segunda-feira, 28 de novembro de 2022

Jiang Zemin





Jiang Zemin [1926 – 2022] prefeito de Xangai, Secretário-Geral do Partido Comunista Chinês [1989-2002], foi presidente da República Popular da China [1993-2003]. Depois do desastre de Tiananmen, Zemin marcou a ascensão chinesa para a impressionante explosão de energia e criatividade. Ele supervisionou um dos maiores crescimentos de PIB per capita na história humana, consumou a devolução pacífica de Hong Kong, reconstituiu as relações da China com os Estados Unidos e o resto do mundo, e lançou a China no rumo de se tornar uma potência económica global. Como secretário do Partido em Xangai, Zemin recebera elogios pelo modo como lidara com os protestos na cidade: havia fechado um influente jornal liberal no início da crise, mas se recusara a decretar a lei marcial, e as manifestações de Xangai foram debeladas sem derramamento de sangue. Um facto marcante do seu governo foram as devoluções de Hong Kong pela Grã-Bretanha em 1997 e Macau por Portugal em 1999.

Tiananmen fizera com que as relações sino-americanas retrocedessem praticamente ao ponto de partida. Deng Xiaoping havia-se retirado voluntariamente em 1989 para viver em tranquilidade os seus últimos dias. Agora, como secretário-geral, era amplamente tido como uma figura de transição — e poderia perfeitamente ter sido um candidato por conciliação no meio do caminho entre o elemento relativamente liberal – Li Ruihuan (o ideólogo do Partido) – e o grupo conservador como Li Peng (primeiro-ministro). Era o primeiro líder comunista chinês sem credenciais revolucionárias ou militares. Sua liderança, como a de seus sucessores, brotava de seu desempenho burocrático e económico, que exigia uma dose de consenso no Politburo. Por exemplo, ele estabeleceu o seu domínio na política externa somente em 1997, oito anos após se ter tornado secretário-geral.

Líderes do Partido chinês anteriores haviam conduzido a sua liderança com a aura altiva apropriada ao sacerdócio de uma mistura do novo materialismo marxista e vestígios da tradição confucionista da China. Jiang estabeleceu um padrão diferente. Ao contrário de Mao, o rei-filósofo, Zhou, o mandarim, ou Deng, o guardião dos interesses nacionais forjado no campo de batalha, Jiang comportava-se mais como um afável membro de família. Era caloroso e informal. Mao tratava os seus interlocutores com distanciamento olímpico, como se fossem alunos de graduação passando por um exame sobre a adequação de seus insights filosóficos. Zhou conduzia as conversas com a graça fácil e a inteligência superior do sábio confucionista. Deng ia direto aos aspetos práticos de uma discussão, tratando as digressões como perda de tempo.

Jiang não reivindicava qualquer preeminência filosófica. Ele sorria, ria, contava anedotas e tocava em seu interlocutor a fim de estabelecer uma ligação. Orgulhava-se, às vezes de forma entusiasmada, de seu talento para línguas estrangeiras e seu conhecimento de música ocidental. Com visitantes não chineses, regularmente incorporava expressões inglesas, russas ou até latinas em suas apresentações para enfatizar um ponto — movendo-se de uma hora para a outra entre um rico cabedal de expressões idiomáticas chinesas clássicas e coloquialismos americanos como It takes two to tango (“São necessárias duas pessoas para dançar um tango”). Se a ocasião assim o permitia, ele era capaz de pontuar reuniões sociais — e de vez em quando oficiais — desatando a cantar, fosse para contornar um tema desconfortável, fosse para enfatizar um sentimento de camaradagem.

Os diálogos dos líderes chineses com visitantes estrangeiros normalmente ocorriam na presença de uma entourage de conselheiros e tomadores de notas que não abriam a boca e muito raramente passavam anotações para seus chefes. Jiang, pelo contrário, tendia a transformar seu grupo em um coro grego; ele iniciava um pensamento, depois passava a palavra para um assessor de uma maneira tão espontânea que dava a impressão de que se estava diante de uma equipa da qual Jiang era o capitão. Com muita leitura e elevada instrução, Jiang procurava atrair o interlocutor à atmosfera de boa vontade que parecia cercá-lo, pelo menos quando lidava com estrangeiros. Ele gerava um diálogo em que as opiniões de seus interlocutores, e até de seus colegas, eram tratadas como merecedoras do mesmo grau de importância que reivindicava para as suas.

Jiang Zemin era suficientemente cosmopolita para compreender que a China teria de operar dentro de um sistema internacional, e não com a postura distanciada e dominante de Império do Meio. Zhou também compreendera isso, assim como Deng. Mas Zhou pôde implementar sua visão apenas de modo fragmentário, devido à presença sufocante de Mao, e a de Deng foi abortada por Tiananmen. A afabilidade de Jiang era expressão de uma tentativa séria e calculada de inserir a China numa nova ordem internacional e restaurar a confiança internacional, tanto para ajudar a curar as feridas domésticas da China como para suavizar sua imagem internacional.

Nem todos os observadores chineses apreciavam o projeto de se envolver com um mundo ocidental tido como desinteressado da realidade chinesa; nem todos os observadores ocidentais aprovavam o esforço de se engajar com uma China aquém das expectativas políticas ocidentais.

Jiang manteve-se discreto na presidência até ao falecimento de Deng Xiaoping, em 1997. A grande estrela do desenvolvimento económico chinês durante sua presidência foi o ministro da economia, Zhu Rongji, que modernizou a política económica do país. Após 1997 essencialmente manteve as políticas de Deng Xiaoping e Zhu Rongji. Jiang Zemin foi substituído por Hu Jintao em 15 de novembro de 2002.

segunda-feira, 21 de novembro de 2022

O planeta Terra visto do Sol


Estando no Sol, vejo oito esferas a girar à minha volta, umas mais perto do que outras mais longe, cada qual com a sua mania, mas há uma que chama mais à atenção, a terceira a contar da que está mais perto. Colocando na máquina a teleobjetiva de maior alcance verifico que é a única que é preenchida nuns sítios por florestas e muitos organismos a mexerem, outros sítios por desertos, e ainda outros por betão com muita bicharada fumegante. Não é fácil ser um organismo. Em todo o universo, pelo que sei até agora, não existe outro lugar como este lugar, um posto avançado indiscreto da Via Láctea que sustenta este pacóvio observador, ainda que com muita má vontade. Mas, eis que chego a um lugar que aina não falei - o Oceano, o Mar - melhor parar por aqui para não sofrer o verdadeiro terror das profundezas.

Do ar que respiramos, 78% é azoto; 21% é oxigénio; 1% é dióxido de carbono, argónio, vapor de água e outros gases. E, todavia, é com este 1% que estamos muito incomodados. Ora, quando o corpo humano está sob pressão, o azoto é transformado em bolhas minúsculas que migram para o sangue e os tecidos. Se a pressão mudar muito depressa – quando um mergulhador está debaixo de água do mar, e sobe rápido demais –, as bolhas presas no corpo começam a borbulhar, como uma garrafa de champanhe que acabou de ser aberta, obstruindo os vasos sanguíneos menores, privando as células de oxigénio e causando uma dor tão terrível que a vítima se contorce em agonia. A doença da descompressão é um risco profissional, por exemplo, dos pescadores de esponjas e pérolas. Noutros tempos, os trabalhadores de pontes, para construir os pilares debaixo de água, metiam-se em caixas pneumáticas, que eram câmaras secas e fechadas e enchidas de ar comprimido. Quando emergiam, após um período extenso de trabalho sob essa pressão artificial, sofriam sintomas brandos como formigueiro nas extremidades do corpo, e prurido à superfície do corpo, na pele. Mas um pequeno número desses profissionais, imprevisivelmente, sentia uma dor mais insistente nas articulações e alguns ocasionalmente acabavam por cair em agonia, às vezes para nunca mais se levantarem. Ora isto era desconcertante, ao ponto de alguns trabalhadores iam para a cama dormir, sentindo-se bem, mas acordavam paralisados, quando alguns nem sequer chegavam a acordar.

Como disse, se mesmo assim, a Terra não é meiga para a vida de um organismo como o homo sapiens viver, imagine-se todos os outros. Em todo o caso, a Terra é um lugar único, ainda que seja o único lugar onde apenas uma pequena porção é habitada pela espécie humana sapiens. Com pouca água potável para ser habitada, com uma parte surpreendentemente grande que é quente e seca, e outra que é fria húmida, ou muito elevada e íngreme demais. Admite-se que, em parte, o sapiens tem muita culpa das suas desgraças, por ser demasiadamente atrevido. Há uma imensidão de outros animais, mas a maioria está adaptada apenas aos sítios que gosta. Nas piores circunstâncias – um sapiens a pé sem água num deserto quente, rapidamente (cinco a sete horas no máximo) entra em delírio e perde a consciência para nunca mais levantar. Mas o sapiens não é mais resistente diante do frio, nas zonas geladas. Como todos os mamíferos, os seres humanos sabem gerar calor, contudo – devido à escassez de pêlos – só conseguem conservá-lo com roupa apropriada ou com outros recursos mais sofisticados. Mesmo num clima ameno, metade das calorias queimadas serve para manter o corpo aquecido. Ainda assim, as porções da Terra para o sapiens viver com tranquilidade são bem modestas, apenas 4% da superfície total se incluirmos os oceanos, ou seja, 12% da área terrestre.  

É preciso muita sorte para encontrar um planeta adequado à vida. E quanto mais avançada a vida, mais sortudo é preciso ser. Constitui uma curiosidade da física que, quanto maior uma estrela, maior a velocidade com que ela queima. Se o Sol tivesse uma massa dez vezes maior, já teria desaparecido e não estaríamos aqui agora. Também temos a sorte de orbitar à distância certa. Se orbitássemos muito mais perto do Sol, tudo na Terra teria evaporado. Se orbitássemos muito mais longe, tudo teria congelado. A descoberta de extremófilos nas fontes térmicas de Yellowstone e de organismos semelhantes em outros lugares fez os cientistas perceberem que, na verdade, certo tipo de vida poderia estender-se até mais longe – até talvez sob a superfície gelada de Plutão.

Para percebermos o que se passa, basta olhar para Vénus, o planeta mais próximo do Sol que está a 40 milhões de quilómetros. A luz solar alcança Vénus dois minutos antes de chegar à Terra. Em tamanho e composição, é muito semelhante à Terra, mas a pequena diferença na distância orbital mudou completamente a história. Parece que, nos anos iniciais do sistema solar, Vénus era só ligeiramente mais quente do que a Terra, e provavelmente possuía oceanos. Mas esses poucos graus de calor extra fizeram com que ele não conseguisse reter a água da superfície, com as devidas consequências para a temperatura e o clima. À medida que a água evaporava, os átomos de hidrogénio escapavam para o espaço. Assim, os átomos de oxigénio combinaram-se com o CO2 para formar uma atmosfera de denso efeito estufa. A temperatura na superfície de Vénus com cerca de 470° C, calor suficiente para derreter chumbo, e a pressão atmosférica 90 vezes superior à da Terra, incompatível com qualquer corpo animal.

Aida assim, estar à distância certa do Sol não é tudo, senão a Lua seria arborizada e habitável, o que não é o caso. 
A maioria das luas é minúscula em relação ao seu planeta. Os satélites de Marte - Fobos e Deimos - por exemplo, têm apenas uns dez quilómetros de diâmetro. A Lua, porém, tem mais de um quarto do diâmetro da TerraPara a vida é preciso o tipo certo de planeta. Entre outras coisas, o interior buliçoso da Terra com o seu campo magnético, e a libertação dos gases, ajudaram a formar uma atmosfera protetora das radiações cósmicas. Além disso, a tectónica das placas, em contínuo movimento, também contribui para uma orografia mais favorável à vida. Mas, por outro lado, sem a influência estabilizadora da Lua, a Terra oscilaria como um pião prestes a parar, com consequências imprevisíveis para o clima. A influência gravitacional permanente da Lua mantém a Terra girando na velocidade e no ângulo certos para proporcionar o tipo de estabilidade necessária ao longo e bem-sucedido desenvolvimento da vida. Isso não prosseguirá para sempre. A Lua está escapando do domínio da Terra a uma taxa de cerca de quatro centímetros por ano. Dentro de 2 mil milhões de anos, terá recuado tanto que não manterá mais a Terra estável. Durante muito tempo, os astrónomos pensavam que a Lua e a Terra se formaram juntas. Ou que a Terra capturou a Lua ao passar por perto. Mas o que aconteceu foi que há uns 4,4 mil milhões de anos, um objeto do tamanho de Marte colidiu com a Terra, arremessando escombros suficientes para criar a Lua. E se os dinossauros não tivessem sido exterminados por um asteroide que colidiu naquela época exata, não estaríamos agora aqui.

Quem imaginaria, por exemplo, que o silício é o segundo elemento mais comum na Terra ou que o titânio é o décimo? A abundância não está necessariamente associada à familiaridade ou à utilidade para nós. Muitos desses elementos mais obscuros são, de facto, mais comuns do que outros mais conhecidos. Existe mais cério na Terra do que cobre, mais neodímio e lantânio do que cobalto ou azoto. O estanho mal entra na lista dos cinquenta mais comuns, eclipsado por obscuridades relativas como praseodímio, samário, gadolínio e disprósio. A abundância não está relacionada à facilidade de deteção. O alumínio é o quarto elemento mais comum na Terra, representando cerca de um décimo de tudo o que está sob os nossos pés, mas nem sequer se suspeitava de sua existência até ele ser descoberto, no século XIX, por Humphrey Davy, e por muito tempo depois foi considerado raro e precioso. Mas se não fosse o carbono, a vida como a conhecemos seria impossível. Provavelmente qualquer tipo de vida seria impossível.

Outros elementos são críticos não para criar vida, mas para sustentá-la. Precisamos de ferro para fabricar hemoglobina, e sem ele morreríamos. O cobalto é necessário à criação da vitamina B12. Potássio e sódio são bons para os nervos. Molibdénio, manganês e vanádio ajudam a manter as enzimas felizes. Evoluímos para utilizar ou tolerar essas coisas – senão mal conseguiríamos estar aqui –, mas mesmo assim vivemos dentro de margens de aceitação estreitas. O selénio é vital para todos nós, com peso conta e medida. O grau em que os organismos necessitam de ou toleram certos elementos é uma consequência de sua evolução. No entanto se aumentarmos as doses, um pouquinho que seja, logo poderemos ultrapassar o limite. Ninguém sabe, por exemplo, se uma quantidade minúscula de arsénico é ou não necessária ao nosso bem-estar. Alguns especialistas afirmam que sim; outros que não. A única certeza é que arsénico demais mata. As propriedades dos elementos podem tornar-se mais curiosas quando eles são combinados. Oxigénio e hidrogênio, por exemplo, são dois dos elementos mais amigos da combustão, mas, ao se juntarem, formam a água incombustível. O oxigénio em si não é combustível, mas facilita a combustão de outras coisas. O gás hidrogénio, por outro lado, é extremamente combustível.

Ainda mais estranhos em combinação são o sódio, um dos elementos mais instáveis, e o cloro, um dos mais tóxicos. Uma porção de sódio puro na água comum, ela explodirá com força suficiente para matar. O cloro é mais notoriamente perigoso. Embora útil em pequenas concentrações para eliminar microrganismos, em volumes maiores também é letal para nós. O cloro foi o elemento utilizado em muitos dos gases venenosos na Primeira Guerra Mundial. E, como provam os olhos lacrimejantes de nadadores em piscinas, mesmo quando extremamente diluído agride o corpo humano. No entanto, reunindo esses dois elementos desagradáveis, obtemos Cloreto de sódio – o sal de cozinha comum.

Grande parte da razão pela qual a Terra parece tão milagrosa é que evoluímos para nos adaptar às suas condições. O que nos assombra não é que ela seja adequada à vida, mas o que seja a vida. Ninguém sabe ao certo. Desse modo, é possível que os eventos e as condições que levaram ao surgimento da vida na Terra não sejam tão extraordinários como gostamos de pensar. Mesmo assim, eles foram suficientemente extraordinários.


domingo, 13 de novembro de 2022

As nossas maneiras, as nossas opiniões, entre a ética e a estética



A unidade que Shaftesbury estabelece entre a ética e a estética, entre a virtude e a beleza, aparece claramente no conceito de “maneiras”. Maneiras, para o século XVIII, significa aquela disciplina meticulosa do corpo que transforma a moralidade em estilo, desfazendo a oposição entre o apropriado e o agradável. Nessas formas reguladas da conduta civilizada, dá-se uma estetização extensiva das práticas sociais: os imperativos morais já não se impõem com o peso de um dever kantiano, mas infiltram-se na aparência da experiência vivida que algumas pessoas se lhe referem com expressões como tato, savoir faire, e por vezes bom senso
Segundo Ernst Cassirer, Shaftesbury precisa de uma teoria do belo “para responder à questão da formação correta do caráter, e da lei que governa a estrutura do mundo interno”.

O sujeito, em si mesmo, é assim harmonizado através da estética. Da mesma maneira que a obra de arte, o sujeito intromete os códigos que o governam. Althusser diz que devemos funcionar sozinhos, sem necessidade de constrições políticas, ou seja, vivermos sem a legitimação das leis. Isto já Kant havia encontrado na representação estética. É o Lebenswelt social, que parece operar com o rigor de uma lei racional, mas cuja lei nunca é aplicável ao comportamento particular concreto que a apresenta.

As revoluções tiveram sempre como proveito da classe média, que teve algumas vitórias históricas na sociedade política, à custa de muita luta. Mas o dilema desta luta é a desfiguração da lei através do discurso ao ser materializado no conflito político. É assim que Hegel escreve na Fenomenologia do Espírito, com um sarcasmo dirigido ao subjetivismo, sobre a “bendita unidade da lei e do coração”. As estruturas de poder são transformadas em estruturas de sentimentos, e a estética é uma mediação vital nesta passagem como regra de comportamento social. 

E foi assim que veio o tempo de as ações morais passarem a ser classificadas principalmente como “agradáveis” ou “desagradáveis”. E assim novos hábitos éticos se instalaram e naturalizaram como regra. A ordem social passou do ponto em que estava a cada momento submetida a uma discussão apocalíptica, para o descanso, que aproveitando os frutos do trabalho, entregue às malhas do prazer. 

Foi a desilusão que Burke teve Com a Revolução Francesa que o fez seguir por outro caminho.  Para ele, a obra de arte mais gloriosa era exatamente a Magna Carta, mãe de uma constituição inglesa que passou a dizer-se "não-escrita". Constituição inglesa informal, mas inelutável. O utilitarismo puritano só cederá espaço a um esteticismo do poder quando a sociedade for redefinida como um objeto de arte, que não tem nenhum propósito instrumental além da autoapreciação. É o que nós chamamos comumente de “consenso” ou “legitimação”. A imaginação é, verdadeiramente, para Hume, “o juiz último de todos os sistemas filosóficos”. Se a crença não passa de um sentimento um pouco mais vivaz, questiona-se David Hume, não poderá a sua crença, de que as coisas são assim, sofrer o mesmo questionamento, e voltar-se contra si mesma? “Depois de meus mais cuidadosos e exatos argumentos”, confessa, “não posso dar nenhuma razão pela qual deveria manter esta perspetiva. 
 
Não pode haver nenhum apelo para além da experiência e do hábito que estimulem a imaginação; é sobre esses apoios frágeis em que tudo se assenta, e assim se baseia todo o consenso social. “A memória, os sentidos e o entendimento são deste modo, todos eles, fundados na imaginação, ou na vivacidade de nossas ideias”. Numa adenda ao Tratado, Hume reconhece o quão completamente esta “vivacidade” atravessa a rede conceptual no esforço de distinguir entre crenças e ficções: “quando eu tento explicar quase não encontro palavras que respondam inteiramente à questão, e sou obrigado a recorrer ao sentimento de cada um, de forma a lhe dar uma perfeita noção desta operação da mente. Uma ideia assente na experiência é sentida de maneira diferente de uma ideia fictícia. 

David Hume chama "imaginação" à fonte de todo o conhecimento, uma conotação bem diferente da que se tem agora, o que explica porque a filosofia anda perdida por estes dias da ciência pura e dura. Mas Hume vem depois a contradizer-se, depois de reduzir a razão à imaginação, acaba por declarar que “Nada é mais perigoso para a razão que os voos da imaginação, e nada provocou mais erros entre os filósofos”. A chave para esta aparente inconsistência está na distinção entre as formas mais confiáveis e as mais selvagens do imaginar: devemos rejeitar “todas as sugestões triviais da fantasia, e aderir ao entendimento, isto é, às propriedades mais gerais e mais estabelecidas da imaginação”. O que nos salvará da imaginação é a razão, que é apenas uma outra versão sua.

Assim não surpreende, em função do que está colocado nesse debate, que Edmund Burke comece o seu trabalho sobre o sublime e o belo tentando defender a possibilidade de uma ciência do gosto. Se a beleza é algo relativo, os laços que mantêm a sociedade coesa estão em grave perigo. A beleza, para Burke, não é somente uma questão da arte: "Para mim, a beleza é uma qualidade social; pois quando homens e mulheres, e não só eles, mas também quando os animais nos dão um sentimento de alegria e prazer ao observá-los (e há muitos que o fazem), eles nos inspiram ternura e afeição por suas pessoas; nós queremos tê-los por perto, e entramos facilmente em relação com eles, a não ser que tenhamos fortes razões em contrário."

Para Burke, tanto quanto para Hume, o que dá coesão à sociedade é o fenómeno estético da mimese, que deve ser considerado mais a partir dos costumes que das leis: “É a partir da imitação, mais que do preceito, que aprendemos todas as coisas; e o que aprendemos assim, o fazemos não só com mais eficácia, mas também com mais prazer. É isto que forma as nossas maneiras, nossas opiniões, nossas vidas. Trata-se do mais forte cimento da sociedade; uma espécie de assentimento mútuo, que cada um concede ao outro, sem constrição para si, e extremamente gratificante para todos.” A lei e o preceito são simplesmente derivados do que é primeiro constituído pela prática costumeira e a coerção, assim, é secundária em relação ao consenso. Nós nos tornamos sujeitos humanos imitando com prazer as formas práticas da vida social, e na fruição desta funda-se a relação que nos une hegemonicamente ao todo. Imitar é submeter-se a uma lei, mas de forma tão gratificante que a liberdade se baseia nesta servidão. Este consenso é menos um contrato social artificial, tecido e mantido laboriosamente, que uma espécie de metáfora espontânea ou constante produção de semelhança. O único problema é saber onde vai dar toda essa imitação: a vida social para Burke parece uma cadeia infinita de representações de representações, sem fundo nem origem. Se nós fazemos como os outros fazem, e os outros fazem o mesmo, então todas essas cópias vivem na falta de um original transcendental, e a sociedade é estilhaçada numa selva de espelhos.

Burke confessa não ver maneira de unir esses dois registos, o que coloca claramente um problema político. O dilema é que a autoridade que nós amamos, nós não respeitamos, e a que respeitamos, não amamos. “A autoridade de um pai, tão útil para o nosso bem-estar, e tão justamente venerável, acima de qualquer cálculo, impede-nos de ter aquele amor inteiro por ele, como temos por nossa mãe, em que a autoridade parental está quase dissolvida na doçura e indulgência maternais.” O paradoxo político é claro: só o amor nos ganhará realmente para a lei, mas esse amor corroerá a lei até destruí-la. Uma lei bastante atraente para envolver nossos afetos íntimos, e tão eficaz para a hegemonia, tenderá a nos inspirar um desprezo afetuoso. Por outro lado, um poder que estimula nosso medo filial, e assim, nossa obediência submissa, supostamente aliena nossos afetos e nos incita a um ressentimento edipiano.

Procurando desesperadamente uma figura reconciliadora, Burke nos oferece nada menos que a imagem do avô, cuja autoridade masculina enfraquecida pela idade ganha uma “parcialidade feminina”. Mary Wollstonecraft [1759-1797, considerada hoje uma das fundadoras da filosofia feminista] percebe rapidamente o sexismo na argumentação de Burke e o denuncia em seu Vindication of the Rights of Men. Segundo ela, as distinções que Burke faz entre o amor e o respeito estetizam as mulheres a ponto de retirá-las da esfera da moral. É o que ainda se passa hoje com a publicidade, sabendo o quanto as mulheres excitam os homens através da estética da perfeição. Tal afeto (afeção) como prazer, acaba por perturbar a ética do amor na sua intimidade com o prazer. Esta frouxidão moral consentida pelas mulheres é capturada pela imaginação libertina, argumenta Wollstonecraft. Um gosto sensual excessivo, que é quente, ofusca a argumentação crítica da razão, que é fria, como se o sexo estivesse muito distante da virtude. São estas confusões que colocam a relação da razão com o sentimento, com a relação da água com azeite.

Colocando a questão da relação entre a beleza e a virtude de outra maneira, seguindo os argumentos de Wollstonecraft, é certamente mais cativante uma imaginação libertina do que os frios argumentos da razão, para os quais não há sexo na virtude. Mas se a experiência provar que há beleza na virtude, que há encanto na ordem, o que necessariamente implica um esforço, um gosto sensual excessivo poderá ser sentimento do prazer subsumido pela razão. Para Wollstonecraft, Burke não é um esteta, o que faz toda a diferença; divorcia a beleza (mulher) da verdade moral (homem). A virtude não tem nada a ver com o sexo, nem com o gosto. 

quinta-feira, 3 de novembro de 2022

Clair Patterson e o chumbo na gasolina



Foi Harrison Brown, da Universidade de Chicago, que desenvolveu um método novo de contar isótopos de chumbo em rochas ígneas (aquelas criadas por aquecimento, e não por depósito de sedimentos). Percebendo que o trabalho seria excessivamente tedioso, entregou-o ao jovem Clair Patterson para a sua tese de doutoramento. É famosa a sua promessa a Patterson de que determinar a idade da Terra com seu novo método seria canja. Na verdade, levaria anos.

Clair Patterson começou a trabalhar no projeto em 1948. Comparada com a contribuição heroica de Thomas Midgley à marcha do progresso, a descoberta da idade da Terra por Patterson possui um toque de anticlímax. Durante sete anos, primeiro na Universidade de Chicago e depois no Califórnia Institute of Technology (para onde se transferiu em 1952), ele trabalhou num laboratório esterilizado, fazendo medições muito precisas das taxas de chumbo/urânio em amostras de rochas antigas cuidadosamente selecionadas.

O problema da medição da idade da Terra era que se precisava de rochas extremamente antigas, contendo cristais portadores de chumbo e urânio mais ou menos tão antigos quanto o próprio planeta – é óbvio que rochas muito mais novas forneceriam datas enganosamente recentes. Mas rochas antigas de facto são difíceis de encontrar na Terra. No final da década de 1940, ninguém entendia porque eram tão raras. É incrível que só quando já estávamos em plena era espacial alguém tenha conseguido dar uma explicação plausível para o sumiço delas (a solução está na tectônica das placas). Patterson teve de tentar explicar as coisas contando com materiais bem limitados. Até que lhe ocorreu a ideia engenhosa de contornar a escassez de rochas utilizando material de fora da Terra, os meteoritos. Seu pressuposto foi bem ousado - restos dos materiais de construção dos primórdios do sistema solar era aquilo que ele precisava, pois conseguiam preservar uma química interior mais ou menos intacta. Medindo-se a idade dessas rochas errantes, obter-se-ia também a idade (suficientemente próxima) da Terra.

Como sempre, nada foi tão simples como esta descrição superficial leva a crer. Os meteoritos não são abundantes, e amostras meteoríticas não são fáceis de obter. Além disso, a técnica de medição de Brown revelou-se extremamente sensível e precisou de muitos refinamentos. Acima de tudo, havia o problema de que as amostras de Patterson eram constante e inexplicavelmente contaminadas por grandes doses de chumbo atmosférico sempre que expostas ao ar. Isso acabou fazendo com que ele criasse um laboratório esterilizado – o primeiro do mundo, de acordo com pelo menos um relato. Patterson despendeu sete anos de trabalho paciente para apenas reunir amostras adequadas para o teste final. Na primavera de 1953, viajou até ao Argonne National Laboratory, em Illinois, onde pôde utilizar a última palavra em espectrografia de massa, uma máquina capaz de detetar e medir as quantidades mínimas de urânio e chumbo encerradas em cristais antigos. Quando enfim obteve os resultados, Patterson, de tão excitado, achou que estivesse a ter um ataque cardíaco.

Logo depois, num encontro em Wisconsin, Patterson anunciou uma idade definitiva para a Terra de 4550 milhões de anos (com uma margem de erro de mais ou menos 70 milhões de anos) – “uma cifra que permanece inalterada. Após duzentos anos de tentativas, a Terra enfim possuía uma idade. Cumprida sua missão principal, Patterson voltou a atenção para todo aquele chumbo na atmosfera. Ele se espantou ao descobrir que o pouco que se sabia sobre os efeitos do chumbo nos seres humanos era quase invariavelmente desconhecido ou enganador – o que não surpreendia, já que durante quarenta anos todos os estudos dos efeitos do chumbo haviam sido financiados exclusivamente pelos fabricantes de aditivos de chumbo. Num daqueles estudos, um médico sem nenhum treino especializado em patologia química realizou um programa de cinco anos em que se pediu a voluntários que respirassem ou engolissem grandes quantidades de chumbo. Depois a urina e as fezes dessas cobaias foram examinadas. Infelizmente, como o médico parece ter ignorado, o chumbo não é excretado como produto residual. Ao contrário, acumula-se nos ossos e no sangue – daí ser tão perigoso –, e nem os ossos nem o sangue foram examinados. O resultado foi a aprovação do chumbo como inofensivo à saúde.

Uma coisa era certa, Patterson sabia que tínhamos muito chumbo na atmosfera – continuamos tendo, na verdade, já que o chumbo nunca desaparece – e que cerca de 90% parecia advir dos canos de escape dos automóveis. Mas não conseguiu provar isso. Ele precisava de um termo de comparação para os níveis de chumbo na atmosfera, entre o atual e o passado em 1923, altura em que havia sido introduzido o 
Tetraetilchumbo, ou chumbo tetraetila, o aditivo para gasolina cuja fórmula é Pb(C₂H₅)₄. Faz com que a octanagem da gasolina seja elevada, pois é resistente à pressão, porém é tóxico e libera partículas de chumbo no ar. Ocorreu-lhe, então, que núcleos de gelo poderiam fornecer a resposta. Sabia-se que a neve que cai em lugares como a Gronelândia se acumula em camadas anuais distintas (porque diferenças sazonais de temperatura produzem mudanças ligeiras na coloração do inverno para o verão). Contando retroativamente essas camadas e medindo a quantidade de chumbo em cada uma delas, Patterson poderia calcular as concentrações globais de chumbo em qualquer época por centenas, ou mesmo milhares, de anos. A ideia tornou-se a base dos estudos de núcleos de gelo, em que se fundamenta grande parte do trabalho climatológico moderno.

Patterson descobriu que antes de 1923 quase não havia chumbo na atmosfera, e desde aquela época o seu nível crescera de forma contínua e perigosa. Sua missão de vida era fazer com que o chumbo fosse eliminado da gasolina. Para isso, tornou-se um crítico constante e, muitas vezes, ruidoso da indústria do chumbo e seus interesses. A campanha se mostraria infernal. A Ethyl era uma corporação global poderosa, com muitos amigos em altos cargos. (Entre seus diretores estiveram o juiz da Suprema Corte Lewis Powell e Gilbert Grosvenor, da National Geographic Society.) Patterson de repente viu suas verbas de pesquisa serem suspensas ou negadas. O American Petroleum Institute cancelou um contrato de pesquisa com ele, bem como o Serviço de Saúde Pública dos Estados Unidos, uma instituição do governo supostamente neutra.

À medida que Patterson se tornava incómodo, a direção de sua instituição via-se repetidamente pressionada pelos executivos da indústria do chumbo a calá-lo ou demiti-lo. De acordo com Jamie Lincoln Kitman, escrevendo em The Nation em 2000, os executivos da Ethyl supostamente ofereceram o patrocínio de uma cátedra no Caltech “se Patterson fosse posto na rua”. Absurdamente, ele foi excluído do painel do Conselho Nacional de Pesquisa americano de 1971 para investigar os perigos do envenenamento atmosférico por chumbo, embora fosse então sem dúvida o maior especialista em chumbo atmosférico. Patterson tem o mérito de nunca ter hesitado nem cedido. Seus esforços acabaram levando à promulgação do Clean Air Act, lei antipoluição atmosférica de 1970, e finalmente à suspensão da venda de gasolina com chumbo nos Estados Unidos em 1986. Quase de imediato, os níveis de chumbo no sangue dos norte-americanos caíram 80%. Mas como o chumbo fica para sempre, quem está vivo hoje possui cerca de 625 vezes mais chumbo no sangue do que a população de um século atrás. A quantidade de chumbo na atmosfera também continua aumentando, sem nenhum impedimento legal, cerca de 100 mil toneladas métricas ao ano, como resultado principalmente da fundição e de atividades industriais. Os Estados Unidos também proibiram o chumbo na pintura de interiores, 44 anos depois da maior parte da Europa. A solda de chumbo só foi removida dos recipientes de alimentos norte-americanos em 1993.

Quanto à Ethyl Corporation, continua firme e forte, embora a MGM, a Standard Oil e a Du Pont não tenham mais participação acionista. Em fevereiro de 2001, a Ethyl ainda alegava “que as pesquisas não conseguiram mostrar que a gasolina com chumbo representa uma ameaça à saúde humana ou ao meio ambiente”. Em seu site, a história da empresa não faz nenhuma menção ao chumbo – ou mesmo a Thomas Midgley –; menciona-se simplesmente que o produto original continha “uma certa combinação de substâncias químicas”. A Ethyl deixou de produzir gasolina com chumbo, embora, de acordo com os demonstrativos da empresa de 2001, o chumbo tetraetila ainda representasse 25,1 milhões de dólares em vendas em 2000 (de um total de 795 milhões de dólares), valor superior aos 24,1 milhões de dólares em 1999, mas bem distantes dos 17 milhões de dólares em 1998. 

Patterson morreu em 1995, com 73 anos. E o mais intrigante é que ele não ficou famoso. É bem possível que ele tenha sido o geólogo mais influente do século XX. No entanto, quem é que ouviu falar de Clair Patterson? A maioria dos livros didáticos de geologia não o menciona. Dois livros populares recentes sobre a história da datação da Terra chegam a grafar errado o seu nome. Em todo o caso, graças ao trabalho de Clair Patterson, em 1953 todos podiam concordar com a idade da Terra.