quinta-feira, 29 de abril de 2021

Deepfakes


Um exemplo de Deepfake:



Deepfake é um neologismo em língua inglesa, uma amálgama de falso e profundo, para denotar o que agora a inteligência artificial faz quando coloca num vídeo ou numa fotografia a figura de uma pessoa, inclusivamente a falar com a a sua voz mas o que outro disse, com o objetivo de um embuste. Portanto, enganar-nos, umas vezes por diversão apenas, outras vezes com maldade com intenção de prejudicar alguém. Ou seja, a criação de vídeos falsos para nos convencer que uma certa pessoa disse uma coisa, sem que de facto o tenha dito. E geralmente diz coisas para o comprometer ou deixá-lo ficar mal perante a opinião pública.

Deepfakes e FakeNews são parentes. E o fenómeno em si não é recente. O que é recente é a utilização das novas tecnologias que utilizam os algoritmos da Inteligência Artificial. Não é de agora o apetite pela divulgação de notícias falsas como se fossem verdadeiras. Aliás, o termo FakeNews, já existe desde o final do século XIX, segundo o dicionário Merriam-Webstar. Mas a sua popularização só apareceu depois da Internet. As FakeNews na Internet espalham-se seis vezes mais rápido do que as notícias verdadeiras nas plataformas das redes sociais. Alguns jornalistas e canais de comunicação têm-se dedicado com afinco a desmentir textos falsos ou divulgações enganadoras acompanhadas de imagens manipuladas, tanto fotográficas como vídeos. Mas teria de ser ainda muito mais. São especificamente os vídeos manipulados por inteligência artificial que passam melhor porque pouca gente acredita ser possível uma manipulação tão perfeita. Mas é real essa possibilidade chamada Deeepfake, que é capaz de clonar a voz de uma pessoa.

A partir do desenvolvimento desta tecnologia, naturalmente, passou-se a utilizar essa inovação tecnológica para a prática de atentados moralmente reprováveis. Por ser uma recente inovação tecnológica, não existe legislação específica que nos proteja dela, quando é utilizada para criar falsos vídeos de caráter sexual ou pornográfico de celebridades, ou falsos inimigos. Deepfakes também podem ser utilizadas para gerar notícias falsas, com intuito político malicioso. Danielle Citron – professora de direito de Universidade de Boston – diz: “É frustrante saber que atualmente a lei não pode fazer nada para defender quem tenha a sua imagem adulterada. 
É necessária uma reposta internacional coordenada e rápida”. Para ela, seria necessário classificar o conteúdo e o contexto de cada Deepfake. Mas distinguir uma falsificação danosa - de uma sátira de um humorista, de um caricaturista ou qualquer outra forma de expressão artística, ou até uma ilustração pedagógica de âmbito educativo - não é fácil. Em suma, as leis ainda não estão bem definidas para os crimes cometidos com o Deepfake

Deep learning é uma área da inteligência artificial onde os algoritmos reconhecem padrões a partir de um extenso banco de dados. O computador “entende” como aquele rosto se comporta quando fala, pisca os olhos, e como reage à luz utilizando milhares de vídeos de fotos daquela pessoa. Depois, ele cria um protótipo, que será analisado pelo próprio sistema para verificar se a imagem criada está de acordo com o esperado. Em caso negativo, ele repete a operação até chegar o mais próximo daquilo a que nós chamamos a realidade, vá-se lá saber o que é a realidade da perceção humana, e não da perceção canina ou felina. E o mesmo pode ser feito com a voz.

Grandes empresas e políticos estão preocupados com o avanço desta tecnologia. O Facebook, em 2019, anunciou um gasto de dez milhões de dólares na luta conta o Deepfake em sua plataforma. Um enorme desafio, pois quando utilizamos uma Inteligência Artificial para verificar a veracidade de um vídeo, é possível que ela aprenda a criar falsificações ainda mais poderosas. E mais, há redes criminosas que estão a utilizar estas tecnologias criando indivíduos falsos sintetizados virtualmente. Ou seja, inclusivamente, vídeos de pessoas que nunca existiram. O problema, nesse caso, surge quando esses criminosos utilizam  essas identidades virtuais para cometerem crimes no mundo financeiro. Nestes casos a impunidade é total. 

A comunicação mimética, a propósito de pacientes com afasia


Vou espalhar-me por aquilo que conhecemos por pantomima, ou por mímica, como arte de comunicação humana, que pode ser muito útil aos pacientes que sofreram um AVC (Acidente Vascular Cerebral) e ficaram afásicos. Na pantomima, praticamente não se fala. No teatro gestual não há palavras. É a arte de narrar só com gestos e contorções performativas do corpo. Uma modalidade cénica muito apreciada quando é bem feita. É uma arte de excelência para comediantes, cómicos, palhaços, enfim atores de stand-up comedy. Mas não só.




Relatos de histórias clínicas, feitas por neurologistas, de doentes que ficaram afásicos, alguns deles com afasia expressiva, em que ficou preservada a afasia compreensiva, descrevem que através da sua capacidade para cantar conseguiram superar essa dificuldade recuperando parte da linguagem. E isso deixou-os mais tranquilos para melhor enfrentarem as suas vicissitudes. Em algum lugar dentro de seu cérebro ainda havia onde ir buscar as palavras. A questão passa a ser, então, se as capacidades de linguagem embutidas na canção podem ser removidas do seu contexto musical e usadas na comunicação. Em alguns casos isso é possível, em grau limitado, essas pessoas podem falar cantarolando. 




Mas ainda melhor do que cantarolar, é as pessoas descobrirem o seu dom ou virtuosismo para a expressão mimética, outra aptidão que pode estar escondida e as pessoas nem saberem que a têm. Algumas pessoas apresentam uma habilidade e uma intuição próxima da genialidade. A expressão facial é de extrema importância na pantomima, uma vez que grande parte da mensagem é transmitida pelo rosto. Por isso, é importante conhecermos o nosso rosto. Por isso, vale a penas as pessoas treinarem expressões faciais em frente a um espelho de: felicidade, tristeza, raiva, amor, compaixão, medo, angústia, espanto - como fazem os atores de teatro.
O meu Mestre tinha uma paixão pela tagarelice, e até para uma certa bisbilhotice e indiscrição. Por isso, não podia ter tido maior asar quando teve um AVC trombótico que lhe apanhou toda a área da artéria cerebral média do lado esquerdo, tendo ficado irremediavelmente afásico. A afasia caracterizava-se por dificuldade em se expressar verbalmente embora compreendesse quase tudo o que era dito. No entanto, nunca o vi furioso por causa disso. Todos ficávamos assombrados com a sua resiliência. Como é que não ficava deprimido, só podia ser explicado pelo seu feitio de sempre bem-disposto, e calejado pela sua experiência de sofrimento derivada da sua paralisia devida à poliomielite desde a infância. Por outro lado, devido à sua inteligência, e profissão de médico, tendo-lhe passado pelas mãos centenas de pessoas vítimas de AVC, tinha a noção de que, em certo sentido, tivera muita sorte, apesar de metade do seu corpo estar paralisada. Tinha sorte porque a lesão em seu cérebro, embora extensa, não lhe minara a força de vontade, nem a inteligência. Além disso, porque a sua mulher, que era fisioterapeuta, se empenhara arduamente desde o início para mantê-lo ativo. Só não teve a sorte de encontrar nenhuma terapeuta da fala, porque nessa altura não havia nenhuma por perto.
Os primeiros estudos científicos sobre o sorriso que se tem notícia foram os do neurologista francês Guillaume Duchenne. Ele descobriu que os sorrisos são controlados por dois conjuntos de músculos: os zigomáticos maiores, que percorrem todo o lado do rosto e se conectam com os cantos da boca, e os orbiculares, que puxam os olhos para trás. Os zigomáticos maiores puxam a boca para os lados, expondo os dentes e alargando as bochechas, ao passo que os orbiculares estreitam os olhos e produzem os pés-de-galinha. É importante entender o funcionamento desses músculos. Os zigomáticos maiores são conscientemente controlados, isto é, obedecem à nossa vontade, – podendo ser , por isso, usados para produzir os falsos sorrisos e dar boa impressão, ou satisfazer a cordialidade, ou qualquer outra necessidade social, mas que é fácil de topar. É aquilo que popularmente se designa por "sorriso amarelo". Em contrapartida, os orbiculares atuam independentemente da nossa vontade, e por isso são eles os reveladores de um sorriso genuíno, ou seja, puxado pelo sentimento ou emoção. Portanto, os músculos orbiculares revelam os verdadeiros sentimentos que há por trás de um sorriso.

A mimese, representação deliberada e consciente de cenas, pensamentos, intenções por meio de mímica e ações, parece ser uma aquisição especificamente humana, como a linguagem (e talvez a música). Nos grandes primatas, que são capazes de “macaquear” ou arremedar, é ínfima a capacidade de criar representações miméticas de maneira consciente e deliberada. Uma “cultura mimética” pode ter sido uma etapa intermediária, mas crucial da evolução humana, entre a cultura “episódica” dos antropoides e a cultura “teórica” do homo sapiens sapiens. E acontece que a mimese tem uma representação cerebral muito mais extensa e profunda do que a linguagem falada. E isso talvez explique porque é preservada em muitos pacientes que deixaram de falar depois de um Acidente Vascular Cerebral. Essa preservação pode permitir uma comunicação notavelmente rica, ainda mais se for elaborada e intensificada pelo exercício de aprendizagem. Um bom desempenho nas atitudes corporais e no gesto pode dizer muita coisa. Uma boa pantomima, obviamente, para uma boa transfiguração, requer: interpretação; habilidade; e treino.

A pantomima é muito antiga, tendo acompanhado o desenvolvimento da dramaturgia na Grécia Antiga. Mas já há indícios de pantomima - em rituais religiosos egípcios, sumérios e hindus - há mais de cinco mil anos. Mas foi no século IV a.C. que a pantomima teve o seu apogeu nos festivais dionisíacos. Aparentemente a mímica era prodigiosa no Teatro de Dioniso. Nessa época, a forma mais elaborada de mímica, a "hypothesis", era representada por atores que incorporavam dentro de si as personagens propriamente ditas. Aristóteles na sua Poética, sobre a Tragédia, cita no primeiro parágrafo os mimos de Sófron de Siracusa. Sófron de Siracusa foi um poeta grego, que viveu na segunda metade do século VI a.C. Conhecido pela sua prosa ritmada escrita em dialeto dórico, exerceu influência sobre Platão na estruturação dos seus Diálogos. Conhecem-se apenas alguns fragmentos da sua obra, com cenas da vida quotidiana. A pantomima era, em todo o caso, uma expressão teatral à parte. Nos vasos jónicos encontram-se pinturas retratando pantomimas aos governantes locais, e a figuras típicas populares.  

A pantomima foi de novo provida no tempo do Império Romano de Augusto. Nos festivais realizados no Palácio dos Desportos podiam assistir 40.000 pessoas. Muito foi escrito sobre esse apogeu da pantomima. O poeta Lívio Andrónico, é considerado o primeiro one-man-show da história do teatro. O principal nome da pantomima romana ao incorporar a pantomima grega. Também vale reportar a citação de Cícero sobre a interpretação de dois grandes pantomímicos romanos, Bathylle e Pylade, com as suas versões de Ésquilo. Como se existisse uma língua em cada ponta dos dedos.

Com a queda do Império Romano, vieram para Roma os Papas, e os teatros não tardaram em fechar, e a pantomima foi proibida. Mas tarde veio a Inquisição, e então nem se fala, ao ponto de ser proibida qualquer livre manifestação artística. Os atores da chamada "commedia dell'arte" precisaram de adotar uma nova "conceção plástica de teatro". E assim, com o Renascimento a mímica voltou à cena, sendo representada basicamente nas praças e mercados. Espetáculo teatral e circense, tanto mais intensificado pela presença das máscaras. lembremo-nos de Veneza, que determinavam papéis mais ou menos estereotipados para toda a forma de representação com o gesto mímico, dança, acrobacia, consoante as circunstâncias. O que exigiu um conhecimento mais profundo da gramática plástica.




Em França, no início do século XIX, surgiu um genial pantomímico - Jean-Gaspard Deburau, que criou o personagem Baptiste oriundo da família dos Pierrots. Daí uma efervescência da pantomima romântica nos anos posteriores por toda a Europa. Muitos artistas aprimoraram o estilo apresentando-se em teatros, music-halls, circos, e até nas ruas. A famosa Boulevard du Temple marcou a Era de Ouro da Pantomima de 1825 a 1860. Mais tarde, 1945, imortalizado no cinema pelo filme de Marcel Carné "Les Enfants du Paradise" - protagonizado pelo grande ator e mímico francês Jean Louis BarraultFalava da biografia ficcional de Deburau, junto aos "Funâmbulos". E depois vieram os filmes de cinema mudo com os pantomimos: Charles Chaplin e Buster Keaton. Estes foram à época os mais expressivos herdeiros da pantomima. 




terça-feira, 27 de abril de 2021

A Lua: mitos e ciência


© Toby Melville - Stonehenge Reino Unido

Um pouco por   todo o mundo, esta madrugada, fotógrafos viraram-se para o céu, para apreciar o fenómeno da lua quando fica lua cheia e atinge o seu ponto máximo de aproximação à Terra. A 26 de maio haverá uma segunda lua Super. As Super Luas devem-se aos perigeus mais curtos. Em Portugal Continental houve uma Super Lua rosa pelas 4:30 da madrugada.


Mitos: a influência da lua nos seres vivos

Vários estudos de meta-análise realizados no sentido de avaliar os efeitos das fases da lua no ser humano – entre datas de nascimento de milhares de bebés, data e horário de dezenas de milhares de ligações para a polícia ou serviços de emergência, data e horário de faltas violentas em eventos desportivos, número de internamentos psiquiátricos – nenhum deles certificou uma correlação válida das variações comportamentais com as fases da Lua.

Nos raros trabalhos em que um possível efeito aparecia, uma análise mais aprofundada mostrava que era algo que podia ser atribuído a erro dos pesquisadores originais ou a coincidências. Por exemplo, um eventual pico no número de acidentes num determinado dia e noite de lua cheia, veio a verificar-se que se tratava de um sábado. E uma análise mais plausível concluiu que a causa para uma maior incidência de acidentes nessa noite seria melhor explicada pela taxa de alcoolémia nos condutores ser de esperar mais elevada num sábado à noite do que noutro dia da semana. Ora, fazia sentido correlacionar a taxa de alcoolémia e o sábado por um lado; e o facto óbvio de condutores alcoolizados estarem mais sujeitos a acidentes de viação. Portanto, houve mais acidentes não por ser noite de lua cheia, mas porque era noite de sábado. O que requer explicação, no fim, é a popularidade da ideia de que as fases da Lua têm efeito sobre as pessoas, uma impressão tão arraigada que está na raiz da palavra “lunático”. 

Mesmo a correlação das fases da lua com o ciclo menstrual, que está muito difundida na crença popular, é exagerada. O ciclo feminino médio (sempre sujeito a grandes variações individuais) é de 28 dias, mas o lunar é de 29,5 dias. O que acontece é que existe um efeito de perceção seletiva. Todos nós, que já comprámos mais que uma vez um carro novo, nos devemos lembrar de perguntar: por que é que agora, de um dia para o outro, só vejo carros da mesma marca do meu, quando antes nunca via nenhum? É a questão da perceção da realidade. A realidade, para cada um de nós, depende da perceção. E a perceção, sabemos que é muito seletiva. 

Quando algo extraordinário acontece na lua cheia, ligamos, em nossas mentes, o evento à fase. Mas, quando algo excecional ocorre na lua nova ou minguante, não fazemos a associação. Ainda hoje não sabemos por que carga de água certos órgãos de comunicação social escritos, e outros televisivos, são muito atreitos a fomentar o benefício da dúvida em relação a estes fenómenos. Por conseguinte, devemos incentivar as pessoas a não dar ouvidos ao que o seu cabeleireiro, a sua prima grávida, ou o folclore dos lobisomens dizem. Não existe nenhuma outra prova de que a lua afete coisas como comportamento violento, taxas de homicídio, atos de loucura, fertilidade ou o dia de as parturientes darem à luz. 

Uma questão que já começa a ser debatida na comunidade científica é se as fases da lua e o sono se sustenta, tal como conclui um estudo da Current Biology. Críticos apontam para o facto de a amostra ser pequena, apenas 33 pessoas. Isso é um fator que enfraquece a conclusão, entre outros problemas. Trata-se de um artigo científico que diz que a lua parece afetar a qualidade do sono: em média, nas noites de Lua Cheia, as pessoas tenderiam a demorar mais tempo para adormecer depois de apagar a luz; dormiriam pior; e o período de sono duraria 20 minutos a menos que em outras fases lunares. Se estiver correto, este trabalho, publicado na revista Current Biology, será o primeiro a confirmar, em condições rigorosas de laboratório, um efeito concreto das fases da Lua sobre o ser humano.

Mesmo se for verdadeira, no entanto, a relação não terá nada a ver com a gravidade lunar, as marés ou forças místicas. Os autores especulam que o organismo humano pode ter um relógio biológico de 29,5 dias -
“relógio circalunar” - semelhante ao já conhecido “relógio circadiano” que ajusta o ciclo diário da variação na temperatura do nosso corpo e a liberação de certas hormonas, relacionado com o dia e a noite da rotação da Terra.


Ciência: lua e marés





As marés, como sendo um fenómeno da Terra na parte dos oceanos dependente das posições da Lua e do Sol, são um objeto de conhecimento que remonta a tempos muito antigos. 
Esse conhecimento, pelo menos para as populações das costas oceânicas, resulta da observação direta da correlação aproximada entre a posição da Lua e a ocorrência local da praia mar e da baixa mar no mesmo local. Igual conhecimento resulta da observação da óbvia coincidência das marés vivas e mortas com as fases da Lua. O astrónomo grego Seleuco de Selêucia explicitou no século II a.C. uma visão heliocêntrica do mundo com base na visão de Aristarco de Samos, e com base nela construiu, por volta do ano 150 a.C. uma teoria das marés de base lunar. Um extenso e aprofundado trabalho de Posidónio, elaborado no primeiro século antes de Cristo, entretanto perdido e apenas conhecido a partir de citações antigas, pode-se concluir que a obra já continha a teoria lunissolar para a explicação dos efeitos diários e mensais da maré devido à ação mútua dos três corpos celestes. Dada a atenção despertada, a tentativa de explicação da física das marés desempenhou um importante papel no desenvolvimento inicial do heliocentrismo e da mecânica celeste. 

Porém, uma explicação científica com toda a credibilidade só foi dada depois da teoria da gravitação de Isaac Newton. Se a parte sólida da Terra fosse perfeitamente elástica e a parte líquida perfeitamente fluida, as marés seriam os efeitos instantâneos das forças de atração gravitacionais e as alturas máximas das marés ocorreriam sempre na direção do corpo atrativo. Neste caso em apreciação: a Lua. Contudo, não sendo a parte sólida da Terra perfeitamente elástica e nem a parte líquida perfeitamente fluida, as alturas das marés não estão perfeitamente alinhadas com os centros da Terra e da Lua, porque as propriedades físicas não são tão ideais como mostra a figura.

Os fenómenos de maré não se limitam aos oceanos, pois podem ocorrer em outros sistemas sempre que um campo gravitacional que varia no tempo e no espaço esteja presente. Por exemplo, a parte sólida da Terra é afetada pela maré terrestre, subindo e descendo ciclicamente, embora esses movimentos não sejam tão facilmente detetáveis como os movimentos da maré oceânica.

De facto, a Terra sofre um torque (uma torção ou rotação do eixo num sistema binário de forças paralelas de sentido contrário; um sistema conjugado de forças que tende a causar rotação). Essa tendência retarda um pouco o movimento de rotação (que é de alguns  segundos por século). A Lua também sofre um torque com a mesma direção, mesmo módulo e sentido contrário ao primeiro, acelerando-o, fazendo com que a Lua se afaste da Terra (alguns centímetros por ano). Desta maneira, por efeito das marés, uma parte da energia de rotação terrestre se transforma em calor pelo atrito das marés nas praias e no fundo dos oceanos. A outra parte é transferida ao movimento orbital da Lua. A aceleração gravitacional experimentada por uma grande massa não é constante em todo o seu diâmetro. Um dos lados do corpo tem uma maior aceleração do que o seu centro de massa, e do outro lado do corpo tem menor aceleração.

A força gravitacional do Sol exercida sobre a Terra é em média 179 vezes mais intensa do que a lunar, mas porque o Sol está em média cerca de 389 vezes mais longe da Terra, o seu gradiente de campo é mais fraco. Em consequência, à superfície da Terra a força de maré de origem solar representa cerca de 46% da força de origem lunar, ou seja a intensidade da força de maré de origem lunar é cerca de 2,21 vezes maior do que a equivalente de origem solar. Numa linguagem mais precisa, a aceleração gerada pela força de maré lunar à superfície da Terra ao longo da linha que une os centros de massa da Lua e da Terra é cerca de 1,1 × 10−7 g, enquanto que a aceleração devida à força de maré de origem solar (ao longo do eixo Terra-Sol, à superfície da Terra) é cerca de 0,52 × 10−7 g, onde g é a aceleração gravitacional à superfície da Terra. Para além do Sol e da Lua, o planeta Vénus é o astro que gera a maior aceleração de maré, com apenas 0,000113 vezes o efeito solar.

Embora as forças gravitacionais sigam uma lei do inverso do quadrado (a força é inversamente proporcional ao quadrado da distância), as forças de marés são inversamente proporcionais ao cubo da distância. A superfície do oceano move-se em consequência da mudança do equipotencial de maré, aumentando quando o potencial de maré é alto, o que ocorre nas partes da Terra mais próxima e mais distante da Lua. Quando o equipotencial da maré muda, a superfície do oceano deixa de estar alinhada com a força de maré, de modo que a direção aparente das variações verticais é alterada. A superfície então experimenta uma inclinação descendente, na direção em que o equipotencial aumentou.




A elevação das águas é muito mais acentuada quando os três corpos estão alinhados, o que é verificado duas vezes por mês: na Lua Cheia e na Lua Nova. São as chamadas marés vivas. Quando o Sol, a Lua e a Terra estão dispostos em ângulo reto (sendo a Terra o vértice), a variação das marés é menor. São as marés mortas.

A hora de ocorrência e amplitude da maré em cada local são influenciadas pelo alinhamento do Sol e da Lua, pelo padrão das marés no oceano profundo, pelos sistemas anfidrómicos dos oceanos e pela forma da linha de costa e batimetria das regiões costeiras adjacentes. Em consequência da combinação dos efeitos de todos esses fatores, algumas regiões costeiras experimentam marés do tipo semidiurno, com dois ciclos de maré de amplitude semelhante em cada dia, enquanto outras regiões experimentam maré de ciclo diurno, com apenas um ciclo de maré em cada dia. Embora menos frequentes, alguns locais apresentam marés de tipo misto com dois ciclos de maré desiguais por dia, ou uma maré cheia e maré vazia desiguais.

As marés variam em escalas de tempo, que vão desde algumas horas a vários anos devido a múltiplos efeitos. Para produzir os registos, são utilizados marégrafos em pontos fixos onde a variação do nível das águas com o tempo é registada. Em geral os marégrafos ignoram variações causadas por ondas com períodos inferiores a alguns minutos. Os dados recolhidos nas estações maregráficas são comparados com um nível fixo de referência geralmente referido ao nível médio do mar.

O melhor momento para mergulhar é na maré alta ou durante o estofo da maré, que é o período entre uma subida e o retrocesso da maré. A visibilidade neste momento é geralmente melhor porque as águas ficam mais limpas. Pessoas que trabalham com a pesca, navegação de embarcações e mergulhadores, por exemplo, guiam-se pelas previsões de movimento das águas oceânicas para realizar as suas atividades. As marés também têm sido utilizadas como fonte geradora de energia elétrica. Um dos modos de geração de energia funciona da seguinte maneira: gigantescos tanques são construídos para serem cheios com a água do mar na maré alta. Quando a maré baixa, a água sai do tanque, fazendo girar uma turbina que produz energia elétrica.


sábado, 24 de abril de 2021

A polarização da Esquerda





«Não é verdade que só a direita é corrupta. Não. A esquerda também. Nem é verdade que só a esquerda é corrupta. Não. A direita também. E a melhor corrupção é a que consegue uma espécie de apólice de seguro de vida que é a convergência entre esquerda e direita. É falso que a corrupção seja só da autoria dos políticos. Nem que só beneficie os políticos. A corrupção pode ser da autoria de muita gente e também beneficiar muita gente. Em todas as camadas sociais, profissionais e económicas. Mas podemos ter a certeza de que a corrupção beneficia poucos e prejudica muitos. É errado pensar que a corrupção começa e acaba sempre em dinheiro, nos bolsos e nas contas offshore. Muito do que é essencial na corrupção inclui círculos de poder, autorizações, nomeações, concursos, parcerias, vantagens, privilégios, posição social, poder de decisão… Importância! Há uma luta feroz em curso, que, a desenvolver-se, pode ser perigosa. É a que opõe dois campos antagónicos. De um lado, os que entendem que os políticos têm direitos especiais, que servem o povo e que devem como tal ser recompensados e respeitados. Do outro lado, os que pensam que os políticos são uns párias, vivem à custa dos outros e exercem o poder no seu exclusivo interesse. Estes dois campos estão bem presentes em Portugal, começam a dar sinais de vigor e envenenam o debate político. Evitá-los é urgente.» [António Barreto]


Em linhas muito gerais, a maioria dos arranjos políticos estão organizados numa distribuição cuja imagem é representada pelo hemiciclo em forma de leque do Parlamento ou Assembleia da República, onde os deputados de esquerda estão sentados à esquerda de quem os vê de frente; e os deputados de direita à direita de quem os vê. Este alinhamento remonta originariamente ao arranjo dos assentos no Parlamento Francês após a Revolução Francesa. Os radicais sentados à esquerda e os aristocratas sentados à direita. Depois disso vieram as Revoluções Liberais, com mais do que um tipo de liberalismo: liberalismo social, situado à esquerda, e liberalismo clássico situado à direita. Com a Revolução Russa Comunista, que deu lugar à União Soviética, o socialismo e o comunismo passaram a ser ideologias de esquerda, em confronto com o conservadorismo de direita, e o fascismo.

A ciência política e os cientistas políticos têm notado frequentemente que um único eixo [esquerda-direita] é simplista demais e insuficiente para descrever a variação existente nas crenças políticas, e por isso, surgiram outros eixos. Embora as palavras descritivas nos polos opostos possam variar, consideram-se mais úteis os espetros com um eixo horizontal e um eixo vertical: em que o eixo horizontal comporta as questões de ordem económica: e o eixo vertical as questões socioculturais.

O radicalismo, em filosofia política, pode ser definido como uma ideologia que se serve da ação revolucionária com o fito de transformar a sociedade segundo os valores dessa ideologia, geralmente utópica. 
O radicalismo tem as suas raízes no final do século XVIII e início do século XIX, ou seja, nos anos que se seguiram à Revolução Francesa. Em Portugal os radicais foram os Republicanos, que efetivaram o derrube da Monarquia com um programa muito semelhante aos radicais franceses à frente de um regime republicano. O radicalismo é politicamente inflexível, opondo-se a tudo e a todos os moderados cuja proposta de mudança é pela via de reformas constitucionais. Os radicais defendiam reformas e ações disruptivas e de luta social, que eram consideradas por outros grupos políticos como desestabilizadoras da ordem constitucional.

O extremismo, em política, refere-se a doutrinas ou modelos de ação política que preconizam soluções extremas, radicais e revolucionárias, para os problemas sociais. Frequentemente está associado ao dogmatismo, ao fanatismo e às tentativas de imposição de estilos e modos de vida, bem como à negação radical de valores vigentes. O extremismo indica a tendência a um comportamento ou a um modelo de ação política que rejeita as regras de uma comunidade política, não se identificando com as suas finalidades, valores e instituições. Na história política moderna e contemporânea, o extremismo foi adotado em diferentes ocasiões, por diversos movimentos sociais e políticos, de diferentes orientações ideológicas, principalmente em épocas críticas de intensa mobilização social e de profundas transformações económicas e institucionais.

Por terrorismo entendem-se as práticas políticas, individuais ou coletivas, amplificadas pela violência geradora de terror. Embora na França do final do século XVIII o vocábulo "terror" tenha sido apropriado para designar a violência revolucionária mobilizadora de sentimento nacional, a denotação contemporânea caracteriza ações criminosas contra inocentes e alvos simbólicos. O terrorismo não é guerra, porque enquanto que na guerra haveria uma declaração formal de hostilidades entre países e a provável isenção de inocentes e alvos não-militares nos conflitos bélicos, no terrorismo os inocentes e os alvos não-militares são os principais alvos das formas de ação.

Extrema-esquerda

Existem diferentes definições de extrema-esquerda. Existem algumas formas que se classificam de anarquismo e comunismo radical, e formas que se reclamam do anticapitalismo revolucionário e antiglobalização. A extrema-esquerda pode adotar atos violentos podendo atingir a forma de luta armada. Esta forma é hoje classificada como terrorismo de extrema-esquerda. 
Para distinguir a extrema-esquerda da esquerda, esta passa a ser considerada “moderada”, em contraponto com "radical" da extrema-esquerda. A extrema-esquerda rejeita a estrutura socioeconómica subjacente ao capitalismo contemporâneo; e defendem estruturas económicas e de poder alternativas que envolvam a redistribuição dos recursos das elites mais ricas para a população mais pobre. A maioria dos grupos terroristas de extrema-esquerda que operaram nas décadas de 1970 e 1980 na Europa, desapareceram em meados dos anos 1990.

Esquerda

Atualmente, o termo "esquerda" tem sido usado para descrever uma vasta gama de movimentos, incluindo os movimentos pelos direitos civis que pugnam pelo igualitarismo, e movimentos ambientalistas. A imprensa contemporânea, ocasionalmente, usa os termos "esquerda" e "direita" numa lógica de opostos no debate público. O conceito de igualitarismo teoriza que a igualdade social é possível através da redistribuição dos recursos na mão dos capitalistas. A partir da segunda metade do século XIX, a esquerda ideológica iria adotar as correntes do socialismo e do comunismo de matiz 'marxista'. Foi efetivamente de particular influência a publicação do Manifesto Comunista de Marx e Engels, 1848, com a teoria de que a história de todas as sociedades humanas existentes até então era a história da luta de classes. Ele previa que uma revolução proletária acabaria por derrubar a sociedade burguesa, através da abolição da propriedade privada. E assim seria criada uma sociedade sem classes, sem Estado, e pós-monetária. A Associação Internacional dos Trabalhadores (1864–76), às vezes chamada Primeira Internacional, reuniu representantes de diversos países, e de diferentes grupos de esquerda, e organizações sindicais. Alguns contemporâneos de Marx defendiam ideias semelhantes, mas não concordavam com a sua visão de como chegar a uma sociedade sem classes e sem Estado. Após a cisão entre grupos ligados a Marx, e grupos ligados a Bakunin na Primeira Internacional, os anarquistas formaram a Associação Internacional dos Trabalhadores. E assim se formou a Segunda Internacional, em 1888, que, por sua vez, se dividiu em 1916 devido a divergências quanto à questão da Primeira Guerra Mundial. Aqueles que se opuseram à guerra, como Lenine e Rosa Luxemburgo, eram mais à esquerda do que o resto do grupo. Foi daqui que resultou a divisão: de um lado os sociais-democratas; do outro os comunistas.

A partir daqui a esquerda te estado associada a distintos sistemas económicos. A esquerda ligada à Internacional Socialista, segue uma economia mista, combinando o Keynesianismo e o estado social, para limitar o que considera serem os problemas do capitalismo. No entanto, prefere manter grande parte da economia no sector privado. A esquerda comunista defende a nacionalização em larga escala, baseada numa economia cooperativista de empresas em autogestão, preferindo um controlo local, em que regiões descentralizadas são unidas numa confederação. Segundo os comunistas, o desenvolvimento humano floresce quando os indivíduos se envolvem em relações de cooperação e de respeito mútuo. Uma sociedade que não seja substancialmente igualitária,  é minada pela corrupção e pelos privilégios. 

Centro-esquerda

Centro-esquerda, entre a esquerda e o centro, centra-se mais na variação entre certas opções políticas, como por exemplo no âmbito das chamadas questões fraturantes e justiça social, dentro das organizações pertencentes à esquerda, do que haver propriamente partidos com essa classificação dentro da esquerda. O termo pode-se referir à esquerda do centro num país específico ou num hipotético espectro político global. As pessoas que se autodenominam ou se colocam como sendo do centro-esquerda geralmente utilizam expressões de 'socialismo democrático' ou 'social-democracia' que ganhou roupagem com o advento da chamada Terceira Via de Tony Blair. Linha de pensamento contemporânea da ascensão da globalização e economia de mercado. Associado com o centro-esquerda estão algumas bandeiras tais como o reformismo, o ambientalismo e outras políticas chamadas progressistas.

Ativismo e Movimentos Sociais

Nas últimas três décadas, os Movimentos Sociais têm sido compreendidos como uma forma de ação coletiva sustentada a partir da qual atores que compartilham identidades ou solidariedades enfrentam estruturas sociais ou práticas culturais dominantes. Nuns casos o Estado não é – e nem deve ser – relevante. Noutros casos é visto como um inimigo, frente ao qual os Movimentos Sociais ou a Sociedade Civil têm que medir forças. Mais recentemente, a forte disseminação do uso do conceito de “redes sociais” tem tido como resultado uma pulverização heterogénea de protagonistas e organizações menos hierarquizadas. Veja-se o exemplo dos protestos e ações coletivas de ecologistas e ambientalistas. Neste ativismo ambiental ou ambientalista, a noção de "ativismo" assume denotações particulares, caracterizando perspetivas ideológicas específicas.

Tradicionalmente, o conceito de "ativismo" referia-se à ideia de ações coletivas politicamente orientadas, principalmente as que envolvem formas de protesto. Entre as décadas de 1960 e 1980 muita energia ainda era direcionada para a discussão sobre a legitimidade dos movimentos. Hoje os movimentos são legitimamente relevantes na transformação das sociedades. Esse conceito refletia ainda a influência do Marxismo de modo relativamente explícito. Entretanto, a transição para o Pós-Marxismo e para os estudos multiculturais tem-se baseado, em boa medida, no reconhecimento dos perigos da exclusão de certos tipos de ação social. O caso clássico é o das feministas pelo trabalho igual salário igual, a partir dos movimentos socialistas, cuja causa era vista como um “epifenómeno”.

Os movimentos sociais, agora inseridos nas redes sociais e na comunicação mediada pela Internet, readaptam as suas estruturas de poder e de coordenação de ações. Hoje, o poder é mais difuso, diluído em rede. O indivíduo é capaz de melhor estabelecer as suas conexões, selecionar conteúdos, produzir as suas mensagens e transmiti-las a um grande público, sem que  para isso tenha de pagar. Os efeitos dessa promiscuidade são notáveis em termos de mobilização social. As constantes transformações das dinâmicas das ações coletivas estão associadas aos recursos comunicacionais disponíveis. É nesse ambiente virtual da Internet que se desfraldam hoje bandeiras diversas em confronto direto.

A noção de “ativismo político”, em grande parte restringe-se a ações orientadas ideologicamente à esquerda. Uma grande parte da literatura refere-se às ações coletivas e aos movimentos sociais alinhados à esquerda. O ativismo, por definição, é essencialmente político. Mas novos movimentos sociais deixaram de estar submetidos a um comando que tradicionalmente era exclusivo de sindicatos e partidos políticos. Atualmente o ativismo passa por um tipo de “protesto criativo”, “consciência social” e “solidariedade”. O que é ambivalente na medida em que combina “ações radicais” com propósitos solidários.

A doutrinação e ativismo político nas escolas e universidades constituem uma importante questão social contemporânea. 
O ativista atual é mais um militante do que um revolucionário. O ativista defende os seus ideais, mas as suas ações não apresentam um caráter impositivo – muito embora se proponha a transformação de uma determinada realidade social. Visa desafiar mentalidades a pequenos passos. Em anos recentes tem sido enfatizada nas universidades a diversidade étnica, cultural e de género em detrimento da diversidade político-religiosa. Apesar da sua importância, a diversidade político-religiosa na academia padece de uma restrição progressiva. A crítica ideológica da ciência como aparelho opressivo acarreta um relativismo epistemológico e desvio de foco da atividade académica da busca de conhecimento para o ativismo político. O partidarismo político resulta de emoções morais profundas, as quais ao mesmo tempo que congregam as pessoas, dificultam o debate com argumentação lógica. Moralismo e a hegemonia do politicamente correto por parte de alegados proprietários dos valores da Democracia, tem resultado em coerção e cerceamento à liberdade de opinião. 

A forma da doutrina politicamente correta, e a vitimização fraudulenta associada a pequenos ressentimentos, acarreta a uma deriva incriminatória em excesso injustificado. A cultura institucional académica está impregnada de ativistas em prol da justiça social com um duplo padrão moral face a violações de códigos de conduta. Ora, isto tem constituído uma ameaça ao modelo clássico de universidade focada na investigação. Esse fenómeno é mais saliente na área de humanidades e educação, do que na área das ciências matemáticas. Os mecanismos subjacentes a este progressivo enviesamento ideológico da academia tem naturalmente múltiplas causas, pelo que questões complexas dificilmente são resolvidas com respostas simplistas. Por isso, não é fácil deslindar quem estigmatiza quem.

sexta-feira, 23 de abril de 2021

Todos pagam para jogar

 



Everybody Pays – é a música nº 7 do 4º álbum de estúdio de Mark Knopfler a solo – Shangri-La, 2004.

O nome Shangri-La aparece pela primeira vez num romance de James Hilton, “Lost Horizon”, 1933, um vale místico e harmonioso guardado por um mosteiro budista no extremo oeste das Montanhas Cunlum que se estendem ao longo da fronteira ocidental da China ao lado da cordilheira do Pamir e fronteira norte do Tibete. A palavra, é provavelmente de origem tibetana, e tornou-se sinónimo de qualquer paraíso terrestre, particularmente uma mítica utopia do Himalaia – uma terra eternamente feliz, isolada do mundo. No romance, as pessoas que vivem em Shangri-La são quase imortais, vivendo centenas de anos além da vida normal e apenas envelhecendo muito lentamente na aparência. Nas antigas escrituras tibetanas a existência de sete desses lugares, referidos como Nghe-Beyul Khembalung, acredita-se ter sido criado por Padmasambhava no século Idílico, lugares sagrados de refúgio para budistas durante tempos de conflito. O contexto é semelhante ao do Jardim do Éden bíblico, para representar um paraíso escondido do homem moderno. Uma metáfora para a busca de algo ao longo da vida, algo evasivo, mas muito procurado. Ou para uma pessoa que passa a vida obsessivamente à procura de uma cura. Tal cura para essa pessoa pode ser Shangri-La. Ou a perfeição muito procurada. 

O atual retiro presidencial dos Estados Unidos da América, conhecido como Camp David, foi brevemente chamado de Shangri-La pelo presidente Franklin D. Roosevelt durante a Segunda Guerra Mundial. Roosevelt, perante as fabulosas vistas das montanhas circundantes, exclamou: "Shangri-la!?". O Presidente Eisenhower mais tarde mudaria o nome em homenagem ao seu neto David.

Mas o nome Shangri-La aparece com muitas outras denotações, não apenas no mundo literário: Um gay suicida em Shangri-La, de Enrique Coimbra, 2014, e-book; Perdidos em Shangri-La, de Mitcell Zuckoff, 2013, e-book. E Shangri-La ainda aparece: num barco pesqueiro afundado na Segunda Guerra Mundial; em mais 5 álbuns musicais; numa canção do Festival Eurovisão da Canção em 1988; numa banda feminina fundada na década de 1960; no Rio Grande do Sul e em Manaus. Em 2006, a União Astronómica Internacional deu à área equatorial, escura e baixa da lua de Saturno – Titã – o nome Shangri-La.

quinta-feira, 22 de abril de 2021

Do que a Terra precisa é de mais “estufas frias”


Hoje assinala-se o "Dia da Terra" que é devido ao senador norte-americano Gaylord Nelson. Inspirado pelos protestos da década de 1960, 
Gaylord Nelson lembrou-se do Dia da Terra em 22 de abril de 1970 quando teve a iniciativa de uma ação pedagógica sobre os estudantes nas universidades para os alertar para a importância de proteger o meio ambiente da poluição. Ao promover a consciencialização pública dos efeitos da poluição sobre a Terra Mãe, Gaylord Nelson tinha consciência das implicações do despertar dos jovens para as causas ambientais.

Em Portugal, as zonas da costa com ocupação humana são as mais atingidas pelos efeitos da erosão, uma situação que vai agravar-se, apesar das medidas que têm sido tomadas e que custam anualmente milhões ao Estado. Na seguinte imagem de satélite da costa em Portugal, na zona da Apúlia/Esposende, é flagrantemente visível a diferença do aspeto dessa parte de costa entre o ano de 1984 e o ano de 2020.




A situação não é exclusiva de Portugal e deve-se a vários fatores, dos quais se destaca a intervenção humana nos leitos dos rios, nomeadamente barragens que impedem os sedimentos de se deslocarem para a zona costeira, os erros do ordenamento da faixa costeira cometidos ao longo de décadas e a retirada de areia dos rios para a construção. Daqui a alguns anos, as praias portuguesas poderão deixar de existir, por força da falta de sedimentos que reponham a areia necessária. E ainda falta perceber exatamente como é que a projetada subida do nível do mar, causada pelas alterações climáticas, irá pesar nesta mudança. Por enquanto, o que já se perdeu fica claro nestas imagens.

A imagem a seguir é da Estufa Fria em Lisboa, onde os fetos ou samambaias ocupam um lugar de destaque por direito próprio.



E as samambaias vêm a propósito dado que é delas que uma boa parte do carvão fóssil foi formado. Ficaram soterradas especialmente durante os períodos Carbonífero e Permiano. As alterações geológicas registadas na Terra, e também as alterações climáticas registadas ao longo de milhões de anos, explicam porque o carvão ocorre em todos os continentes, mesmo na Antártida. Os depósitos carboníferos formaram-se de restos de plantas acumuladas em pântanos, que se decompuseram, fazendo surgir as camadas de turfa. A elevação do nível das águas do mar ou o rebaixamento da terra provocaram o afundamento dessas camadas sob sedimentos marinhos, cujo peso comprimiu a turfa, transformando-a, sob elevadas temperaturas, em carvão. Apenas o carvão “linhitos” tem origem estritamente a partir de plantas. Na escala do tempo geológico o Carbonífero ou Carbónico é o período da era Paleozoica do éon Fanerozoico. O período Carbonífero sucede ao período Devoniano. E este precede o período Permiano.

Os fetos ou samambaias apareceram pela primeira vez há 416 milhões de anos: período Devoniano, era Paleozoica, éon Fanerozoico. Mas a grande expansão das samambaias ocorreu no final do período Cretáceo, de cujas famílias muitas delas ainda hoje são as mesmas. Elas foram essenciais na ocupação dos ambientes terrestres pelos animais, fornecendo habitat e alimento além de serem importantes na formação do solo rico em nutrientes que viria a propiciar a formação das grandes florestas do Carbonífero. Neste período as samambaias eram as principais representantes vegetais da Terra. O período Cretáceo, que remonta a +/- 145 milhões de anos, já pertence à era Mesozoica, que começou no Triássico há 251 milhões de anos; a que se seguiu o Jurássico há +/- 200 milhões de anos; e depois o Cretáceo. O nome 'Mesozoico' deriva do grego, e refere-se a 'meio animal' sendo também interpretado como "a idade medieval da vida na Terra". Esta era é especialmente conhecida pelo aparecimento, domínio e desaparecimento dos dinossauros, belemnites e amonites.

quarta-feira, 21 de abril de 2021

Aumentar a longevidade sem envelhecer: pseudociência ou protociência?




De acordo com o Livro do Génesis, Matusalém – filho de Enoque, pai de Lameque e avô de Noé, foi o homem que viveu mais tempo, 969 anos. Morreu no Dilúvio.

A imagem seguinte é uma cópia de uma primeira página da Philosophycal Transactions of the Royal Society of London, de 25 de abril de 1670, em que se lê um extrato de uma carta que fala de um tal Martel de Montauban, usando a palavra ciência, e aludindo ao ilustre Bacon.



The Philosophical Transactions of the Royal Society, ou Phil. Trans., é uma revista científica publicada pela Royal Society (Sociedade Real de Londres), que começou a ser publicada em 1665, sendo por isso a publicação científica mais antiga do mundo anglófono, e a segunda mais antiga do mundo. A mais antiga é a Journal des Savants. É ainda a revista que há mais tempo é editada. O uso da palavra Philosophical no seu nome é derivada da expressão natural philosophy (filosofia natural), que na altura era utilizada para denominar o que hoje chamamos de ciência.

Martel de Montauban é um personagem que não sobreviveu na história, mas é mencionado uma vez por David Boyd Haycock, autor de um artigo sobre a ideia de prolongamento da vida humana na Inglaterra no século XVII. O texto de Haycock cita Montauban e Francis Bacon, o importante filósofo da ciência inglês: “Sir Francis Bacon explorou como um problema médico a questão de que a duração da vida humana poderia voltar a ser de aproximadamente 1000 anos como desfrutada por Adão e os patriarcas”. O ensaio de Haycock faz parte de uma série chamada “Como os factos viajam?”




Trata-se de saber como prolongar a vida humana, e o ilustre francês carrega as suas observações citando Francis Bacon. Mas se isto é uma curiosidade histórica, já o mesmo não se passa com Aubrey de Grey, o polémico cientista inglês da computação, agora com 53 anos de idade, que afirma que humanos podem viver mil anos. Aparentemente recebeu um título de doutor em Biologia pela Universidade de Cambridge em 2000, mas não foi um estudante regular e matriculado lá. Teria recebido o título de doutor pelo seu livro “The mitochondrial free radical theory of aging”. Neste caso, ele dá uma reviravolta à Biologia com a sua transmutação da biologia genética para a computação, ou seja, engenharia genética.




Aubrey de Grey é um investigador da SENS Research Foundation, de que é cofundador e financiador com a herança que Grey recebeu da mãe. Além disso, há doações privadas de maluquinhos que ambicionam a vida eterna. Segundo este cientista marginal (vamos chamá-lo assim para o distinguir dos cientistas da corrente dominante ‘mainstream’), podemos derrotar o envelhecimento. Um painel da revista EMBO Reports, 2005, concluiu que nenhuma das hipóteses de Grey é suscetível de levar ao aumento da longevidade. E um segundo relatório chamou ao projeto da SENS mera pseudociência. Mas Grey insistiu na vida quase eterna, dizendo que já teria nascido o primeiro ser humano que alcançará a idade milenar.

Uma manifestação marginal da ciência, portanto. Mas nos tempos que correm, estas diatribes parecem não ser assim tão simples. Já se passaram quase 15 anos e Aubrey de Grey continua com grande popularidade, além de ser também o editor chefe da revista científica “Rejuvenation Research”, que apresenta pesquisas de ponta e avanços que podem finalmente contribuir para retardar ou reverter o processo de envelhecimento. A sua editora tem outros títulos como “Alternative and Complementary Therapies”, que integra terapias alternativas praticadas em hospitais privados e independentes da medicina convencional regulada pela Ordem dos Médicos dos respetivos países. Esta editora publica ao mesmo tempo, tanto temas marginais (‘fringe science’) como temas no âmbito da ciência convencional (‘mainstream’).




A despeito do que os painéis de avaliação científica possam dizer, a fronteira entre: pseudociência; ciência marginal; ciência estabelecida - está a ser cada vez mais posta em causa. Para isso seria necessário, finalmente, descrever o que significa: pseudociência; ciência marginal; e ciência propriamente dita - ‘mainstream’, institucionalizada ou sistematizada.

Já passaram uns bons anos desde que o filósofo da ciência, Thomas Kuhn, apresentou a sua teoria dos paradigmas e das revoluções no campo da ciência dita regular: um conjunto de crenças, regras, compromissos e valores que são compartilhados pelos cientistas por um determinado período de tempo e que confere à atividade de investigação científica a unidade mínima que permite constituir uma comunidade científica.

Deixando de lado a superstição, é importante definir rapidamente o que poderíamos chamar de pseudociência: afirmações, crenças e práticas que alegam ser científicas e baseadas em evidências, mas que carecem de um grande número de passos e de métodos bem estabelecidos há muito por toda a comunidade científica espalhada pelo mundo como se fosse a sua língua franca. A pseudociência é simplesmente incompatível com o método científico. Já a protociência pode ser considerada um novo tipo de ciência a nascer, ainda não institucionalizada e sistematizada. Na época em que Martel de Montauban publicou o seu artigo, apareciam outros autores na mesma revista, como Robert Boyle, Robert Hooke e Isaac Newton, cujos trabalhos viriam a dar origem a uma disciplina científica, que mais de, cerca de um século depois, viria a chamar-se Física, uma disciplina científica às vezes tratada como a mãe de todas as ciências.

Hoje a comunidade científica ‘mainstream’ debate-se com a peste dos “Negacionistas da peste Covid-19”. Este movimento marginal antissocial, autodenomina-se o único defensor da verdade, o que não deixa de ser desde logo um sintoma preocupante. Aubrey de Grey é uma espécie de protótipo desse modelo de pessoas. Figura de aparência exótica, em parte autodidata, incompreendido pela corrente dominante, e que tem o seu próprio instituto de pesquisa. Com marketing, já sabemos como é o marketing da banha da cobra, não lhe faltam adeptos num determinado nicho de público. Entretanto, a tensão na praça pública continua, e promete estar para durar. A ciência ‘mainstream’ tem de momento um árduo engulho pela frente. Por mais e melhor informação que seja facultada ao público em geral sobre o processo de obtenção do conhecimento científico, não a única forma de conhecermos a realidade do mundo, mas até à data por demais demonstrado que é a mais sólida em prever e obter resultados, apesar de sempre limitada e imperfeita, a verdade é que: crendices; teorias da conspiração e superstições, são idiossincrasias inerentemente humanas, demasiadamente humanas até. E apesar de o conhecimento humano, pelo que se acabou de dizer, ser sempre provisório, arrisco em dizer, na verdade, que a vida humana eterna nunca virá.  


terça-feira, 20 de abril de 2021

Ganância




Sentenças por ganância abundam em quase todas as culturas clássicas.
Políticos republicanos e escritores romanos atribuíram a morte da República Romana à ganância: Cícero (106 a 43 a.C.), Caio Salústio Crispo (86 a 34 a.C.), Plutarco (46 a 120 d.C.) . . . E na Mitologia Grega, Tântalo certa vez, ousando testar a omnisciência dos deuses, roubou os manjares divinos e serviu-lhes a carne do próprio filho Pélope num festim. Como castigo foi lançado ao Tártaro, onde, num vale abundante em vegetação e água, foi sentenciado a não poder saciar a fome e sede, visto que, ao aproximar-se da água esta escoava e ao erguer-se para colher os frutos das árvores, os ramos moviam-se para longe de seu alcance sob a força do vento. A expressão 'suplício de Tântalo' refere-se ao sofrimento daquele que deseja algo aparentemente próximo, porém, inalcançável.




Ganância é um sentimento humano que se caracteriza pela vontade de possuir tudo o que se admira. É a vontade obcecante de possuir qualquer coisa. É um desejo excessivo direcionado principalmente ao dinheiro ou riqueza material. Contudo, é associada também a outras formas de poder, nem que para isso seja necessário corromper terceiros e se deixar corromper, manipular e enganar chegando ao extremo de matar. Muitas vezes é confundida com ambição e avareza. No Cristianismo, é um dos sete pecados capitais. Em meados do século XIX, políticos e economistas afetados pelas ideias fenomenológicas de Hegel, passaram a definir a ganância como um vício inerente à estrutura da sociedade, pernicioso ao seu desenvolvimento saudável. E Max Weber afirmou que o espírito do capitalismo integrava uma faceta de ganância. De acordo com a Ética Protestante, dizia Weber: "a riqueza é, portanto, um afrodisíaco que fomenta a tentação pelo prazer pecaminoso da vida".

Na sátira de  Aristófanes - Plutus - um ateniense diz a Plutus, deus da riqueza, que enquanto os homens podem cansar-se do amor, da música, de figos e outros prazeres, nunca se cansarão da ganância por dinheiro. Se um homem tem treze talentos, faz tudo com o maior ardor para possuir dezasseis; se esse desejo for alcançado, ele vai querer quarenta. E se não conseguir, vai reclamar. 
O poeta romano Lucrécio achava que o medo da morte era um grande impulsionador da ganância. 



Lao Zi, o fundador do Taoismo, e autor, provavelmente apócrifo ou mítico, do Tao Te Ching, também fez alusões a esse fenómeno a que também chama lucro. Xun Zi acreditava que o egoísmo e a ganância faziam parte do lado escuro da natureza humana. Mas a humanidade vivendo em sociedade, o lado luminoso da vida humana, pugnava pela supressão dessas tendências negativas através de leis. Essa crença foi a base do legalismo, uma filosofia que se tornaria a ideologia predominante da Dinastia Qin, que continua a ser influente na China de hoje. Por outro lado, o filósofo Yang Zhu era conhecido por ter abraçado o interesse próprio. No entanto, a sua escola não endossou especificamente a ganância; em vez disso, foi enfatizada uma forma de hedonismo, onde o bem-estar individual tem precedência sobre tudo o resto.

Mêncio (Mestre Meng 370 a.C. - 289 a.C.), o mais eminente seguidor do Confucionismo -, estava convencido da bondade inata da natureza humana, mas mesmo assim alertou contra o impulso excessivo para a ganância. Ele estava preocupado com os efeitos desestabilizadores e destrutivos da ganância. São Tomás de Aquino afirma que a ganância é um pecado contra Deus, assim como todos os pecados mortais, na medida em que o homem é tentado a trocar as coisas espirituais pelas coisas temporais. Ele também escreveu que a ganância pode ser um pecado direto contra o Outro, quando um homem se afoga nas riquezas terrenas. Bens temporais possuídos em excesso nunca podem ser possuídos por todos ao mesmo tempo.

Dante - no poema Inferno - condena aqueles comprometidos com o pecado mortal da ganância à punição no quarto dos nove círculos do Inferno. Os seus habitantes devem lutar constantemente uns contra os outros. Virgílio, o espírito condutor, diz ao poeta que essas almas perderam a sua personalidade na desordem, e não são mais reconhecíveis: "Essa vida ignóbil, que as tornou vis antes, agora as torna sombrias, e a todo conhecimento indiscernível". No Purgatório, penitentes gananciosos foram amarrados e colocados de barriga para baixo no chão, por se terem concentrado demais em pensamentos voluptuosos.




Adam Smith achava que a ganância pelos bens de primeira necessidade era limitada, mas a ganância por bens de luxo era ilimitada. O homem rico não consome mais comida do que o seu vizinho pobre. Em qualidade pode ser muito diferente, e selecioná-la e prepará-la pode exigir mais trabalho e arte; mas em quantidade é quase o mesmo. Mas compare o palácio espaçoso e o grande guarda-roupa de um, com a trouxa e os poucos trapos do outro. Você reconhecerá a diferença, tão grande em quantidade como em qualidade. E o desejo de comida, quer por parte do rico, quer por parte do pobre, é limitado em cada pessoa devido à estreita capacidade dos seus estômagos. Mas tudo o que é externo ao corpo, não tem limites. Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro ou do padeiro, que esperamos o nosso jantar, mas do respeito que eles têm pelo seu próprio interesse.

John Stuart Mill, no seu ensaio "O Utilitarismo", sobre a ganância por dinheiro diz o seguinte:
«O amor ao dinheiro não é apenas uma das forças móveis mais fortes da vida humana, mas o dinheiro é, em muitos casos, desejado por si mesmo; o desejo de possuí-lo é muitas vezes mais forte do que o desejo de usá-lo. E quanto mais cresce o monte de dinheiro, mais vontade se tem de querer mais, mais e mais. Pode então dizer-se, verdadeiramente, que o desejo do ganancioso por dinheiro é mais como um fim, do que como um instrumento. De ser um meio para o bem-estar humano, já que a felicidade ninguém sabe bem o que é. "Ser feliz", não passa de um slogan para patetas. Assim como "poder" ou "fama". Felicidade, não passa de um ingrediente, de uma droga, de um vício. O mesmo pode ser dito da maioria dos grandes artefactos do engenho humano. Prazer imediato sim, mas efémero.»

segunda-feira, 19 de abril de 2021

A linha férrea do Hejaz






O principal propósito da Hejaz Railway foi estabelecer, com os seus quase 1.400 quilómetros de extensão, a ligação de Istambul, capital do Império Turco-Otomano, à cidade sagrada de Meca. Mas em decorrência dos conflitos na região, não foi além de Medina, a 400 quilômetros de Meca. A linha corta a região do Hejaz (a Oeste da Península Arábica), com um braço que se estende até Haifa, no Mar Mediterrâneo, e promoveria a integração económica e política do Império Turco com as províncias árabes, também facilitando o transporte de forças militares e de mercadorias. Os Turcos tinham-na como fonte vital de abastecimento aos seus 10 mil homens em Medina. Por isso, a ferrovia tornou-se a espinha dorsal da campanha militar.

A linha foi sugerida em 1864, para aliviar os peregrinos do Hejaz na sua viagem de 40 dias através das regiões inóspitas de Mediã e das montanhas do Hejaz. Era comum que 20% dos peregrinos morressem durante a viagem, de fome, sede e de doenças. Basicamente, a linha do Hejaz era um uma parte de um projeto muito mais ambicioso que ligava Berlim a Bagdade. A
 sua construção foi iniciada em 1900 por ordem do sultão Abdullamid II, com as obras dirigidas pelo engenheiro civil alemão Heinrich August Meissner, financiadas pelo Deutsche Bank, com forte apoio do Império Alemão. Foi aberta uma subscrição pública por todo o mundo islâmico para o financiamento da construção, mas em 1912 o Império Otomano devia 29 milhões de libras turcas ao Deutsche Bank. 

Antes da construção, o conselheiro militar alemão Auler Paxá estimou que o tempo de transporte de soldados entre Istambul e Meca seria reduzido para 120 horas. A linha de Bagdade foi construída ao mesmo tempo. Devido ao financiamento depender de doações e à pressão crescente do Reino Unido e da França, a construção avançou muito lentamente e demorou bastante mais do que o previsto. A linha chegou a Medina sob a supervisão do engenheiro chefe Mouktar Bei no dia 1 de setembro de 1908, dia do aniversário da subida ao trono do sultão. No entanto, para que a inauguração pudesse ocorrer nesse dia recorreu-se a vários artifícios, como alguns trechos da linha serem colocados sobre aterros provisórios em Wadi Rum. Em 1913 foi aberta a Estação do Hejaz no centro de Damasco, o terminal da linha.

E então voltamos ao tópico do Lawrence da Arábia e da Revolta Árabe no decurso da Primeira Guerra Mundial. Desde já se diga que, após a queda do Império Otomano, depois da Primeira Guerra Mundial, a linha não voltou a abrir a sul do que é hoje a fronteira entre a Jordânia e a Arábia Saudita. Em meados da década de 1960 foi feita uma tentativa de reabertura, a qual foi abandonada devido à Guerra dos Seis Dias, em 1967 (entre 5 e 10 de junho), um conflito que envolveu Israel e os países Árabes [Síria, Egito, Jordânia e Iraque, apoiados pelo Kuwait, Arábia Saudita, Argélia e Sudão], e em que Israel saiu vitorioso. Em 2018 só dois trechos da linha original estavam completamente funcionais. Um desses trechos - Amã a Damasco. 
Atualmente os comboios partem da estação de Qadam, nos arredores de Damasco, e não da Estação de Hejaz, que encerrou em 2004. Muitas das locomotivas originais foram restauradas: na Síria há nove locomotivas a vapor funcionais; na Jordânia há sete. 

A 9 de maio de 1917, partiram de Wejh. Não havia hipótese de os Turcos esperarem um ataque do deserto porque estava inexplorado e era raro lá passar alguém - não havia poços em centenas de quilómetros. Os Turcos sentiam-se seguros com as costas protegidas pelo deserto. Os dias passavam lentamente e a solidão do deserto abrasador e das noites gélidas apenas se alterava na textura da areia soprada pelo vento ou no cascalho que percorriam. Atravessaram a Linha dos Peregrinos perto da aldeia de Dizad. Os Turcos patrulhavam a via-férrea com tropas em camelos e vagonetas protegidas por metralhadoras, mas não viram sinais de atividade turca, pelo que Lawrence colocou cargas explosivas na linha. Auda ficou desiludido ao ver o tamanho delas, mas nunca tivera a experiência da dinamite. Lawrence ativou os detonadores e o grupo retirou para trás das dunas; Auda ficou ousadamente de pé, sem proteção. A explosão foi sonora e lançou bem alto muita areia e secções de carris e de chulipas. Auda, abalado, impressionado com a explosão, passou a dissertar liricamente sobre a dinamite. Receosos de que as explosões alertassem os Turcos, cortaram o telégrafo. Ouviram os Turcos a aproximar-se. Sem saberem o que tinha acontecido nem a causa das explosões, disparavam a torto e a direito para as colinas. O grupo de Lawrence escapuliu-se e desapareceu.

A 30 de maio, guerreiros da tribo Abu Tayi juntaram-se ao grupo. A caravana pôs-se em marcha, num espetáculo notável. A força de incursão de Lawrence seguiu o caminho-de-ferro para sul e deu com um posto turco que guardava uma estação de reabastecimento e um armazém ferroviário. Ao verem ovelhas amarradas a um poste, os Árabes, famintos, não precisaram de persuasão para atacar. Zaal apontou ao Turco mais próximo, um oficial refastelado numa cadeira. Ouviu-se um disparo e os soldados turcos, incrédulos, viram-no deslizar, atingido no coração. Foi o sinal para os homens de Lawrence carregarem sobre o posto. Os Turcos fugiram para o edifício de pedra e barricaram a porta, e os Árabes, sem interferência dos Turcos apavorados, apoderaram-se do rebanho. O edifício foi regado com parafina e incendiado. Nessa noite, regalaram-se com um festim de borrego assado. Em Bair, juntaram-se à força principal que continuava a avançar para sul, em direção a Aqaba.

Os Turcos não sabiam da aproximação das forças de Lawrence e que bloqueavam o único acesso a Aqaba. Com as provisões a escassear e sem possibilidade de se reabastecer, Lawrence viu-se confrontado com um inesperado contingente turco equipado com metralhadoras, artilharia e cavalaria. Só havia uma opção: atacar de surpresa ao alvorecer; caso contrário, a missão estava condenada ao fracasso ou, pior ainda, ficariam encurralados no deserto, à mercê dos Turcos. Quando o sol nasceu, já os Árabes tinham subido aos montes que dominavam o desfiladeiro de Aba el Lissan. Como os Turcos não tinham colocado sentinelas, Lawrence destruiu a linha de telefone para Maan. Apesar de em inferioridade numérica, os Árabes cercaram os soldados adormecidos. Aos primeiros raios de sol, abriram fogo. Sobreveio então a confusão. Com os sons dos disparos a reverberarem nas colinas, os Turcos não conseguiam identificar as posições dos atacantes nem determinar a sua força. Dispararam às cegas até começarem a ficar sem munições. Passada uma hora, os Árabes tinham dizimado a força turca, e o pânico instalou-se.

Os soldados tentavam escapar numa direção mas eram alvejados pela retaguarda; quando optavam por direção diferente, eram brindados com idêntico tratamento. A meio da manhã, os sobreviventes esconderam-se entre as rochas que pejavam o desfiladeiro, enquanto os Árabes continuavam a atirar sobre tudo o que mexia. O dia foi avançando e o calor começou a fazer vítimas entre Árabes e Turcos. Cada tentativa dos Turcos para obterem água do poço era saudada com tiros precisos e a crescente pilha de corpos em redor dos baldes de água era forte dissuasor para os sobreviventes, que começavam a perder as forças por causa da sede. Lawrence compreendeu que tinha de agir. Procurou Auda e o velho chefe árabe correu para o camelo e desceu a encosta até um barranco escondido onde concentrara os seus 300 melhores guerreiros. A um sinal seu, carregaram encosta abaixo sobre os Turcos, que estavam exaustos. Já os Árabes estavam a massacrá-los pela destruição da aldeia no dia anterior e, em menos de 5 minutos, jaziam em redor do poço mais de 400 mortos. Exaustos pelo esforço, os atacantes acederam ao apelo de Lawrence para porem fim à chacina e cerca de 100 turcos foram feitos prisioneiros. Admitiram que a guarnição de Maan ficara reduzida a menos de um regimento.

Estes acontecimentos excitaram os Howeitat, que quiseram avançar de imediato sobre Maan. A possibilidade de se apoderarem de uma cidade importante e de a pilharem era quase irresistível para os homens de Auda, que sabiam que a única coisa que existia em Aqaba era um porto em ruínas. Para os Árabes, a vantagem tática de Aqaba era insignificante comparada com a pilhagem de Maan. Mas Lawrence e Auda resolveram a questão com promessas de ouro em Aqaba. Os Árabes contentaram-se com os despojos dos turcos mortos e feridos.

Com 140 novos prisioneiros, seguiram caminho e ao anoitecer estavam a menos de 5 quilómetros de Aqaba. Do alto do desfiladeiro, olharam para o pequeno porto, onde não parecia haver muita atividade turca. A guarnição era comparável ao contingente árabe, mas os Turcos julgaram-se em inferioridade. Aceitaram render-se e Lawrence realizou o impossível: Aqaba fora conquistada, 
hoje uma cidade portuária da Jordânia, junto ao Mar Vermelho.

Depois do triunfo de Aqaba, a caminho para Damasco, há um episódio traumático que muitos têm apontado como o motivo da alteração de comportamento de Lawrence. Mais fechado, mais duro, mais secreto, com vontade de desistir, depois de ter sido capturado pelo exército turco e sujeito a tortura. Antes da violência de que seria alvo, o oficial fizera-lhe uma proposta. O papel de Lawrence na aliança estabelecida com o influente emir Faisal, na conquista de Damasco. 




Os comboios destruídos durante a Revolta Árabe de 1916 a1918 ainda podem ser vistos nos locais onde foram atacados. A estação de Madain Saleh foi restaurada e transformada num museu. O Sítio Arqueológico de al-Hijr ou Madaim Salé ("lugar da rocha"), é uma antiga cidade localizada a norte de Hejaz, Arábia Saudita, a 22 quilómetros da cidade de Al-Ula. Localiza-se a cerca de 320 quilómetros de Petra, na Jordânia, sendo que as duas localidades, no seu conjunto, representam um testemunho histórico da arquitetura dos povos da região, notadamente os Nabateus. Na Antiguidade, a região era habitada pelos povos tamudis e nabateus, sendo denominada como Hegra. Inscrições e gravações encontradas em vários desses monumentais tumulares datam do século II a.C. e a sequência de construção deles se estende até ao século I d.C., todos construídos pela civilização nabateia que habitava a região nesse período. Outros elementos arquitetónicos encontrados, posteriores, datam do período das civilizações tamudi e liane. É Património Mundial da Unesco.

Na leitura de "Os Sete Pilares da Sabedoria", deparamo-nos muitas vezes com um Lawrence contemplativo: “O exército morto das minhas esperanças, agora tornado real, confrontava-me, e a minha vontade, esse instrumento gasto que durante tanto tempo corroera o nosso caminho, partiu-se subitamente nas minhas mãos e parecia ser inútil. Dizia-me que esse capítulo oriental da minha vida chegara ao fim. Havia a manhã e o dia seguinte de cuidado implacável, em que quase de certeza o Faiçal conquistaria os frutos da batalha; e isso era tudo trabalho meu. Ou teria sido apenas um sonho, do qual eu voltaria a acordar sentado na sela, com mais meses de esforço, de pregação e de risco pela frente?” Acaba por ser uma narrativa poética sobre um encontro de culturas, uma obra ao mesmo tempo profundamente observadora e introspetiva, um olhar atento sobre o outro e sobre o próprio. Escrita por um homem em constante conflito interior com o seu papel ambíguo na chamada Revolta Árabe: de um lado os árabes, seus ‘irmãos’ de combate; do outro os ingleses, cheios de promessas que ele sabia que não seriam cumpridas.

Lemos, relemos, citamos e há sempre um silêncio que potencia o mistério, o enigma, ou como escreveu Churchill: nenhum extrato ou citação poderia transmitir a atmosfera que o leitor respirará. A vastidão do deserto, o peso do sol, o terrível cansaço das longas marchas de camelo, os restos de comida e as gotas de água que têm gosto de festas dos deuses, a tensão feroz e rígida das emboscadas, os cruéis e impiedosos combates, as grandes operações de guerra nas quais esse combate teve um papel notável, a aniquilação da coluna turca, a rutura das comunicações turcas, a tentativa perdida com um punhado de irregulares para impedir a retirada de um exército turco-alemão de 80.000 soldados, a entrada triunfante em Damasco, uma série inesgotável de quadros que prendem a mente e agitam a alma. A questão dos enigmas prende-se mais com as vicissitudes que rodearam a pré-publicação. Ele perdeu o manuscrito, teve de escrever outra vez tudo de memória. É claro que é a própria condição do autor que faz da narrativa um romance. Não há dúvida que Lawrence é uma personalidade excêntrica, mas ao mesmo tempo reservada. No texto perpassa mais uma inquietude do narrador, que constantemente se questiona se estará à altura da missão. Quis demitir-se várias vezes. 
Associado a uma simbologia entre o romântico e o pop, morre aos 46 anos, num acidente de mota. 

Mais uns excertos do livro - Os Sete Pilares da Sabedoria de T. E. Lawrence:
A batalha permanente despojava-nos de preocupações pela nossa vida ou pelas dos outros. Tínhamos a corda ao pescoço e as nossas cabeças estavam a prémio, por valores tais que revelavam que o inimigo nos preparava torturas hediondas se fôssemos apanhados. Todos os dias morriam alguns de nós; e os que continuavam vivos sentiam que não passavam de fantoches sencientes no palco de Deus; na realidade, o nosso capataz era impiedoso, impiedoso, enquanto os nossos pés doridos conseguissem arrastar-se pelo caminho. Os fracos invejavam aqueles que se cansavam suficientemente para morrer; pois a vitória parecia tão longínqua e o fracasso uma libertação próxima e garantida, embora dura, do sofrimento. Vivíamos sempre com os nervos ora retesados, ora bambos, ora no auge, ora na depressão das vagas do sentimento. Esta impotência era amarga e fazia que vivêssemos apenas para o horizonte que avistávamos, indiferentes ao mal que infligíamos ou suportávamos, visto que a sensação física se revelava mesquinhamente transitória. As rajadas de crueldade, perversões, desejos, passavam ao de leve sobre a superfície sem nos perturbarem; porque as leis morais que tinham parecido proteger-nos destes acidentes patetas deviam ser palavras ainda mais débeis. Tínhamos aprendido que havia dores demasiado agudas, mágoas demasiado profundas, êxtases demasiado elevados, para poderem ser registados pelos nossos seres finitos. Quando a emoção atingia o seu auge, a mente ficava sufocada; e a memória apagava-se até as circunstâncias regressarem à normalidade.
Tamanha exaltação do pensamento, embora deixasse o espírito à deriva e lhe conferisse permissão para vogar em estranhos ares, retirava-lhe o antigo domínio paciente sobre o corpo. O corpo era demasiado grosseiro para sentir o auge dos nossos desgostos e das nossas alegrias. Por isso, abandonávamo-lo como se fosse lixo; deixávamo-lo abaixo de nós para marchar em frente, um simulacro dotado de respiração, ao seu próprio nível, sem assistência, sujeito a influências das quais, em tempos normais, os nossos instintos nos teriam feito fugir. Os homens eram jovens e robustos; e a carne e o sangue quentes reclamavam inconscientemente um direito e atormentavam-lhes os ventres com estranhos desejos. As nossas privações e perigos acalmavam este ardor viril, num clima tão excessivo quanto se possa imaginar. Não tínhamos locais fechados onde pudéssemos ficar sozinhos, nem roupas espessas para ocultar a nossa natureza. Em todas as coisas, o homem vivia ingenuamente com o homem.

O Árabe era, por natureza, continente; e o uso do casamento universal tinha praticamente abolido relações irregulares nas suas tribos. As mulheres públicas das escassas povoações que encontrámos nos nossos meses de viagem não teriam chegado para nós, mesmo que a sua carne ocre tivesse sido aceitável para um homem de gostos saudáveis. Horrorizados ante esse comércio sórdido, os nossos jovens começaram a satisfazer indiferentemente as poucas necessidades uns dos outros nos seus próprios corpos limpos – uma conveniência fria que, por comparação, parecia assexuada e até pura. Posteriormente, alguns deles começaram a justificar este processo estéril, e juravam que amigos estremecendo juntos na areia macia, com os membros íntimos quentes no abraço supremo, encontravam aí, oculto na escuridão, um coeficiente sensual da paixão mental que fundia as nossas almas e espíritos num esforço ardente. Vários deles, suportando a sede para castigar apetites que não conseguiam evitar completamente, sentiam um orgulho selvagem em degradar o corpo e ofereciam-se ferozmente para qualquer tarefa que prometesse sofrimento físico ou imundície.

Fui enviado para o pé desses árabes como um estranho, incapaz de pensar como eles ou de aceitar as suas crenças, mas compelido pelo dever de os conduzir e de desenvolver ao máximo qualquer movimento deles que pudesse ser vantajoso para a Inglaterra na sua luta. Se não podia assumir o seu carácter, podia pelo menos ocultar o meu, e passar entre eles sem fricção evidente, sem discordar nem criticar, apenas como uma influência despercebida. Como fui seu companheiro, não posso ser seu apologista nem seu defensor. Hoje, nos meus trajos antigos, poderia passar por espectador, obedecendo às sensibilidades do nosso teatro… mas é mais honesto registar que essas ideias e atos eram então considerados naturais. Aquilo que agora parece dissoluto ou sádico parecia inevitável no terreno, ou apenas um hábito pouco importante.

Tínhamos sempre sangue nas mãos; estávamos habituados a ele. Ferir e matar pareciam-nos sofrimentos efémeros, tão breve e dorida era a vida para nós. Sendo tão grande a dor de viver, a dor do castigo tinha de ser implacável. Vivíamos para o dia de hoje e morríamos por ele. Quando havia razão e desejo de castigar, escrevíamos imediatamente a nossa lição com a espingarda ou o chicote na carne obstinada do desgraçado, e não havia hipótese de apelo. O deserto não permitia os lentos e requintados castigos dos tribunais e das prisões.

Evidentemente, as nossas recompensas e prazeres eram tão subitamente arrebatadores como os nossos sofrimentos; mas, para mim, em particular, era menor o seu volume. Os modos dos beduínos eram duros mesmo para os que neles tinham sido criados, e para os estrangeiros terríveis; uma morte em vida. Quando a marcha ou o trabalho terminavam, eu não tinha energia para registar as sensações, nem, enquanto duravam, tempo para ver a beleza espiritual que por vezes nos invadia no caminho. Nas minhas notas encontram-se mais coisas cruéis do que belas. Sem dúvida apreciávamos mais os raros momentos de paz e esquecimento; mas eu recordo-me melhor da agonia, dos terrores e dos erros. A nossa vida não se resumia àquilo que escrevi (há coisas que não podem ser repetidas a sangue-frio, tão vergonhosas são); mas o que escrevi existiu e fez parte da nossa vida. Queira Deus que quem ler estas páginas não decida, por amor ao fascínio da singularidade, prostituir-se a si e ao seu talento ao serviço de outra raça.

Um homem que se ponha à disposição de estranhos faz uma vida de animal, pois vendeu a alma a um treinador de animais. Não é um deles. Pode voltar-se contra eles, pode convencer-se de que tem uma missão, transformá-los em algo que eles, por sua própria vontade, nunca seriam. Assim explora o seu próprio ambiente antigo, para os forçar a sair do deles. Ou, segundo o meu modelo, poderá imitá-los tão bem que eles, simuladamente, o imitam também. Então está a sair do seu próprio ambiente, fingindo pertencer ao deles; e os fingimentos são coisas vãs, inúteis. Em nenhum dos casos faz uma coisa sua, nem uma coisa tão límpida que possa tornar sua (sem a ideia de conversão), permitindo aos outros que ajam ou tenham as reações que lhes agradem, a partir do exemplo silencioso.

No meu caso, o esforço feito durante estes anos para viver disfarçado de árabe, imitando as suas bases mentais, separaram-me do meu eu inglês e fizeram-me olhar para o Ocidente e para as suas convenções com novos olhos; destruíram-no completamente em relação a mim. Simultaneamente, não podia sinceramente meter-me na pele dos Árabes; era apenas uma imitação. Era fácil fazer de um homem um infiel, mas dificilmente se poderia convertê-lo a outra fé. Eu tinha abandonado uma forma sem tomar outra, e tinham-me tornado como o caixão de Maomé da nossa lenda, com a consequente sensação de intensa solidão na minha vida, e um desprezo, não pelos outros homens, mas por aquilo que eles fazem. Este distanciamento ocorre, por vezes, com os homens exaustos por um esforço físico e isolamento prolongados. O corpo continua a funcionar mecanicamente, enquanto a mente racional os abandona e, de fora, os olha criticamente, perguntando a si mesma o que fez e porquê aquele traste inútil em que habitou. Por vezes, os dois eus travam conversas no vácuo; e então a loucura está próxima, como creio que se aproximaria do homem que conseguisse ver as coisas simultaneamente através dos véus de dois costumes, duas culturas, dois ambientes

Houve de novo uma pausa no meu trabalho, e de novo tive tempo para pensar. Até Faiçal, e Jaafar, e Joyce, e o exército chegarem, pouco podíamos fazer, além de pensar; contudo, pensar, devemos reconhecê-lo, era um processo essencial. Até então, a nossa guerra tivera uma única operação planeada – a marcha sobre Aqaba. Aqueles movimentos acidentais dos homens e das ações de que havíamos assumido o comando davam-nos cabo da cabeça. Fiz o voto de, a partir daquela altura, antes de tomar uma decisão, saber sempre antecipadamente para onde ia e quais as rotas a percorrer.

Em Wejh, a Guerra do Hejaz estava ganha: depois de Aqaba, terminara. O exército de Faiçal pagara as suas responsabilidades árabes, e agora, sob o comando do general Allenby, comandante-chefe adjunto, o seu papel seria participar na libertação da Síria. A diferença entre o Hejaz e a Síria era a diferença entre o deserto e a terra semeada. O problema que se nos deparava era um problema de carácter – aprendermos a tornar-nos civis. A aldeia do Wade Musa era o nosso primeiro ponto de recruta de camponeses. A menos que nos tornássemos camponeses também, o movimento de independência não poderia prosseguir.

Era vantajoso para a revolta árabe que se impusesse aquela modificação quase no início do seu crescimento. Esforçáramo-nos em vão por semear terrenos baldios, para fazer crescer a nacionalidade num lugar cheio da certeza de Deus, aquela certeza perniciosa que proibia todas as esperanças. Entre as tribos, a nossa crença só poderia ser como a erva do deserto – uma bela e rápida aparência de Primavera que, ao fim de um dia de calor, secava coberta de poeira. Os objetivos e as ideias tinham de ser traduzidos em expressão material. Os homens do deserto estavam demasiado separados para expressarem os primeiros; demasiado pobres em bens materiais, demasiado afastados da complexidade para apoiarem as segundas. Se quiséssemos prolongar a nossa duração, teríamos de conquistar as terras cultivadas, chegar às aldeias onde os tetos ou os campos conservavam os olhos dos homens voltados para baixo e para o que estava próximo e iniciar a nossa campanha como iniciáramos.

Tínhamos os pés na sua fronteira meridional. Para leste, estendia-se o deserto dos nómadas. A oeste, a Síria era limitada pelo Mediterrâneo, desde Gaza a Alexandreta. A norte, era limitada pelas povoações turcas da Anatólia. Dentro destes limites, a terra estava bastante emparcelada por divisões naturais. Destas, a primeira e a maior era longitudinal, a acidentada cordilheira de montanhas que, de norte a sul, separava uma faixa costeira de uma ampla planície interior. Estas regiões tinham diferenças climáticas tão acentuadas que quase formavam dois países, duas raças, com as suas respectivas populações. Os sírios da costa viviam em casas diferentes, alimentavam-se e trabalhavam de maneira diferente, e o seu árabe diferia, na inflexão e no tom, daquele que falavam os homens do interior. E gostavam pouco de falar do interior, como se se tratasse de uma terra selvagem, onde dominassem o sangue e o terror.

A planície interior encontrava-se geograficamente subdividida em diversas faixas pelos rios. Estes vales continham as safras mais estáveis e mais prósperas de todo o país. Os seus habitantes eram um reflexo deles: contrastavam, do lado do deserto, com as populações estranhas e instáveis da fronteira, que se deslocavam para leste ou para oeste conforme as estações, viviam de expedientes, atacadas pela seca e pelos gafanhotos ou pelos ataques dos Beduínos; ou, se nada disto as conseguisse destruir, pelas suas próprias incuráveis quezílias sangrentas.

A Natureza dividira, pois, o país em zonas. Os homens, aperfeiçoando a Natureza, deram aos seus compartimentos uma maior complexidade. Cada uma destas divisões principais em faixas, de norte a sul, era atravessada e dividida artificialmente, por meio de muralhas, em diversas comunidades. Era necessário reuni-las nas nossas mãos para a ação ofensiva contra os Turcos. As oportunidades e as dificuldades de Faiçal residiam nessas complicações políticas da Síria que ordenámos mentalmente, como num mapa social.

No extremo norte, o mais afastado de nós, a fronteira da linguagem acompanhava, naturalmente, a estrada que ia de Alexandreta a Alepo, até se encontrar com o caminho-de-ferro de Bagdad, ao longo do qual subia o vale do Eufrates; mas havia enclaves de expressão turca a sul desta linha, nas aldeias turcomanas a norte e a sul de Antioquia, e entre os arménios que se haviam introduzido no meio delas.

Além disso, uma das principais componentes da população costeira era a comunidade de Ansarianos, os discípulos de um culto da fertilidade, puramente pagã, xenófoba, descrente do islamismo, atraída por vezes para o lado dos cristãos graças a perseguições comuns. Esta seita, de importância vital, estava apegada às tradições do clã quanto a sentimentos e a política. Um Nosairita nunca trairia outro e dificilmente deixaria de trair um não-crente. As suas aldeias estavam situadas em pequenas manchas ao longo dos montes principais até ao desfiladeiro de Trípoli. Falavam árabe, mas viviam ali desde o início da cultura grega na Síria. Mantinham-se geralmente afastados dos negócios e deixavam em paz o Governo turco, numa esperança de reciprocidade.

Havia colónias de cristãos sírios misturadas com os Ansarianos; e na faixa do Orontes houvera algumas sólidas comunidades de arménios, inimigas dos Turcos. No interior, perto de Harim, encontravam-se os Drusos, de origem árabe; e alguns circassianos provenientes do Cáucaso. Estes eram inimigos de todos. A nordeste deles encontravam-se os Curdos, que se haviam fixado umas gerações antes e se estavam a casar com árabes e a adotar a sua política. Odiavam sobretudo os cristãos nativos; e a seguir a estes, odiavam os Turcos e os Europeus.

Se se fizesse um corte da Síria, do mar ao deserto, um pouco mais para sul, começar-se-ia por encontrar colónias de circassianos muçulmanos, perto da costa. Na nova geração falavam árabe e constituíam uma raça engenhosa, mas beligerante, muito hostilizada pelos seus vizinhos árabes. Para o interior ficavam os Ismaelitas. Estes imigrantes persas tinham-se tornado árabes ao longo de séculos, mas reverenciavam entre si um Maomé que, em carne e osso, era o Aga Khan. Consideravam-no um magnífico soberano, que honrava os Ingleses com a sua amizade. Evitavam os muçulmanos, mas disfarçavam mal a sua animosidade sob um verniz de ortodoxia.

Além deles, podiam observar-se as estranhas paisagens das aldeias tribais de árabes e cristãos, chefiados por xeques. Pareciam ser cristãos muito sólidos, diferentemente dos seus irmãos lamurientos dos montes. Viviam como os sunitas que os rodeavam, vestiam-se como eles e mantinham com eles as melhores relações. A oriente dos cristãos, encontravam-se comunidades muçulmanas pastoris; e, no limite final dos terrenos cultivados, havia algumas aldeias párias de ismaelitas, procurando a paz que os homens não lhes concediam. Para lá deles, os Beduínos.

Um terceiro corte através da Síria, outro grau mais abaixo, passava entre Trípoli e Beirute. Em primeiro lugar, perto da costa, estavam os cristãos libaneses; na sua maior parte, maronitas ou gregos. Era difícil desenredar as políticas das duas Igrejas. À primeira vista, uma delas devia ter sido francesa e a outra russa; mas uma parte da população, em busca de riqueza, estivera nos Estados Unidos, e aí se desenvolvera uma tendência anglo-saxónica, não menos vigorosa por ser espúria. A Igreja grega orgulhava-se de ser a da Síria antiga, autóctone, de um intenso regionalismo que seria mais suscetível de se aliar à Turquia do que de suportar o domínio irremediável de uma potência romana.

Nas encostas mais elevadas dos montes aglomeravam-se povoações dos Metawalas, maometanos xiitas de ascendência persa. Eram gente suja, ignorante, sombria e fanática, que se recusava a comer ou a beber com infiéis; consideravam os sunitas tão maus como os cristãos; seguiam apenas os seus próprios sacerdotes e notáveis. A força de carácter era a sua virtude, uma virtude rara na volúvel Síria. Nos cumes dos montes havia aldeias de camponeses cristãos, que viviam em paz com os seus vizinhos muçulmanos como se nunca tivessem ouvido os protestos do Líbano. A oriente destes encontravam-se camponeses árabes seminómadas; e depois havia o deserto.

Um quarto corte, um grau para sul, passaria perto de Acra, cujos habitantes, a começar pela costa, eram antes de mais árabes sunitas, depois drusos e depois Metawalas. Nas margens do vale do Jordão viviam colónias, terrivelmente desconfiadas, de refugiados argelinos, diante de aldeias judaicas. Os judeus eram de diversos tipos. Alguns deles, estudiosos hebreus de estilo tradicionalista, tinham criado um padrão e um estilo de vida adequado à região, ao passo que os que chegaram depois, muitos dos quais de influência alemã, tinham introduzido hábitos estranhos, culturas estranhas e casas europeias (construídas graças a doações) naquela terra da Palestina, que parecia demasiado pequena e demasiado pobre para poder retribuir devidamente os seus esforços; mas a região tolerara-os. A Galileia não demonstrava a aversão profundamente arreigada aos colonos judeus que constituía uma característica desagradável da vizinha Judeia.

Nas planícies orientais (altamente povoadas de árabes), estendia-se um labirinto de lava estalada, o Leja, onde os homens sem lei da Síria se congregavam havia inúmeras gerações. Os seus descendentes viviam em aldeias indisciplinadas, a salvo dos Turcos e Beduínos, dedicando-se à vontade às suas quezílias mutuamente destrutivas. A sul e a sudoeste deles abria-se o Hauran, uma enorme região fértil, povoada por camponeses árabes belicosos, autossuficientes e prósperos.

A leste destes encontravam-se os Drusos, muçulmanos heterodoxos seguidores de um sultão egípcio completamente louco. Sentiam pelos Maronitas um ódio terrível, que, quando encorajado pelo Governo e pelos fanáticos de Damasco, se manifestava por meio de grandes matanças periódicas. Não obstante, os Drusos eram detestados pelos árabes muçulmanos e, por sua vez, desprezavam-nos. Estavam em permanente hostilidade com os Beduínos e preservavam na sua montanha manifestações do feudalismo cavaleiresco do Líbano dos tempos dos seus emires autónomos.

Um quinto corte, à latitude de Jerusalém, começaria por alemães e judeus alemães, de expressão alemã iídiche, ainda mais intratáveis que os judeus da era romana, incapazes de aceitar o contacto com quem não fosse da sua raça, alguns deles camponeses, na sua maioria comerciantes, constituindo a mais estrangeira e menos caritativa parte de toda a população da Síria. À sua volta concentravam-se os seus inimigos, os sombrios camponeses da Palestina, mais estúpidos que os do Norte da Síria, interesseiros como os Egípcios e desprovidos de tudo.

A leste deles ficava a profundeza do Jordão, habitada por escravos escuros; e, em frente dela, grupos sucessivos de dignas aldeias cristãs que constituíam, a seguir aos seus correligionários agrícolas do vale do Orontes, os exemplos menos tímidos de nossa fé original naquele país. Entre elas, e a leste delas, viviam dezenas de milhares de árabes seminómadas, preservando o credo do deserto, receosos e sujeitos aos seus vizinhos cristãos. Nesta região disputável, o Governo otomano implantara uma linha de imigrantes circassianos do Cáucaso russo. Estes só conseguiam conservar as suas terras pela força da espada e com a ajuda dos Turcos, aos quais eram, por necessidade, dedicados.

O Zaagi irrompeu em gargalhadas nervosas, ainda mais desoladas perante o sol quente e o ar transparente daquela tarde no planalto. Eu disse: «Que o melhor de vós me traga o maior número de turcos mortos», e corremos atrás do inimigo em fuga, abatendo de caminho todos os que tinham caído junto da estrada e imploravam a nossa piedade. Um turco ferido, meio nu, incapaz de se pôr de pé, sentou-se e começou a chorar, olhando para nós. Abdulla voltou a cabeça do camelo, mas o Zaagi, praguejando, adiantou-se e meteu três balas da sua automática no peito nu do homem. O sangue começou a jorrar com os batimentos do coração, cada vez mais lentamente.

Tallal vira o mesmo que nós. Soltou um gemido, como um animal ferido; depois, dirigiu-se para o terreno mais elevado e ficou aí, durante algum tempo, montado na sua égua, a tremer e a olhar fixamente na direção dos Turcos. Comecei a aproximar-me para falar com ele, mas Auda agarrou-me nas rédeas e deteve-me. Muito lentamente, Tallal tapou o rosto com o pano da cabeça; em seguida, pareceu subitamente tomar consciência de si mesmo, porque enterrou os estribos nos flancos da égua e partiu a galope, inclinado para a frente e oscilando na sela, direito ao corpo principal do inimigo.

Era uma longa cavalgada, ao longo de uma encosta suave, passando por uma depressão. Ficámos parados, como estátuas, enquanto ele avançava, e o martelar dos cascos da égua parecia-nos anormalmente elevado, pois parávamos de disparar, e os Turcos também. Ambos os exércitos esperavam por ele; e ele continuava a cavalgar, na tarde silenciosa, até se encontrar a curta distância do inimigo. Depois endireitou-se na sela e soltou o seu grito de guerra: «Tallal, Tallal», por duas vezes, com uma voz terrível. As espingardas e as metralhadoras inimigas entraram imediatamente em funcionamento, e ele e a sua égua, crivados de balas, caíram mortos entre as pontas das lanças.