segunda-feira, 30 de agosto de 2021

Habiba Sarābi




Habiba Sarābi, hematologista afegã nascida em 1956 na província de Ghazni, de etnia hazara, em 2005 havia sido nomeada governadora da província de Bamiyan pelo presidente Hamid Karzai. Anteriormente, desempenhou outos cargos, como o de Ministra dos Assuntos da Mulher do Afeganistão, e da Educação. O sobrenome às vezes é escrito Sarobi.

Passou a sua juventude viajando pelo país com seu pai. Mais tarde, mudou-se para Cabul para estudar medicina na universidade. Depois de se formar, em 1987, recebeu uma bolsa da Organização Mundial da Saúde e mudou-se para a Índia para concluir os seus estudos em hematologia.

Durante o governo Taliban no Afeganistão fugiu para Peshawar, no Paquistão, juntamente com os filhos. O marido dela ficou em Cabul para cuidar da família. Ela também trabalhou clandestinamente como professora de meninas, tanto no Afeganistão como no Paquistão em campos de refugiados.

Como governadora, Sarabi desenvolveu o turismo na região como fonte de receita. Essa província foi historicamente uma fonte da cultura budista, onde se localizavam as estátuas gigantes dos Budas que os talibans destruíram. No entanto, Bamiyan continua uma das províncias mais pobres e subdesenvolvidas do Afeganistão, com altas taxas de analfabetismo e pobreza. A criação do Parque Band-e Amir em Bamiyan valeu-lhe o recebimento de vários prémios, que não ficaram por aqui, também recebeu o Prémio N-Peace em 2016 pelo trabalho desenvolvido em prol da igualdade de género. Em 8 de março de 2018, Dia Internacional da Mulher, fez uma declaração ao Conselho de Segurança da ONU durante o Debate Aberto sobre a Missão das Nações Unidas no Afeganistão. E em 2020 fez parte da equipa das negociações para a paz no Afeganistão.

domingo, 29 de agosto de 2021

Turquemenistão




O Turquemenistão, um dos países mais fechados do mundo, pelo menos até ao mês de julho de 2021 ainda não havia declarado nenhum caso de infeção para a covid-19. 
O Turquemenistão, a par com a Coreia do Norte e com alguns arquipélagos isolados no Pacífico, é um dos poucos países e territórios no mundo que afirma não ter tido casos de pessoas infetadas com o novo coronavírus (SARS-Cov-2) desde o início da crise pandémica. Começou a aliviar as medidas restritivas aplicadas no âmbito da pandemia em abril passado, com a reabertura de restaurantes e mesquitas. A circulação ferroviária também voltou a funcionar, mas as viagens aéreas continuam suspensas. Em declarações ao canal de televisão Mir, com sede em Moscovo, o presidente disse que o Turquemenistão dispõe de duas vacinas contra a covid-19 desenvolvidas na Rússia, a Sputnik V e a EpiVacCorona. É conhecido por ser um dos países com pior registo no que diz respeito aos direitos humanos, amplamente denunciado por organizações internacionais, ou pelo comportamento e decisões excêntricas do seu presidente. 

O Turquemenistão, um país com 6 milhões de habitantes, faz fronteira com o Cazaquistão a noroeste, Uzbequistão a nordeste e leste, Afeganistão a sudeste, Irão ao sul e sudoeste, e o mar Cáspio a oeste. Ashgabat, uma cidade de mármore branco com cerca de 1 milhão de habitantes, perto da fronteira com o Irão, é a capital.




Gurbanguly Berdymukhamedov, na presidência desde 2006, faz questão de combinar uma imagem de homem poderoso com várias excentricidades no exercício do poder. Já foi visto, por exemplo, a cantar rap, a participar numa corrida de carros ou a exibir as suas capacidades físicas ao levantar barras (em ouro) em plenas reuniões ministeriais. O Turquemenistão é uma república presidencialista e está na lista dos quinze "piores" países contra a liberdade religiosa, de acordo com a Comissão sobre Liberdade Religiosa. Uma das excentricidades foi a inauguração de uma estátua de um cão em ouro, com seis metros de altura, na capital Ashgabat.




A estátua rende homenagem à raça Alabay, uma raça autóctone que deriva do cão pastor da Ásia Central e que faz parte do património nacional do país. Não é, de resto, a primeira vez que a raça é homenageada pelo presidente Berdymukhamedov, tendo dedicado mesmo um livro ao cão Alabay e, numa reunião ministerial, recitou um poema que escreveu sobre a raça. Berdymukhamedov também ofereceu, em 2017, um filhote de cão desta raça ao presidente russo Vladimir Putin, correndo mundo a fotografia do chefe de Estado do Turquemenistão a exibir o cachorro levantando-o pela nuca, com uma mão. Segundo a BBC a estátua está localizada numa área residencial projetada para funcionários públicos e tem, na parte de baixo, uma tela LED onde passam vídeos sobre aquela raça canina. Berdymukhamedov também costuma exibir a sua paixão pelos cavalos locais, tendo mesmo inaugurado, em 2015, uma estátua sua a cavalo, com 21 metros de altura e, claro, toda ela em ouro também.




Imagens de Berdymukhamedov a andar a cavalo nas ruas de Ashgabat são relativamente comuns. Em 2013, foi noticiado que o governante caiu numa corrida a cavalo, mas os media estatais terão sido proibidos de passar imagens do ocorrido. Apesar da ostentação das excentricidades do seu presidente, grande parte da população do Turquemenistão vive em condições de muita pobreza, e o país é classificado como um dos menos livres do mundo pela organização de liberdade de imprensa RSF, apenas um lugar acima da Coreia do Norte. Berdymukhamedov, que foi dentista antes de ser nomeado como ministro da saúde do ex-presidente do país, Saparmurat Niyazov, está no poder desde 2006 e nas últimas presidenciais, em 2017, foi eleito para um terceiro mandato, com 98% dos votos, em eleições que voltaram a merecer reservas por parte da comunidade internacional.

O atual Turquemenistão encontra-se em territórios que já foram caminhos usados por civilizações por séculos. Na Idade Média a atual Mary era uma das grandes cidades do mundo islâmico, e um importante entreposto da Rota da Seda. Em 1881 foi anexado ao Império Russo, e chegou a ter um papel proeminente no movimento anti bolchevique na Ásia Central. Em 1924, o Turquemenistão tornou-se uma república constituinte da União Soviética até 1991, quando se tornou independente.

Possui a quarta maior reserva de gás natural do mundo. Apesar de ser rico em recursos naturais em algumas áreas, a maior parte do país é coberta pelo Deserto de Caracum. A partir de 1993, os turquemenos receberam eletricidade, água e gás natural do governo gratuitamente, auxílio planeado inicialmente para durar 10 anos, posteriormente estendido até 2030. Mas devido à queda do preço do petróleo, em 2017, o presidente suspendeu a benesse. 
Um campo de gás natural do país, conhecido como a Porta do Infernoé um grande ponto de atração.

As áreas montanhosas localizam-se no leste e no sul. Os rios ausentes na maior parte do território, sulcam as regiões de fronteiras, como o rio Amu Dária, que faz fronteira parcial com o Uzbequistão. E o Murgab, que nasce no Afeganistão. O Turquemenistão está localizado em um dos desertos mais secos do mundo e, por isso, alguns lugares tem uma precipitação média anual de apenas 12mm. A temperatura mais alta registrada em Asgabat foi de 48 °C, e em Kerki, no interior do país nas margens do rio Amu Dária, 51,7 °C. As maiores densidades demográficas ocorrem na costa do mar Cáspio, ao longo dos rios e dos oásis. O deserto é despovoado.



sábado, 28 de agosto de 2021

Suhaila Siddiq


Várias associações de mulheres foram criadas depois da queda dos Taliban em 2001. Mesmo durante o regime Taliban havia associações organizando escolas secretas para raparigas, para orientar mulheres sobre higiene, ou dando cursos de alfabetização. A grande heroína, do tempo do Taliban, era a Ministra da Saúde de Karzai - Souhaila Siddiq -, a única mulher no Afeganistão com o título de 'generala afegã'. Ela manteve o ensino de medicina para as mulheres e conseguiu reabrir a ala feminina do hospital onde trabalhava, depois de ter sido fechada pelos Taliban.

Nesta foto, vê-se ao centro, Suhaila Siddiq, a outra mulher é Habiba Sorabi, aquando de uma reunião de ministros do Afeganistão com George W. Bush, na Sala Oval da Casa Branca, em 24 de julho de 2002.
Suhaila Siddiq [1949-2020] referida como "General Suhaila", foi Ministra da Saúde do Afeganistão de dezembro de 2001 a 2004. Antes disso, ela trabalhou como cirurgiã-geral no exército do Afeganistão. Suhaila Siddiq foi uma das poucas líderes do governo no Afeganistão, e é a única mulher na história do Afeganistão a ter o título de tenente-general. Trabalhou para o governo do Afeganistão desde o reinado de Mohammed Zahir Shah, rei do Afeganistão que reinou de 1933 a 1973. Nasceu em Cabul de uma família Pashtun, tendo seu pai sido governador de Kandahar. Estudou na Universidade Médica de Cabul, mas concluiu os seus estudos médicos em Moscovo, na então União Soviética.

Durante o governo de Mohammad Najibullah (1987-1992), Siddiq chefiou o serviço de Cirurgia Geral do Hospital de Cabul. Função que exerceu antes do tempo dos Taliban, no tempo dos Taliban, e depois. Sob os Taliban, ela manteve a instrução da medicina para as mulheres, e conseguiu reabrir a secção feminina do hospital onde trabalhava, que havia sido fechado pelos Taliban.

Foi assim que Siddiq se fez respeitar por toda a gente, incluindo as feministas. Tanto ela como sua irmã Sidiqa, que era professora no Instituto Politécnico de Cabul, se recusaram a usar a burca. Poucas afegãs o ousaram fazer. Ela é citada como tendo dito: “Quando a polícia religiosa veio com as suas bengalas levantando os braços para me bater, eu ripostei, levantando também o meu pau. Então eles baixaram os braços, e me deixaram ir.” Mas, mesmo Suhaila, raramente saía durante o regime Taliban. Ela era levada de carro para o hospital todas as manhãs, embrulhada num xaile preto que sempre usava, e trazida de volta à noite.




Uma associação de mulheres tentou organizar uma passeata na semana seguinte à queda dos talibans. As mulheres se reuniram, de salto alto e chinelos, numa esquina em Mikrorayon para entrar na cidade. A maioria se atreveu a tirar a burca da cabeça, mas as autoridades puseram fim à passeata, alegando não poderem garantir a segurança das mulheres. Todas as vezes que tentaram foram impedidas. Mas depois as escolas para raparigas foram reabertas, entraram nas universidades e algumas conseguiram os seus empregos de volta. Foi lançada uma revista semanal, feita por e para mulheres, e Hamid Karzai não deixou escapar nenhuma oportunidade de falar sobre os direitos femininos.

Um dia, em junho de 2002, várias mulheres se destacaram durante a assembleia legislativa. As que falaram mais livremente foram ridicularizadas pelos homens de turbantes na sala, mas não desistiram. Uma delas, ao exigir um Ministro da Defesa do sexo feminino, recebeu muitas vaias. Quer dizer, para a maioria das mulheres anónimas, pouco mudou. Nas famílias, a tradição é tudo: são os homens que decidem. Apenas uma minoria das mulheres de Cabul largou a burca, e a maioria nem sabe que suas ancestrais, mulheres afegãs do século passado, desconheciam esse traje. Foi durante o regime do rei Habibullah, entre 1901 e 1919, que a burca foi introduzida. Ele impôs às duzentas mulheres do seu harém o uso da burca, para que não tentassem outros homens com os seus belos rostos quando saiam para fora dos portões do palácio. 

O véu que cobria tudo era de seda com bordados elaborados, e as princesas de Habibullah tinham até burcas bordadas com fios de ouro. Assim, virou um traje para a classe alta, para protegê-las dos olhares do povo. Nos anos 1950, o uso da burca já estava difundido no país inteiro, principalmente entre os ricos. A burca também tinha opositores. Em 1959, o primeiro-ministro, o príncipe Daoud, chocou o país ao aparecer na comemoração do dia da pátria com a esposa sem a burca. Ele tinha persuadido o irmão a deixar a sua fazer o mesmo, e pediu aos ministros também que o fizessem com as suas mulheres. Fora com as burcas. Já no dia seguinte podiam-se ver várias mulheres nas ruas de Cabul vestidas com sobretudos, óculos de sol e um chapeuzinho. Mulheres que antes andavam totalmente cobertas. Já que o uso da burca tinha começado nas esferas mais altas da sociedade, foram elas a abandoná-lo primeiro. O vestuário, porém, havia-se tornado um símbolo de status entre os pobres, e muitas empregadas e criadas jovens passaram a usar as burcas de seda de suas patroas.

Primeiro, foram apenas os Pashtun reinantes que cobriam suas mulheres, mas depois outros grupos étnicos começaram a usar o traje. Mas o príncipe Daoud queria banir a burca do Afeganistão. Em 1961, foi criada uma lei que proibia o seu uso por funcionárias públicas. Foram aconselhadas a se vestir no estilo ocidental. Levou vários anos para que a lei fosse seguida, mas na Cabul dos anos 1970 praticamente não havia uma Professora ou Secretária de Estado que não andasse de saia e blusa, enquanto os homens vestiam fatos à moda ocidental. No entanto, por vezes, as mulheres sem burca corriam o risco de levar um tiro numa perna, vinda de um qualquer fundamentalista, ou até de ser agredida com ácido na cara. A verdade é que, quando veio a guerra civil, as mulheres rapidamente passaram a andar na rua cobertas. Com os Taliban, todos os rostos de mulher desapareceram das ruas de Cabul.




Como ministra, em abril de 2002, Suhaila Siddiq supervisionou a vacinação de cerca de 6 milhões de crianças afegãs contra a poliomielite sob o patrocínio da Organização Mundial da Saúde. E em julho de 2002 acordou com uma delegação chinesa a reabilitação do Hospital com tudo o que havia de mais moderno.

Suhaila Siddiq viveu a vida toda no Afeganistão. Ela nunca se casou alegando a sua total dedicação à sua profissão, sem tempo para um marido. Mas também dizia: "Eu não me casei porque não queria receber ordens de um homem".

Suhaila Siddiq morreu em Cabul, em 4 de dezembro de 2020, com 71 anos, devido à Covid-19. Pouco tempo antes, havia sido diagnosticada a doença de Alzheimer.

sexta-feira, 27 de agosto de 2021

Relativismo Cultural


O relativismo cultural (RC) defende que o bem e o mal são relativos a cada cultura. O “bem” coincide com o que é “socialmente aprovado” numa dada cultura. Os princípios morais descrevem convenções sociais e devem ser baseados nas normas da nossa sociedade. Há um estereótipo bastante divulgado que afirma que todos os especialistas em ciências sociais são relativistas culturais.

Quando são muito novas, as crianças pensam na moral em termos de punições e obediência. Mais tarde, começam a pensar em termos de recompensa e, em seguida, em termos de aprovação familiar. Mais tarde ainda, na adolescência ou quando são adultos jovens, atingem a fase do relativismo cultural. Nesta fase, o “bem” coincide com o que é socialmente aprovado, o grupo de amigos em primeiro lugar, e depois a sociedade como um todo. O relativismo cultural combate a ideia de que existem valores objetivos.

A tomada de consciência de que existem sociedades em que o comportamento que acharíamos inaceitável é não apenas tolerado, mas até encorajado, pode ser muito perturbador, mas não leva necessariamente ao ceticismo moral. Se os conquistadores espanhóis ficaram horrorizados quando se depararam com a evidência da prática do sacrifício humano dos Incas, não se horrorizaram depois, no extermínio dos Incas. Uma repulsa similar foi sentida por aqueles que primeiro foram objeto de repulsa. E assim continuaria, como quando aqueles entraram em Belsen e Buchenwald.

É demasiadamente fácil condenar o que é estranho em outras culturas. Onde uma sociedade está em uma posição de dominar e conquistar outras, essa atitude pode levar à supressão intolerante do modo de vida de outros, onde ele difere de alguma forma do nosso. Poderia um europeu condenar a bigamia em sua própria sociedade, mas considerá-la aceitável entre os nativos da Polinésia? Esta posição é certamente ou bem francamente incoerente ou, na melhor das hipóteses condescendente, na medida em que implica que os polinésios seriam ignorantes e assim podem ser tolerados os seus hábitos matrimoniais que condenamos em nossa sociedade. 

Um tal julgamento não tem por que ser condenatório ou condescendente. Pois as estruturas sociais muito diferentes nas duas sociedades tornam a poligamia aceitável caso a caso. Em Portugal a relação polígama não tem expressão legal e não encontrará reconhecimento social. Mesmo onde nenhum engano está envolvido, um tal arranjo trará quase inevitavelmente considerável dor a pelo menos algumas das pessoas envolvidas. Numa sociedade onde tais práticas encontram o seu lugar próprio, tais consequências desagradáveis não se seguirão de um casamento polígamo, o qual parecerá bastante adequado a todos os envolvidos. É um erro pensar que o casamento numa sociedade é simplesmente como um casamento em alguma outra sociedade, de modo que qualquer julgamento feito num caso deva ser feito neles todos. Observações similares se aplicam em outros casos onde diferentes instituições sociais estão em jogo.

Durante a década de 1960, um quem é quem de pensadores, escritores e artistas franceses, estimulados pela Revolução Cultural da China, foram tomados por um fascínio pelo maoísmo: 
Michel Foucault, Jean-Paul Sartre, Julia Kristeva, Phillipe Sollers e Jean-Luc Godard. Combinaram com exposição impiedosa e loucura política um mal-entendido transcultural com uma defesa demasiado despropositada. Este lendário período conta a história da chegada de ventos vindos do Oriente. Mostra como estudantes e intelectuais franceses, inspirados por perceções utópicas sobre a Revolução Cultural, incitaram movimentos sociais populares de efeitos fascinantes, se que nada tivesse a ver com uma compreensão real da política chinesa. Em vez disso, paradoxalmente, serviu como um veículo para uma transformação de contornos imprevisíveis.

Quando falamos em pós-estruturalismo ou pós-modernismo, estamos a referir-nos a uma corrente intelectual ampla e heterogénea que se caracteriza, essencialmente, pela oposição aos ideais racionalistas, humanistas e universalistas do Iluminismo, pela crítica ao conhecimento científico considerado uma forma de poder e de opressão ao serviço da democracia liberal-capitalista, pela desvalorização da racionalidade, pela sustentação do relativismo cultural da verdade e pela defesa das políticas de identidade.



          «Olhámos para o terceiro piso e reparámos que não existiam portas, apenas uma cortina que se agitava, o que nos levou de imediato a pensar que estariam a vestir os coletes-bomba. Tínhamos de avançar. Quando abrimos a tal cortina, uma espécie de cortina de duche, o meu camarada atirou-se para cima de uns indivíduos posicionados à nossa esquerda, com o objetivo de me proteger de uma eventual explosão. Tal não se verificou. Ele queria ter a certeza de que eu sobreviveria para continuar a missão. À minha direita, a cerca de um metro de distância, lá estava Bin Laden, que tinha as duas mãos sobre o ombro direito da mulher mais nova, a Ahmal. Aparentemente, usou-a como escudo. Ele era mais magro do que imaginava e mais alto, daí a parte superior do corpo estar desprotegida. Sem tempo para pensar duas vezes, afastei a Ahmal e concentrei-me em Bin Laden.
          Apreendemos computadores repletos de informação preciosa. Havia tanto ópio que julguei que se tratava de bifes congelados, uma reserva alimentar para alguém que se teria mentalizado que viveria ali durante muito tempo. As caixas e caixas de Viagra também davam a entender isso mesmo. Existiam mensagens encriptadas nas gravações com planos de ataques terroristas. A ideia era traficá-las algures na fronteira e entregá-las a operacionais no Afeganistão. Ele era um muçulmano devoto, mais concentrado em agradar às três mulheres, daí todo aquele Viagra, mais do que em filmes pornos.
          Continuo a acreditar que os bons são a maioria, mas há uma minoria ruidosa com cada vez mais poder. As universidades têm muita culpa disso. O ensino da história tornou-se acessório e o que importa é a vitimização de todos. É necessário perceber que nunca conseguiremos impor regimes ou sistemas a outros países. São as suas populações que o terão de fazer.
          Durante a cerimónia de entrega daquele objeto pessoal, fui até lá e no final fiquei numa sala com quase 40 familiares e amigos de pessoas que morreram no 11 de Setembro. Foi a primeira vez que contei a minha história em público. Quase todos começaram a chorar. Disseram que ao ouvir-me sentiram o luto terminar. Recordo-me de um avô, acompanhado pelo neto, cujo pai morrera no atentado. Ele disse: “O meu neto pergunta-me sempre porque é que Deus fez isto com o seu pai? Respondo-lhe que não foi Deus, mas o diabo. Você matou esse diabo.” A partir daquele momento quis ajudar mais pessoas.
          Continuo a receber ameaças de morte, mas há várias maneiras de me proteger: câmaras, cães e armas. Prefiro ter a real noção de que o problema existe do que enfiar a cabeça na areia. As redes sociais amplificaram tudo. Os terroristas da Al-Qaeda tentarão sempre matar aqueles que não pensam como eles. Americanos ou qualquer outro ocidental.»
Além do impasse ético e do bloqueio da ação política a que este tipo de ideias tendencialmente leva (o que, só por si, já é negativo) é também óbvio que o mesmo procedimento corrosivo pode ser aplicado aos ideais verdadeiramente progressistas, como os Direitos Humanos. Vistos sob o prisma do pós-modernismo, chega-se à conclusão que se trata de uma expressão da cultura ocidental. Essa expressão traduz-se na vontade de poder do Ocidente, ao pretender impor a “hegemonia cultural” denunciada por Gramsci. Ora, isso leva a que ideólogos do islamismo radical, e a Organização da Conferência Islâmica, proclamem a sua Declaração dos Direitos Humanos no Islão, que não são os da Declaração Universal das Nações Unidas.

quinta-feira, 26 de agosto de 2021

Não há mentes descarnadas


No início deste ano cerca de cem instituições científicas internacionais, incluindo quatro portuguesas, reuniram-se no Centro Champalimaud sob a presidência da investigadora desse Centro – Megan Carey, onde subscreveram uma declaração com o objetivo de promover uma comunidade de investigação mais justa e inclusiva na área das Neurociências. A declaração é uma iniciativa da rede ALBA, criada em 2018 por cientistas de diversos países para promover a igualdade e a diversidade na investigação das Neurociências, através da partilha de boas práticas. Uma iniciativa para dar mais visibilidade e oportunidades de trabalho em rede. A declaração descreve ações concretas que indivíduos e organizações podem implementar, a fim de tornar os seus ambientes de trabalho mais equitativos e inclusivos. 

“Os princípios e as ações que a Declaração adota podem conduzir-nos a ambientes facilitadores de um conhecimento livre de pré-juízos, equitativo para todos e mais favoráveis ao pleno desenvolvimento das capacidades e da realização de todos os cientistas”, salientou Leonor Beleza, presidente da Fundação Champalimaud, num comunicado divulgado pela Fundação a propósito da declaração internacional.




Foram subscritores da Declaração ALBA instituições como a University College de Londres, a International Brain Research Organization, o European Brain Council, a FENS-Kavli Network of Excellence, o Black in Neuro e o Carney Institute for Brain Science da Universidade de Brown, Fundação Champalimaud, Instituto Gulbenkian de Ciência, Instituto de Medicina Molecular João Lobo Antunes e Sociedade Portuguesa de Neurociência. Os promotores da iniciativa consideram que o documento representa um “importante passo no sentido da promoção de uma comunidade de investigação justa”, tendo em conta que prevê um “conjunto de ações concretas com as quais indivíduos e instituições podem comprometer-se a fim de tornar as suas organizações, e a comunidade das neurociências, mais inclusivas”.

A rede ALBA está sediada na Federação das Sociedades Europeias de Neurociência (FENS), membro fundador juntamente com a International Brain Research Organization (IBRO) e a Society for Neuroscience (SfN). A FENS foi fundada em 1998 e representa atualmente 43 sociedades nacionais de neurociência, com cerca de 22 mil cientistas membros provenientes de 33 países europeus.

***

O trabalho de Carey tem-se concentrado na análise quantitativa do movimento, usando comportamento, genética e fisiologia para dissecar a locomoção. Ela está interessada em entender como o cerebelo controla o movimento coordenado. O seu grupo de pesquisa está focado na criação de metodologia quantitativa para estudar movimento coordenado. Ela desenvolveu um sistema automatizado de rastreamento de movimentos, chamado "LocoMouse" para capturar e analisar os movimentos de patas, nariz e cauda de ratinhos normais e de ratinhos afetados por movimentos de ataxia. E assim, descobriram novas ligações relacionadas com a aprendizagem dos movimentos. Mantendo todos os animais a andar ao mesmo ritmo sobre rodas motorizadas, a variabilidade diminuía e os animais aprendiam a tarefa num ritmo semelhante. Carey estudou as mudanças na caminhada verificando que eram aprendidas através de circuitos cerebelares. Para estudar isso, o seu grupo construiu uma esteira especial "split-belt" para ratos. Usando este dispositivo, os ratos aprendem a modular a sua caminhada de modo que as suas patas dianteiras e patas traseiras pousam ao mesmo tempo, mesmo que cada lado esteja se movendo numa velocidade diferente. Era a inibição dos circuitos neuronais no cerebelo, e não no córtex cerebral, que prejudicava a aprendizagem da locomoção. 


quarta-feira, 25 de agosto de 2021

O Mar Egeu




Hoje o Mar Egeu é considerado pelos refugiados do Afeganistão um corredor para a liberdade. No passado foi palco de muitas guerras: entre gregos e persas; gregos com gregos. Uma das principais portas de entrada destes refugiados na Europa tem sido a ilha de Lesbos, ilha grega localizada no nordeste do Mar Egeu onde muitos refugiados afegãos aguardam pelas respostas aos pedidos de asilo. Agora a situação ainda está pior com os milhares de afegãos a fugir dos talibans. O Centro de Acolhimento e Identificação de Mória, mais conhecido como Campo de Refugiados de Mória, ou apenas "Mória", foi o maior campo de refugiados da Europa até ser incendiado em setembro de 2020. Estava localizado fora da vila de Mória, perto de Mitilene. Lesbos é a terceira maior ilha grega e a sétima maior do Mediterrâneo, com Mitilene como capital. Na Antiguidade Lesbos foi a ilha onde nasceu a poeta Safo, a quem se deve o termo 'lésbica', pelos seus poemas dirigidos às mulheres.




No Mar Egeu houve o tempo das invasões persas. E depois veio o tempo da Guerra do Peloponeso. Pausânias governou Esparta de 445 a.C. a 426 a.C. E novamente de 408 a.C. a 395 a.C. Após a vitória de Esparta sobre Atenas na Batalha de Aegospotami, em 405 a.C., os espartanos estavam em posição de finalmente forçar Atenas a capitular. Pausânias cercou a cidade de Atenas, enquanto a frota do almirante espartano Lisandro bloqueava o porto do Pireu. Esta ação efetivamente fechou a entrada dos cereais em Atenas através do Helesponto. Fome em Atenas. Percebendo a gravidade da situação, o estadista ateniense, Theramenes, iniciou negociações com Lisandro. Essas negociações levaram três meses, mas no final, Lisandro concordou com os termos selados em pleno porto do Pireu. Com a capitulação de Atenas, a Guerra do Peloponeso terminou no ano de 404 a.C.

Lisandro colocou em prática um governo fantoche em Atenas com o estabelecimento da oligarquia dos Trinta Tiranos sob a liderança de Crítias, que incluía Terâmenes como um membro importante. No entanto, em 403 a.C. Pausânias foi capaz de minar o domínio de Lisandro sobre Atenas. Lisandro teve de regressar a Esparta em 395 a.C., para iniciar a guerra com Tebas e outras cidades gregas, que passou a ser conhecida como a Guerra Coríntia. Os espartanos prepararam-se para enviar um exército com o apoio dos persas contra esta nova aliança de Atenas (Tebas, Corinto e Argos). Esparta não se tinha envolvido nas distantes operações navais que se tornaram necessárias para a final expulsão dos persas do Mar Egeu.

No que se refere à guerra dos persas, depois de vitória de Leotiquidas em 479 a.C., em Micale, a tarefa que restava para a sua final expulsão requeria o emprego de uma importante frota, que teria de operar longe da Grécia continental, particularmente, do Peloponeso. Potência terrestre, que necessitava conservar importantes contingentes no Peloponeso, para manter a subjugação dos hilotas, Esparta não se dispôs a empreender as operações navais em questão, e acedeu que Atenas, sua aliada, o fizesse. 

Atenas, para esse efeito, organizou, sob a coordenação de Aristides, o Justo, a Confederação de Delos em 478 a.C., mobilizando uma grande frota, que foi confiada ao comando de Címon. Este conduziu brilhantemente os confederados. Iniciando com uma expedição à Trácia, e a conquista das fortalezas costeiras dos persas, concluiu sua campanha com a grande vitória naval do rio Eurímedon, em 466 a.C., na costa sul da Ásia Menor. A Confederação de Delos, tal como urdida por Aristides, baseava-se numa aliança das cidades-estado da Jónia com Atenas, para o fim de ultimar a expulsão dos persas e proteger a Grécia de possíveis futuras agressões. 

Não devemos confundir a Jónia com o Mar Jónico e as ilhas Jónicas. A Jónia era uma região da costa sudoeste da Anatólia, hoje Turquia. Ficava entre Mileto e Fócia, e era banhada pelo Mar Egeu, e não pelo Mar Jónico. As cidades da Jónia foram fundadas por imigrantes da região da Grécia Antiga na sequência da invasão dos Dórios: Samos, Quios, Mileto, Éfeso, Colofon, Miunte, Priente, Lêbedo, Teos, Clazómenes, Éritras e Fócia. Posteriormente Esmirna juntou-se às cidades jónicas. Foi a região de origem de um grupo de pensadores conhecidos como pré-socráticos. Era também o local mais provável do nascimento de Homero.

As ilhas Jónicas são um grupo de ilhas no Mar Jónico que fica no lado ocidental da Grécia continental: Corfu, Paxos, Lêucade, Ítaca, Cefalónia Zacinto e Citera. As próprias ilhas são conhecidas por uma confusa variedade de nomes. Durante os séculos de domínio de Veneza, elas adquiriram nomes italianos, pelos quais algumas delas ainda são conhecidos em português: Zante, em vez de Zacinto, e Corfu, em vez de Córcira. Mas algumas denominações venezianas não foram absorvidas pelo português, como Val di Conspare, em vez de Ítaca, Santa Maura em vez de Lêucade e Cérigo em vez de Cítera. Administrativamente pertencem à região (periferia) homónima das ilhas Jónicas.




Cada membro contribuiu com um número de navios ou com correspondente soma em dinheiro. Com o correr do tempo, entretanto, a Liga de Delos se foi convertendo num império ateniense, de que os aliados eram compelidos a participar e para a qual eram forçados a pagar a contribuição que fora fixada por Aristides, convertendo-se esta, praticamente, num tributo. Formou-se uma fação popular, sob a liderança de Efialdes, secundado pelo então jovem Péricles, que veio a prevalecer sobre os segmentos mais conservadores que apoiavam Címon. O momento de inflexão na liderança deste se deu durante a sua expedição de apoio a Esparta, em 462 a.C..

Seguiu-se-lhe a aliança com Mégara, então em disputa territorial com Corinto, a mais importante aliada de Esparta. Era a completa reversão da política de Címon, orientação esta que caracterizaria a longa liderança de Péricles de 461 a 430 a.C.. Geram-se, assim, condições que permitiriam a Callias negociar com a Pérsia a paz que veio a ser conhecida como paz de Callias, em 450 a.C..

A primeira confrontação entre Atenas e Esparta, no período que vai da aliança com Argos e a construção dos longos muros de Mégara, em 462 a.C., à Paz dos Trinta Anos, em 446 a.C., foi inconclusiva. Mas fixou posições de hostilidade entre os dois grandes blocos em que se dividiu a Grécia, gerando as condições que conduziriam à Guerra do Peloponeso, de 431 a.C. à final rendição de Atenas em 404 a.C..

Atenas ataca Potidéia e derrota a sua frota em 432 a.C.. É dessa ocasião a discutida decisão de Péricles de levar a Assembleia ateniense a decretar a proibição de Mégara usar qualquer porto de cidades vinculadas à Liga de Delos, o que significaria a ruína económica de Mégara. Esta última decisão tornou inevitável o desencadeamento da guerra. Por que a terá adotado Péricles? Alguns entendem que, consciente da inevitabilidade da guerra, Péricles procurou, sem formalmente violar o tratado de paz, conduzir a Liga do Peloponeso a arcar com a responsabilidade de iniciar as hostilidades. Outros entendem que Péricles quis, preventivamente, dar uma demonstração da força naval ateniense, de modo a incentivar os espartanos a seguir os que em Esparta, como o rei Arquídamos, que não queriam a deflagração da guerra.

Por Esparta, a aliada Beócia tinha uma excelente cavalaria. E Corinto, apesar da sua pequena frota, alegava poder mobilizar uma grande armada com os recursos de Delfos e Olímpia. Ante esse poderoso inimigo Péricles traçou uma estratégia consistente em evitar batalhas campais. Atenas não dispunha de mais do que 13.000 hoplitas e de 1.200 cavaleiros, e não dispunha de grandes forças auxiliares para guarnecer as muralhas, cuja inferioridade numérica era agravada pelo seu menor treino. Em compensação, porém, Atenas poderia, protegida por suas muralhas, defender-se de qualquer ataque terrestre, enquanto a sua marinha de 300 trirremes, que era forte e superiormente tripuladas, garantiria os suprimentos da cidade enquanto fustigava as costas do inimigo.

Duas outras importantes considerações eram levadas em conta por Péricles. Uma, de caráter económico, consistia no facto de que Esparta era uma potência, mas meramente agrícola, sem recursos financeiros. Ao passo que Atenas ingressava na guerra com reservas de mais de 6.000 talentos. Sem recursos financeiros, Esparta, ao contrário de Atenas, não poderia sustentar uma guerra que não fosse resolvida rapidamente. Por outro lado, a outra consideração em que se baseava Péricles, era o facto de que as forças espartanas não podiam se afastar demasiado, e por muito tempo, das suas bases, porque dependiam da própria agricultura. E isso implicava manterem-se por perto, para evitar revoltas dos hilotas. Diversamente, os atenienses, refugiando-se atrás dos muros, receberiam pelo mar os fornecimentos de que necessitavam, e poderiam sustentar a guerra por longos anos.

Não dispondo de capacidade para romper as muralhas de Atenas, os lacedemónios não podiam tirar proveito da sua superioridade terrestre. Assolavam as terras da Ática mas não pudiam impedir o contínuo abastecimento por via marítima. Enquanto isso, a frota ateniense fustigava as costas da Lacedemónia, destruindo os seus estaleiros e a sua modesta marinha. Como havia suposto Péricles, as expectativas de Corinto, de poder armar uma grande frota recorrendo a Delfos e a Olímpia, não se concretizaram.

Um ano depois de iniciado o conflito procedeu-se em Atenas à cerimónia fúnebre dos primeiros mortos da guerra. Convocado a usar da palavra, Péricles proferiu aquele extraordinário discurso que Tucídides reconstituiu, proclamando a excelência das instituições e dos costumes atenienses, e a sua superioridade sobre os demais helenos. "Em suma, digo que a nossa cidade, em seu conjunto, é a escola de toda a Hélade". 

Porque Atenas perdeu a guerra? A Liga de Delos, a aliança militar liderada por Atenas, na qual as cidades componentes deveriam enviar dinheiro, armamentos e soldados para um tesouro comum, não funcionou. Os atenienses utilizaram esse dinheiro para construir grandes obras públicas e investir na cultura. Esparta venceu Atenas por ter uma maior força militar, apesar de não ter tido forças para manter o seu domínio sobre a Grécia Antiga, acabando derrotada pelos macedónios. As forças gregas que se uniram para atacar outros povos e expandir o domínio sobre o Mediterrâneo, no século V, atuaram dentro da própria Grécia. A guerra mostrou também que, apesar da criação das ligas de Delos e do Peloponeso, não houve total submissão das cidades menores em relação a Esparta e Atenas.

Hoje, transcorridos cerca de dois mil e quinhentos anos desde aquela oração fúnebre, seria de justiça, complementando Péricles, reconhecer que Atenas foi a Escola, não apenas da Grécia, mas de todo o Ocidente.


terça-feira, 24 de agosto de 2021

A organização cerebral no sentido da identidade



Os neurocientistas vêm-nos surpreendendo todos os dias com os seus estudos do cérebro. Surpreendem com a afirmação de que algumas das nossas lembranças talvez nunca tenham existido. Aquela violação que revivo com angústia sem que tenha acontecido, a viagem a uma cidade que não fiz e de que recordo ter conhecido aquela estátua do homem a cavalo no centro de uma praça, quando afinal são dois cavalos com um homem de pé ao lado de cada cavalo nos extremos de uma praça. Tudo isto pode resultar de histórias contadas por outras pessoas e ouvidas: avós, primos e tios, bons contadores de histórias. Fotografias de livros ou álbuns de família folheados repetidas vezes e acompanhadas de sentimentos, emoções ou sonos acorados de grande intensidade afetiva.

Assim, incidentes e recoleções de todas estas memórias vividas sobretudo na infância – em que a maturação cerebral é ainda insuficiente para consolidação – são suficientemente fortes para serem reconstruídas de forma a condicionar, por exemplo, o sentido da identidade da pessoa. Tudo isso devido a experiências de vida traumáticas que também podem ter sido vividas na fase de vida já adulta. Mas memórias de uma vida que nunca se viveu.

A nossa memória reconfigura-se ao longo da vida, podendo integrar dados inexatos, ou mesmo inexistentes. Da descoberta da remodelação natural da memória à indução artificial de uma remodelação controlada é um passo que as neurociências poderão franquear… no bom sentido, obviamente, de ajudar aquelas pessoas infelizes, por exemplo, as que hoje se dizem serem “trans”, por não reconhecerem o sexo do seu corpo, ou seja, por não coincidir com o género que sentem ser o seu.


É claro que este conhecimento sobressalta muita gente, porque naturalmente será também aproveitado por mentes perversas para a feitura do mal através de manipulações da mente de outras pessoas para outros fins, sejam eles de ordem política, sem de ordem criminal. A invasão e devassa desse discreto e furtivo reduto pessoal, íntimo e único, absolutamente privado e totalmente inacessível a outrem, que vai agora sendo descoberto e exposto ao olhar exterior como à mão humana, tornando-se proporcionalmente vulnerável. É que a memória, histórica e ficcional, formata a nossa identidade, seja singular ou coletiva, pelo que qualquer ingerência externa se pode converter em desvirtuamento ou mesmo perversão da identidade.

Hoje trabalha-se intensamente na produção de neuro-implantes, dispositivos diretamente ligados ao cérebro de uma pessoa, que deverão produzir efeitos análogos aos procurados pelos psicostimulantes, mas de forma mais eficaz, intensa e controlável. Os potenciais benefícios terapêuticos já estão a beneficiar muita gente, de que a doença de Parkinson é o exemplo mais visível há já alguns anos a esta data. Mas também com bons resultados nos casos de adicção – vícios ou dependência do consumo regular de uma determinada substância (álcool, tabaco, medicamento, heroína, etc.) ou da prática constante de uma dada atividade –, legítimos na convergência entre as alterações que se inscrevem no amplo e dinâmico conceito de restauração de um normal funcionamento e as conceções subjetivas de bem-estar (existindo doentes psiquiátricos que recusam medicação invocando a preservação da sua identidade). Entretanto, os neuro-implantes deverão permitir não só reforçar capacidades existentes, mas também criar novas.
«Pus-me, então a pensar o que seria hetero-cis-normativo. Ora, normativo, quer dizer ser norma tal comportamento; heterossexual significa ter, como explica o Mauro, relacionamentos afetivos e sexuais com alguém do sexo oposto (eu preferiria dizer diferente, porque oposto reduz bastante a possibilidade dos relacionamentos sexuais);
Visto assim, a coisa é muito simples. Devemos combater o cis, em nome do trans; o hetero, em nome do homo; e a norma, em nome da exceção. Fiquei elucidado de vez com a questão, e percebo por que motivo um homem de barba dura e com o braço tatuado ‘Guiné — 1964 — Amor de Mãe’ pode chamar-se Isaltina e ir à casa de banho das senhoras (caso elas sejam todas hétero e cis e isso tudo).» [Comendador Marques de Correia]

segunda-feira, 23 de agosto de 2021

Um contrato de casamento em Cabul: ela pashtun ele tajique




Entre a retirada soviética em 1989, e até1992, altura em que o regime comunista sob o líder do Partido Democrata do Povo, Mohammad Naijibullah, colapsou – a rapariga andava apaixonada por um colega professor, mais velho que ela 10 anos, e já com três filhos. Era uma vergonha estar apaixonada por um homem que não poderia ter. Veio então a guerra civil, as escolas foram fechadas e ela fugiu com o irmão para o Paquistão.

As lutas e rivalidades sobre Cabul começaram a 25 de abril de 1992, envolvendo seis exércitos. E em 26 de setembro de 1996, com os Talibans atacando Cabul, o ministro interino da Defesa Ahmad Shah Massoud em sua sede no norte de Cabul concluiu que as forças provisórias dele e do presidente Rabbani haviam sido cercadas. Decidiram evacuar rapidamente retirando as forças ao norte para evitar a destruição. Ao anoitecer ou no dia seguinte, os Talibans haviam conquistado Cabul. O líder taliban Muhammad Umar nomeou o seu vice Mullah Muhammad Rabbani como chefe de um conselho nacional que foi chamado de Emirado Islâmico do Afeganistão. Depois de quatro anos de guerra tinham chegado então ao poder os Talibans.

A paz havia voltado a Cabul, mas a escola onde a rapariga tralhava nunca mais foi aberta. As escolas para meninas continuavam fechadas e, da noite para o dia, ela perdeu a possibilidade de procurar outro emprego, como todas as outras mulheres de Cabul. Como ela, haviam desaparecido dois terços dos professores da cidade. Várias escolas para meninos também tiveram de fechar porque não havia professores homens. Não havia professores homens adequadamente qualificados para mantê-las abertas.

Os anos passaram. Os poucos sinais de vida do professor cessaram de vez. Passou a ser obrigada a ficar em casa como as outras mulheres. Não podia trabalhar, não podia sair sozinha, tinha que se cobrir. Fazia muito tempo que a vida tinha perdido as cores. Quando completou trinta anos, os pretendentes deixaram de aparecer.

Um dia, após quatro anos cativa em casa com a mãe, um parente distante foi lá pedir à mãe a sua mão para um fulano cuja mulher havia morrido de repente. As crianças precisavam de uma mãe. Ele é gentil e tem um pouco de dinheiro. Ele nunca foi soldado, nunca fez nada ilegal, é honesto e tem boa saúde. A esposa ficou louca de repente e morreu, deixando-lhe dez filhos. Havia pressa para encontrar uma nova esposa para o pai de dez filhos. Os mais velhos cuidavam dos mais novos, mas não estavam dando conta da casa.

A mãe matriarca disse que iria pensar e informar-se com amigos e parentes sobre o homem. Bem, acabou por chegar à conclusão de que o pretendente à filha era trabalhador e honesto. Além do mais, havia pressa também para a filha, caso ela algum dia viesse a querer ter os seus próprios filhos. Estava escrito que a filha precisava sair de casa, e ela contava isso a todos os que a quisessem ouvir. Já que os Talibans não deixavam as mulheres trabalhar, ela não perguntou se ele deixaria. Normalmente, o casamento é feito com o consentimento dos pais, mas o homem estava nos cinquenta. Ele era motorista de camião e fazia longas viagens. Ele mandou sua irmã de novo, depois o irmão, de novo a irmã, mas nunca encontrou tempo para vir ele mesmo.

Ora bem, o noivado andava a arrastar-se de modo que ninguém estava contente até que, eis de repente, dá-se o ataque às torres gémeas em nova Iorque, 11 de setembro de 2001. Dois meses depois de os Talibans terem desaparecido de Cabul, aparece o pretendente. Dão-se então início as conversações tendo em vista o casamento. Do canto atrás do forno a noiva fica atenta às decisões sobre o seu destino e à data do seu casamento. As quatro pessoas nas almofadas tomam todas as decisões, sem que os noivos tenham trocado sequer um olhar. Ela passa o tempo a olhar para as paredes, para o vazio. Ela parece não se importar, e coloca mais algumas lascas de madeira na lareira.

Ninguém a importuna com perguntas, ela apenas está presente, como sempre, antes de se arrastar para fora da sala, para lavar a louça, que é uma das suas tarefas. Ela reclama, apesar de o tecido para o vestido de noiva já estar escolhido e só faltar entregá-lo ao costureiro. Mas resta ainda o enxoval, roupas de cama, louças. O viúvo já tem a maior parte, mas de qualquer maneira é preciso que a noiva leve algumas coisas novas com ela. Ele é baixinho, ela gosta de homens altos. É calvo, e poderia ter alguns anos a menos. Já pensaram se ele se mostrar um tirano, se não for gentil, se não a deixar sair? Não, diz a mãe resoluta, ele será um bom marido . . .

Dois dias depois do acordo, uma irmã da noiva manda convites para a festa de noivado, tem 29 anos e é casada pela segunda vez. O seu primeiro marido morreu durante a guerra civil. Agora está grávida, esperando seu quinto filho.

Quando os velhos da família estão por perto, os noivos não devem ter contacto físico. Mas agora, estes noivos falam em voz baixa, mal prestando atenção aos outros, que, curiosos, tentam ouvir partes da conversa. Não é uma conversa muito afetuosa. Ela fala mais para o vazio. De acordo com os costumes, não deve olhar o noivo nos olhos, antes do casamento. Mas ele olha-a o tempo todo. Mal pode esperar que passem esses 15 dias até que seja sua, diz ele. Ela cora, mas continua com o olhar fixo no vazio. Ele nem conseguiu dormir a noite toda, a pensar nela. E continua a dizer coisas soltas, e ela nada. Até que tomou coragem e perguntou: “Vai permitir que eu trabalhe?”. Ele diz que sim, mas ela não confia nele. Ele pode mudar de ideias assim que casarem. Mas ele assegura que se trabalhar a deixa feliz, tudo bem, além de cuidar dos seus filhos e da casa.

Ele tira o chapéu castanho, igual ao dos Ahmad Massoud, na foto exibida acima na abertura deste artigo, e que é típico da etnia tajique, o segundo maior grupo étnico no país, e usado pelos seguidores da Aliança do Norte. O maior grupo étnico é o pashtun

E ela não resiste e diz que ficou feio sem o chapéu, porque é careca. Ele não responde à ofensa da futura esposa e leva a conversa para terrenos mais seguros, como as compras que ela fez. Ela passou o dia no mercado de Cabul comprando coisas de que precisará para o casamento. E comprou presentes para todos os parentes, os dela e os dele. É ele quem entregará os presentes, como um gesto para a família que a está dando em casamento. Ele paga e ela faz as compras: chávenas, travessas, talheres, lençóis, toalhas de banho e tecidos para túnicas. Ele acende um cigarro e ela reclama, dizendo que não gosta de cigarros. Se ele fumar, então não gostará dele. Ele repreende-a, dizendo que devia ser mais educada. E de seguida diz em tom ameaçador: “Você deve usar o véu, é obrigação da mulher usar. A burca não, mas o lenço. Pode fazer como quiser, mas se não usar o lenço vou ficar triste. Você quer ver-me infeliz?”


 
Nilofar Ibraimi - afegã-tajique

Shukira Barakzai - afegã-pashtun

Agora estou triste. Estou arrependida. Estou triste porque vou deixar a minha família. Já pensaram se ele não me deixar visitar a minha família? Se ele nem me deixar trabalhar? Agora que posso? E se ele me trancar em casa?

A matriarca teve 12 filhos, e assistiu a três guerras e a cinco golpes de estado. Agora viúva, prepara-se, finalmente, para se libertar da última filha. Ela já a havia segurado por muito tempo, passava dos trinta e já não era tão atraente para o mercado de casamento. Aquele que esta noite acabou de sair pela porta como noivo é um viúvo, cinquenta de idade e dez filhos. A lâmpada de parafina no chão estala. Os pensamentos sombrios assolam também as irmãs. Melhor encarar o homem de antemão.

A vida não é aqui, papagaios-de-papel!





É de crer que voltarão as restrições impostas por uma visão fundamentalista da Sharia – a lei islâmica – e o consequente choque com os Direitos Humanos. Regressam as burcas, acaba-se a música, as mulheres deixam de ir à escola e trabalhar, os homens deixam crescer a barba e até os papagaios (de papel) deixam de poder voar nos céus do Afeganistão. Afinal, 20 anos de guerra serviram para quê? O poder Taliban regressou a Cabul pela segunda vez. 

Em 1996, quando o Taliban assumiu o poder em Cabul, era setembro, foi transmitido pela Rádio Sharia que era proibido:
Proibido - soltar papagaios-de-papel. Soltar papagaios-de-papel tem consequências nefastas, assim como o fomento a jogos de azar, e ausência do aluno nas escolas. Lojas que vendem papagaios-de-papel serão fechadas.
Proibido - a mulheres andarem descobertas; os motoristas aceitar mulheres que não usassem burca, se o fizerem, o motorista será preso. Se mulheres assim forem vistas na rua, suas casas serão encontradas e seus maridos punidos. Se as mulheres vestirem roupas insinuantes ou atraentes, desacompanhadas de parentes próximos do sexo masculino, o motorista não poderá levá-las no carro.

Proibido - música em lojas, hotéis, veículos e cassetes. Caso sejam encontradas fitas de música numa loja, o seu proprietário será preso e a loja fechada. Se uma fita for encontrada num veículo, este será apreendido e o motorista será preso. É proibido barbear-se. Aquele que se barbear ou cortar a barba será preso até que a barba tenha crescido até ao comprimento de um punho.

Proibido - não rezar. As orações devem ser observadas em horários fixos em todos os distritos. A duração exata da oração será anunciada pelo Ministério da Promoção da Virtude e Prevenção do Vício. Todo transporte fica estritamente proibido nos 15 minutos antes da oração. É obrigatório ir à mesquita durante o horário da oração. Se jovens forem vistos em lojas, serão imediatamente presos.

Proibido - criar pombos e promover luta de aves. Este passatempo deve ser reprimido. Pombos usados em jogos e lutas serão mortos. Os drogados serão presos e o vendedor e seu estabelecimento investigados. O estabelecimento será fechado e ambos os criminosos, proprietário e drogado, serão presos e punidos. 

Proibido - reproduzir imagens. Fotos e retratos em veículos, lojas, casas, hotéis e outros lugares serão retirados. Os proprietários destes estabelecimentos devem destruir todas as imagens existentes. Veículos com imagens de seres vivos serão detidos. Estão rigorosamente proibidos os jogos de azar. Os estabelecimentos serão fechados e os jogadores ficarão detidos por um mês. É proibido usar cortes de cabelo no estilo americano ou inglês. Homens com cabelos compridos serão presos e levados para o Ministério da Promoção da Virtude e Prevenção do Vício para cortarem o cabelo. O criminoso pagará o barbeiro.

Proibido - emprestar dinheiro a juros, taxas de câmbio e de transações. Estes três tipos de transação financeira estão proibidos no Islão. Caso as regras sejam quebradas, o criminoso ficará preso por um período indeterminado. É proibido lavar roupa à margem dos rios. Mulheres que desobedecerem a esta lei serão retiradas de maneira respeitosa do local e levadas para suas casas, onde seus maridos serão duramente punidos. Música e dança são proibidos em festas de casamento. Caso esta proibição seja desobedecida, o chefe da família será preso e punido.

Ásia Central e a Nova Rota Geoeconómica

 


Para já, a Nova Ordem Mundial, é o domínio do Caos. As imagens da queda de Cabul às mãos dos Talibans mostram-nos isso. O Afeganistão é, e sempre foi, o símbolo de um Ocidente aparvalhado. Muita gente crê que agora a brincadeira se tornou irreversível. O chamado retraimento estratégico americano já havia começado com Obama, depois daquelas escaramuças ridículas de Bush de querer exportar democracia neoconservadora para a região do Grande Médio Oriente. O que foi a fonte principal da instabilidade, do terrorismo, da insegurança internacionais. Foi logo após o 11 de Setembro e o assassínio, dois dias antes, do comandante Massoud, que uma coligação internacional venceu os talibãs e o seu regime monstruoso. Herat, Mazar-e-Sharif, Jalalabad, Bamiyan, Kandahar, foram cidades em que soprou, na época, um belo vento de otimismo e de liberdade. E as mulheres foram encorajadas a desvelarem-se daquelas prisões azuis chamadas burcas.

Claro que não há nada mais agradável para Pequim do que ver o descalabro de uma intervenção americana. Mas também não há nada mais assustador do que fanáticos islamistas junto à fronteira da região de Xinjiang e o potencial de desestabilização da região, incluindo o seu aliado Paquistão.

A Geoeconomia, em princípio baseada em relações mutuamente benéficas, calculada num jogo de soma zero, coaduna-se com o discurso oficial chinês personificado na figura da sua grande estratégia contemporânea – 'A Nova Rota da Seda'. Trata-se de um conjunto de corredores de desenvolvimento, promovidos pela China, que visam no curto prazo conectar a Ásia Central com a costa oriental chinesa, e assim garantir o fornecimento de gás, petróleo, e minérios para o país, além de abrir novos mercados e caminhos para escoar produtos chineses. Além de conectar o leste e o oeste chinês, é estratégico para a China a sua ligação à restante Ásia. Ampliando a sua presença continental, no longo prazo, o objetivo da nova rota da seda é extremamente ambicioso. É um plano que cria um amplo conjunto de infraestruturas terrestres – rodoviárias e ferroviárias de alta velocidade, de modo a chegar à Europa encurtando uns bons milhares de quilómetros, se estivermos a olhar para a atual rota marítima.

Com o enfraquecimento relativo das potências ocidentais, no contexto pós crise financeira de 2008, não podia existir uma melhor oportunidade para a China de expandir definitivamente o seu poder rumo a uma Nova Ordem Mundial sob a hegemonia chinesa. É o fim da hegemonia ocidental agora que os Estados Unidos, a bem dizer desde Obama, decidiram retrair-se, alimentando a perspetiva da entrada em vigor de um novo sistema internacional cuja configuração será cada vez mais próxima de uma estrutura multipolar.

A despeito de a dominância nos tabuleiros político e militar ainda ser dos Estados Unidos, ficou à vista a sua perda para a China do tabuleiro da Geoeconomia. Nesta conjuntura a China já é a segunda principal potência económica do planeta em prejuízo da Europa. Daí que a China busque empreender uma série de reformas internas com o intuito de reequilibrar as relações no sistema internacional, de modo que a Ordem Mundial espelhe o novo arranjo estrutural em curso, em consonância com a sua crescente importância.

O que o futuro reserva à China, aos Estados Unidos, e já agora ao resto do mundo, permanece uma incógnita. Num horizonte de curto e médio prazo, não significa que os Estados Unidos tenham desistido da sua posição internacional de primeira potência, incluindo a área económica. Mas a realidade é o que é, e está à vista o declínio relativo dos Estados Unidos face à ascensão da China. É difícil precisar se é mais um enfraquecimento do poder do próprio EUA, ou a ascensão do resto no sistema internacional em termos de aquisição de maior grau de importância. É visível, porém, o direcionamento do eixo dinâmico mundial em direção à Ásia ou Eurásia. Surge a necessidade de pensar o mundo para além de uma perspetiva meramente Ocidental. Ao fim e ao cabo a perspetiva histórica e cultural alternativa, como é o caso da chinesa, não é de somenos, se tivermos em conta a sua história imperial milenar. E na realidade, uma noção bem distinta daquela amplamente difundida, em pouco mais de um século, pela megalomania eurocêntrica.




A China diz que as prisões em massa, violações e esterilizações forçadas em Xinjiang são “mentiras absurdas”. No entanto, nesta província todos têm um amigo ou familiar desaparecido. As novas regras são claras, os homens não podem usar barba, nem as mulheres lenços na cabeça. O jejum durante o Ramadão é proibido tal como a saudação islâmica “As-salaamu ‘Alaikum”, ou seja, “A paz esteja convosco”. Pouco depois de Xi chegar ao poder, em 2012, nova rebelião violenta eclodiu em Xinjiang, e a chamada “política étnica de segunda geração” passou a prioritária. O líder mais forte da China desde Mao Tsé-Tung acreditava que só uma subjugação impiedosa poderia impedir a China de se balcanizar etnicamente, como sucedera à URSS.

Em toda a China as línguas minoritárias são expurgadas de escolas, locais de trabalho e meios de comunicação, enquanto a educação em mandarim é universalizada. O controlo da natalidade e o encorajamento dos casamentos interétnicos diluem o peso das minorias, deportadas para províncias distantes, supostamente por razões de trabalho e educação, ao mesmo tempo que colonos han substituem antigos residentes. Os defensores dos direitos humanos receiam que o projeto de assimilação forçada de Xinjiang seja um teste para aplicação posterior noutras regiões. A proliferação de campos de concentração em Xinjiang no início do século XXI horrorizou o mundo escondendo uma campanha insidiosa em curso no país mais populoso do mundo. É a fase final de uma cruzada secreta cujo objetivo é transformar as pessoas de regiões periféricas, vistas como “retrógradas e dissidentes”, em “leais, patrióticas e civilizadas”. O que se passa em Xinjiang é a ponta do icebergue, o problema estende-se por toda a China”, diz James Leibold, especialista em etnia e identidade chinesas, da Universidade de La Trobe, na Austrália.




Da Dong Roast Duck Restaurant é um restaurante chinês localizado no distrito de Dongcheng. Deve o seu nome ao fundador Dong Zhenxiang, (董振祥), que leva o apelido de "Da Dong" (の董). É amplamente conhecido pela sua culinária chinesa, especialmente o seu pato à pequinês. Da Dong contribuiu para inovar métodos de cozinhar pato de Pequim usando um forno a lenha esférico em vez do método mais tradicional de um forno cúbico, e o pato assado inovado é chamado de "SuperLean" (酥不腻) Pato Assado. Em 2014 foi nomeado o melhor restaurante de cozinha chinesa em Pequim. Da Dong foi classificado entre os dez melhores restaurantes de Pequim por várias entidades ligadas ao ramo. Também foi listado como uma sugestão no livro: 1.000 Lugares para Ver antes de morrer.




A avenida que passa no topo norte do estádio – uma reta com quatro faixas em cada sentido – liga a segunda à terceira circular. Caminhando para ocidente, ao fim de 10/15 minutos encontra-se o Da Dong, santuário da nouvelle cuisine local, que revolucionou o «pato lacado à Pequim». À mesma distância, mas para o lado oposto, fica o village de Sanlitun, uma área cosmopolita, contígua a uma zona de embaixadas, e com dezenas de lojas, bares, cafés, restaurantes, boutiques de luxo, algumas galerias de arte, oito salas de cinema… e mais um McDonald’s. De táxi o percurso custa apenas o preço da bandeirada: 10 yuans. Até à Praça Tiananmen, o espaço urbano mais sensível da China, no centro físico e político de Pequim, também é simples: desce-se a segunda circular até à Jianguomenwai, vira-se à esquerda e a seguir é sempre em frente, por uma avenida com 12 faixas chamada Chang’an (Eterna paz). No total são cerca de oito quilómetros.

quinta-feira, 19 de agosto de 2021

Trocar seda por lã – um romance algures num centro equidistante entre Istambul e Xi’an





Istambul marca o extremo oeste da Rota da Seda, hoje a maior cidade da Turquia e a quarta maior do mundo, com 15 milhões de habitantes na sua área metropolitana. A grande maioria da população é muçulmana, mas também há um grande número de laicos e uma ínfima minoria de cristãos e judeus.

Xi'an, localizada na província de Shaanxi, China, com 5,4 milhões de habitantes, conhecida como Chang'an (Paz Eterna), marca o extremo leste da Rota da Seda e foi o lar das casas dominantes das dinastias Zhou, Qin, Han e Tang. Em sítios arqueológicos nas planícies circundantes de Xi'an encontra-se o famoso Bingmayong (Exército de Terra Cotta), milhares de figuras em tamanho real, moldadas à mão, que foram enterradas com o primeiro imperador da China, Qin Shi Huang.

Com os Talibans a voltarem ao poder no Afeganistão, e o facto de a China com o seu projeto da Nova Rota da Seda do século XXI (mais conhecida como One Belt, One Road) devemos tentar perceber o que o Afeganistão representa para a sua nova estratégia comercial com o Ocidente. Não nos devemos admirar, com a retirada dos EUA,  que passe a partir de agora a ser a China a ditar as regaras do jogo naquela vasta região, que ao longo de milénios e apesar da sua agreste geografia, sempre representou um nó estratégico nas trocas comerciais entre Oriente e Ocidente.




O antigo geógrafo e astrónomo Ptolomeu [90-168] fala na dimensão longitudinal do mundo e de um ponto médio na rota comercial entre a Europa e a China. A esse ponto chama Torre de Pedra. Mercadores gregos faziam todo o caminho até à Torre de Pedra, onde encontravam outros mercadores vindos da China. Era um ponto central, muito adequado aos mercadores que viajassem em direções opostas. Encontrar-se-iam aqui e trocariam as suas mercadorias. Para uns, esta Torre estaria localizada onde hoje é a fronteira entre o Uzbequistão e o Afeganistão. Para outros, entre o Afeganistão e o Paquistão, onde há um Templo Budista, e uma 'estupa' que preserva no seu interior uma estupa mais pequena, coberta por uma misteriosa inscrição. 
Para outros ainda, a Torre de Pedra de Ptolomeu deverá localizar-se em Daroot-Korgon no vale Alai do Quirguistão, que se estende por uma longa distância e fornece pastagem abundante, fazendo dele uma linha de tráfego privilegiada para as caravanas.

As montanhas são inúmeras e as pessoas que vivem nos vales são frequentemente de etnias sem qualquer relação falando línguas tão diferentes como as orgulhosas línguas europeias entre si. Montanhas, ravinas profundas, picos nevados e entre eles castelos e aldeias alcandoradas nas encostas. A visão do viajante perde-se na distância e sente-se que seria preciso viver pelo menos tantos anos como o mais velho habitante da mais remota aldeia antes de se começar a perceber o que se tem pela frente. Em parte, tal deve-se à cordilheira montanhosa sem fim, em que os picos separam aldeias e vales, multiplicando a distância. É também resultado do facto extraordinário de durante séculos se ter marcado aqui encontro entre a Europa e Ásia, entre civilizações, movendo-se em diferentes direções ao mesmo tempo. A cordilheira montanhosa foi sempre uma barreira entre a civilização e a barbárie, mesmo apesar dessas forças terem mudado de lado por algumas vezes.

Passa-se uma fértil planície escondida entre algumas das mais altas montanhas do mundo. A duas ou três horas da fronteira com a China, encontra-se a cidade de Tashkurgan, sede do condado autónomo da província de Kashgar, no Oeste de Xinjiang. O condado é o único condado autónomo tajique da China.




Aninhada num amplo vale, é onde muitos viajantes pernoitam para poderem passar a fronteira para o Paquistão ao romper do dia. Aqui há uma estrada que conduz diretamente ao vale Hunza no Paquistão. Mas antes dessa estarda há outro caminho, antes de Tashkurgan, que nos leva até ao outro lado do corredor Wakhan, que foi a rota tomada pelo Marco Polo. Ela prolonga-se até à famosa metrópole comercial de Bactro, província do Afeganistão, cuja capital é a cidade de Mazar-e Sharif.




Depois podemos atravessar o Vale Panjshir (literalmente Vale dos Cinco Leões) um vale no centro-norte do Afeganistão atravessado pelo rio Panjshir, perto da cordilheira do Hindu Kush, a 150 Km de Cabul. O vale abriga mais de 100.000 pessoas, incluindo a maior concentração da etnia tajique do Afeganistão.

Como disse atrás, com a chegada dos talibans a Cabul em 15 de agosto de 2021, Panjshir é para já uma das poucas partes do Afeganistão que continua ainda sob o controle efetivo da República Islâmica do Afeganistão, em oposição ao agora proclamado Emirado Islâmico do Afeganistão pela tomada do poder pelos Talibans. Por isso, afegãos da etnia Pashtun, que temem retaliação por parte dos talibans devido a terem colaborado com o regime anterior, procuram fugir para o Paquistão. E a via mais segura passa pelo Desfiladeiro de Khyber. E as mulheres suplicam: "
Por favor, prefiro ir para Hayatabad, para junto dos nossos parentes". A vida de casados oscila entre dois polos. O romance termina sempre que a cidade é invadida: "Há muito que estou farta de andar tapada, sem que ninguém me pudesses ver". 

Depois de duas horas por estradas estreitas, com a montanha de um lado e o abismo do outro, algumas horas a cavalo, lá se chega à planície de onde se avista Peshawar. A história registada de Peshawar remonta a pelo menos 539 a.C., tratando-se da cidade mais antiga do Paquistão, e uma das cidades mais antigas do sul da Ásia. Hayatabad é um subúrbio da região oeste de Peshawar. O Desfiladeiro de Khyber é uma passagem de montanha na província de Khyber Pakhtunkhwa no Paquistão, na fronteira com o Afeganistão (província de Nangarhar). Liga no Paquistão a cidade de Landi Kotal ao vale de Peshawar em Jamrud, atravessando parte das montanhas Spin Ghar. Era por aqui que outrora seguia a Rota da Seda. São 5 Km de passagem pelo ponto mais alto das montanhas e apenas 500 metros no ponto mais baixo em Jamrud.




Durante milhares de anos, o Desfiladeiro de Khyber tem sido invadido por pessoas indesejáveis. Persas, gregos, moguls, mongóis, afegãos e bretões já tentaram conquistar a Índia conduzindo seus exércitos através deste desfiladeiro. No século VI a.C. o rei persa Dario conquistou grandes áreas do Afeganistão e continuou a marcha através do Desfiladeiro de Khyber até ao rio Indo. Dois séculos depois foram os generais de Alexandre Magno que conduziram as suas tropas através do desfiladeiro, em cujo trecho mais estreito não passa mais que um camelo carregado ou dois cavalos lado a lado. Gengis Khan destruiu grandes partes da rota da seda, enquanto outros viajantes mais pacíficos, como Marco Polo, só seguiram o rasto das caravanas no caminho para o Oriente. Desde o tempo de Dario até os britânicos conquistarem o desfiladeiro, no século XIX, as tropas invasoras quase sempre encontraram grande resistência das tribos Pashtun das montanhas circundantes. Depois que os ingleses se retiraram, em 1947, as tribos novamente assumiram o controlo do desfiladeiro e do distrito até Peshawar. A mais poderosa delas é a tribo Afridi, temida por seus guerreiros.

A primeira coisa que se vê ao cruzar a fronteira continuam a ser as armas. Ao longo da estrada principal do lado paquistanês vêem-se a intervalos regulares as palavras Khyber Rifles entalhadas na encosta ou pintadas em placas sujas na paisagem árida. Durante a Guerra do Afeganistão a Passagem Khyber tem sido uma rota importante para reabastecer armamento militar e alimentos para as forças da NATO no teatro afegão de conflitos desde que os EUA iniciaram a invasão do Afeganistão em 2001. Quase 80% dos suprimentos da NATO e dos EUA trazidos por estrada foram transportados através da Passagem Khyber. Também tem sido usado para transportar civis do lado afegão para o paquistanês. Até finais de 2007, a rota era relativamente segura desde que as tribos que viviam lá, principalmente a tribo Afridi, que é de etnia Pashtun, foram pagas pelo governo paquistanês para manter a área segura. No entanto, depois desse ano, os Talibans começaram a controlar a região, e assim começaram a existir tensões mais amplas em sua relação política. Desde o final de 2008, comboios de abastecimento e depósitos nesta parte ocidental têm sido cada vez mais atacados por elementos ou supostamente simpatizantes do Taliban paquistanês. Em janeiro de 2009, o Paquistão isolou a ponte como parte de uma ofensiva militar contra os guerrilheiros talibans. Esta operação militar foi focada principalmente em Jamrud. Mais de 70 pessoas foram presas e 45 casas foram destruídas. Além disso, duas crianças e uma mulher foram mortas. Como resposta, no início de fevereiro de 2009, insurgentes talibans cortaram temporariamente a Passagem Khyber fazendo explodir a ponte que era estratégica na passagem.

Esta situação cada vez mais instável no noroeste do Paquistão fez com que os EUA e a NATO ampliassem as rotas de abastecimento, através da Ásia Central (Turquemenistão, Uzbequistão e Tajiquistão). Até mesmo a opção de fornecer material através do porto iraniano do extremo sudeste de Chabahar foi considerada. Em 2010, a já complicada relação com o Paquistão, sempre acusada pelos EUA de hospedar talibans nesta área fronteiriça sem o reportar, tornou-se mais dura depois que as forças da NATO, sob o pretexto de mitigar o poder taliban sobre esta área, executaram um ataque com drones sobre a linha Durand, passando pela fronteira do Afeganistão e matando três soldados paquistaneses. O Paquistão respondeu fechando a passagem em 30 de setembro, o que fez com que uma caravana de vários camiões batesse com o nariz na fronteira fechada. E que foram atacados por extremistas aparentemente ligados à Al Qaeda, o que causou a destruição de mais de 29 camiões e a morte de vários soldados. Em agosto de 2011, a atividade na Passagem Khyber foi novamente interrompida devido aos ataques da insurgência sobre as forças da NATO, que haviam sofrido um período de grande número de assaltos sobre os camiões que se dirigiam para abastecer as coligações da NATO e da ISAF por toda a linha de fronteira. Essa instabilidade fez com que a Associação dos Proprietários dos Camiões-Cisterna do Paquistão exigisse mais proteção do governo paquistanês e dos EUA ameaçando não fornecer combustível para o lado afegão.

Khyber Rifles é o nome de uma fábrica de armas, mas também da milícia tribal responsável pela segurança na área. A milícia tem grandes riquezas para proteger. A aldeia próxima à fronteira é conhecida pelo seu mercado de contrabando, onde se podem comprar haxixe e armas a preços baixos. Ninguém pede licença para porte de arma, mas, quem for apanhado a contrabandear armas para território paquistanês, há grande risco de ficar atrás das grades por muito tempo. Entre as casinhas de barro resplandecem palácios grandiosos, construídos com dinheiro do mercado paralelo. Pequenos fortes de pedra e casas tradicionais dos Pashtun, cercados de muros altos, espalham-se pela encosta. Aqui e ali surgem na paisagem paredes de cimento, os chamados dentes de dragão que os ingleses construíram por medo de uma invasão alemã vinda da Índia durante a Segunda Guerra Mundial. Há vários casos de estrangeiros sequestrados nestas áreas tribais indomáveis, e as autoridades têm tomado medidas severas para resolver o problema, mas sem grande resultado. Aos estrangeiros é proibido viajar sem guardas, até na estrada principal que vai a Peshawar, patrulhada por tropas paquistanesas. Os guardas mantêm as armas carregadas durante toda a viagem. Os estrangeiros não podem sair de Peshawar em direção à fronteira afegã sem os vistos e um guarda armado.