quinta-feira, 30 de novembro de 2023

O Tratado de Sèvres e as sequelas do fim do Império Otomano que ainda se fazem sentir no século XXI



Após a Primeira Guerra Mundial, deu-se o desmembramento do Império Otomano no Tratado de Sèvres. Em junho de 1920, assim que os termos foram divulgados, na Índia ainda havia um vice-rei - lorde Chelmsford. E os soldados muçulmanos da Índia não lutaram para infligir punição em seu próprio califa, o sultão otomano. Muçulmanos e hindus, como um todo, perderam a fé na justiça e na honra britânicas. O Tratado de Sèvres logo se tornou letra morta, o único produto da Conferência de Paz de Paris a nunca ser ratificado nem implementado, não em função da indignação muçulmana diante da perda de Meca pelo califa Hussein, o rei hachemita do Hejaz, mas pela indignação turca habilmente mobilizada e liderada por Mustafá Kemal. 

Como a Conferência de Paz de Paris havia sancionado a criação de uma série de novos países nas regiões central e leste da Europa, nenhum dos quais era forte o suficiente para se defender, em um sentido estrutural, a Europa do pós-guerra dependia mais do que qualquer outra parte do mundo do cumprimento da visão de Wilson sobre uma Liga das Nações robusta, que proporcionasse segurança coletiva a seus membros. Desde o início, a França duvidou que a Liga pudesse cumprir essa promessa, mesmo para as principais potências, motivando Clemenceau a buscar garantias em uma aliança paralela que comprometesse Grã-Bretanha e Estados Unidos a vir em auxílio da França se a Alemanha atacasse novamente. 

A aliança defensiva anglo-franco-americana teria sido uma característica central do cenário internacional pós-guerra se não tivesse morrido em uma comissão no Senado dos Estados Unidos, antes mesmo de chegar a uma votação; Lloyd George, tendo condicionado astutamente o seu compromisso para com os franceses ao compromisso dos Estados Unidos, deixou a Grã-Bretanha sem obrigação bilateral de apoiar a França. Os britânicos tampouco estabeleceram qualquer compromisso com a Bélgica, que colocou suas esperanças em uma aliança com a França (pelo menos até 1936, quando regressou à sua tradicional neutralidade). 

Voltando para o leste, os franceses procuraram compensar o desaparecimento de seu aliado imperial russo montando um contrapeso no Leste Europeu a uma Alemanha revivida. A França concluiu acordos bilaterais com Polónia, Checoslováquia, Roménia e Jugoslávia, e também patrocinou a “Pequena Entente” que ligava as três últimas, mas (devido ao colapso do regime de reparações) não dispunha do capital para fortalecer esses países subdesenvolvidos como tinha feito com a Rússia antes de 1914. 

A chamada “Guerra Turca de Independência”, movimentada por Mustafá Kemal, registou o primeiro êxito em novembro de 1920, na derrota da República Democrática da Arménia, estabelecendo a fronteira da Turquia moderna no Cáucaso; o Exército Vermelho invadiu o que restava da Arménia no mês seguinte e, em 1922, ela se tornou uma República da União Soviética. O fim do conflito entre turcos e arménios permitiu a Kemal concentrar os seus exércitos contra os gregos a oeste nos Balcãs, onde, depois de quase dois anos de luta acirrada, eles retomaram Esmirna em setembro de 1922 – uma vitória que resultou em um armistício greco-turco e na fuga de Mehmed VI, o sultão testa de ferro, de Constantinopla. 

No Tratado de Lausanne (24 de julho de 1923), Grã-Bretanha, França e Itália se juntaram à Grécia no reconhecimento das fronteiras da República da Turquia e os turcos renunciaram a suas reivindicações a todo o território restante que outrora pertencera ao Império Otomano. O Bósforo e Dardanelos foram desmilitarizados sob comando de uma comissão da Liga das Nações, mas, finalmente, em 1936, retornaram à soberania turca. O evento mais dramático veio na troca de populações grega e turca, eliminando comunidades turcas centenárias na Trácia ocidental e nas ilhas do mar Egeu, e comunidades gregas na Ásia Menor que datavam da Antiguidade. A troca marcou a primeira aplicação ampla de um conceito que os Aliados vitoriosos não tinham cogitado na Conferência de Paz de Paris, mas que seria uma característica comum na Europa Central e do Leste no final da Segunda Guerra Mundial: dada a impossibilidade de definir fronteiras geográficas “segundo linhas de nacionalidade claramente reconhecíveis”, as fronteiras desejadas foram estabelecidas antes, e depois as pessoas se mudaram.

Assim, Mustafá Kemal, um homem produzido pela Primeira Guerra Mundial, merecia ser chamado de Atatürk (“pai dos turcos”), apelido que ele adotou formalmente como sobrenome em 1934, quatro anos antes de morrer. No final de sua presidência ditatorial, a República da Turquia já era saudada como exemplo de como um país moderno e secular poderia ser criado no Médio Oriente muçulmano, mas, até ao século XXI, manteve-se única nesse sentido. O legado de Atatürk teve seu lado desagradável, na negação pela Turquia, não apenas do genocídio arménio, mas também do caráter e da cultura nacionais distintos de seus cidadãos arménios sobreviventes; ironicamente, ele aplicou a mesma política aos curdos, cúmplices ávidos dos turcos na perseguição aos arménios durante a guerra, que também não tiveram escolha a não ser a assimilação no Estado nacional turco. Por fim, Atatürk implantou a sua visão revolucionária a um custo terrível em vidas humanas. Talvez 5 milhões de habitantes da Ásia Menor tenham morrido entre 1914 e 1922, como resultado da Primeira Guerra Mundial, do genocídio arménio, da guerra turca contra arménios e gregos, da troca de populações greco-turca e de doenças epidémicas em todo o período. O primeiro Censo de Atatürk, em 1927, registou uma população de menos de 14 milhões.

Em termos históricos mundiais, o fim do califado islâmico é uma das consequências mais dramáticas da Primeira Guerra Mundial fora da Europa. Depois de Mehmed VI abdicar como sultão, a nova Assembleia Nacional em Ancara aceitou o seu primo e herdeiro, Abdulmecid II, como califa, mas, em 1924, reagindo contra a agitação estrangeira (de maioria indiano-muçulmana) em nome de Abdulmecid, Atatürk declarou o califado abolido. Apesar de Hussein, xarife de Meca, ter declarado a independência religiosa e política dos povos árabes em relação ao sultão-califa em 1916, até a destituição de Abdulmecid II, a maioria dos muçulmanos sunitas do mundo continuava a reconhecer a liderança espiritual do califado otomano. Na verdade, eles o consideravam como sucessor legítimo das mais antigas linhagens de califas que remontam à morte do profeta Maomé, em 632. Hussein proclamou-se califa, logo que Atatürk depôs Abdulmecid, mas poucos muçulmanos reconheceram o título fora de seu próprio reino do Hejaz e dos domínios de seus filhos, Iraque e Transjordânia. 

Em qualquer caso, a sua reivindicação perdeu a validade no ano seguinte, 1925, quando Ibn Saud marchou sobre Meca, derrubou Hussein e estabeleceu a sua própria dinastia como guardião da cidade santa. No tumultuado Médio Oriente pós-Otomano, os filhos de Hussein se saíram um pouco melhor do que o pai. Em 1932, o reino de Faisal no Iraque se tornou o primeiro dos mandatos da Liga das Nações a alcançar a independência e, em 1946, o emirado da Transjordânia, de Abdullah, tornou-se o reino da Jordânia depois do fim do mandato britânico. A monarquia hachemita sobreviveu até 1958 no Iraque, e continua a sobreviver na Jordânia, no século XXI. 

Ao longo das mesmas décadas, nas periferias do Médio Oriente, outros homens, cujas carreiras foram forjadas durante a Primeira Guerra Mundial, reinaram por muito tempo no pós-guerra. A guerra estabeleceu Sayyid Idris como líder dos sanusis e emir da Cirenaica; ele passou a apoiar a Grã-Bretanha contra a Itália de Mussolini na Segunda Guerra, e depois reinou como rei da Líbia, sob o nome de Idris I, até o coronel Muammar al Kadafi o derrubar em 1969. Haile Selassie durou ainda mais. Governante de facto da Abissínia/Etiópia após a ascensão ao trono da imperatriz Zewditu durante a guerra, ele a sucedeu após sua morte em 1930 e, com exceção de um breve exílio exigido pela conquista de seu império por Mussolini (1935-1940), reinou até ser deposto, em 1974. Entretanto, dadas as divisões existentes no mundo muçulmano e no mundo árabe dentro dele, o califado islâmico continua vago no século XXI, apesar dos apelos periódicos por sua restauração (mais visivelmente por parte de Osama bin Laden na década de 1990).

A Primeira Guerra Mundial, é claro, também deu origem ao moderno conflito entre árabes e israelitas, nas contraditórias promessas feitas pela Grã-Bretanha aos árabes e ao movimento sionista sobre os destinos da Palestina no pós-guerra. Animados com a promessa da Declaração de Balfour, colonos judeus começaram a chegar à Palestina, assim que a paz tornou viável a imigração, com mais de 10 mil entrando no mandato apenas no período de 1919 e 1920. Já em maio de 1921, o afluxo de judeus gerou uma revolta de árabes em Jaffa, seu principal porto de entrada, gerando um ciclo de violência que só piorou com o passar dos anos. 

Havia 55 mil judeus na Palestina no final da Primeira Guerra Mundial; os britânicos permitiram que outros 106 mil imigrassem durante a década de 1920, seguidos por mais 257 mil nos anos 1930. Entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial a população árabe na Palestina cresceu de 668 mil (1922) para 1 milhão (1937), mas a sua alta taxa de natalidade não conseguiu acompanhar o ritmo da imigração de judeus, e a duplicação da população total da Palestina em menos de duas décadas só aumentou a competição por terras aráveis e recursos hídricos. A questão da terra e da água tornou-se uma questão vital entre árabes e israelitas depois de 1945.

Muito antes da retirada britânica da Palestina levar os sionistas a proclamar o Estado de Israel em 1948, os nacionalistas árabes, frustrados com o sistema de mandato, viam o fenómeno da colonização judaica como um exercício de colonialismo europeu moderno, e esperavam o dia em que as circunstâncias lhes permitissem eliminá-lo.

O sistema que passou a reger as relações internacionais depois de 1919 tinha pouca semelhança com o seu predecessor de antes de 1914. A
 Liga das Nações tornou-se o ponto focal da diplomacia entre países, como fora a intenção de Wilson, mesmo após a rejeição do Tratado de Versalhes pelo Senado dos Estados Unidos. Isso deixou as outras potências vitoriosas, Perincipalmente a Inglaterra e a França, mais à vontade na tarefa de fazer a organização funcionar. depois de 1945 veio a Organização das Nações Unidas (ONU), tão ou mais forte que a Liga, quanto seus membros quisessem que fosse.

O Conselho da Liga das Nações se reuniu pela primeira vez em Paris, em janeiro de 1920, pouco antes de a Conferência de Paz ser oficialmente suspensa. A Assembleia, com 41 países representados (todas as ex-potências Aliadas e associadas, exceto os Estados Unidos, além de dez dos países neutros da Primeira Guerra), reuniu-se para a sua primeira sessão em novembro de 1920, em Genebra, sede permanente da organização. Contando as colónias e os mandatos dos Estados-membros, os únicos países do mundo a jamais pertencer à Liga das Nações foram Estados Unidos, Arábia Saudita, Islândia e os Estados himalaios do Nepal e do Butão. 

O Conselho de Segurança da ONU após a Segunda Guerra Mundial, tinha como cinco membros permanentes as principais potências Aliadas recentemente vitoriosas, complementada por membros não permanentes com mandatos fixos. O secretariado da Liga servia como burocracia permanente da organização, que incluía uma série de entidades de importância duradoura. O Tribunal Permanente de Justiça Internacional, como seu sucessor, o Tribunal Internacional de Justiça das Nações Unidas, tinha sede em Haia, onde examinou 66 casos e emitiu 27 pareceres entre 1923 e 1940. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobreviveu para passar aos auspícios da ONU depois da Segunda Guerra, assim como a Organização de Saúde da Liga, que ressurgiu depois de 1945 como Organização Mundial da Saúde. A Comissão Internacional de Cooperação Intelectual da Liga foi precursora da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). 

Outras comissões da Liga tratavam de desarmamento, refugiados, administração dos mandatos e escravidão, no último caso, definida de forma ampla para incluir a prostituição forçada e o tráfico de seres humanos de todos os tipos. O Comitê Central Permanente sobre o Ópio serviu como precursor de iniciativas do final do século XX contra o tráfico internacional de drogas, e o Comité para o Estudo da Situação Jurídica da Mulher da Liga prenunciava o trabalho da ONU pela promoção internacional da igualdade de gênero e dos direitos das mulheres. Para lidar com a repatriação de prisioneiros de guerra ainda na Rússia em 1920, bem como o grande número de refugiados gerado pelas mudanças territoriais na Europa do Leste e na Ásia Menor, a Liga criou o Passaporte Nansen para apátridas, assim batizado em função do explorador polar norueguês Fridtjof Nansen, chefe da comissão sobre os refugiados, cujos esforços proporcionaram o marco jurídico internacional para as iniciativas da ONU em nome de “pessoas desalojadas” após a Segunda Guerra Mundial.

O maior sucesso da Liga em matéria de desarmamento, o Protocolo de Genebra de 1925, tornou ilegal o uso de armas químicas e biológicas (mas não seu desenvolvimento nem sua posse). Embora todos os beligerantes tenham mantido grandes estoques durante a Segunda Guerra, o gás venenoso foi usado muito raramente como arma em campo de batalha depois de 1918. O Protocolo de Genebra (que permanece em vigor no século XXI, com mais de 130 países como signatários) teve como precursor o Tratado de Washington sobre o Uso de Submarinos e Gases em Tempo de Guerra, assinado em 1922 pelas cinco potências que participam da Conferência Naval de Washington: Grã-Bretanha, Estados Unidos, Japão, França e Itália. As mesmas cinco potências posteriormente assinaram o Tratado Naval de Washington, concordando em limitar seu número de navios capitais (couraçados e cruzadores de batalha), bem como porta-aviões, ficando estabelecido que Grã-Bretanha e Estados Unidos teriam a mesma tonelagem, seguidos por Japão, que teria 60% de tonelagem do total dos dois primeiros, e França e Itália, com 35%. 

Talvez a falha mais trágica do sistema internacional nos anos imediatamente posteriores à Primeira Guerra tenha estado na área de crimes de guerra. Em janeiro de 1920, o governo holandês, como esperado, recusou o pedido para entregar Guilherme II aos Aliados para julgamento; dois meses depois, a rainha Guilhermina declarou o ex-imperador “internado” e o assunto morreu. Em fevereiro de 1920, um acordo permitiu que os alemães realizassem seus próprios julgamentos de pessoas que os Aliados haviam identificado como criminosos de guerra; observadores estrangeiros participaram do processo, realizado em Leipzig a partir de maio de 1921, mas os poucos homens condenados não incluíam figuras de destaque durante a guerra, todas as sentenças foram lenientes, e a maioria dos países logo retirou seus observadores para protestar contra a farsa. 

A França acabou julgando e condenado 1.200 criminosos de guerra alemães à revelia, a Bélgica, 80, em processos que permaneceram puramente simbólicos, já que nenhum dos condenados jamais foi tolo o suficiente para voltar a pôr o pé nesses países. Assim, a Primeira Guerra Mundial nada fez para promover a causa do direito internacional em matéria de crimes contra a humanidade relacionados à guerra, deixando que os julgamentos de crimes de guerra em Nuremberg e Tóquio, depois de 1945, estabelecessem os precedentes legais para a ação futura.

quarta-feira, 29 de novembro de 2023

Ideologia



A ideologia não é uma excentricidade inofensiva. Nem um substituto da religião. Pode ameaçar exatamente a estrutura do pensamento e da ação racional. O primeiro efeito da ideologia no poder é marcar o terreno da discussão política. Pode ser um campo onde se defronta o poder com a oposição. Ela elimina o elemento da escolha racional das decisões políticas como se tratasse de ciência. Remove o exercício da isenção e da imparcialidade. 

A incapacidade de discutir com oponentes, de abrir a mente para a dúvida e para a hesitação é uma característica das ideologias acantonadas nos extremos do campo político. É numa ideologia que as pessoas partilham 
as mesmas ilusões fundamentais. Uma ideologia revolucionária posiciona-se  acima de qualquer lei e considera todas as pessoas apenas como um meio para o supremo objetivo revolucionário da " justiça social". Não há ideologias sem líderes que se podem tornar heróis ou serem proscritos. A menos que tenham sido canonizados como Heróis Revolucionários, são esquecidos assim que deixam o cargo, e não existe procedimento nem para elegê-los nem para removê-los. O poder é a única substância palpável. E é um poder que está além de toda a avaliação racional. O avanço impessoal do poder movido por uma ideologia não é da responsabilidade de ninguém. Assim, não há como responsabilizar a entidade de corpo e alma. 

Em democracia, o eleitor não deve ignorar as consequências dos seus atos quando se despede da razão e se deixa arrastar pela emoção desvalorizando o seu legítimo poder enquanto tal. 
Por exemplo, o efeito da ideologia marxista é precisamente colocar uma abstração com o nome de Estado no caminho da dominação. Nesse caso, ninguém sabe como pará-lo, já que nenhuma razão para pará-lo pode ser proferida sem penalidade instantânea. No tempo da União Soviética a ideologia do comunismo sustentou que a obra do comunismo seria finalizada quando o comunismo tivesse triunfado em todos os lugares. Embora a Ocidente não se tenha acreditado nisso, a verdade é que há sempre alguém que acredita em amanhãs que cantam.

A máquina de Estado comunista mostrou que o poder, quando é impessoal, fica fora de controlo. A força necessária para opor-se tem de ser sempre maior, mas a vontade para tentar é sempre menor. Os marxistas de boa-fé, argumentam que a estrutura totalitária do governo comunista estalinista não tinha que ser uma consequência inevitável das concepções marxistas. No entanto, sob sua justificada vigilância, o compromisso, a Constituição e as instituições da sociedade civil foram firmemente degenerados ou abolidos. A forma resultante de governo, à qual faltam os dispositivos corretivos de liberdade de expressão, independência judicial e oposição parlamentar, está estribada em um curso que, ainda que irracional, não pode ser pacificamente alterado.

O problema poderia ser colocado assim: as formas de governo democráticas, fundadas na representação, na lei e nas instituições autónomas que medeiam o indivíduo e o Estado, são formas de governo de pessoas para pessoas. O Estado não como uma coisa, mas uma comunidade. Isto é verdadeiro não somente no sentido legal, mas em um sentido mais profundo, mais amplamente e mais discretamente através do Estado de direito. Como toda pessoa, o Estado é responsável perante outras pessoas: o sujeito individual, as corporações e outros Estados.

É também responsável perante a lei. Tem direitos contra o indivíduo e deveres em relação a ele; é tutor e companheiro da sociedade, o alvo de nossas piadas e o recipiente de nossa raiva. Ele estabelece conosco uma relação humana, e esta relação está sustentada e justificada pela lei, diante da qual ele se porta como uma pessoa como as outras, em pé de igualdade com seus sujeitos. Um tal Estado pode comprometer-se a negociar. Está disposto a reconhecer que ele deve respeitar as pessoas, não apenas como meios, mas também como fins em si mesmas. Ele tem de acomodar toda a oposição.
 A imensa realização humana representada por um tal Estado não é nem respeitada nem percebida pelo extremista. Curvado sobre o trabalho da destruição, ele vê por trás da máscara de toda a instituição a hedionda maquinaria do poder.

A ideologia como devoção, a despeito de tal devoção por objetivos - uma devoção que está em si mesma em desacordo com o espírito do direito e do governo, é extremamente radical. A esquerda devia pensar mais seriamente sobre a nova sociedade. Isto não a faz nem um pouco menos desejável ou necessária, nem no momento atual menos urgente. Não sabemos nada do futuro socialista, salvo que ele tem de ser renovado. Mas a nossa preocupação não se pode esgotar no caso "extremista" contra o presente, que nos leva a destruir o que não sabemos como substituir. 

Uma fé cega arrasta o radical de "luta" em "luta", em nome da "justiça social" em busca do puro, mas incognoscível, Reino da Utopia. Este salto para o Reino da Utopia é um salto do pensamento, que nunca pode ser espelhado na realidade. A "práxis revolucionária" confina-se, então, à obra da destruição, não tendo nem o poder nem o desejo de perceber, em termos concretos, o fim em busca do qual ela trabalha. Por uma inevitável transição, então, a "doutrina armada" do revolucionário, lançada em busca da liberdade ideal, produz um mundo de real escravidão, cujos acordos brutais são incongruentemente descritos na linguagem de pau: "igualdade". Proferidas sem um sorriso triste e sarcástico.

O que disse é óbvio para aqueles que não sucumbiram à tentação ideológica da esquerda. Mas as consequências não são sempre aceites. A "direita", que neste contexto significa aqueles que defendem menos Estado, mais iniciativa privada e instituições independentes das clientelas partidárias, não me cabe defender.

Este pressuposto passa por uma correção a priori da esquerda, com o reconhecimento dos pontos onde tem sido incompetente. Um formidável desafio para a paciência do eleitor. Ao engajar-me com a esquerda, não ignorei o seu caráter efémero no processo de transformação que remonta, pelo menos, até às primeiras leituras da República de Platão sentado nos bancos do Liceu. Termo que, afinal, foi inventado por Aristóteles.

terça-feira, 28 de novembro de 2023

Palestina - a emergência de uma identidade distinta



As origens dos palestinos são complexas e diversas. A região não era originalmente árabe. Foi uma consequência da inclusão gradual da Palestina dentro dos califados islâmicos em rápida expansão estabelecidos por tribos árabes e seus aliados locais. Como em outras nações árabes os palestinos são árabes quer pela língua quer pela cultura que praticam e não por qualquer origem árabe. Por conseguinte, o território da Palestina passou por muitas convulsões demográficas ao longo da história. Inicialmente, digamos desde o ano 2000 a.C., foi habitada pelos cananeus. Depois apareceram na região os hebreus. E até ao ano 70 d.C., quando se deu o último êxodo depois das guerras judaico-romanas, os judeus eram a maioria da população. E a verdade é que desde essa altura até à criação do atual Estado de Israel em 1948, os judeus sempre ali estiveram em minoria. As perseguições feitas pelos cristãos e a conversão em massa, foi uma constante ao longo de séculos durante o Império Romano do Oriente até à ascensão do domínio islâmico.

No século VII os Rashiduns conquistaram o Levante. Mais tarde, eles foram sucedidos por outras dinastias muçulmanas de língua árabe, incluindo os omíadas, abássidas e fatímidas. Ao longo dos séculos seguintes, a população da Palestina diminuiu drasticamente, de cerca de 1 milhão durante os períodos romano e bizantino para cerca de 300.000 no início do período otomano. Com o tempo, grande parte da população existente adotou a cultura e a língua árabes. Acredita-se que o assentamento de árabes antes e depois da conquista muçulmana tenha desempenhado um papel na aceleração do processo de islamização. 

O momento e as causas por trás do surgimento de uma consciência nacional distintamente palestina entre os árabes da Palestina são questões de discordância académica. Alguns argumentam que ele pode ser rastreado até à Revolta Camponesa Palestina em 1834. Outros argumentam que ele não surgiu até depois do período da Palestina Obrigatória. No início do século XX, o movimento sionista avisou os palestinos do perigo que corriam com a instalação naquela terra de um Estado sionista. O termo Filasṭīnī foi introduzido pela primeira vez por Khalil Beidas em uma tradução de uma obra russa sobre a Terra Santa para o árabe em 1898. Depois disso, seu uso gradualmente se espalhou de modo que, em 1908, com o afrouxamento dos controles de censura sob o domínio otomano tardio, um número de correspondentes muçulmanos, cristãos e judeus escrevendo para jornais começaram a usar o termo com grande frequência para se referir ao "povo palestino" (ahl/ahālī Filasṭīn), "palestinos" (al-Filasṭīnīyūn) os "filhos da Palestina(abnā' Filasṭīn) ou à "sociedade palestina", (al-mujtama' al-filasṭīnī). 

Quaisquer que sejam os diferentes pontos de vista sobre o tempo, os mecanismos causais e a orientação do nacionalismo palestino, no início do século XX uma forte oposição ao sionismo e evidências de uma crescente identidade nacionalista palestina são encontradas no conteúdo de jornais em língua árabe na Palestina. 
A crítica ao sionismo, em torno do fracasso da administração otomana em controlar a imigração judaica, cresceu de tom com o grande influxo de estrangeiros, mais tarde explorando o impacto da compra de terras sionistas sobre os camponeses palestinos. O livro Identidade Palestina: A Construção da Consciência Nacional Moderna, de 1997, do historiador Rashid Khalidi, é considerado um "texto fundamental" sobre o assunto. Khalidi adverte contra os esforços de alguns defensores extremistas do nacionalismo palestino para "anacronicamente" irem buscar à História uma consciência nacionalista que é, na verdade, "relativamente moderna", da passagem do século XIX para o século XX. Mas Khalidi também argumenta que a identidade nacional moderna dos palestinos tem as raízes em discursos nacionalistas que surgiram entre os povos do Império Otomano no final do século XIX que se acentuaram após a demarcação das fronteiras após a Primeira Guerra Mundial.

Baruch Kimmerling e Joel S. Migdal consideram a Revolta Camponesa Palestina de 1834 na Palestina como constituindo o primeiro evento formativo do povo palestino. De 1516 a 1917, a Palestina foi governada pelo Império Otomano, exceto entre as décadas de 1830 e 1840, quando um vassalo egípcio dos otomanos, Muhammad Ali, e seu filho Ibrahim Paxá romperam com sucesso com a liderança otomana e, conquistando território que se estendia do Egito até o norte de Damasco, afirmaram seu próprio domínio sobre a área. A partir de maio de 1834, os rebeldes tomaram muitas cidades, entre elas Jerusalém, Hebron e Nablus - e o exército de Ibrahim Paxá foi mobilizado, derrotando os últimos rebeldes em 4 de agosto em Hebron. Os palestinos consideravam-se descendentes não apenas de conquistadores árabes do século VII, mas também de povos indígenas que viviam no país desde tempos imemoriais, incluindo os antigos hebreus e cananeus.

Zachary J. Foster argumentou em um artigo de 2015 da Foreign Affairs que "com base em centenas de manuscritos, registos da corte islâmica, livros, revistas e jornais do período otomano (1516-1918), parece que o primeiro árabe a usar o termo "palestino" foi Farid Georges Kassab, um cristão ortodoxo baseado em Beirute". Ele explicou ainda que o livro de Kassab, Palestina, helenismo e clericalismo, de 1909, observou de passagem que "os otomanos palestinos ortodoxos se autodenominam árabes, e são de facto árabes", apesar de descrever os falantes de árabe da Palestina como palestinos ao longo do resto do livro.

sábado, 25 de novembro de 2023

PREC = Período político entre 25 de abril de 1974 e 25 de novembro de 1975



Em 25 de abril de 1975 realizaram-se em Portugal as eleições para a Assembleia Constituinte. O Partido Socialista de Mário Soares foi o partido mais votado com 37,87% [116 deputados]; A seguir o PPD de Sá Carneiro obteve 26,39% [81 deputados]; O PCP teve 12,46% [30 deputados]; O CDS 7,61% [16 deputados]; e o MDP 4,14% [5 deputados]. Mas em julho e agosto desse ano a radicalização ideológica estava instalada. A extrema-direita, praticamente clandestina, a maioria refugiada em Espanha, começou a atacar as sedes do PCP a Norte do país, incendiando-as. O país parecia dividido entre o Norte e o Sul, cuja linha divisória passava algures em Rio Maior. 

Os 4º e 5º governos provisórios de Vasco Gonçalves, apoiado principalmente pelo PCP, recebiam à medida que os dias passavam uma contestação generalizada à direita do PCP que incluía o PS. O Partido Socialista tinha saído do 4º governo em julho depois do caso do Jornal República. Seguiu-se depois a saída do PPD do governo. E a extrema-esquerda chega a pedir a dissolução da Assembleia Constituinte. Em 25 de julho a Assembleia do MFA delibera que o Conselho da Revolução fique sob a sua dependência como órgão consultivo, que não é aceite. Dão-se clivagens ideológicas insanáveis no seio do MFA. O Caso República coincide com a entrevista de Cunhal a Oriana Falacci. Mário Soares e Almeida Santos já tinham abandonado o 4º governo provisório quando aconteceu a tão falada manifestação na Alameda, em 19 de julho, liderada pelo Partido Socialista em que se notabilizou pela sua coragem, Mário Soares.

Em 1 de agosto o 5º governo provisório, com a manutenção de Vasco Gonçalves a primeiro-ministro, ainda não tina sido empossado. Já tinham passado quatro semanas da queda do 4º governo. No dia 7 de agosto o Jornal Novo publica o Documento dos Nove. E em 18 de agosto Vasco Gonçalves, em Almada, profere um discurso que ficou célebre pelo seu comunismo bombástico. No Boletim do MFA, órgão da 5ª Divisão, que está ao lado de Vasco Gonçalves e do PCP, lê-se que a Revolução não tem donos e que o Processo Revolucionário continua firme. José Saramago, por sua vez a dirigir o DN, dando loas a Vasco Gonçalves, tinha feito em julho um saneamento inominável de jornalistas do Diário de Notícias.

Pinheiro de Azevedo, já empossado no 6º governo provisório, em 19 de setembro fala ao povo. Rodeado por Mário Soares e Sá Carneiro, a dada altura rebentam uns petardos no meio da assistência misturada com manifestantes. E é nesta altura que Pinheiro de Azevedo profere a célebre frase: «É só fumaça, o povo é sereno, o povo é sereno, o povo é sereno ... Por esta altura aparecera na imprensa mais umas declarações de Otelo Saraiva de Carvalho, que diz: « As armas roubadas estão em boas mãos». Em 26 de setembro dá-se o ataque à embaixada de Espanha, numa altura em que Franco anunciara a pena de morte para 5 terroristas bascos.

Em 6 de novembro aconteceu o maior debate de sempre, entre Mário Soares e Álvaro Cunhal, numa RTP ainda a preto e branco, um frente a frente que durou 4 horas. E em 13 de novembro aconteceu uma manifestação de operários da construção civil, que cercou o Parlamento onde estava a Assembleia Constituinte reunida. Os deputados ficam sequestrados lá dentro durante 12 horas. A residência oficial do primeiro-ministro, estando ao lado da Assembleia da República, em São Bento, também apanhou de tabela. E mais uma vez, o primeiro-ministro, Pinheiro de Azevedo, fez mais umas declarações a que já se habituava a surpreender. 
E em 20 de novembro Pinheiro de Azevedo, como Primeiro-ministro, suspendeu mesmo a atividade governativa. Em primeiro lugar ameaçou que fazia greve. E com toda a indignação disse que não gostava nada de ser sequestrado. Estava muito chateado e farto de plenários, em vez de governar.

Por esta altura Costa Gomes, falando à população numa manifestação em seu apoio, pela primeira vez pronuncia a palavra "guerra civil". E acrescenta que se oporá com todas a suas forças a uma tal loucura. O Conselho da Revolução demite Otelo do comando da Região Militar de Lisboa e é nomeado, para o  substituir, Vasco Lourenço. E em Rio Maior os agricultores vêm para estrada com tratores e preparam as barricadas.

As Forças Armadas estão dividida. Na Imprensa corre informação e contra-informação. Os rumores e as teorias da conspiração são uma selva de notícias, anunciando golpes e contra-golpes. Uns provenientes da extrema -esquerda, outros provenientes de forças militares conectadas com a extrema-direita. 
No dia 24 de novembro são lançadas então as ações militares da Escola de Tropas Paraquedistas de Tancos. Passada a meia-noite para o dia 25, um dos guardas da casa de armas da BA5, o primeiro-sargento Teodósio, recebe um telefonema a dar conta de um possível golpe de extrema-direita oriundo de Cortegaça. O golpe dos paraquedistas está em marcha. A RTP é ocupada por elementos da Polícia Militar. às 16 horas e 30 minutos do dia 25 é declarado o Estado de Emergência. E às 21:10 o Estado de Sítio.

É então que surge a resposta quando Jaime Neves, a partir da Amadora e comandado por Ramalho Eanes, entra em ação. Em pouco tempo as bases aéreas ficam sob o seu controlo. Ocorreram confrontos entre a força de Comandos liderada por Jaime Neves e a Polícia Militar, o que acabou por soldar-se em três mortos. Segundo a investigadora Maria Manuela Cruzeiro: «os grupos paraquedistas ocuparam as Bases na tentativa de receber apoio do COPCON. A Base Aérea que mais material bélico detinha no dia 25 de novembro era a de Cortegaça, que estava ligada à NATO. Em 26 de novembro a PM é neutralizada. Melo Antunes diz que o PCP é imprescindível à democracia. Em 27 de novembro começam as detenções e os detidos são enviados para o Norte, para Custóias. E Otelo demite-se do COPCOM. 

A posição do PCP no 25 de Novembro é objeto de muita controvérsia. Em diversas obras, foi defendido que "o 25 de novembro tinha sido uma tentativa de golpe por parte do PCP e da esquerda militar e que a direção do PCP, em cima do golpe, teria recuado perante a capacidade de organização militar do Grupo dos 9 e dos setores mais à direita das Forças Armadas". Álvaro Cunhal deu ordem para que o PCP se retirasse de qualquer das movimentações que corriam desde a tarde da véspera. A análise da historiadora Maria Inácia Rezola sobre a participação não tira conclusões sobre a atuação do PCP no golpe, mas aponta para um recuo do PCP e que no fim da tarde do dia 25 "começava a tornar-se óbvia a ausência de uma liderança consensual, de um plano e de uma coordenação das ações dos sublevados".

A esquerda militar havia criado um certo grupo político-militar com ramificações no Conselho da Revolução, COPCON, nos três setores das Forças Armadas e no serviço de inteligência SDCI, liderado por Rosa Coutinho. O PCP, "preparou um plano para resistir a um golpe dos moderados que, segundo previam, ocorreria antes da independência de Angola. No plano civil estaria a Frente de Unidade Revolucionária, o PCP, a Intersindical, a União Democrática Popular, assim como os órgãos de poder popular, e o militar, onde teria um papel a Armada, os paraquedistas e o COPCON. 

No dia da movimentação, o PCP mobilizou as células operárias que liderava, localizadas em múltiplas empresas, onde também estavam contidas a Emissora Nacional e a RTP, e ordenou aos Comités de Defesa da Revolução (CDR) de Lisboa para ficarem vigilantes. O comunicado da Comissão Política do PCP do dia 25 de novembro indicou a sua confiança na vitória da reposição da hierarquia nos quartéis, e não foi um comunicado onde sobre aguardar e analisar a correlação de forças até se tomar uma decisão. No comunicado, é afirmado que "as unidades progressistas perderam posições, apesar de apoiadas corajosamente pelas massas trabalhadoras", e indicou como tática o recuo da esquerda.

Melo Antunes, do Grupo dos Nove, no dia 26 de novembro, disse através de transmissão televisiva "que o PCP é indispensável para construir a democracia portuguesa", posicionando-se contra os setores mais à direita, que pediam a ilegalização do partido. Estes, defendiam a tese 
do recuo, e, acusando o PCP de ter promovido um golpe de Estado, e que teriam recuado no último momento, "abandonando a extrema-esquerda à sua sorte". A retirada do PCP terá sido negociada com Costa Gomes, porque Cunhal percebeu que não podia ganhar.

Em resumo: O 25 de novembro de 1975 é uma data que marca o fim do PREC, com um golpe militar de extrema-esquerda, que independentemente dos apoios que terá tido por parte de certas forças políticas e partidárias, não teve sucesso. Quem deu a ordem para os paraquedistas saírem? É seguro dizer que Costa Gomes, o Presidente da República, mais Melo Antunes, Vasco Lourenço e Ramalho Eanes, em concertação com PS e PPD, conseguiram gerar consensos suficientes para que não se tenha chegado a uma confrontação com derramamento de sangue, ainda que do episódio tenham resultado três mortes, nada comparável com a mortandade de uma guerra civil. E também se pode concluir que o golpe abortado de 25 de novembro de 1975 não pode ser descontextualizado do Processo Revolucionário em Curso desde o 25 de abril de 1974, com o golpe de 11 de março de 1975, e sobretudo agudizado no chamado "Verão Quente" de 1975, durante os sucessivos governos presididos por Vasco Gonçalves, em perfeita sintonia com o Partido Comunista. Até aí, apesar de a Liberdade já não estar em causa, estava garantida, era urgente que se encetassem com firmeza os verdadeiros caminhos rumo à Democracia.

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Fernando Rosas : considera que foi a revolução de 25 de abril que legitimou a democracia e não o contragolpe de 25 de novembro. Do seu ponto de vista é claro que a democracia em Portugal foi conquistada na rua e na revolução, e não foi no 25 de novembro.

Há, a partir de certa altura, uma fuga para a frente no campo da revolução. Uma fuga para a frente que aumenta à medida que vai perdendo terreno. Isso começa com as eleições para a Assembleia Constituinte, que iniciam a sobreposição da legitimidade das urnas sobre a legitimidade revolucionária; na Assembleia de Tancos dão-se grandes mudanças na correlação de forças no seio do Movimento das Forças Armadas (MFA). O partido comunista convoca o Comité Central (CC) para Alhandra, a célebre reunião, nessa altura secreta, para interpretar a evolução dos acontecimentos.

O golpe de 25 de novembro acabou por se transformar num ensaio de movimento militar a partir do SDCI [Serviço de Detecção e Controlo de Informação]. Otelo, embora pressionado para tomar o comando das operações, não aceitou, e foi para casa. Essa espécie de movimento militar foi frustrado. Ficou-se pela ocupação da RTP, da Emissora Nacional, e de alguns pontos da cidade de Lisboa. O PCP também acabou por se demarcar do golpe, apesar de os militantes das bases estarem preparadas para avançar. Cunhal não era pela tomada do poder de baixo para cima. E, portanto, desmobilizou os militantes que tinham sido convocados para as sedes. Os próprios oficiais da marinha próximos do PCP não saíram. Os fuzileiros, a única força que podia fazer face aos comandos, à última hora não avançaram. 

Hoje sabe-se que o próprio Álvaro Cunhal se encontrou com Melo Antunes. O PCP, como força principal do campo da revolução, e um setor mais à esquerda do documento dos nove, concertaram posições. Assim, o PCP continuou no VI Governo Provisório. A Constituição aprovada em abril de 1976 resultou num fruto desse equilíbrio. As principais conquistas de abril ficaram salvaguardadas. Reforma agrária, nacionalizações, comissões de trabalhadores, controle operário - ficou plasmado na Constituição. A revolução de abril teve força para aguentar a democracia, e mais algumas conquistas mais avançadas do processo revolucionário.

Segundo a opinião de Fernando Roas, a democracia tem a sua matriz na revolução, e não no contragolpe militar de novembro. A essência da democracia é revolucionária e não contrarrevolucionária. Existe democracia apesar da revolução ou existe democracia por causa da revolução? Essa é a questão que Fernando Rosas coloca. No momento em que a extrema-direita emerge por toda a Europa e em muitos locais do mundo a estabelecer um novo discurso de legitimidade histórica, naturalmente vai inventar que a democracia surge do contragolpe do 25 de novembro, assevera.
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Segundo Jaime Nogueira Pinto: «Têm-se escrito muitos disparates sobre esse período. Tenta-se basear as coisas em documentos oficiais. O que é sempre limitado nessas coisas, por exemplo, em relação ao Holocausto nunca se encontrou uma ordem escrita para a chamada "solução final". Essas coisas nunca se escrevem em documentos oficiais.» Importantes foram as cinco companhias de comandos (260 homens), duas delas formadas por antigos comandos na reserva que foram convocados pela Associação de Comandos. E também os oficiais da Força Aérea. No Verão de 1975 tinha-se gerado uma aliança desde o Partido Socialista até pessoas de extrema-direita contra o PCP.

A famosa não intervenção dos fuzileiros que teve mão do PCP derivou da posição da União Soviética. O embaixador soviético em Portugal garantiu a Frank Carlucci, o embaixador americano em Portugal, que a União Soviética não queria pôr em causa a divisão das áreas de influência desde 1945. O mundo era bipolar, havia controlo. Os fuzileiros não saíram, porque Álvaro Cunhal sabia que se fossem para a guerra civil, perderiam. Franco morrera a 20 de novembro de 1975, e qualquer guerra civil em Portugal significaria que a transição para a democracia em Espanha poderia ficar comprometida. Se Portugal fosse uma espécie de Cuba na Europa, como Kissinger chegou a insinuar, a Espanha corria o risco de perpetuar o regime de um Estado autoritário. 


segunda-feira, 20 de novembro de 2023

Soljenitsin e o pós-estalinista Khrutchev





Khrutchev não divulgou nenhum documento ao longo da batalha contra os estalinistas que se opunham às suas reformas. Talvez ele não tivesse força suficiente para isso, ou talvez esses documentos acabassem por revelar a sua própria participação na repressão do tempo de Stalin. Em vez disso, Khrutchev usou uma nova tática, ampliando o debate público sobre Stalin para além do Partido, e disseminou-o pelo mundo literário. Parece ter sido essa a razão para permitir o lançamento de “Um dia na vida de Ivan Denisovich”, de Aleksandr Soljenitsin, um romance sobre o Gulag. Aos poucos, nomes banidos começaram a reaparecer em publicações oficiais, sem que se explicasse porque se tinham eclipsado e agora reaparecido.

Graças à sua importância na literatura, e ao papel que desempenhou ao divulgar no Ocidente a existência do Gulag, Aleksandr Soljenitsin certamente merece menção especial na história dos campos soviéticos. Mas a sua breve carreira de autor soviético "oficial", famoso e amplamente publicado, também merece ser contada, pois ela marca um importante momento de transição. Quando Ivan Denisovich foi impresso pela primeira vez, em 1962, o Degelo estava no auge, havia poucos prisioneiros políticos, e o Gulag parecia coisa do passado. No verão de 1965, quando um jornal do partido descreveu Ivan Denisovich como "uma obra indubitavelmente controversa do ponto de vista ideológico e artístico", Khrutchev já tinha sido expulso. Os colegas de partido retiraram-no do poder em 1964, substituindo-o por Leonid Brejnev como primeiro secretário e Alexei Kossygin como primeiro-ministro. 
A quantidade de presos políticos voltou a aumentar a uma velocidade estonteante. Em 1974, quando O Arquipélago Gulag surgiu na Inglaterra - a história do sistema de campos narrada em três volumes por Aleksandr Soljenitsin, ele tinha sido expulso do país e os seus livros só eram publicados no exterior. A instituição dos campos de prisioneiros havia sido firmemente restabelecida e o movimento dissidente estava em plena atividade.

A carreira de Soljenitsin na prisão tinha começado da maneira típica entre os zeks de sua geração. Depois de entrar na escola de oficiais, em 1941, ele lutou na frente ocidental no outono e no inverno de 1943. Tinha escrito algumas críticas a Stalin numa carta enviada a um amigo em 1945 - e foi preso logo depois. Até então um comunista mais ou menos crente, o jovem oficial ficou atordoado com a brutalidade e a crueza com que foi tratado. Mais tarde, ele ficaria ainda mais chocado diante do tratamento agressivo dispensado aos soldados do Exército Vermelho que tinham sido capturados pelos nazis. Em sua opinião, esses homens deveriam ter sido recebidos como heróis.

Nos campos especiais em Karaganda, onde Soljenitsin esteve preso, ele serviu de informador antes de cair em si. Depois trabalhou como pedreiro. Foi essa a profissão que escolheu para Ivan Denisovich, o zek "comum" que protagonizou o seu primeiro romance. Depois da libertação, passou a dar aulas em uma escola de Ryazan e começou a escrever sobre as suas experiências. Isso também não era comum: as centenas de memórias do Gulag que foram publicadas desde a década de 1980 são um testemunho da eloquência e do talento dos ex-prisioneiros soviéticos, entre os quais muitos escreveram em segredo durante anos. No final, o que tornou Soljenitsin verdadeiramente único foi o facto de sua obra ter sido publicada na União Soviética enquanto Khrutchev estava no poder. O romance era bastante direto: registava um dia na vida de um prisioneiro comum. Os leitores atuais - mesmo os russos - podem achar difícil entender porque o livro gerou tanto furor nos meios literários de Moscovo. Mas ele teve o impacto de uma revelação para quem o leu em 1962. Ivan Denisovich descrevia sem rodeios a vida nos campos, um assunto que até então não havia sido discutido em público.

Ao mesmo tempo, o estilo de Soljenitsin - em particular a utilização da gíria dos campos - e a descrição do tédio e do desgosto da vida na prisão contrastavam vivamente com a ficção vazia e falsa que se publicava. O credo oficial da literatura soviética, o "realismo socialista", não era realismo de facto, mas uma versão literária da doutrina política de Stalin. A literatura das prisões não havia mudado desde os dias de Gorki. Se houvesse um ladrão num romance soviético, ele veria a luz e se converteria à verdadeira fé soviética. O herói podia sofrer, mas no final o Partido lhe mostrava o caminho. A heroína podia verter lágrimas, mas assim que aprendia o valor do Trabalho, descobria o seu papel na sociedade.

Ivan Denisovich, ao contrário, era genuinamente realista: não era otimista nem dava lições de moral. O sofrimento dos heróis era inútil. Seu trabalho era extenuante, e eles tentavam evitá-lo. O Partido não triunfava no final, e o comunismo não emergia vencedor. Essa honestidade, tão rara num escritor soviético, foi precisamente o que admirou Tvardovsky, quando disse a Kopelev que a história "não tinha um pingo de falsidade". E essa foi precisamente a qualidade que perturbou muitos leitores, em especial os do establishment soviético. Até mesmo um dos editores da Novyi Mir considerou a franqueza do livro perturbadora. Nos comentários sobre a obra, ele escreveu que "ele mostra a vida por um único ângulo, distorcendo involuntariamente as proporções". Para as pessoas acostumadas a conclusões simplistas, o final do romance parecia terrivelmente aberto e amoral. Tvardovsky desejava publicá-lo, mas sabia que se mandasse uma cópia datilografada aos censores eles a baniriam de imediato. Em vez disso, ofereceu Ivan Denisovich a Khrutchev, para que ele o usasse contra os inimigos. Segundo Michael Scammel, Tvardovsky escreveu um prefácio que apresentava o livro exatamente sob essa luz e começou a distribuí-lo a pessoas que poderiam entregá-lo ao próprio Khrutchev.

Depois de muitas idas e vindas, muita discussão e algumas alterações no manuscrito - Soljenitsin foi persuadido a acrescentar pelo menos um "herói positivo" e a incluir uma subtil condenação ao nacionalismo ucraniano. Finalmente, o romance acabou por chegar a Khrutchev, que o aprovou. Chegou até a elogiar o livro por ter sido escrito "no espírito do XXII Congresso do Partido", o que presumivelmente significa que, em sua opinião, ele iria incomodar os inimigos. Finalmente, o romance apareceu impresso na edição da Novyi Mir - novembro de 1962. "O pássaro está livre! O pássaro está livre", Tvardovsky teria gritado com um exemplar nas mãos. A princípio, o elogio da crítica foi fastidioso, principalmente porque o enredo ia ao encontro da linha oficial do momento. O crítico de literatura do Pravda desejou que daquele momento em diante "a luta contra o culto à personalidade continue a facilitar o aparecimento de obras de arte notáveis pelo valor artístico inesgotável". O crítico do Izvestiya disse que Soljenitsin "havia se mostrado um verdadeiro colaborador do Partido numa causa sagrada e vital - a luta contra o culto à personalidade e suas consequências". 

No entanto, não foi bem essa a reação dos leitores comuns que afogaram Soljenitsin em cartas nos meses seguintes à publicação da Novyi Mir. O paralelo com a nova linha do Partido não impressionou os ex-prisioneiros que lhe escreveram de todo o país. O que aconteceu e que eles ficaram muito satisfeitos de ler algo que refletia a própria experiência e os próprios sentimentos. Pessoas temerosas de deixar escapar uma palavra aos amigos mais próximos de repente se sentiram libertas. Uma mulher descreveu a sua reação assim: "Meu rosto se encheu de lágrimas. Não as enxuguei porque naquelas poucas páginas da revista estava o retrato de todos os dias dos quinze anos que passei nos campos".
Outra carta endereçada ao "Caro amigo, camarada e irmão" Solienitsin dizia: "Lendo sua história eu me lembrei de Sivaya Maska e Vorkuta [...] as geadas e as nevascas, os insultos e as humilhações [...] Eu chorei enquanto lia - os personagens eram todos familiares, como se fossem da minha brigada [...] Obrigado mais uma vez! Continue assim - escreva, escreva".

As reações mais fortes vieram daqueles que ainda estavam presos. Leonid Sitko, que então cumpria a segunda pena, soube da publicação no distante Dubravlag. Quando um exemplar da Novyi Mir chegou à biblioteca do campo, os administradores o retiveram por dois meses. Finalmente, os zeks conseguiram um exemplar e formaram um grupo de leitura. Sitko recordou: «Os prisioneiros ouviam sem respirar. Depois que a última palavra foi lida, houve um silêncio mortal. Então, após dois ou três minutos, a sala explodiu. Todos tinham vivido aquela história dolorosa.»

As próprias lideranças do Partido começaram a ficar muito inquietas. Talvez o retrato honesto que Soljenitsin pintou da vida nos campos tenha sido demais para eles: ele representava uma mudança significativa demais, sua publicação foi rápida demais para homens que ainda temiam que a própria cabeça fosse a próxima a rolar. Ou talvez já estivessem cansados de Khrutchev, talvez pensassem que ele já tinha ido longe demais e usaram o romance de Soljenitsin como desculpa. De facto, Khrutchev foi deposto pouco tempo depois, em outubro de 1964. Seu substituto, Leonid Brejnev, era o líder dos neo-estalinistas - reacionários, oponentes da mudança e do Degelo.

A rapidez da mudança refletia a postura ambivalente da União Soviética em relação à própria história - ambivalência que não foi resolvida até hoje. Para a elite soviética, aceitar que o retrato de Ivan Denisovich era autêntico significava admitir que pessoas inocentes haviam sofrido inutilmente em vão. Se os campos fossem realmente estúpidos, e dispendiosos, e trágicos, então a União Soviética também era estúpida, e dispendiosa, e trágica. Para os cidadãos soviéticos fossem eles membros da elite ou simples camponeses, era e ainda é difícil aceitar que sua vida foi guiada por um amontoado de mentiras.

No final - por meio de táticas que viriam a ser repetidas anos depois - o establishment recorreu a insultos pessoais. Em uma reunião do Comité do Prêmio Lenine, o chefe da Komsomol, Sergei Pavlov, levantou-se e acusou Soljenitsin de se ter se rendido aos alemães durante a guerra e de ter sido condenado como criminoso. Tvardovsky fez Soljenitsin ir buscar a certidão de reabilitação, mas era tarde demais. Ele continuou escrevendo, mas nenhum de seus romances subsequentes foi publicado na União Soviética - pelo menos não legalmente - até 1989. Em 1974, foi expulso do país e acabou por fixar residência em Vermont. Até à era Gorbatchev, apenas um minúsculo grupo de cidadãos soviéticos - aqueles que tinham acesso a cópias clandestinas datilografadas ou exemplares contrabandeados - lera O Arquipélago Gulag, o seu relato do sistema de campos de trabalho e concentração.

domingo, 19 de novembro de 2023

Duas bíblias com iluminuras, editadas na Corunha: Bíblia de Kennicott + Bíblia de Cervera




Bíblia de Kennicott

A Bíblia de Kennicott, é uma cópia da Bíblia em língua hebraica manuscrita na cidade da Corunha em 1476. É uma iluminura obra prima da ilustração medieval. Manuscrito sefardita, muito luxuosamente ilustrado, redigido pelo calígrafo Moisés Ibn Zabarah e ilustrado por José ibne Haim. O seu nome deriva de 
Benjamin Kennicott, cónego da catedral da Igreja de Cristo de Oxford. Foi adquirido pela Biblioteca Bodleian em 1872. Na época, a cidade galega da Corunha contava com uma próspera comunidade judia que, segundo Cecil Roth, era uma das comunidades hebraicas mais ricas da Península Ibérica. Esta comunidade judia da Corunha possuía várias bíblias escritas em língua hebraica, entre as quais é citada uma outra Bíblia conhecida por Bíblia de Cervera, produzida por volta de 1300 pelo escriba Samuel ben Abraão ibn Natan, decorada pelo iluminador francês Joseph Hazarfati, e com micrografias de um certo Abraão ibn Gaon. A Corunha, para além da prosperidade económica, tinha uma relevante atividade cultural, destacando a maior escola de ilustradores judeus da Europa.



Bíblia de Cervera

Sucede que em 1492 os Reis Católicos assinaram em Granada o Decreto de Alhambra. Os judeus e pessoas que professassem a religião judaica tinham que abandonar a Espanha. Ou então só tinham como alternativa converter-se ao cristianismo. Este facto provocou o exílio de muitas famílias hebraicas. Foi assim que apelidos sefarditas começaram a aparecer por diferentes partes da Europa, bem como na Turquia e Palestina. Todavia, já em 1478, o Papa havia autorizado os monarcas espanhóis a nomear inquisidores. Nessa altura os judeus não convertidos não ficaram preocupados visto que a Inquisição só lidava com cristãos conversos, e não propriamente com os judeus. De facto, quando a Inquisição começou a atuar em Sevilha, houve de imediato uma fuga em massa de conversos para cidades e aldeias mais distantes, fora do alcance dos inquisidores. Mas também é certo que os próprios judeus caíram na tentação de se vingar de ex-vizinhos que tinham deixado a religião. Alguns judeus não perdoavam os apóstatas, a ponto de se disporem a intervir e prestar informações sobre eles aos inquisidores. É improvável que, quando Fernando e Isabel pediram ao papa Sisto IV que autorizasse a nomeação de inquisidores, alguém, inclusive os monarcas, tenha previsto a máquina de tortura monstruosa em que se tornou a Inquisição.

A Inquisição tinha independência para julgar, constituindo um Estado dentro do Estado, não subordinado a ninguém exceto ao Papa, à Coroa e a seu próprio conjunto de normas burocráticas. Além dos inquisidores e dos membros dos tribunais de interrogatório, havia um imenso exército de “irmãos do Santo Ofício” que era responsável pelo trabalho burocrático que oleava a máquina de terror. Por exemplo, eram tantas as normas, planeadas com esmero, que prescreviam a aplicação da tortura. D
epois que um inquisidor ter sido assassinado na catedral de Saragoça, por um grupo desesperado de conversos, Tomás de Torquemada nunca mais viajou sem ser escoltado pela sua própria segurança, uma espécie de exército em miniatura. 
Concedia poderes praticamente ilimitados para se extrair por tortura uma confissão  comprometedora. 

Surgiu assim na história o Estado dos denunciantes: criados, parentes e vizinhos eram intimidados e adulados para se tornarem informadores e espiões. E a Inquisição também inventou, num grau jamais visto desde os romanos, o espetáculo de punição pública como diversão de massa. Os dias de auto de fé foram declarados dias festivos e feriados, para que o maior número possível de pessoas pudesse assistir à procissão dos condenados impenitentes que não se reconciliavam com a Igreja. Eles caminhavam pelas ruas descalços, com o chapéu cónico e o sambenito, hábito em forma de saco, decorados com chamas, pois, como os inquisidores hipocritamente lembravam aos infelizes, era melhor serem consumidos pelas chamas neste mundo do que condenados a queimar no inferno por toda a eternidade. A aristocracia, e às vezes até o rei e a rainha, comparecia a essas cerimónias elaboradas, mordiscando guloseimas e levando uma caixinha de perfume ao nariz quando o cheiro se tornava desagradável. Quando se começou a exumar os ossos de hereges, muitas vezes às centenas, e queimá-los junto com os corpos vivos, o ar das cidades de imolação era um espesso manto de cheiro nauseabundo.

O jovem Isaac Braga deve ter-se sentido fascinado, quando em 1476 contemplou pela primeira vez o resultado da sua encomenda: a Bíblia de Cervera. Um texto bíblico manuscrito e iluminado por volta do ano1300. Foi executada em Cervera, província de Lérida, que atualmente se encontra na Biblioteca Nacional de Portugal. 




A obra encontrava-se no início do século XIX nos Países Baixos, para onde muitos judeus de Portugal tinham emigrado durante o reinado de Dom Manuel I, principalmente depois do Massacre de Lisboa de 1506. Entrou em Portugal por iniciativa de António Ribeiro dos Santos, Bibliotecário-Mor da Real Biblioteca Pública da Corte, fundada em 1796.Um livro paradisíaco, viajara muito, passando algum tempo em Córdoba no fim do século XIV, antes de ir parar à Corunha à família de Salomão Braga, pai de Isaac Braga 

A Bíblia de Cervera, a que os hebreus preferem chamar Tanakh, é a coleção dos principais textos sagrados do judaísmo, para além do tratado Sefer Mikhlol, do letrado David Kimchi, sobre gramática hebraica bíblica, que o escriba, Moisés ibn Zabara, fez questão de incluir. Pela antiguidade e excelência do trabalho é a mais importante obra do género existente em Portugal, e das mais importantes a nível mundial. Foi peça central durante a exposição: Medieval Jewish Art in Context no Metropolitan Museum of Art, de 22 de novembro de 2011 a 16 de janeiro de 2012. 

Se em muitos aspetos a Bíblia de Cervera tem um ar encantadoramente arcaico, isso ocorre também porque o cliente e o escriba queriam, ao que se presume, dizer alguma coisa a respeito da vitalidade da tradição. O trabalho fulge com cores intensas e brilhantes de ouro e prata, lápis-lazúli e encarnado, como também de impetuosa animação narrativa com falanges de gatos a darem caça aos camundongos inimigos. Seria bom imaginar aquele júbilo do jovem Isaac com a Bíblia de Cervera na posse da família Braga, sem o mau augúrio do que os Reis Católicos estavam a cogitar. Em 1483, Fernando de Aragão e Isabel de Castela, unidos como rei e rainha da Espanha desde 1474, levavam por diante a grande extinção da vida judaica na Hispânia sefardita. Houve promotores, como foi o caso do dominicano Vicente Ferrer e do franciscano Alonso de Espina.

Ambos estavam convencidos de que os cristãos-novos sempre estariam tentados a se reconverter ao judaísmo enquanto houvesse judeus por perto. Como a Igreja estava mortalmente ameaçada pela presença desses cristãos de fé vacilante em seu seio, os Reis Católicos fizeram com que todos os judeus fossem expulsos da Andaluzia (Córdoba e Sevilha), considerada a província, como eles diziam "mais infetada pela peste judaizante". Toledo tinha-se tornado um dos lugares mais fecundos da coexistência cultural entre o islão e o judaísmo. Era a filosofia e a ciência, bem como a literatura da cultura árabe e hebraica. 

Os judeus tiveram que se retirar, quase da noite para o dia, de cidades onde estavam radicados havia muito tempo. Foi dado apenas um prazo de oito dias. As autoridades designaram novas áreas onde eles teriam de residir, quase sempre na periferia da cidade, onde se encontravam os bairros mais pobres e sórdidas das cidades. Para além disso eram deslocados deliberadamente para zonas distantes das lojas e oficinas onde trabalhavam e comerciavam. A intenção era arruiná-los para os obrigar à conversão. Eles foram forçados a vender as suas propriedades ao peço da chuva.

Talvez não fosse isso que a família Braga na Corunha, e outros judeus em Toledo, Córdoba, Saragoça e Girona, estivessem à espera dos novos monarcas. Isso era típico de reinados com soberanos fracos, o que não parecia o caso, com 
Aragão e Castela unidos, e Fernando e Isabel aparentemente simpáticos a conversos. Mas a expulsão era o sonho dos cristãos fanáticos. Como o reino poderia se haver sem o dinheiro judeu quando estava para lançar uma cruzada contra o reino fortificado e obstinadamente inconquistável de Granada? Assim, embora as ideias do confessor de Isabel, Tomás de Torquemada, fossem bem conhecidas e assustadoramente alinhadas com a solução judaica de Espina, nada havia na década de 1470 que induzisse pânico nos judeus, como a expulsão do reino de Espanha.

Desde 2015, a comunidade judia galega, principalmente mediada pela Comunidade Judia Bnei Israel da Galiza, reclamou o regresso do manuscrito original da 
Bíblia de Kennicott, à cidade da Corunha, sendo um dos assuntos tratados pela comunidade judia galega durante a visita à cidade do tesoureiro da delegação europeia da União Mundial do Judaísmo Progressista David Pollak em 2015. A Corunha conta com um exemplar fac-símile que foi adquirido pela Junta da Galiza e que se encontra exposto na Academia de Belas Artes. A Comunidade Bnei Israel defende a devolução à cidade do manuscrito fundamentando na justiça moral e histórica e o valor histórico que o livro tem para a cidade.


quarta-feira, 15 de novembro de 2023

O que diria Hannah Arendt hoje em Jerusalém




Hannah Arendt ingressa na Universidade de Berlim em 1924, numa época de grande efervescência intelectual na República de Weimar. Lá foi aluna de Heidegger e Jaspers, grandes influências em sua vida e obra. Forçada à emigração quando Hitler ascende ao poder, primeiro vai para França, e depois para os Estados Unidos, entrando na New School for Social Research, em Nova York, como docente. 
Foi presa pela polícia alemã em 1933 por suas atividades ilegais no envolvimento com o movimento sionista, e investigações sobre o antissemitismo na sociedade alemã. Refugiada sem documentos, no Campo de Gurs em França, daí fugiu para Lisboa a fim de obter visto de ingresso nos Estados Unidos da América. Morre em 1975 de um ataque cardíaco, quando jantava com amigos. Os seus convivas para o jantar eram o seu velho amigo, o historiador Salo W. Baron, e sua mulher Jeanette. Como se lê no depoimento de Jeanette Baron, o tema do jantar foi a situação de Israel e o projeto de publicação, a ser patrocinado pela Jewish Social Studies, de uma coletânea de ensaios do historiador judeu Phillip Friedmann, falecido em 1960 e que Hannah Arendt considerava “o pai da historiografia do holocausto”.

A Heidegger Hannah Arendt deve a sua visão da relação entre o ser e a temporalidade. E também é tributária da influência de Karl Jaspers. Só se dispôs efetivamente a fazer uma crítica profunda a Heidegger naquilo que veio a ser 'The life of the mind', mais precisamente em 1974, quando reviu os textos de suas “Gifford lectures” e estava certa de que Heidegger, aos 85 anos, velho e próximo da morte, não mais a leria. O início de seu contacto com Karl Jaspers, também o deve a Heidegger. Tal encontro só aconteceu depois de ter seguido os cursos de Husserl em Freiburg. Em Jaspers, Hannah Arendt encontrou uma personalidade de excepcional estatura moral, em plena maturidade intelectual e que não foi apenas o diretor de sua tese de doutoramento sobre Santo Agostinho, defendida e apresentada em Heidelberg. Foi também, e sobretudo, a pessoa que, através de sua atitude exemplar nos tempos obscuros dos desastres morais do nazismo, permitiu a Hannah Arendt, posteriormente, reconciliar-se com aquela dimensão da tradição germânica que era legitimamente sua. Daí o papel que Hannah Arendt sempre lhe atribuiu, com filial reverência, gratidão e amizade, de esclarecedor das coisas e de orientador em matéria de discussão racional. Colaboraram intelectualmente de maneira intensa e permanente, depois da Segunda Guerra Mundial, e Hannah Arendt sentiu a morte de seu mestre em 1969, como Jaspers também sentira a de Max Weber em 1920. 

A efervescência e a criatividade intelectual da cultura da República de Weimar é algo que não pode ser ignorado na obra de 
Hannah Arendt. Ela deve à universidade alemã do tempo de estudante o seu método: uma espécie de fenomenologia, que assume a palavra como ponto de partida, ao detectar na historicidade dos seus significados o reportório das percepções passadas. Essa hermenêutica não se perde, no entanto, em abstrações conceptuais, por força do seu gosto pelo concreto. Ela se vê complementada pela análise dos factos. Estes, na metodologia de Hannah Arendt, iluminam o passado e esclarecem o presente sem a camisa-de-força de rígidos determinismos. São estudados como cristalizações percebidas como uma organização de relações inteligíveis, próprias a um conjunto histórico e a uma sucessão de acontecimentos. É o caso, por exemplo, do antissemitismo e do imperialismo totalitário.

Com efeito, a tradição da vida contemplativa, na qual Hannah Arendt se formou, é a do distanciamento das coisas como condição de reflexão. Esse distanciamento, no entanto, afasta o filósofo da experiência do mundo e tende a nele provocar uma visão de cima e de fora da política, que distorce a realidade. Hannah Arendt não incidiu nesse equívoco porque se viu confrontada com o mundo por força da questão judaica — tema sobre o qual começou a pensar, efetivamente, desde 1926, quando conheceu Kurt Blumenfeld numa conferência sobre sionismo em Heidelberg, promovida pelo seu amigo e colega Hans Jonas.

Kurt Blumenfeld (1884-1963) foi uma eminente figura do sionismo alemão, cuja análise sobre as dimensões psicológicas e sociológicas da resposta judaica ao antissemitismo marcaram Hannah Arendt e aguçaram o seu sentido de identidade. Converteu-se, a partir desse encontro em 1926, num grande amigo e interlocutor, a quem Hannah Arendt muito deve em matéria de análise política. Esse débito foi sempre reconhecido, inclusive publicamente, quando ela dedicou à sua memória a edição francesa, que é de 1973, de seu livro Sobre o antissemitismo que constitui a primeira parte de As Origens do Totalitarismo.

Hannah Arendt nunca se sentiu talhada, por temperamento e inclinação, para a vida pública. Experimentou, no entanto, a ação graças à sua militância na política judaica, sobre a qual largamente refletiu. Testemunham sua militância as atividades que exerceu na França, na década de 1930, como uma das responsáveis pela imigração de jovens judeus para a Palestina (Youth Aliyah) e nos Estados Unidos, na década de 1940 e início dos anos 1950, nas suas funções como diretora da Conference on Jewish Relations e diretora executiva da Jewish Cultural Reconstruction, além de suas responsabilidades intelectuais na Schocken Books, importante editora nova-iorquina, especializada em temas judaicos. Testemunham a sua reflexão não apenas as discussões sobre a questão judaica e o antissemitismo que permeiam As Origens do Totalitarismo, ou o polémico livro sobre o processo Eichmann e a banalidade burocrática do mal no regime nazi, como também a biografia de Rahel Varnhagen e muitos artigos esparsos sobre política e identidade judaicas, hoje em parte recolhidos no livro postumamente editado em 1978 por Ron A. Feldmann intitulado The Jew as Pariah.

O holocausto e o genocídio dos judeus pelos nazis determinaram a visão de vocação universal de Hannah Arendt sobre o mal e a sua pesquisa do vínculo entre o bom homem e o bom cidadão. Daí a pergunta que informa a sua reflexão: como construir uma polis em que o homem — qualquer homem — não seja visto como supérfluo? A liberdade e a justiça, dizia Hannah Arendt no seu documento de 1942, são os princípios da política. Esta, como condição de dignidade, exige a pluralidade e requer a rejeição da ação vista apenas como um processo de meios e fins. Com efeito, o entendimento da ação como um jogo de meios e fins estrutura uma relação manipulativa, que aguça interações do tipo dominantes/dominados e provoca nas lideranças, mesmo nas melhores, uma perda do senso comum. O senso comum só pode subsistir numa partilha de valores compartilhados em liberdade e pensamento.

Hannah Arendt, como ela mesma disse numa carta de 1963 a Gershom Scholem, a propósito da polémica em torno de seu livro sobre Eichmann, não foi uma intelectual que teve a sua origem na esquerda alemã. Teve, no entanto, acesso privilegiado às experiências e às pessoas da esquerda alemã. O primeiro marido de Hannah Arendt foi Günther Anders, com quem casou em 1929 e de quem se separou em 1936. Günther Anders — um intelectual de talento que se doutorou com Husserl e cujos projetos de carreira universitária, em Frankfurt, esbarraram na má vontade de Adorno — acabou se convertendo em jornalista incumbido da secção cultural do Börsen-Courrier, de Berlim, graças ao apoio inicial de Brecht. 
É depois de 1936 o início do romance de Hannah Arendt com Heinrich Blücher, que veio a ser o seu segundo marido e de quem enviuvou em 1970.

O círculo de amigos de Günther Anders em Berlim era integrado por artistas, jornalistas e intelectuais que gravitavam em torno do Partido Comunista. Esse círculo complementava os contactos de Hannah Arendt, que na época frequentava os círculos sionistas onde era conhecida pela pouco sionista alcunha de Palas Atenas. Datam de 1931 as primeiras leituras de Hannah Arendt de Marx e Trotski e o seu interesse pela cena contemporânea. Hannah Arendt havia sido apresentada a Brecht e a Arnold Zweig por Anders. E graças à amizade com Raymond Aron, frequentou os célebres seminários de Alexandre Kojève sobre Hegel na École de Hautes Études, onde conheceram Sartre, de quem nunca foram próximos, e Alexandre Koyré, que posteriormente se tornou grande amigo de Hannah Arendt. Anders era primo distante de Walter Benjamin e o casal intensificou relações quando já tinham saído da Alemanha e viviam todos em Paris. 

Em 1936 Hannah Arendt começou a participar de um grupo de estudos de pessoas formadas na escola marxista da teoria e da práxis. Esse grupo, que geralmente se reunia no apartamento de Walter Benjamin, 10 Rue Dombasle, incluía, além do próprio Benjamin e ocasionalmente seus colegas, membros do Institut für Sozialforschung, de Frankfurt: Erich Cohn-Bendit, advogado e pai do famoso Daniel Cohn-Bendit da revolução estudantil francesa de maio de 1968; o psicanalista Fritz Fränkel; o pintor Karl Hendenreich; Chanan Kienbort, o único judeu da Europa oriental entre esses berlinenses, e Heinrich Blücher, que ao contrário de Anders, não era escritor. Vinha de família proletária, tinha sido spartaquista e membro do Partido Comunista alemão e era, naquela época, um refugiado político sem trabalho e documentos. Blücher — um autodidata de forte personalidade, sedutor nas suas relações com as mulheres, grande orador e conversador e que nos Estados Unidos virou professor do Bard College — marcou decisivamente a vida e a obra de Hannah Arendt. Intelectualmente, ela deve ao pensamento político e à observação histórica de Heinrich Blücher a sua visão cosmopolita, pois, antes do seu encontro com ele, a sua preocupação política concentrava-se na questão judaica. Essa afirmação, que é da própria Hannah Arendt numa carta a Jaspers, dez anos depois de seu encontro com Blücher,

Hannah Arendt, em 27 de junho de 1968, escreveu uma carta de apoio a Daniel Cohn-Bendit, dizendo-lhe que seu pai, um companheiro e amigo do casal, Erich Cohn-Bendit, teria visto com satisfação as atividades do filho. E oferece ao jovem revolucionário, caso necessitasse, auxílio e dinheiro. Uma revolução não é uma omelete para a qual se quebram ovos impunemente. Daí a brilhante crítica de Arendt, no seu estudo sobre a violência, a Marx, Sorel e Sartre, e a ênfase que dá à efetividade da ação não violenta e ao poder visto não como força, mas sim como um recurso que deriva da criatividade da ação conjunta de homens livres.

O primeiro curso de Hannah Arendt como professora na New School for Social Research, de Nova York, em 1967, intitulava-se “Experiências políticas do século XX”. 
Durante dezoito anos — de 1933, data da fuga da Alemanha nazista, a 1951, ocasião em que se converteu em cidadã americana — Hannah Arendt foi, juridicamente, uma apátrida. A experiência da privação da cidadania — que significa a perda do direito a um espaço público em virtude da inexistência do vínculo jurídico com um Estado — marcou muito o modo de ser de Hannah Arendt. Quando as pessoas não pertencem a uma comunidade política, não têm mais direitos humanos. Na inexistência da tutela jurídica organizada, são os acidentes da simpatia, a força da amizade ou a graça do amor os únicos elementos que oferecem a um refugiado a base precária que confirma a sua dignidade humana. Hannah Arendt tinha a vocação da amizade, que a experiência de refugiada, acima mencionada, aguçou e reforçou. O casal Blüncher organizou e manteve, em torno de si, uma tribo de amigos. Estes incluíam, na condição de predecessores, a amiga de adolescência de Hannah, Anna Mendelsohn Weil — a quem a biografia de Rahel Varnhagen é dedicada — e o companheiro de juventude em Berlim de Heinrich, o compositor e poeta Robert Gilbert; abrangia os amigos da Europa, transplantados para os Estados Unidos, como o filósofo Hans Jonas e o eminente especialista de relações internacionais Hans Morgenthau; e incorporava também os que, nos Estados Unidos, foram se agregando, por força das afinidades, filosóficas, literárias ou políticas, como Randall Jarrell, Alfred Kazin, Dwight MacDonald, Philip Rahv, Robert Lowell, Harold Rosenberg, J. Glenn Gray e Mary McCarthy. 

Os manuscritos de Walter Benjamin, que haviam sido confiados a Heinrich Blücheros, foram entregues a Adorno, em Nova York, por vontade de Benjamim. A demora de Adorno em publicar os manuscritos de Benjamin — que só foram reunidos em livro em 1955 — e de quem Hannah Arendt não gostava, desde o tempo em que dificultou a carreira universitária de seu primeiro marido, Günther Anders, em Frankfurt, irritou-a profundamente. Ela também se ressentia do facto de que, em vida de Benjamin, os frankfurtianos o consideravam um mau marxista, não suficientemente dialético, tendo Benjamin revisto alguns de seus textos para apaziguá-los. É esse o contexto, que não discutiu publicamente, a partir do qual, com admiração combinada a lealdade, ela editou, em 1968, um volume em inglês de textos de Benjamin — Illuminations — para o qual escreveu um fundamental e inspirado estudo introdutório, também incluído neste livro. Em 1975, ano de sua morte, em plena redação de The life of the mind, Hannah Arendt estava trabalhando na edição, em inglês, de um segundo volume de textos de Benjamin — Reflections.

É ainda a amizade, sob o signo da lealdade, que fez Hannah Arendt preparar e apresentar, em 1955, com importante estudo introdutório — igualmente presente neste livro —, a edição em alemão, publicada na Suíça, dos ensaios do romancista e pensador austríaco Hermann Broch. Hannah Arendt conheceu Broch em Nova York, em 1946, e ficaram amigos próximos até sua morte, em 1951. Hannah Arendt o admirava sobretudo como romancista, considerando-o uma espécie de elo entre Proust e Kafka. Foi, sem dúvida, no mesmo espírito de lealdade e amizade que Mary McCarthy editou os manuscritos de Hannah Arendt, preparando a edição póstuma do seu testamento filosófico: The life of the mind. Enquanto modo de ser, Hannah Arendt sempre se sentiu constrangida em ser tida como uma mulher excepcional. A posição de exceção lembrava-a da situação de alguns judeus na sociedade europeia do século XX, que ela estudou em 'As Origens do Totalitarismo'.

Hannah Arendt tinha, no campo dos amores, a abertura de quem viveu em Berlim na época da República de Weimar. 
Sempre discreta nesses assuntos, revelou, privadamente, uma simpatia e uma boa vontade não convencional para com a vida e os amores mais complexos do seu círculo de amigos e até mesmo, embora com algumas nuvens, do seu próprio marido. Para Hannah Arendt a velhice é o tempo da meditação. Não é acidental, por isso mesmo, que seu último livro tivesse sido uma volta à vida contemplativa e um ajuste com a tradição filosófica da qual se originou. Hannah Arendt sempre viu o reconhecimento público como uma tentação que dificulta o juízo. Não era, evidentemente, uma pessoa fácil, mas foi sem dúvida uma personalidade fascinante. Sempre teve a capacidade de maravilhar-se diante do espetáculo do mundo.

terça-feira, 14 de novembro de 2023

Setembro de 1939, soldados alemães passam a fronteira rumo a Varsóvia



Enquanto em Berlim, logo de manhã, o dia se mostrava cinzento e abafado, já os aviões de guerra sulcavam o céu em direção aos bombardeamentos na Polónia.  Nuvens pairavam sobre a cidade, oferecendo proteção contra bombardeios, que eram esperados, mas não vieram. O povo nas ruas mantinha-se calmo, apesar das notícias pela rádio serem tonitruantes. O povo alemão ainda estava atónito, ao levantar-se naquela primeira manhã de setembro, ao achar-se envolvido numa guerra que eles estavam convencidos de que o Führer evitaria. Não podiam acreditar que tal coisa estivesse a acontecer. 

As ruas estavam desertas quando o chefe nazi saiu da chancelaria, pouco antes das 10h, para dirigir-se ao Reichstag a fim de falar à nação sob os graves acontecimentos, que ele mesmo provocara deliberada e insensivelmente. Até mesmo os membros do Reichstag, que na maioria eram meros autómatos, vendidos ao partido nazi, não encontraram forças para demonstrar entusiasmo, quando o ditador apresentou as suas explicações sobre os motivos pelos quais a Alemanha estava em guerra a partir daquela madrugada. Os aplausos foram moderados. A explicação sobre as razões alegadas pelo aliado italiano para eximir-se da obrigação automática de vir em seu auxílio não convenceu sequer aquele auditório fantoche.

O ataque à estação de rádio alemã em Gleiwitz tinha sido executado pelos homens da S.S., vestidos com uniformes polacos sob o comando de Naujocks. Hitler invocava esse facto para justificar a sua cínica agressão contra a Polónia. Na verdade, logo nos primeiros comunicados o Alto Comando alemão empregava o termo “contra-ataque” ao referir-se às operações militares. Até Weizsäcker se esforçou para cooperar nesta simulação. Nesse dia, do Ministério do Exterior expediu uma circular a todas as missões diplomáticas alemães no exterior, instruindo-as sobre o modo de proceder: «Defendendo-se de ataques polacos, tropas alemãs entraram em ação. Essa ação não devia ser descrita como guerra, mas apenas como manobras necessárias em virtude dos ataques polacos.» Hitler difundiu também a sua mentira sobre os soldados alemães, que sabiam muito bem quem fizera o ataque na fronteira polaca.

Numa grandiosa proclamação ao exército alemão, no dia 1 de setembro, o Führer disse que o Estado polaco havia repelido o acordo pacífico que era do seu desejo. A série de violações da fronteira, intolerável para uma grande potência, provava que a Polónia não queria mais respeitar as fronteiras do Reich. Mas, ao menos por uma vez, naquele dia, Hitler perante o Reichstag disse a verdade. Não pedia a nenhum alemão que fizesse mais do que ele mesmo sempre esteve pronto a fazer durante os quatro anos. A partir daquele momento ele seria o primeiro soldado do Reich. Não deixaria a farda até ao dia da vitória. Caso contrário, sucumbiria com a Alemanha. Num trecho do discurso, Hitler apontou Göring como seu sucessor, caso algo lhe acontecesse.

Hitler não estava de modo algum convencido de que teria de combater a Inglaterra. Depois do meio-dia as colunas alemãs haviam penetrado vários quilómetros no território polaco e avançavam rapidamente. A maioria das cidades, incluindo Varsóvia, tinha sido bombardeada. Era grande o número de civis mortos sob os bombardeamentos. Mas àquela hora, ainda não havia nenhuma reação vinda de Londres. No entanto, de Paris, tinham vindo pronunciamentos de que a Inglaterra e a França honrariam, prontamente, a palavra empenhada com a Polónia.

Henderson, o embaixador inglês transmitira docilmente a Londres as mentiras de Göring dizendo que os polacos começaram o ataque. Hitler, porém, não chamou Henderson depois de sair do Reichstag, e por esse motivo o embaixador sentia-se um tanto desanimado. Mas não completamente. Às 10:45 transmitiu por telefone outra mensagem para Halifax. Uma nova ideia nascia no seu cérebro fértil e confuso, quando disse pelo telefone de que, embora julgasse pouco provável a sua realização, no seu entender, a única esperança de paz residia na possibilidade de o marechal polaco, Smigly-Rydz, anunciar a sua decisão de ir imediatamente à Alemanha, como soldado e plenipotenciário, para discutir com o marechal-de-campo Göring toda a questão. Parece que a este singular embaixador inglês não ocorreu a hipótese de que o marechal Smigly-Rydz poderia estar agora ocupadíssimo na tarefa de repelir o maciço e injusto ataque alemão. Também não lhe ocorreu que uma viagem do marechal polaco a Berlim como plenipotenciário, caso pudesse abandonar os seus afazeres nesta altura dos acontecimentos, seria o equivalente a uma rendição.

Dahlerus, o embaixador sueco, mostrava-se bem mais ativo que Henderson neste primeiro dia do ataque dos alemães à Polónia. Às 8h fora encontrar-se com Göring. Este disse-lhe que “a guerra irrompeu porque os polacos atacaram a estação de rádio em Gleiwitz e dinamitaram a ponte perto de Dirschau”. O sueco imediatamente telefonou ao Ministério do Exterior, em Londres, para transmitir estas notícias que de acordo com informações recebidas, os polacos tinham atacado a Alemanha. Idêntica informação seria dada pelo embaixador de Sua Majestade em Berlim, por telefone, duas horas depois. Um memorando secreto do Ministério britânico de Relações Exteriores regista o telefonema do sueco às 9:05h. Imitando Göring, Dahlerus persistia em dizer a Londres que os polacos estavam sabotando tudo. Ele tinha provas de que os polacos jamais pensaram em negociar.

Às 12:30h, Dahlerus estava novamente diante do telefone de longa distância, em comunicação com o Ministério do Exterior. Desta vez conseguiu falar com Cadogan. Acusou novamente de sabotarem ao dinamitarem a ponte de Dirschau. E sugeriu voar mais uma vez a Londres em companhia de Forbes. Mas o inflexível e implacável Cadogan estava farto de Dahlerus, principalmente agora que a guerra irrompera, e limitou-se a dizer ao sueco que agora nada mais poderia ser feito. Mas Cadogan era apenas o subsecretário dos Negócios Exteriores, e nem sequer pertencia ao gabinete. Dahlerus insistiu em que a sua sugestão fosse submetida à consideração do gabinete, e com arrogância disse a Cadogan que voltaria a telefonar dentro de uma hora. Assim o fez, e obteve a sua resposta. Qualquer ideia de mediação, disse Cadogan, enquanto as tropas alemãs invadem a Polónia, está completamente fora de questão. 

O único meio de frear a guerra seria: 1) Que as hostilidades fossem suspensas; 2) Que as tropas germânicas se retirassem imediatamente do território polaco. Às 10h, o embaixador polaco em Londres, conde Raczynski, procurou lorde Halifax comunicando oficialmente a agressão alemã. E acrescentou: «Que era um caso tipicamente previsto pelo tratado». O secretário do Exterior respondeu que não duvidava desses factos. Às 10:50h solicitou a presença, no Ministério do Exterior, de Theodor Kordt, o encarregado de negócios alemão, e indagou se tinha alguma informação a dar. Kordt retorquiu que não só carecia de informações sobre um ataque alemão à Polónia, como também não tinha instruções de espécie alguma. Em seguida, Halifax declarou que os relatórios que recebera criavam uma situação muito séria. Mas não arriscou a dizer algo mais do que isso. Kordt transmitiu, por telefone, esta informação para Berlim às 11:45h. Ao meio-dia, Hitler convenceu-se que tinha razão, quando disse que a Inglaterra não iria entrar na guerra. Mas tudo isso, iria ser sol de pouca duração.