenstein viajou até Inglaterra para informar Ludwig da situação da família e pedir o seu conselho sobre o local em que deveria instalar-se. O irmão recomendou-lhe a América. Ele partiu tão repentina e silenciosamente que por um tempo as pessoas acreditaram que ele era o quarto irmão de Wittgenstein a ter cometido suicídio. Paul tinha duas filhas pequenas, e receava que as filhas fossem retiradas e educadas pelo Estado nazi. A sua fortuna, a sua família e a sua carreira de pianista, tudo isso pesava no prato da balança. Mas as irmãs - Hermine e Helene - rejeitaram os seus apelos para que o acompanhassem. Em todo o caso, Helene não podia abandonar o marido, Max Salzer, porque estava gravemente doente. 

As Leis de Nuremberg classificavam as pessoas como judeus - Voll Juden - se tivessem três ou quatro avós judeus; e mestiços - Mischling - se tivessem um ou dois. Isso significava que os Wittgenstein estavam abrangidos por essa lei. Foi de Nova Iorque que Paul encetou diligências diplomáticas no sentido de negociar com o 3º Reich a salvação das irmãs em Viena, cujo destino, se tudo corresse mal, poderia acabar em Auschwitz. A família Wittgenstein apoiada por três advogados, um deles incluído por sugestão dos participantes nazis, iniciaram-se as conversações com a Chancelaria do Reich, o Ministério do Interior, e o departamento de divisas estrangeiras do Reichsbank. A base do negócio consistia na transferência para o Reichsbank de uma grande porção de divisas estrangeiras da família guardadas na Suíça.

Ludwig Wittgenstein apenas se tornou súbdito britânico a 12 de abril de 1939. Agora na posse de passaporte britânico, podia finalmente regressar a Viena e daí viajar até Berlim para tentar assegurar o futuro das suas irmãs. A 5 de julho de 1939 viajou até Berlim instalando-se no Grand Hotel Esplanade, perto de Potsdamer Platz (por curiosidade e coincidência, faço aqui um parêntese, para dizer que foi neste Hotel, com outra arquitetura evidentemente, que eu me instalei em agosto de 1989, para frequentar o Congresso Internacional de Imunologia, que nesse ano se realizou em Berlim Ocidental). Na realidade, a partir do momento em que o Reichsbank entrou em ação, os Wittgenstein passaram a negociar diretamente com as autoridades de Berlim. Foi o próprio Hitler quem tomou a decisão final sobre a situação dos Wittgenstein. Os números mostram como era difícil conseguir uma Befreiung. Em 1939 existiam 2100 pedidos de reclassificação racial: o Fürer somente deferiu doze.

O que disse Ludwig Wittgenstein naquela quinta-feira em Berlim, no Reichsbank, 6 de julho de 1939, não se sabe. Apenas a sua irmã Hermine dizia que se orgulhava do modo como ele se comportara, impressionando o chefe da divisão de divisas estrangeiras do Reichsbank, pela sua clareza e a sua precisão nos detalhes. Sabe-se que esteve no dia seguinte em Viena com esta irmã, e que duas semanas depois viajou no Queen Mary até Nova Iorque para se encontrar com o seu irmão, Paul, e o advogado. Sabe-se que ficou no hotel Lexington Avenue, perto do Rockefeller Center. Mais tarde, Ludwig Wittgenstein disse que a única pessoa de que gostara em Nova Iorque fora um rapazito italiano que engraxava sapatos no Central Park e que duas vezes cuidara dos seus. Pagou-lhe o dobro do preço que ele pedira.

A 10 de fevereiro de 1940, o chefe da Reichsstelle für Sippenforschung, Dr. Kurt Mayer, enviou uma carta à divisão de Viena do Partido Nazi, comunicando a decisão tomada sem quaisquer restrições, de que Hermann Wittgenstein, nascido em Korbach a 12 de setembro de 1802, deveria ser considerado como sendo de sangue alemão para efeitos das Leis de Nuremberga. A carta refere uma ordem do Führer e chanceler do Reich. Essa decisão estendia-se aos seus descendentes para que não lhes viesse a causar quaisquer outras dificuldades. Faltava pouco mais de um ano para que as deportações dos judeus austríacos tivessem início em pleno. As irmãs de Wittgenstein - Hermine e Helene - sobreviveram até ao fim da guerra sem voltarem a ser importunadas. Fora, de facto, Ludwig Wittgenstein que dera o golpe de asa final em Nova Iorque quando se encontrou com o irmão para dar por encerrado o negócio. Paul Wittgenstein providenciou então o pagamento ao Reichsbank, nada mais, nada menos, que 1,7 toneladas de ouro – o equivalente a 2% das reservas de ouro austríacas de que Berlim se apoderara em 1939. Uma vez a salvo em Nova Iorque, Paul viria a revelar a sua dureza nas subsequentes negociações. A sua família integrou o grupo dos refugiados itinerantes, refugiando-se em Cuba antes de ser autorizada a juntar-se-lhe em 1941.

O pai de Ludwig Wittgenstein, Karl Wittgenstein, foi um dos empresários mais bem-sucedidos da monarquia do Danúbio. Karl veio de uma família alemã de origem judaica assimilada Meyer-Wittgenstrin, cujas raízes estão na pequena cidade de Laasphe na Renânia do Norte-Vestefália. Nasceu em 1847, sexto de onze filhos de Hermann Christian. Três anos depois, a família mudou-se para Vösendorf, na Baixa Áustria, onde nasceram os seus quatro irmãos mais novos, e para Viena em 1860. Aos onze anos, Karl Wittgenstein tentou, pela primeira vez, fugir de casa e, aos dezassete, deixou a escola após uma ameaça de repreensão: duvidara da imortalidade da alma em um ensaio. Em 1865, com um passaporte que havia comprado a um estudante de Viena com falta de dinheiro, viajou para a América. Levava consigo apenas um violino. Em Nova Iorque trabalhou como empregado e músico de bar, como professor (matemática, alemão, latim, grego e música, violino e trompa) e, finalmente, como timoneiro num barco do canal. Passados dois anos voltou para Viena. E então é a parir daqui que inicia a sua carreira na indústria siderúrgica como desenhador técnico no "laminador Teplitz" no norte da Boémia. Karl casou-se com Leopoldine Kallmus, em 1873, nascida em Viena e descendente de um talentoso pianista de origem judaica de Praga. O casal mudou-se para Teplitz por um ano, e a seguir para uma vila no distrito de Meidling. Depois disso, a família mudou-se para um imponente palácio, conhecido por “Palácio Wittgenstein”, no Alleegasse (hoje Argentinierstraße).

Em 1876 Karl Wittgenstein foi eleito para o Conselho Executivo, e em 1877 nomeado diretor. Poucos anos depois era o principal acionista. Em 1886, Karl Wittgenstein cedeu as suas fábricas de laminação de Teplitz à indústria siderúrgica de Praga, em troca de ações. Em 1889, Karl Wittgenstein finalmente funda a Poldihütte, uma empresa privada em Kladno. Ano do nascimento de Wittgenstein – Ludwig. Numa turbulência em que se viu investigado pelo governo austríaco, devido a práticas comerciais duvidosas, Karl Wittgenstein decidiu retirar-se de todos os seus cargos. Com 52 anos, viajou pelo mundo com a esposa, Leopoldine Kallmus. Além disso, ele vendeu toda a sua propriedade industrial, mas adquiriu em 1899 da Böhler AG a sua propriedade florestal de 5.000 hectares. Transferiu os recursos para a Suíça, Holanda e EUA, onde investiu em imóveis, ações e títulos. Após a morte de Karl Wittgenstein em 1913, houve várias mudanças de propriedade dentro da família. 
Portanto, a sua vasta fortuna sobreviveu à Primeira Guerra Mundial e à Grande Depressão. Desde o início dos anos 30, Hermine Wittgenstein (1874-1950), a mais velha das irmãs era a única proprietária do Palacete, por ser solteira. Durante a Segunda Guerra Mundial, o palácio magnificamente mobilado sobreviveu à guerra quase sem danos. Após a guerra, o palácio foi vendido ao Österreichische Länderbank, que o demoliu na década de 1950 para aí construir um edifício residencial moderno.


segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

Dwight Carlton Harris – um sobrevivente do Lusitânia



Já passavam alguns dias após o naufrágio do Lusitânia, a 7 de maio de 1915, quando Dwight Carlton Harris (1884-1970) decidiu então escrever a sua mãe de um hotel em Dublin.



Graças a Deus eu vim em segurança através da experiência mais terrível que alguém poderia imaginar! Mal posso escrever sobre isso. Estou a sofrer bastante com o choque, mas felizmente sinto-me melhor esta manhã. A viagem até sexta-feira às 14h foi perfeita. Nunca vi o oceano tão calmo. Em mau tempo de nevoeiro na manhã de sexta-feira, das 7h às 11h. Soberbo dia ensolarado claro depois. Levantei-me às 11, li durante algum tempo no convés, e por volta das 12h30, fui ao escritório do Purser e peguei o pacote de joias e dinheiro; $500 em ouro. Fui para a minha cabine, pendurei o pingente de diamante e pérola no pescoço, também o anel de noivado e o anel de esmeralda. Fixei o grande broche de diamante dentro do bolso do meu casaco e, antes de sair da cabine, destranquei a bolsa de lona que tinha o meu colete salva-vidas. Coloquei o ouro de US $ 500 no bolso das calças e depois desci para almoçar! Enquanto estava à mesa, tive uma sensação mais intensa, nervosa, que veio sobre mim, e levantei-me e saí sem terminar o almoço. Caminhando de volta para o lado estibordo sou surpreendido por uma faixa branco-esverdeada na água. Era o torpedo.

Fiquei sem pinta de sangue. Um momento depois, uma explosão estonteante sacudiu o navio e enviou uma enorme coluna de água duas vezes mais alta que o navio; água do mar, carvão, lascas de madeira, desceram sobre nossas cabeças. Fui esmagado contra a borda lateral do navio, e todo encharcado. Corri de volta e, quando cheguei à entrada principal com o navio bem alinhado a estibordo, fiquei com medo de entrar na minha cabine, pois achava que ela estava a afundar. Tirei os sapatos e deitei fora o meu casaco com o livro e o chapéu. Peguei no colete salva-vidas e coloquei-o. A essa altura, a água estava a chegar ao convés. Um oficial me chamou da ponte para subir, mas eu balancei a cabeça. Levantei-me no trilho e, quando a água subiu até o convés, atirei-me ao mar e nadei para longe do navio o máximo possível.

 Dwight Carlton Harris viu tudo o que aconteceu. O primeiro bote salva-vidas, que já estava na água, tinha apenas dois marinheiros nele quando o chamaram para nadar até lá. Mas ele não foi. O segundo barco estava suspenso e pendurado em linha reta com as cordas encravadas. O terceiro e o quarto barcos estavam lotados de pessoas e em segurança. O quinto barco também não correu bem, inclinou-se quando começaram a baixá-lo, e todos caíram. O sexto barco desceu em segurança. A ponte do capitão estava nivelada com a água, e a popa subiu rapidamente, e o navio mergulhou para a frente. Então, uma grande bolha branca-esverdeada e turbulenta se formou. A massa humana lutava no meio dos destroços, enquanto o navio se afundava.

A bolha ficou cada vez maior, tendo chegado a vinte metros dele com os destroços. Ao aproximar-me de um barco virado ouviu um rapazinho gritar por seu pai. Nadou até ele; disse-lhe para não chorar e agarrar o seu colarinho, o que ele fez. Com os membros entorpecidos do frio, conseguiu chegar ao barco virado. Depois, por sorte, marinheiros de salvamento vieram e os levaram num bote salva-vidas danificado. Avistaram um veleiro. Mas um dos botes salva-vidas intactos chegou ao veleiro antes deles, colocando pessoas a bordo e depois dando a volta. Finalmente foram recolhidos depois de terem estado na jangada danificada uma hora.

Sábado de manhã, levantei-me às 8 e saí e comprei um jogo de roupas secas. Comprei uma camisa, pijama, meias e boné na noite em que fui salvo. Um fato azul, e uma camisa macia e gola, e uma capa de chuva. Enquanto eu estava me adaptando, um jovem americano de cerca de 18 anos entrou na loja; disse que queria algumas roupas. O lojista perguntou se ele tinha algum dinheiro e, quando ele disse que não, disse que nada feito. Então eu aprontei-me a ajudá-lo e disse ao lojista para encaixá-lo, o que ele fez. Nunca vi ninguém tão grato. Ele tinha uma expressão tão horrível em seu rosto, eu nunca vou esquecer. Perguntei se ele tinha batido no rosto, mas ele disse que não, e então percebi que ele deve ter perdido alguém. Perguntei-lhe, e ele disse que era a mãe dele. Coitado, agradeço a Deus que você não estava comigo. Cheguei a Dublin no comboio das 15h e estou na cama desde que cheguei, totalmente acabado. Eu tive o médico ontem - eu estou bem da cabeça aos pés. Mas meus pés estão muito doridos. Eu tive um golpe no meu pé direito, e parecia ontem como se estivesse um pouco envenenado. Fo por isso que mandei ontem chamar o médico. Ele tratou, e já parece muito melhor. Vou a Londres esta noite. O comboio sai às 8h10 e chegarei lá às 6h da manhã. A travessia de barco, que eu temo, é de apenas 2 horas e 40 minutos.


sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

Poverty Point





Este artigo é sobre uma terraplanagem pré-histórica, provavelmente um complexo de cerimonial religioso, atualmente Monumento Nacional dos EUA, no nordeste do estado da Louisiana no baixo vale do Mississippi. 
A Poverty Point Monumental Earthworks pertence e é administrada pelo Estado da Louisiana como um local histórico estadual aberto ao público desde 1972. A estrutura de gestão foi estabelecida no âmbito do quadro legal federal e estadual em vigor, reforçada por um programa arqueológico que garante que os resultados da investigação sejam incluídos no âmbito da gestão. O cenário arqueológico e visual de Poverty Point e o seu caráter agrícola apoiam o "valor universal excepcional" da propriedade, e exigem medidas apropriadas de proteção e manejo.




A parte principal do monumento são seis cumes concêntricos em forma de C. Cada cume é separado do próximo por uma vala ou gaivota. Os cumes são divididos por quatro corredores formando setores de terraplenagem. Três cristas lineares adicionais ou calçadas conectam-se entre si. A escala das cristas é tão grande que não foi até que os pesquisadores examinaram fotografias aéreas que eles foram capazes de reconhecer o desenho geométrico. As datas de radiocarbono sugerem que a maioria das cristas foi construída entre 1.600 e 1.300 a.C. Mudanças de temperatura, precipitação e aumento das inundações podem ter causado um desequilíbrio ecológico que levou ao seu abandono.

As pessoas que viviam em Poverty Point eram nativos americanos, descendentes dos imigrantes que vieram para a América do Norte através da ponte terrestre do Estreito de Bering há aproximadamente 20.000 anos. As fontes de alimento das pessoas em Poverty Point vieram dos animais e plantas locais da região. A comida do povo de Poverty Point era adquirida através da pesca, colheita de frutos selvagens como nozes e bagas, e caça. A subsistência era de base ampla devido aos diferentes alimentos sazonais que estavam disponíveis. Sua dieta consistia em grandes mamíferos como veados e pequenos mamíferos, vários tipos de peixe, tartarugas e moluscos.

A grande maioria dos artefactos recuperados no Poverty Point são pequenos moldes de loess, encontrados em uma ampla variedade de formas. Os habitantes de Poverty Point produziram pequenas quantidades de cerâmica, criando uma variedade de tipos diferentes. Não há pedra natural em Poverty Point. Os artefactos de pedra vieram de longe dali. Outros materiais derivados do comércio que incluíam pedra sabão das Montanhas Apalaches do sul do Alabama, e galena do Missouri e Iowa. Os arqueólogos assumiram que a presença de artefactos de cobre indicava o comércio com tribos produtoras de cobre na região superior dos Grandes Lagos. No entanto, análises científicas modernas demonstram que pelo menos alguns dos artefactos de cobre recuperados de Poverty Point foram feitos de materiais disponíveis no sul das Montanhas Apalaches, onde vasos de pedra-sabão ou esteatite em Poverty Point também são originados.




A Terraplanagem Monumental de Poverty Point deve o seu nome a uma plantação do século XIX perto do local, que fica no Baixo Vale do Mississippi num relevo ligeiramente elevado e estreito. O complexo compreende cinco montes, seis cumes semielípticos concêntricos separados por depressões rasas e uma praça central. Foi criado e usado para fins residenciais e cerimoniais por uma sociedade de caçadores e pescadores coletores entre 3.700 e 3.100 a.C. É uma conquista notável na construção de terra na América do Norte que foi insuperável por pelo menos 2.000 anos.

O local consiste em um complexo integrado de monumentos de terra, no principal construído entre 3.700 e 3.100 anos atrás, no período arcaico tardio. O complexo inclui grandes montes e áreas de empréstimo/pedreira associadas, seis cumes de barro semielípticos com um diâmetro externo de 1,14 km e uma grande praça plana delimitada pelos cumes. A topografia natural elevada do local acima das planícies aluviais do Holoceno forneceu um lugar seguro para o assentamento humano em uma área de outra forma propensa a inundações e influenciou o formato do complexo e a colocação da terraplanagem. Todos os elementos singulares que compõem o complexo à medida que sobrevivem em forma e substância – os montes, o sistema de cumes e valas, os corredores, a praça com os círculos de postes, a calçada, a crista bissetora, a doca e as áreas emprestadas – bem como sua organização espacial em relação à topografia, ilustram o uso refinado de características naturais e topografia para criar uma paisagem monumental projetada.

Os extensos rearranjos de terra sob as estruturas acima do solo atestam a extensa terraplanagem para combater a erosão do solo e alcançar o projeto necessário. Os depósitos arqueológicos escondidos abaixo do solo representam um repositório de potenciais informações adicionais sobre a propriedade e seus construtores. O sinuoso Bayou Maҫon, com sua vegetação ribeirinha, e as áreas pantanosas e arborizadas, proporcionam uma sensação do ambiente natural na época em que o Poverty Point foi construído.

A propriedade está bem preservada; os trabalhos de reparação e manutenção são realizados regularmente, especialmente para combater a erosão do solo. Os limites atuais da propriedade correspondem aos do Sítio Histórico Estadual de Poverty Point: eles incluem a maioria dos elementos que compõem este complexo monumental e a relação visual e funcional entre eles. Elementos que possivelmente se relacionam com o cenário cultural e contextual desse complexo também ocorrem além dos limites da propriedade; eles atuam como um suporte funcional para o significado do local. A rodovia 577 atravessa a propriedade de norte a sul e a minimização de seu impacto será continuada a longo prazo.





segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023

Arcangel (Arkhangelsk) no tempo de Pedro o Grande


Arcangel [Arkhangelsk] é a capital da província de Arcangel na margem da baía do rio Duina, no Mar Branco. Já no século XII se tinha estabelecido ali o mosteiro ortodoxo russo de São Miguel Arcanjo. Arcangel foi fundada oficialmente por Ivã IV, em 1584, com o nome de Novokholmogory, nome que mudou para o atual, em 1613, em honra do vizinho mosteiro.

O porto de Arcangel foi desde a sua fundação o porto mais importante da Rússia até à construção do porto de São Petersburgo, em 1703, por ordem de Pedro o Grande. E daqui resultou, século XVIII, que o porto de Arcangel entrasse em profunda decadência. O comércio pelo Mar Báltico passou a ser preferível ao Mar Branco. Mas Arcangel voltou a florescer no século XIX, ao ficar completa a linha férrea que a ligava a Moscovo. Entre1918 e 1920, durante a Guerra Civil Russa, foi ocupada pelas tropas anglo-americanas. Atualmente continua a ser um importante porto com estaleiros navais e indústria conserveira, apesar de estar coberto de gelo durante os meses de inverno. 




No tempo de Pedro o Grande a enorme massa de terra do império russo contava com um único porto marítimo: Arcangel, no Mar Branco. O único ancoradouro, distante do coração da Rússia, ficava a apenas 200 Km do Círculo Polar Ártico e passava seis meses do ano totalmente congelado. Todavia, apesar de seus inconvenientes, Arcangel era o único local em todo o reino onde o jovem Pedro podia desfrutar da vista de grandes navios e respirar o ar do mar. Nenhum czar jamais havia ido a Arcangel, mas, é claro, nenhum czar jamais se havia interessado por barcos.

Em onze de julho de 1693, Pedro deixou Moscovo a caminho de Arcangel com mais de cem pessoas. A distância que o separava da capital era de mais de 950 Km em linha reta; entretanto, a rota efetiva, passando por estradas e rios, ultrapassava os 1.500 Km. Atravessando o Volga em Yaroslavl, dirigiram-se à agitada cidade de Vologda, o centro de transbordo na região sul, foco dos negócios de Arcangel, onde o grupo embarcou numa frota de grandes e coloridas barcaças preparadas para eles. Dali seguiram pelo rio Suhona até à junção com o rio Duina e, dali, seguiram a norte pelo próprio Duina até Arcangel.

O porto de Arcangel não ficava exatamente na costa do Mar Branco. Estava situado a 50 Km na subida de um rio, onde o gelo se formava ainda mais rapidamente do que na água salgada do oceano. De outubro a maio, o rio que cortava a cidade permanecia congelado e duro como aço. Entretanto, na primavera, quando o gelo começava a derreter na encosta do Mar Branco e depois nos rios, Arcangel começava a se agitar. As barcaças carregadas no interior da Rússia com peles, cânhamo, gordura, trigo, caviar e potassa seguiam em fila infinita a caminho do Norte pelo Duina. Ao mesmo tempo, os primeiros navios mercantes de Londres, Amsterdão, Hamburgo e Bremen, escoltados por navios de guerra para se protegerem dos corsários franceses itinerantes, forçavam o seu caminho através dos blocos de gelo derretendo ao redor do Cabo Norte, a caminho de Arcangel. Traziam tecidos de lã e algodão, seda e renda, objetos de ouro e de prata, vinhos e compostos químicos para o tingimento de tecido. Em Arcangel, durante os agitados meses de verão, até cem navios estrangeiros podiam ser vistos parados no rio, descarregando as mercadorias ocidentais e carregando produtos russos.



Porto de Arcangel em 1896

Durante o verão em Arcangel, os dias eram freneticamente agitados, mas, mesmo assim, a vida era prazerosa para os estrangeiros. No final de junho, era dia durante 21 horas, e as pessoas dormiam pouco. A cidade era esplendidamente abastecida com peixe fresco e carne de caça. O salmão era trazido do mar para ser defumado ou salgado e enviado para a Europa ou para o interior, mas havia mais do que suficiente para ser consumido fresco em Arcangel. Os rios estavam repletos de peixe, incluindo perca, lúcio e pequenas enguias. Os frangos e veados selvagens eram numerosos e baratos, e uma perdiz de grande tamanho podia ser comprada por dois centavos ingleses. Havia lebres, patos e gansos. Como muitos navios chegavam da Europa, cerveja holandesa e vinho e conhaque franceses eram abundantes, embora os impostos de importação russos os encarecessem. Havia uma sede da Igreja Holandesa Protestante, e outra luterana. .

Para um jovem como Pedro, hipnotizado pelo mar, tudo ali o fascinava: o oceano se estendendo até ao horizonte, o cheiro da água salgada, das cordas e do alcatrão em torno do cais, a imagem de tantos navios no ancoradouro, os enormes cascos de carvalho, os mastros altos e as velas enroladas, a agitação das pequenas embarcações cruzando a enseada.  
Pedro podia ver a maioria da atividade no porto da casa que havia sido preparada para ele na ilha MoiseevUm comboio de mercadores holandeses e ingleses estava partindo para a Europa. Pedro, a bordo do São Pedro, os acompanharia pelo mar Branco até ao oceano Ártico. Com o vento e a maré favoráveis, os navios subiram a âncora, desenrolaram as velas e seguiram pelo rio, passando por dois pequenos fortes que guardavam a aproximação do mar. Ao meio-dia, pela primeira vez na história, um czar russo estava em águas salgadas. Conforme as colinas e florestas tornavam-se menores na distância, Pedro se viu cercado apenas pelo tremular das ondas, pelos navios subindo e descendo na água verde-escura do Mar Branco, pelo estalar da madeira e pelo assobiar do vento contra a tripulação.

Pedro não tinha intenção de deixar Arcangel até a esperada frota de mercadores holandeses chegar de Amsterdão. Da janela de sua casa na ilha Moiseev, podia ver os navios chegando e partindo pelo rio. Ansioso, embarcava e inspecionava cada embarcação no porto, lançando perguntas durante horas aos capitães, subindo nos mastros para estudar as velas e examinando a construção dos cascos. A Holanda tornou-se a paixão de Pedro, e ele andava pelas ruas de Arcangel usando a roupa de um capitão da marinha holandesa. Passava tempo nas tavernas, fumando um cachimbo de barro e esvaziando garrafa após garrafa acompanhado de capitães holandeses que haviam navegado com os lendários almirantes Tromp e de Ruyter. Com Lefort e seus camaradas, participava de infinitos jantares e bailes nas casas de mercadores estrangeiros. 

Em meados de setembro, o comboio de comerciantes holandeses chegou. Pedro lhes deu as boas-vindas e, ao mesmo tempo, despediu-se de Arcangel em uma enorme celebração organizada por Lefort, com banquetes que duraram uma semana, bailes e salvas de artilharia dos fortes e navios ancorados. O retorno a Moscovo foi lento. Agora as barcaças seguiam rio acima, levadas não por animais, mas por homens puxando cordas ao longo da encosta. Enquanto os barqueiros se esforçavam e as barcaças seguiam lentamente, os passageiros saíam e caminhavam pelo limite da floresta, às vezes caçando patos e pombos para o jantar. Sempre que a flotilha passava por uma vila, o padre e os habitantes iam até a barcaça real para presentear o czar com peixes, groselhas, frangos e ovos frescos. Às vezes, parados nas barcaças durante a noite, os viajantes avistavam um lobo na margem. Quando chegaram a Moscovo, em meados de outubro, a temporada de neve já se tinha iniciado em Arcangel. O porto estava fechado para o inverno. Na primavera de 1694, Pedro retornou a Arcangel. Dessa vez, 22 barcaças foram necessárias para carregar rio abaixo as trezentas pessoas que compunham sua comitiva. As barcaças também carregavam 24 canhões para os navios, mil mosquetes, muitos barris de pólvora e ainda mais barris de cerveja. Pedro decidiu passar o tempo visitando o Mosteiro Solovetski, que ficava em uma ilha do mar Branco.

 Na noite de dez de junho, embarcou no São Pedro, levando consigo o arcebispo Afanásio, alguns camaradas e um pequeno grupo de soldados. Eles partiram com a maré, mas, na embocadura do Duina, a brisa cessou, e somente no dia seguinte o grupo conseguiu navegar, com o vento refrescante, em direção ao mar Branco. Durante o dia, o céu escureceu e o vento se tornou mais forte. A cerca de 12 Km de Arcangel, um vendaval abateu-se sobre a pequena embarcação. Pedro se apoiou no leme em meio ao vento e às ondas, recebeu a extrema-unção, mas não perdeu as esperanças. Cada vez que a embarcação subia em uma grande onda e descia novamente, Pedro lutava com o timão, tentando manter a proa na direção do vento. Sua determinação surtiu efeito. O piloto se arrastou até Pedro e gritou em seu ouvido que eles deveriam tentar chegar ao porto do Golfo de Unskaia. Com o piloto ajudando-o ao leme, eles manobraram por uma passagem estreita e chegaram ao porto. Por volta do meio-dia de doze de junho, depois de 24 horas de terror, o pequeno iate ancorou nas águas calmas do pequeno Mosteiro Pertominsk. Fora do ancoradouro, o temporal se estendeu por mais três dias. No dia dezesseis, o vento diminuiu e Pedro voltou a velejar a caminho do Mosteiro Solovetski, o mais famoso no norte da Rússia, onde passou três dias agradando os monges com suas devoções diante das relíquias sagradas. Seu retorno a Arcangel ocorreu em águas calmas e a chegada foi saudada com júbilo pelos amigos ansiosos que sabiam da tempestade e temiam pela vida deles.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

Cultura do Danúbio



Vere Gordon Childe [1892-1957], para além de filólogo australiano, especializou-se em arqueologia, cunhou os termos "Revolução Neolítica" e "Revolução Urbana". Assim como cunhou o termo "Cultura do Danúbio" para descrever as primeiras culturas agrícolas e da cerâmica linear que se espalharam para noroeste do vale do rio Danúbio.

Em 4.500 a.C., antes que as primeiras cidades fossem construídas na Mesopotâmia e no Egito, a Velha Europa estava entre os lugares mais sofisticados e tecnologicamente avançados do mundo. Estava desenvolvendo muitos dos sinais políticos, tecnológicos e ideológicos da "civilização". Algumas aldeias da Velha Europa cresceram para tamanhos de cidades, maiores do que as primeiras cidades da Mesopotâmia. Os antigos metalúrgicos europeus estavam, em sua época, entre os artesãos de metal mais avançados do mundo e, certamente, os mais ativos. A demanda por cobre, ouro, conchas do mar Egeu e outros objetos de valor criou redes de negociação que atingiram centenas de quilómetros. Cerâmica, estatuetas e até casas foram decoradas com desenhos marcantes. Estatuetas femininas, a Deusa, encontradas em quase todos os assentamentos, desencadearam intensos debates sobre o poder ritual e político das mulheres. Sinais inscritos na argila sugerem um sistema de notação primitiva, se não escrita.



Rotunda - restos de uma estrutura com cerca de 7.000 anos perto de Praga

A rotunda de Praga tem cerca de 55 metros de diâmetro. Tal achado arqueológico sugere que fazia parte da cultura do Danúbio médio - que floresceu entre 4900 a.C. e 4400 a.C. Os pesquisadores descobriram pela primeira vez sobre a existência da rotunda de Vinoř na década de 1980, quando trabalhadores da construção civil estavam instalando oleodutos e gasodutos. A escavação atual revelou a totalidade da estrutura pela primeira vez. Até agora, sua equipe recuperou fragmentos de cerâmica, ossos de animais e ferramentas de pedra no preenchimento da vala. Os restos orgânicos datados por carbono desta escavação circular podem ajudar a equipa a identificar a data de construção da estrutura e possivelmente vinculá-la a um assentamento neolítico descoberto nas proximidades.

As pessoas que fizeram a cerâmica da cultura do Danúbio Médio são conhecidas por construir outras rotundas na região da Boémia, na Chéquia. As aldeias agrícolas sedentárias – localizadas na interseção da atual Polónia, leste da Alemanha e norte da Chéquia – consistiam em várias edificações, que eram grandes estruturas retangulares que comportavam de 20 a 30 pessoas cada. Mas o conhecimento da construção de rotundas cruzou as fronteiras de várias culturas arqueológicas. Diferentes comunidades construíram rotundas em toda a Europa central.

Rotundas não eram características antigas bem conhecidas até algumas décadas atrás, quando a fotografia aérea e com drones se tornaram uma parte fundamental do kit de ferramentas arqueológicas. Mas agora, os arqueólogos sabem que as rotundas são a evidência mais antiga de arquitetura em toda a Europa. Vistas de cima, as rotundas consistem em uma ou mais valas circulares largas com vários vãos que funcionavam como entradas. A parte interna de cada rotunda provavelmente foi forrada com postes de madeira, talvez com lama cobrindo as lacunas. Centenas dessas obras de terraplenagem circulares foram encontradas em toda a Europa central, mas todas perduraram apenas durante dois ou três séculos. Embora sua popularidade no final do Neolítico seja clara, sua função ainda está em questão.

Em 1991, a primeira rotunda conhecida foi encontrada na Alemanha, também correspondendo à cultura do Danúbio Médio. Chamado de Círculo Goseck, tem 75 m de diâmetro e tinha uma paliçada dupla de madeira e três entradas. Como duas das entradas correspondem ao nascer e ao pôr do sol durante os solstícios de inverno e verão, uma interpretação do Círculo Goseck é que ele funcionava como um observatório ou calendário. 
É provável que as rotundas tenham sido construídas para reuniões de grande número de pessoas, talvez para comemorar eventos importantes para eles como comunidade, como ritos de passagem, fenómenos astronómicos ou trocas económicas. Após três séculos de popularidade, as rotundas desapareceram repentinamente do registo arqueológico por volta de 4600 a.C. Os arqueólogos ainda não sabem por que as rotundas foram abandonadas. Mas considerando que mais de um quarto de todos as rotundas encontradas até hoje estão localizadas na Chéquia, pesquisas futuras semelhantes à escavação em Vinoř podem eventualmente ajudar a resolver o mistério das rotundas.





Por outro lado, na península do extremo ocidental do velho e grande continente asiático, que viria a receber o nome de Europa, depois daquela civilização do período Mesolítico das margens do rio Coa na Peninsula Ibérica, viveu-se o período Neolítico que se estendeu até à Grécia e à Escandinávia. Assim, a duração do Neolítico na Europa varia de lugar para lugar. 

Independentemente da cronologia específica, muitos grupos neolíticos europeus compartilham características básicas, como viver em comunidades de pequena escala, mais igualitárias do que as cidades-estado e chefaturas da Idade do Bronze, e com abundante produção de artigos de cerâmica artesanal graças à invenção da roda de oleiro. Se inicialmente o Neolítico constituía sociedades de cariz matriarcal, em que a mulher era responsável pela casa, filhos e colheita de frutos e vegetais selvagens, e os homens responsáveis pela caça de alimento animal, e pela segurança da família em relação às adversidades dos elementos, animais, e outros homens que mais tarde acabou por dar lugar à Idade do Bronze, da Guerra e das cidades-estado. 

As opiniões depois não são consensuais entre arqueólogos, antropólogos e historiadores quanto à passagem do matriarcado para o patriarcado. Inicialmente Gimbutas teorizou a origem do patriarcado com a invasão dos povos da chamada língua indo-europeia. Estes sim, nómadas, bélicos e patrilineares. Usando evidências de cerâmica e escultura, e combinando as ferramentas da arqueologia e da mitologia comparada, linguística e, mais controversamente, etnográfica. Gimbutas inventou um novo campo interdisciplinar: Arqueomitologia. E assumiu que os pelasgos, minoicos, iberos, etruscos, bascos, e muitos outros eram povos autóctones pré-indo-europeus. Não se sabe quantas línguas pré-indo-europeias existiram. Também não se sabe se os nomes antigos desses povos se referiam a falantes de línguas distintas.

De acordo com a versão de Gimbutas da hipótese Kurgan, a Europa da Idade do Bronze foi invadida e destruída por nómadas de vida pastoril. Esses povos que habitavam as estepes entre o mar Cáspio e o mar Negro, que já dominavam o cavalo e a roda, tinham todas as condições para garantir migrações persistentes ao longo dos anos. Os povos da cultura Kurgan eram um exemplo marcante. Mas uma outra versão concorrente de Colin Renfrew sugere que as línguas indo-europeias foram espalhadas por toda a Europa pelos primeiros agricultores da Anatólia. Na formulação original da hipótese, as línguas da zona dos Balcãs já pertenciam à família indo-europeia, mas não desempenharam nenhum papel especial em sua transmissão. De acordo com a revisão mais recente da teoria de Renfrew as famílias linguísticas grega, arménia e balto-eslava divergiram por volta de 5000 a.C. Três estudos genéticos em 2015 deram apoio parcial a esta teoria. De acordo com esses estudos, os haplogrupos R1b e R1a, agora os mais comuns na Europa (R1a também é comum no sul da Ásia) teriam expandido das estepes ao norte dos mares Negro e Cáspio, trazendo consigo pelo menos algumas das línguas indo-europeias; eles também detectaram um componente autossómico presente nos europeus modernos que teriam sido introduzidos com as linhagens paternas R1b e R1a, faladores de línguas indo-europeias, que não estava presente nos europeus neolíticos.