terça-feira, 31 de março de 2020

O estranhamento do mundo



Como é que os homens entraram no mundo? Poderia ser o mote para um começo de conversa nestes azarados dias tão estranhos, em que nem sequer podemos dizer aquela frase: "Porque é que isto me acontece a mim?" Começo com a evocação de um filme de Woody AllenDesconstruindo Harry. Woody Allen é um bom tipo para estes dias.

No meio de uma cena de um filme dentro de um filme, que retrata a gravação de uma outra cena, o camara percebe que a imagem do ator que ele está a filmar não está nítida. Naturalmente, atribui o problema a um erro seu no controle do foco; não conseguindo corrigi-lo, começa a achar que o mecanismo de focagem está com defeito. Mas o mecanismo está perfeito, e como a imagem não melhora o camara pensa que talvez o problema seja com a lente. Será que ela está suja e por isso a imagem aparece desfocada? Mas a lente também está ótima, e perfeitamente limpa. Cria-se um alvoroço e todos de repente se dão conta de que o problema não tem nada a ver com a camara, e sim com o ator (Mel, representado por Robin Williams). É o próprio ator que está fora de foco! Ele está intrinsecamente desfocado, e toda a gente que olha para ele vê-o desfocado. Qualquer outra coisa é vista como imagem nítida, exceto Mel. O ator desse filme dentro de um filme foi acometido por uma doença que faz com que todos à sua volta, inclusive a sua perplexa família e o seu médico, o vejam desfocado. O que faz os espectadores rirem é o patente absurdo dessa ideia, a violação de uma propriedade fundamental da realidade.


Em situações normais, quando vemos o mundo lá fora desfocado, é porque algo está mal dentro do nosso cérebro, ou nos próprios olhos. Toda a gente percebe isso, não é preciso ser um especialista médico. Imprecisão e desfocagem da imagem não são propriedades dos objetos. Ou então, se estamos a fotografar ou a filmar, ou se estamos a ver com óculos, o problema está nas lentes. Portanto, imagens desfocadas de objetos sem termos mais nada interposto entre nós e os objetos, o problema está dentro de nós, e é detetado pelo nosso estado consciente. A cena do filme é bem-sucedida porque ninguém consegue focar Mel com nitidez. A desfocagem tornou-se uma propriedade externa de uma pessoa em vez de ser uma propriedade da nossa perceção.

No De Ludo Globi de Nicolau de Cusa – o texto foi escrito em Roma e concluído em outubro de 1463 – que consiste em dois diálogos, o primeiro entre Nicolau de Cusa e João IV, duque da Baviera; e o segundo diálogo é com o irmão do duque da Baviera. Nicolau de Cusa descansa depois de jogar um jogo de bola recém inventado. Nenhum jogo honesto está a faltar na capacidade de instruir – observa Cusa. Tendo comparado o movimento da bola desequilibrada, usada no jogo, com alma do homem acionada por Deus, ele passa a discutir o jogo que tinha estado a jogar: Pensei em inventar um jogo de conhecimento, considerei como deveria ser feito. Em seguida, eu o defini, fazendo como você vê. E depois diz: Se fosse possível alguém situar-se fora do mundo, este seria para ele tão invisível como um ponto inextenso.

"Porque é que isto me acontece a mim?" Um dia, teria aí uns cinco anos, fiz aquela pergunta inconveniente a minha mãe: “Quando morremos para onde vamos?” Hoje, depois de ter passado os olhos por muita metafísica, sei que foi nesse dia que o meu “Eu” entrou dentro de mim como um raio. Entrei em pânico com a experiência do Ser-aí. Eu era eu próprio, e que não sairia vivo de mim mesmo, isto é, do meu corpo. Passei a ter medo de morrer, de morrer. Mas, ainda bem que aquelas iluminações medrosas apenas apareciam esporadicamente.

"Que são os trabalhos de Hércules?" Enquanto os heróis monolíticos desenvolvem a sua força contra-atacando o mundo inicialmente hostil, os anacoretas permanecem na sua vida parada, como se estivessem num combate infernal de hesitação na decisão, no meio do deserto entregues à sua natureza adversa. Numa lenda do século VI, diz-se que João Clímaco [525 d.C. na Síria – 606 d.C. no Monte Sinai], psicagogo cristão ortodoxo, consumiu-se durante 40 anos no seu retiro desértico em Tola (cá está a mnemónica da quarentena), compartilhando a cela com um monstro marinho. Foi ontem, 30 de março, a festa deste santo. Muitas igrejas são dedicadas a ele, principalmente na Rússia. Foi um dos mais eruditos académicos da igreja. Aos 75 anos de idade, os monges do Sinai convenceram-no a que se tornasse o seu hegúmeno (nome que se dava a um abade à frente de um mosteiro grego ou russo).

Os sujeitos do presente, quer sejam heróis ou hipocondríacos, compartilham as suas quatro paredes com um monstro selvagem, que é o seu cérebro desenfreado e prenhe de futuro.

Apenas uns poucos escapam ao destino do esquecimento


Estar vivo é podermos morrer a qualquer momento. A prática da consciencialização da noção de quanto valiosa é a vida, justamente porque a podemos perder a qualquer momento dada a nossa tremenda vulnerabilidade, é de um valor supremo. Não acreditamos na vida eterna. Mas é bom acreditar na "crença na vida eterna". O que isto quer dizer? Quer dizer que sabemos todos que somos mortais, que somos finitos, que vamos morrer, mas como ferramenta de sobrevivência, acreditar que temos alma, e que ela é imortal, é bom para melhor defendermos a vida de todos em sociedade. A natureza não é sociável. 


A ideia de imortalidade tem-se mostrado cada vez mais cativante para a ciência e para a medicina moderna. Por exemplo, na Universidade de Northwestern, nos Estados Unidos, cientistas fazem ou fizeram experiências em minhocas apagando os genes que fazem as mutações que estão na base do envelhecimento. Claro que uma coisa são os humanos, outra coisa são as minhocas, mas os cientistas entusiasmam-se muito com as conquistas técnicas. Outro exemplo é o rejuvenescimento de ratos velhos por meio da infusão de sangue de ratos novos. Os pesquisadores acreditam que o procedimento poderia funcionar com humanos. Companhias do Silicon Valley, região dos EUA que concentra algumas das principais empresas de tecnologia do mundo, estão agindo ativamente nesse setor. Uma enorme quantidade de dinheiro está sendo investida na pesquisa da imortalidade, e há grandes nomes participando, entre eles: Larry Ellison - um dos homens mais ricos do mundo e um dos donos da Oracle, empresa de sistemas de computação. Sergey Brin - co-fundador do Google e da Calico, que trabalha com saúde e bem estar. Aubrey de Grey - o cientista e pesquisador britânico da área da medicina regenerativa é um dos maiores especialistas do Planeta em gerontologia. Essas pessoas famosas confessam sentir medo de envelhecer e morrer, por isso trabalham na luta por encontrar um remédio para esse irremediável destino. 


É claro que, quando nos remetemos para o transcendente, invocando a divindade, queremos que ela seja inteligente como nós. Com uma divindade antropomorfizada, capaz de ajuizar valores, podemos estabelecer com ela compromissos, e receber favores prestando-lhe homenagem. É este o principal benefício que os seres humanos, não os outros animais, obtém com a religião. Ainda assim temos aqueles que se imortalizaram pela Arte, mesmo que essa graça dos deuses tenha sido dada a poucos, aos quais chamamos génios. É o caso de um Leonardo da Vinci e de um Miguel Ângelo que encheram a época da Renascença com obras de arte a que chamamos obras-primas. E, todavia, não estamos a falar de nenhuma época mágica de beleza universal. Esses tempos eram ainda mais tumultuosos que os de hoje, marcados por violentas convulsões. Apesar de o fim do mundo apocalíptico da Peste Negra já ter passado, Florença ainda teve que se ver com um Girolamo Savonarola [1452-1498]. 

Savonarola na fogueira - Praça da Senhoria, Florença

Em agosto de 1490, Savonarola começou os seus sermões no púlpito da igreja de São Marcos, com a interpretação do Apocalipse. Seus sermões fizeram sucesso, exercendo uma influência crescente sobre o povo. Esses esforços de Savonarola vieram a gerar conflito com o papa Alexandre VI, que como todos os príncipes de cidades italianas, à exceção de Florença, era um oponente da política francesa. Em seus novos sermões atacou violentamente os crimes do Vaticano, que aumentaram desse modo as paixões em Florença. Um cisma começou a se prefigurar e o papa foi forçado outra vez a agir. Mesmo assim, Savonarola prosseguiu com suas pregações cada vez mais violentas contra a Igreja de Roma, recusando-se a obedecer às ordens recebidas. Em 12 de maio de 1497 foi excomungado. Quando a influência de Savonarola começou a baixar, os seus inimigos não tardaram a levá-lo à autoridade secular. Em 1498, com algumas confissões obtidas sob tortura, foi condenado à morte na fogueira, sem apelo nem agravo, na Piazza della Signoria, cuja representação pictórica, de um anónimo, se pode ver no Museu de São Marcos em Florença, cujo acervo é formado principalmente de pintura sacra do Renascimento, em especial de Fra Angélico.

Ora, é neste ponto que associo a esta história de Savonarola a história da estátua do David de Miguel Ângelo, que o ocupou de 1501 a 1504, dos seus 26 aos 29 anos de idade. Antes do envolvimento do artista no conceito da escultura, os membros da guilda encomendaram uma escultura de David a Duccio. Um bloco de mármore foi removido das pedreiras de Carrara no norte da Toscana. Duccio iniciou a obra modelando os pés, pernas e o tronco, mas por razões desconhecidas, com a morte de Donatello em 1466, a obra não prosseguiu. Passados dez anos, foi substituído por  Antonio Rossellino. Mas o contrato de Rossellino foi suspenso pouco tempo depois, fazendo com que o inacabado bloco de mármore fosse esquecido mais de vinte e cinco anos no atelier da Catedral de Santa Maria del Fiore.


Os membros da guilda, conhecidos como Operai, estavam determinados a encontrar um artista disposto a concluir a obra e apresentá-la à cidade. Encomendaram, então, um bloco de pedra que apelidaram de O Gigante. Apesar de nomes já conceituados, como Leonardo da Vinci, terem sido auscultados, foi o jovem Miguel Ângelo quem assumiu a tarefa de concluir a obra. Em 16 de agosto de 1501, Miguel Ângelo assinou então o contrato com os Operai para dar início aos trabalhos em meados de setembro. Miguel Ângelo é considerado nesta obra um inovador, pois retrata o personagem não após a batalha contra Golias, como Donatello e Verrochio antes dele fizeram, mas no momento imediatamente anterior a ela, quando David está apenas a preparar-se para enfrentar uma força que todos julgavam ser impossível de derrotar. Em junho de 1504 David foi finalmente instalado na entrada do Palazzo della Signoria, substituindo a escultura em bronze Judite e Holofernes, de Donatello. O trabalho de posicionamento da escultura durou quatro dias.

segunda-feira, 30 de março de 2020

Europa impotente, Europa ausente



Vemos agora, a bem dizer desde 1945, que o abismo da história é suficientemente grande para todos. Durante meio milénio o mundo foi uma experiência dos europeus curiosos. Assim se impuseram as ciências empíricas europeias. Hoje é a mesma gente simpática, mas falta-lhe valor.

Até à queda do Muro de Berlim, 1989, muito para lá das fronteiras da Alemanha, e da auto-exaltação da Casa de Áustria, a Europa ficou presa na tenaz das novas potências mundiais: Washington a oeste e Moscovo a leste. Longe iam os tempos de Carlos V, sobre os ombros do qual assentava um globo abraçado por uma grinalda com a divisa: “quam grave ónus”. Onus orbis – outra expressão mais do que a grinalda retórica, exprimia a presunçosa expansão. Em 1493, o papa Alexandre VI concedia aos espanhóis e portugueses, na sua bula Inter cetera, o direito de soberania sobre os novos mundos descobertos a ocidente. Era o Tratado de Tordesilhas com a imprescindível bênção romana. 


Por isso, há que interpretar, à luz da história, a imagem que vimos há dias no Vaticano o Papa Francisco completamente só no meio da Praça de São Pedro vazia a dar a bênção pascal urbi et orbi.

Nunca como nestes dias recentes, da ausência da Europa, o tempo de vida passado pareceu tão inútil e vazio. É o espírito da aniquilação do tempo. O europeu de hoje já não está condenado à liberdade, como dizia Sartre, mas à frivolidade. Na qualidade de consumidores, ao termos de escolher num menu a 27 paladares, desenraizamo-nos da nossa terra. A grande oportunidade agora é devorarmo-nos a nós próprios sem fundamento. Não é porque os mortos parecem ser a maioria, embrulhados em sacos de plástico preto. É porque os vivos vacilam, em vertigem, nas areias movediças.

A poluição e os limites do crescimento


A poluição do ar caiu drasticamente nas cidades do mundo, pelas restrições impostas para fazer face à  pandemia. A Aliança Europeia de Saúde Pública (EPHA na sigla original), admite que as condições de saúde causadas pela poluição crónica do ar das cidades podem ter influenciado na maior morbilidade das pessoas à infecção pela Covid-19. Mas, por outro lado, os resultados do confinamento já efetuado por cerca de metade da população mundial, já se nota através das imagens recolhidas por via satélite que as cidades estão hoje muito mais limpas. E à medida que as restrições e o confinamento imposto pelos governos continuar, com a drástica redução da circulação no tráfego aéreo e rodoviário, mais visível se tornarão os efeitos que a poluição estava a ter à volta do globo. 

A EPHA diz, num comunicado divulgado esta segunda-feira, que houve uma redução do dióxido de nitrogénio e de partículas finas que resultam do tráfego rodoviário, o que pode trazer algum alívio às pessoas infetadas pelo novo coronavírus, que provoca a doença covid-9. Mas nota que a poluição crónica do ar é um importante propiciador de doenças pulmonares e cardíacas, ligadas a taxas altas de mortalidade por Covid-19. A verdade é que a poluição é uma questão de "vida ou de morte". "O estrago já está feito. Anos a inspirar ar poluído do fumo dos carros e de outras fontes enfraqueceram a saúde de todos aqueles que estão agora envolvidos numa luta de vida ou de morte contra a Covid-19".


Estas notícias fizeram-me lembrar o famoso relatório publicado em 1972 , intitulado "Os Limites do Crescimento", e que foi apresentado pela primeira vez em Berlim, em outubro de 1972, na reunião anual do Clube de Roma. A crise do petróleo tinha sido discutida e cento e cinquenta personalidades de todo o mundo que estiveram presentes tomaram consciência que a vida na Terra estava em perigo. No entanto nada aconteceu. O mundo continuou indiferente e, passados poucos anos, ninguém sabia o que era o Clube de Roma e aquilo para que nos tinha alertado. Tudo continuou como dantes e a sociedade de consumo ia-se afirmando com todo o seu esplendor.


Todo o mundo estava contente com a evolução industrial e a sua deslocalização para oriente. Os baixos preços estavam a fornecer a um número cada vez maior de pessoas uma quantidade relativamente grande de coisas que até aí estivera reservadas a um pequeno número de privilegiados. Era evidente que se tinha formado uma nova sociedade sedenta de riquezas e de prazeres que a longo prazo iria provocar uma ainda mais chocante desigualdade entre classes e nações.

O relatório deu em livro "Limits of Grouth - The 30-Year Update", que mostrava as consequências da interação entre os sistemas do planeta Terra com os sistemas humanos. Cinco variáveis foram examinadas no modelo original, assumindo-se que o crescimento exponencial descreve os seus padrões de crescimento: população mundial, industrialização, poluição, produção de alimentos e esgotamento de recursos. Em 2008 Graham Turner, publicou um artigo intitulado "Uma comparação de 'Os Limites do Crescimento' com trinta anos de realidade". Nele examinou os últimos trinta anos de realidade com as previsões feitas em 1972 e descobriu que mudanças na industrialização, produção de alimentos e poluição estão todas coerentes com as previsões do livro de um colapso económico e social no século 21.

O relatório, que ficaria conhecido como Relatório do Clube de Roma ou Relatório Meadows, tratava de problemas cruciais para o futuro desenvolvimento da humanidade tais como energia, poluição, saneamento, saúde, ambiente, tecnologia e crescimento populacional. A publicação vendeu mais de 30 milhões de cópias em 30 línguas, tornando-se o livro sobre ambiente mais vendido da história.

Utilizando modelos matemáticos, o MIT chegou à conclusão de que o Planeta Terra não suportaria o crescimento populacional devido à pressão gerada sobre os recursos naturais e energéticos pelo aumento da poluição, mesmo tendo em conta o avanço tecnológico.

Alguns críticos dizem que a análise e as projeções do cenário futuro apresentados no livro mostraram-se equivocadas, uma vez que nenhuma das previsões, tanto nos aspectos de esgotamento dos recurso naturais, como da evolução dos processos produtivos se confirmaram. Outros cientistas, como o Prof. Jorge Paes Rios, da UFRJ e da Université de Grenoble - França, concordam com a maioria das conclusões do Relatório sendo apenas questão de tempo, aliás como mostra o próprio relatório baseado em modelos matemáticos. Afirma Rios, na sua tese, que como todo modelo matemático global podem existir algumas imprecisões ou mesmo simplificações, o que não invalida as conclusões principais.


sexta-feira, 27 de março de 2020

Contos da senescência a retalho


É preciso distinguir entre sobrevivência - que consiste no prolongamento da vida; e imortalidade propriamente dita, ou seja, a vida eterna. Procurar estratagemas para estender até ao máximo a duração da existência, é um propósito que sempre ocupou o engenho humano. Por exemplo, a Sibila de Delfos pediu a Apolo a imortalidade. E Apolo cumpriu. É claro que Sibila padeceu os horrores de uma interminável senescência, até acabar num grilo embalsamado, um brinquedo de criança. Os putos com o grilo metido em caixas de fósforo, chocalhavam perguntando entre gritos e gargalhadas: "Sibila . . . o que é que queres?" E encostando a caixa ao ouvido, escutavam num choro agonizante: "Quero morrer, quero morrer!" Para que seja realmente atrativa e desejável, a longevidade tem de evitar não apenas a morte, mas também os piores estragos do envelhecimento.

A Geriatria é a especialidade médica que trata das doenças, ou do não normal processo de envelhecimento de uma pessoa. E a Gerontologia é o estudo científico e social dos fenómenos decorrentes do envelhecimento humano. Assim, senescência é o processo de envelhecimento. Um senescente é todo aquele ou aquela que está a atravessar o normal processo de envelhecimento. E contar uma longa história a retalho é libertá-la a pouco e pouco, em quantidades pequenas.

O Feliz – chamemos-lhe assim, um nome fictício, um nickname –, um colega e amigo, entra em cena, já lá vão uns anitos, gozou comigo quando me viu numas imagens do telejornal da RTP, a dar conta do V Congresso Português de Geriatria a decorrer no Hotel Penta em Lisboa, sentado na primeira fila ao lado do então Presidente da Sociedade Portuguesa de Geriatria e Gerontologia – Dr. José Reis Júnior. Eu com 31 anos de idade e o Dr. José Reis Jr. – 76. Esse congresso foi em outubro de 1984. Faço aqui um parêntese para dizer que o Dr. José Reis Jr. Faleceu em 2012 com 104 anos de idade.

Eu nessa altura ainda estava no 2º ano de internato de Medicina Interna. O meu interesse pela Geriatria despertou para a minha formação depois de ter verificado que oitenta por cento dos doentes internados na minha enfermaria no ano anterior tinham mais de 65 anos de idade, com infeções respiratórias e doença vascular cerebral. O último Congresso Português de Geriatria, o 40º, realizou-se de 4 a 6 de dezembro de 2019 em Lisboa no Centro Ismaili. Fez-se uma revisão compreensiva e inovadora dos últimos desenvolvimentos da Medicina Geriátrica, em áreas como o Envelhecimento Demográfico, a Patologia do Sono, a Síndrome de Fragilidade, a Incontinência, a Depressão, a Dor, a Hipertensão, as Infeções Respiratórias, as Disritmias, a Doença Vascular, a Medicação, e as Demências.

Entretanto o tempo foi passando até que o Feliz aos 50 foi acometido por um enfarte do miocárdio. A partir daqui teve que gerir o envelhecimento e as suas realidades angustiantes com estoicismo, porque estava fora de questão abrandar a atividade profissional que exercia até à exaustão. Aos 65 sobreveio um cancro da bexiga. E aos 70 um cancro do pulmão. Mas ficou feliz por entretanto a lei não obrigar os médicos com mais de 70 anos a deixar de trabalhar. E por isso agradeceu ao Administrador do hospital, ainda por cima, por o ter contratado para continuar a trabalhar. A surdez resolveu-a com a compra do aparelho auditivo mais topo de gama que havia no mercado dos EUA. Depois submeteu-se à operação das cataratas pelo oftalmologista com maior fama a nível internacional. E resolveu o problema dos dentes com onze implantes. O que lhe dá alento é ter o mesmo objetivo de sempre: ajudar de alguma maneira as pessoas.

Do inventário das especialidades médicas registadas na Ordem dos Médicos, a 31/12/2019 – constam 81 médicos/as com a especialidade de Geriatria, num total de 62.574 médicos. Para sermos mais rigorosos a Geriatria na Ordem dos Médicos ainda é considerada uma competência, não uma especialidade como as outras, como por exemplo a Medicina Interna com 2.847 médicos/as. 

Existe a Sociedade Portuguesa de Geriatria e Gerontologia, secção da Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa, fundada em 1951 pelo Dr. José Reis Jr. Desde então, a Sociedade Portuguesa de Geriatria e Gerontologia (SPGG) esteve sempre representada até ao final da década de 80 pelo seu fundador em todos os Congressos Mundiais, organizados pela International Association of Gerontology, da qual o Dr. José Reis Jr. foi um dos fundadores e membro do seu Conselho Directivo. No início da década de 80, precisamente em Outubro de 1980, deu-se início à realização anual, até hoje, do Congresso Português de Geriatria e GerontologiaSPGG é uma instituição sem fins lucrativos que tem como objetivo estudar os aspetos clínicos, preventivos e sociais da doença nas idades avançadas, de forma a garantir mais saúde e melhores cuidados aos doentes idosos.


quinta-feira, 26 de março de 2020

Proteger os idosos



Tem havido várias recomendações para proteger os idosos da infeção por COVID-19. Para além das recomendações da Associação de Apoio Domiciliário de Lares e Casas de Repouso (ALI), deixo também aqui um resumo da recomendação do Presidente da Sociedade Portuguesa de Geriatria e Gerontologia - Prof. Doutor Manuel Carrageta:

Que as pessoas idosas com doenças associadas são dos grupos mais vulneráveis à infecção por COVID-19. A mortalidade na faixa etária dos 60 aos 70 anos é de 3,6%, dos 70 aos 80 anos de 8% e nos com idade superior a 80 anos de 14,8%. Os principais sintomas desta infeção são a febre, de início, e mais tarde a tosse que pode evoluir para falta de ar. A dor de garganta e a rinorreia não são sintomas da COVID-19. Se tiver estes sintomas fique em casa e contacte a Saúde 24 ou o seu médico telefonicamente, evitando ir de imediato ao consultório médico.


Para a vasta maioria das pessoas (80%) a doença é ligeira. Contudo, o vírus pode causar complicações: pneumonia, insuficiência de órgãos e mesmo morte. As pessoas com maior risco de adoecer gravemente são os que têm idade superior a 65 anos, sobretudo se tiverem mais de 80 anos, ou doenças associadas, como a doença cardíaca, doença pulmonar, hipertensão, diabetes, etc. Por estes motivos, estes doentes devem fazer o máximo para se proteger durante esta crise da COVID-19.

Para isso deve evitar contactar com pessoas que estejam com infeção respiratória. 

Lavar as mãos cuidadosamente com água e sabão durante pelo menos 20 segundos; tapar a boca e o nariz com um lenço de papel (se não tiver o lenço, use o cotovelo) quando tossir ou espirrar; evitar tocar os olhos, o nariz e a boca com as mãos; evitar tocar em superfícies de uso frequente como maçanetas de portas, interruptores de luz, alavancas, corrimãos, botões de elevador, etc. se tiver de o fazer não toque na cara e lave as mãos. Evitar grandes ajuntamentos de pessoas, não se expor ao frio, adiar as viagens.

Embora seja normal que se sinta ansioso com o risco desta infeção, continua a ser importante manter um estilo de vida saudável, para assegurar a sua saúde em geral. Tenha uma alimentação saudável, faça exercício regularmente, não fume, durma o suficiente e procure reduzir o stress.

Embora não haja ainda vacina para a COVID-19, as pessoas com doença cardíaca devem vacinar-se contra a gripe e a pneumonia. 

O tratamento das infeções virais requer repouso e uma boa hidratação. Pode tomar medicamentos como o paracetamol para combater a febre e aliviar os sintomas. Caso tenha insuficiência cardíaca, deve ter cuidado com o excesso de líquidos e evitar fármacos anti-inflamatórios não esteroides, sobretudo se tiver hipertensão arterial. Se estiver a tomar medicamentos para as suas doenças, não deve parar a medicação, pois caso contrário podem ocorrer complicações. Nunca altere a sua terapêutica sem primeiro falar com o seu médico.

Como as gotículas não andam a circular no ar, não tem qualquer vantagem o uso de máscara pelas pessoas sãs. O uso da máscara justifica-se apenas para os doentes ou suspeitos de doença e para os profissionais de saúde.

quarta-feira, 25 de março de 2020

Se este vírus não é um génio maligno . . .


O verdadeiro realismo da espécie humana é esta vigília global: uma forma mais humilde de olhar o mundo que consiste em não esperar menos da inteligência do que se exige dela para salvar a espécie da extinção desta Terra devastada.

No final da nossa travessia pela série de restrições destes estados de emergência em casa, sem os voos megalómanos pelo mundo a que uma grande parte se tinha habituado, vamos perceber que afinal andávamos a voar alto de mais. O teletrabalho e as videoconferências estão aí a demonstrá-lo.

O que se desenha no horizonte é um século de fugas. Nada que já não tenha acontecido noutros tempos. Sentimos o peso do mundo quando a alma universal balança, a ver-se afundar sob coisas invisíveis à vista desarmada sobre as quais não pode sobrevoar. Esta é a derradeira crise das várias crises ecológicas. É o último teste à nossa inteligência para salvar a terra-mãe. Esta crise ainda vai mais fundo do que as crises que a antecederam. Para a humanidade atual torna-se, pela última vez, um jogo do tudo ou nada.

Esta incerteza, numa crise existencial de animal alerta em fim de tempo, é a marca do século 21, em que o homo sapiens se vai transformando no homo pathos. O destino dos habitantes desta Terra depende mais de uma scienza nuova, para que hordas humanas em coexistência pacífica continuem a mercadejar pelo mundo. De outro modo serão reduzidas a uma alarmante enormidade  de cacos velhos. 


Numa pessoa infetada pelo SARS-CoV-2, o que causa os sintomas de doença não é propriamente a invasão do vírus em si, mas a resposta do sistema imunitário dessa pessoa: milhões de glóbulos brancos a acorrer aos locais da infeção, e substâncias químicas que estimulam o organismo a reagir, como é o caso da febre. O que o vírus faz é entrar nas células e destruí-las, ao servir-se dos seus constituintes para se multiplicar. Abandonando-as depois para se espalhar em grande escala, invadindo outras células, quer do mesmo organismo, quer de outros organismos humanos mais próximos.

À luz da compreensão do cientista, um outro génio, mas não maligno, um vírus não passa de uma organização molecular entre a química e a biologia, não sendo verdadeiramente um ser vivo como nós, mas também não estando completamente morto, porque tem as propriedades de se multiplicar em cópias de si próprio, à custa das células, estas sim, unidades de vida completa. 


Ainda assim, a narrativa que os cientistas usam para explicarem o que é um vírus, está recheada de antropomorfismos, isto é, para se dar a compreender a quem não é cientista, tem de recorrer a metáforas para fazer de conta que o vírus tem uma inteligência como a nossa, uma vontade como a nossa, enfim montando as mesmas estratégias que nós montamos para sobreviver, custe o que custar.

Assim, os cientistas dizem:
Os vírus passaram milhares de milhões de anos a aperfeiçoar a arte de sobreviver sem viver. Uma estratégia assustadoramente eficaz que os torna uma ameaça potente no mundo de hoje. Encontram terreno fértil em humanos sem que eles se apercebam. Tanto é mortal em alguns hospedeiros, como suficientemente leve noutros de modo a escapar sem ser detetado. E, por enquanto, não temos como deter este coronavírus, sorrateiro a causar o caos, apesar de ser da mesma família dos vírus da gripe de 1918, 1957,1968, SARS e MERS, que saltaram de uma população de morcegos, depois para outros animais exóticos como o pangolim, e por fim para os humanos. Todos eles codificam o seu material genético no ARN. A existência quase zombie dos vírus ARN torna-os fáceis de apanhar e difíceis de matar. Quando os vírus encontram um hospedeiro, usam proteínas das suas superfícies para desbloquear e invadir as células. Depois assumem o controlo dos próprios mecanismos moleculares dessas células para produzir e montar os materiais necessários para se reproduzirem.


Entre os vírus ARN, os coronavírus são capazes de produzir mais proteínas que reforçam o seu sucesso. Os vírus possuem ferramentas. Estes coronavírus têm três ferramentas diferentes, cada uma com a sua função específica. está uma proteína de “revisão”, que permite aos coronavírus corrigir alguns erros que acontecem durante o processo de replicação.

O SARS-CoV-2 é particularmente enigmático. Embora o seu comportamento seja diferente do do seu primo SARS, não existem diferenças óbvias nas “chaves” da proteína da espícula (spike) do vírus que lhe permite invadir as células hospedeiras. Apesar de toda a sua genialidade maléfica e design eficiente e letal, o vírus não quer realmente matar-nos. É bom para os vírus, bom para a sua população, se andarmos por aí perfeitamente saudáveis.O objectivo final dos vírus é serem contagiosos e ao mesmo tempo gentis com o seu hospedeiro. O SARS-CoV-2, que agora mata milhares em todo o mundo, ainda é inexperiente. Reproduz-se matando, sem saber que há uma maneira melhor de sobreviver. Mas pouco a pouco, com o tempo, o seu ARN irá mudar. Até que um dia, não tão distante, será apenas mais um dos coronavírus das constipações comuns que circulam todos os anos, causando tosse ou um nariz entupido, e nada mais.

segunda-feira, 23 de março de 2020

De Marco Aurélio a Montaigne - Sobre a idade e a aprendizagem


Marco Aurélio [121-180 - 59] foi o último dos cinco melhores imperadores, e é lembrado como um governante bem-sucedido e culto; dedicou-se à filosofia, especialmente à corrente filosófica do estoicismo, e escreveu uma obra que ainda continua a ser lida nos dias de hoje - Meditações.
31. Ama, admite o pequeno ofício que aprendeste, e passa o resto da tua vida como uma pessoa que confiou, com toda a sua alma, todas as suas coisas aos deuses, sem tornar-te um tirano nem um escravo de nenhum homem. 
32. Pensa, por exemplo, nos tempos de Vespasiano. Verás sempre as mesmas coisas: pessoas que se casam, criam seus filhos, adoecem, morrem, promovem a guerra, celebram festas, comerciam, cultivam a terra, adulam, são orgulhosos, receiam, conspiram, desejam que alguns morram, murmuram contra a situação presente, amam, aprisionam, ambicionam os consulados e os poderes reais... Pois bem, a vida daqueles já não existe em parte alguma. Lembra-te, agora, dos tempos de Trajano: encontraremos idêntica situação, também aquele modo de viver desapareceu. Da mesma forma, contempla e dirige o olhar ao resto de documentos dos tempos e de todas as nações, quantos, depois de tantos esforços, caíram pouco depois e se desintegraram em seus elementos. Especialmente, deves refletir sobre aquelas pessoas que tu mesmo viste esforçarem-se em vão, e que se esqueceram de fazer o que estava de acordo com a sua constituição: perseverar sem descanso nisso e contentar-se com isso. De tal modo, é necessário considerar que a atenção adequada a cada ação tem o seu próprio valor e proporção. Pois, assim, não desanimarás, a não ser que ocupes mais tempo da aprendizagem em tarefas bastante fúteis.
Montaigne [1533-1592 - 59] publicou os dois primeiros livros de Os Ensaios quando tinha 47 anos. Aqui ele olha para trás, para a sua juventude, e vê que os trinta anos são o divisor de águas entre o vigor e o declínio. Por volta dos 47 anos tem início o sofrimento das cólicas renais que o atormentarão até à morte. Diz que chegou a uma idade a que poucos chegaram e renuncia à esperança de viver oitenta anos, o que expressava no Livro 1, XIX. A idade em que escreve estes ensaios é vivida como uma perda, que em contraste confere à juventude prestígio e brilho, ilustrados nas figuras de Augusto, Cipião e Aníbal. Montaigne se insurge, assim, contra o facto de que desde a Antiguidade as leis confiscam os direitos dos jovens. A seu ver, eles devem entrar muito cedo nos negócios. A palavra chave, no início e no fim deste ensaio, e portanto do Livro 1 é: aprendizagem. 
Aos trinta anos a aprendizagem de um homem sábio deveria, sem a menor dúvida, estar terminada. Mas para aqueles que fazem bom uso do seu tempo, poderão o conhecimento e a experiência crescer com os anos? Não posso aceitar o modo como estabelecemos a duração da nossa vida. Vejo que os sábios a encurtam muito em relação à opinião comum. Como - diz o jovem Catão aos que queriam impedi-lo de se matar - estarei ainda na idade em que possam me repreender por abandonar a vida cedo demais? No entanto, tinha apenas 48 anos. Estimava essa idade bem madura e bem avançada, considerando que poucos homens a atingem. E os que se iludem com não sei qual “curso”, a que chamam de “natural”, que promete alguns anos mais, bem poderiam fazê-lo se tivessem o privilégio de ser isentados de um número tão grande de infortúnios de que cada um de nós é alvo por natural sujeição e que podem interromper esse curso que prometem a si mesmos. 
Que loucura é esperar morrer de um enfraquecimento de forças trazido pela velhice extrema e propor-se esse objetivo como termo de nossa vida, visto que é o tipo de morte mais rara de todas e a menos usual! Nós a chamamos de única natural, como se fosse antinatural ver um homem quebrar o pescoço numa queda, afogar-se num naufrágio, deixar-se surpreender pela peste ou por uma pleurisia, como se nossa reles condição não apresentasse esses inconvenientes a todos. Não nos iludamos com essas belas palavras; devemos talvez chamar de natural o que é genérico, comum e universal. Morrer de velhice é uma morte rara, singular e extraordinária, e portanto menos natural que as outras; é a última e extrema maneira de morrer: mais está afastada de nós, menos é esperável; é até mesmo o limite além do qual não iremos e que a lei da natureza prescreveu para não ser ultrapassado; mas é um privilégio dela nos fazer durar até lá. É uma isenção que ela dá por favor particular, a um só no espaço de dois ou três séculos, desobrigando-o dos reveses e das dificuldades que ela mesma jogou nessa longa estrada.
Assim, a minha opinião é que devemos considerar que a idade a que chegamos é uma idade a que poucas pessoas chegam. Posto que no ritmo normal os homens não chegam até aqui, é sinal de que estamos bem à frente deles. E já que ultrapassamos os limites habituais, que são a verdadeira medida de nossa vida, não devemos esperar ir além; tendo escapado de tantas ocasiões de morrer em que vemos todo mundo tropeçar, devemos reconhecer que uma sorte extraordinária como esta que nos mantém e está além da norma usual não deve durar muito. É um defeito das próprias leis apresentar esta ideia falsa: elas não querem que um homem seja capaz de gerir seus bens antes que tenha 25 anos, que mal conservará até aí a gestão de sua vida. Augusto cortou cinco anos nos antigos decretos romanos e declarou que bastava, para os que assumiam um cargo de juiz, ter trinta anos. Sérvio Túlio dispensou das corveias da guerra os cavaleiros que tinham passado dos 47 anos. Augusto reduziu essa idade para 45. Não me parece haver muita razão em mandar-se os homens para a aposentadoria antes dos 55 ou sessenta anos. Eu seria de opinião de que se estendesse nosso período de atividade e ocupação tanto quanto possível, no interesse público. Mas considero que o erro está do outro lado: não começarmos a trabalhar mais cedo. Aquele que foi juiz universal do mundo aos dezanove anos quer que um homem tenha trinta para poder decidir sobre o lugar de uma calha. 
Quanto a mim, considero que as nossas almas tornaram os vinte anos o que devem ser, e que aí prometem tudo o que poderão. Jamais uma alma, que não tenha dado nessa idade garantia evidente de sua força, deu prova disso desde então. As qualidades e virtudes naturais produzem nesse prazo, ou nunca, o que têm de vigoroso e belo. Si l’espine nou pique quand nai, A pene que pique jamai, [Se o espinho não espeta quando nasce, dificilmente um dia espetará] dizem no Dauphiné. De todas as belas ações humanas que chegaram ao meu conhecimento, de qualquer tipo que sejam, eu pensaria que, ao designar as que foram produzidas tanto nos séculos antigos como no nosso, a maioria foi antes da idade de trinta anos e não depois. E, sim, frequentemente na vida dos mesmos homens. Não posso dizer isso, com toda a certeza, das de Aníbal e de Cipião, seu grande adversário? A boa metade de suas vidas eles viveram da glória adquirida na juventude: desde então, foram grandes homens em comparação com todos os outros, mas de modo nenhum se comparados consigo mesmos.
Quanto a mim, dou por certo que, desde essa idade, tanto meu espírito como meu corpo mais diminuíram que aumentaram e mais recuaram que avançaram. É possível que para os que empregam bem o seu tempo, o saber e a experiência cresçam com a vida, mas a vivacidade, a presteza, a firmeza e outras qualidades bem mais nossas, mais importantes e essenciais, fraquejam e amolecem. Ubi iam validis quassatum est viribus aevi Corpus, et obtusis ceciderunt viribus artus, Claudicat ingenium, delirat linguaque mensque [Uma vez que as rudes forças do tempo abalaram nosso corpo, que nossos membros se prostraram, suas forças gastaram-se, nosso espírito claudica, nossa língua e nossa razão disparatam]. Ora é o corpo que primeiro se rende à velhice, ora também é a alma. E vi muitos que ficaram com o cérebro enfraquecido antes do estômago e das pernas; e como é um mal pouco sensível para quem dele sofre, e difícil de ver, é mais perigoso ainda. Por isso mesmo, queixo-me das leis, não porque nos mantêm tarde demais no trabalho, mas porque nele nos colocam muito tarde. Parece-me que, considerando a fraqueza de nossa vida, e a quantos escolhos costumeiros e naturais está exposta, não se deveria dar tão grande importância ao crescimento, aos jogos infantis e à aprendizagem. 

domingo, 22 de março de 2020

Não desistas de mim



Eu com 67, e a minha mãe ainda mais do que eu, com 91, temos alimentado esta longevidade graças aos progressos da medicina e da saúde pública. A introdução do saneamento e de outras medidas de saúde pública tinha reduzido drasticamente as probabilidades de morrermos de uma doença infecciosa. Mas nos dias em que estamos tal verdade está suspensa, por causa de uma nova pandemia devida a um novo vírus contra o qual nenhum homo sapiens estava imune. É assim que, de um momento para o outro, a vida e a morte passam de novo a avançar lado a lado, descontraidamente e sem qualquer problema, como no tempo de dois antepassados meus quer tiveram a sorte de morrer de velhos, sem nunca terem tido a necessidade de recorrer à medicina daquele tempo. A penicilina foi introduzida em Portugal pela Cruz Vermelha Portuguesa em maio de 1944. 
O avô de minha mãe do lado paterno [26/4/1856 - 1/12/1939] morreu com 83 anos. E a avó de meu pai do lado materno [13/10/1856 - 7/1/1942] morreu com 86 anos. 


A Covid-19, como se tivesse aberto um alçapão, ataca e tira o tapete debaixo dos pés preferencialmente às pessoas com mais de 65 anos de idade. É o que está a acontecer agora em todo o mundo, mas com particular dramatismo em Itália, numa altura em que a China parece estar a respirar de alívio, onde tudo começou. No fim, como é óbvio, todos nós morremos de qualquer coisa. Mas, até nisso, a medicina tem conseguido adiar esse momento para muito mais tarde. Pode não ter conseguido evitar os estragos do tempo no corpo, mas tem conseguido fintar a morte precoce. Quando um velho parece que está nas últimas, ainda tem a chance de regressar do hospital a casa recomposto, ainda que com pior aspeto, mais fraco e mais incapacitado. A velhice não é um diagnóstico. Há sempre uma causa de morte na certidão de óbito. Mas, na realidade, o que verdadeiramente acontece ao nosso corpo é a desintegração lenta e progressiva dos seus órgãos e sistemas. A curva da vida torna-se um longo e lento murchar, salvo em momentos como este, em que um minúsculo microrganismo ousa desafiar o macrorganismo mais poderoso do mundo.


“Não desistam de mim, dêem-me todas as chances possíveis”, foi a frase que o doente, da narrativa a seguir, pronunciou à frente do médico que o ia ouvir e avaliar antes de decidir o que fazer: operar ou não operar. 
          Era um doente cujo cancro da próstata já tinha evoluído para metástases ósseas. Uma das metástases comprimia-lhe a medula e isso colocou-o numa desconfortável situação de incontinência de urina e de fezes, e parcialmente paralisado. Fizesse-se o que se fizesse ele tinha no máximo uns meses de vida. Mas o doente implorou de tal forma que os médicos não desistissem dele, que a equipa cirúrgica decidiu intervir, na hipótese de travar o processo de paralisia, embora lhe dissessem que a recuperação seria difícil. No seu estado de fraqueza, enfrentava consideráveis riscos de lhe piorar a qualidade de vida e de a encurtar. Mas depois de lhe ter sido explicado tudo – nomeadamente a necessidade de lhe abrirem o tórax, cortar uma costela e colapsar um pulmão para aceder à metástase na coluna – o doente manifestou a vontade de querer ser operado quando assinou o documento do consentimento informado.
          Depois da cirurgia o doente sobreviveu 14 dias num inferno de tortura chamado “Cuidados intensivos”. Só depois de o filho ter mandado a equipa parar é que os médicos admitiram que ele estava a morrer aos bocadinhos a cada dia que ia passando: insuficiência respiratória; septicemia; coagulação intravascular disseminada seguida de hemorragias por causa dos anticoagulantes; perdas de sangue e transfusões de sangue. O doseador de morfina foi ajustado para minimizar o sofrimento com a retirada do ventilador, e a seguir o interno de especialidade de Anestesiologia encostou o estetoscópio no peito do doente, e manteve-se assim parado a ouvir os sons do coração a esmorecerem, até se impor o silêncio.
O doente, atrás de uma fantasia, preferiu correr o risco de passar por um processo de morte prolongada e terrível, que foi precisamente o que acabou por acontecer, apesar de os médicos lhe terem dito que a operação foi um êxito do ponto de vista técnico. E é a partir deste ponto que entro no âmago dos propósitos desta narrativa. Os médicos não tiveram dificuldade em explicar os perigos específicos das diversas manobras devido à operação, mas nunca tiveram a coragem de dizer ao doente que não valia a pena passar por aquela tortura. Eles sabiam muito bem que a doença não tinha cura. Mas nunca tiveram a coragem de falar olhos nos olhos com o doente acerca do seu fim de vida que estava para breve. E não tiveram coragem porque simplesmente nunca foram preparados para isso. Admitir a realidade e dizer a verdade ao doente a fim de o ajudar a enfrentar a finitude, era algo que estava para lá das capacidades deles. Não lhe ofereceram reconhecimento, nem conforto, nem orientação. Limitaram-se apenas a propor-lhe mais um tratamento, que por sinal “havia sido um êxito do ponto de vista técnico”.

Os derradeiros dias da nossa vida são ocupados com tratamentos que nos baralham as ideias ao ponto de sermos obstinados em busca de uma ínfima hipótese de obter o “milagre” da imortalidade. E assim se passou a negar o conforto básico de que mais necessitamos na hora da despedida.

Percorridas as duas primeiras décadas da pista de descolagem deste século XXI, os médicos treinados no uso de um espantoso arsenal tecnológico, deixaram de incorporar aquele sentimento dos médicos antigos desaparecidos ainda há muito pouco tempo: a derradeira vitória é da natureza, não da medicina. Esses médicos antigos estavam muito mais dispostos a reconhecer os sinais de derrota e tinham muito menos pretensões arrogantes de os negar. É impossível fugir à tragédia da vida, que se resume à nossa finitude e extinção individual, que nos remete para o vazio, o nada. Para os médicos de hoje, não há nada mais ameaçador para a sua autoestima de profissional competente do que a declaração de impotência perante o doente que à sua frente está prestes a morrer, e ele não ter nada para lhe oferecer. Por se considerar que um médico só pode ter sucessos, e nenhuma derrota, é que o momento da morte é hoje tão desumano. A atual sociedade, ao relegar a mortalidade para a tutela exclusiva da medicina, falhou no tratamento espiritual que a morte humana exige. 

sábado, 21 de março de 2020

Hoje ninguém dirá: uma obsessão emergente



Durante estes próximos meses, com o rigoroso estado de emergência sanitário a que nos temos de obrigar, é de admitir que aumentem certas perturbações psicológicas provocadas não apenas pelo medo da doença, dado que a mortalidade é significativa, mas também pelo efeito da pandemia na liberdade das pessoas e na economia. Para já, vejamos o caso da Perturbação Obsessivo Compulsiva.

Houve um tempo que os médicos davam como exemplo flagrante de uma pessoa com Perturbação Obsessiva Compulsiva – POC – andar constantemente a lavar as mãos e ter a obsessão das limpezas. Os médicos pensavam que essas pessoas tinham muito medo de contrair uma doença terrível. Mas não era o caso. Assim, quando alguém me contava uma história sugestiva, delicadamente dizia-lhe que consultasse um psiquiatra.

Hoje, contudo, a maioria das pessoas que sofrem de POC preferem ser tratadas por psicólogos e não por psiquiatras. Mas também é verdade que o quadro clínico se tornou muito mais complexo, para começar, que a POC não é uma doença mental mas sim uma perturbação, ou transtorno, conforme as escolas ou os países. Os estudos encontraram dois padrões bem distintos: 
Perturbação Obsessiva-Compulsiva da Personalidade (POCP) – pessoa sistemática e extremamente metódica, que presta muita atenção aos pormenores, e apenas sente uma forte aversão pela sujidade; Perturbação Obsessiva Compulsiva (POC) – uma pessoa cuja vida diária é perturbada pela intrusão de pensamentos indesejados, e é compelida a fazer coisas que sabe perfeitamente serem indesejadas, mas que ainda assim não consegue controlar.

Os pensamentos intrusivos e obsessivos parecem não vir de lado nenhum, são irracionais. Nem todos vivem a POC da mesma maneira. Há casos em que é apenas um único pensamento intrusivo de cada vez. Alguns pensamentos intrusivos permanecem na mente durante dias ou semanas. Enquanto outros duram apenas uns minutos. Para a maioria das pessoas, os pensamentos intrusivos são aquilo que as incomoda, enquanto as compulsões são um alívio, ainda que temporário.

Há quem sofra de POC e descreva aquilo que parece uma inversão da relação causa-efeito – pensamento-compulsão. A compulsão assemelha-se mais a um tique, aparece primeiro. Apenas sentem a necessidade de o fazer, como por exemplo dar toques com a mão. Se resistem para o não fazer é que ficam ansiosos. É a situação perturbadora que essas pessoas sentem em locais elevados, como por exemplo, em pontes. O pensamento intrusivo é pensar que querem saltar, mas verdadeiramente não querem. Chamam a este fenómeno “atração pelo abismo”.

As duas perturbações não são totalmente distintas, e os traços e os sintomas de uma delas podem aparecer em alguém que sofre da outra. Mas enquanto a POC se define por ideias egodistónicas angustiantes que colidem com a noção do tipo de pessoa que somos, a POCP tende a ser egossintónica, em que as pessoas estão de acordo com os seus desejos e necessidades, e por isso são bem aceites. Enquanto a POC torna a vida do próprio um inferno, a POCP torna infernal a vida dos outros. A POC pode obrigar a lavar as mãos duzentas vezes por dia a uma pessoa, e, todavia, pode não mudar de roupa interior durante semanas. Ou então pode ter apenas um determinado compartimento num brinco, e o resto da casa um pandemónio.

Ora, como os casos graves de POC podem ser confundidos com a POCP, ou 
 podem coabitar com outros problemas mentais no mesmo paciente, acontece que há uma percentagem de pessoas sem o diagnóstico ou com o diagnóstico errado. 

sexta-feira, 20 de março de 2020

Por cada nova pandemia as pessoas sentem o mundo a desmoronar


A doença sempre fez parte da sociedade humana. Por exemplo, todos os anos a gripe (influenza) afeta entre 5 a 15 por cento da população mundial, e mata meio milhão de pessoas. O que agora é diferente com esta nova pandemia do vírus SARS-CoV-2 é ser mais rápida a alastrar e apanhar o ser humano desprevenido nas suas defesas imunitárias. Pouco depois do seu surto inicial já infectou todo o mundo. Ainda é cedo para fazermos as contas finais, mas tudo indica que desta vez, no fim, nada vai ficar como dantes. E, no entanto, já neste século XXI a humanidade se confrontou mais do que uma vez com uma ameaça parecida. Em 2003, a Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS-CoV-1) foi a primeira, e apesar de ter representado uma ameaça grave à saúde pública de todo o mundo, e à estabilidade e crescimento das economias, já estava esquecida por todos nós. E no entanto essa tinha sido a propagação viral mais rápida da história humana. Ainda assim, medidas severas de quarentena travaram o que poderia ter sido uma catástrofe mundial. Retrospectivamente a SARS de 2003 foi a pandemia que não aconteceu. Dos que foram infectados, dez por cento morreram. E muitos sobreviventes ficaram com dificuldades respiratórias de longo prazo. O seu impacto na economia foi de pelo menos 40 mil milhões de dólares. A doença não foi completamente erradicada e, por enquanto, ainda não existe uma vacina segura para uso humano. E por agora deixemos de lado o Ébola, o H5N1, e o ZIKA.

Até agora, a humanidade tinha demonstrado estar à altura destes novos desafios globais de saúde pública. A OMS e as autoridades de saúde nacionais dos países-membros têm, na maior parte dos casos, contido as ameaças pandémicas desde a Segunda Guerra Mundial. Os peritos em epidemiologia e saúde pública têm sido praticamente unânimes na seguinte sentença: a humanidade, no seu conjunto, tem de mudar o seu padrão de vida, ditado de cima para baixo pela globalização. De outro modo, poderá comprometer a vida humana tal como a conhecemos hoje, com uma regressão aos tempos do Paleolítico. Mas será isso possível? Quer tenhamos nascido no seio da população rural pobre, numa favela ou bairro de lata; ou numa economia avançada - como podemos virar as costas às novas oportunidades, e negar a atração do progresso tecnológico? Já fomos testados muitas vezes e vencemos, é um facto, mas é também uma certeza da ciência biológica que os patógenos irão atacar implacavelmente as nossas populações cada vez com mais força, na medida em que é o nosso atual modo de vida que é uma oportunidade para estes novos coronavirus, e não o contrário.


Ao longo da sua história, Teodósia foi sucessivamente ocupada por gregos, tártaros, genoveses (sob o nome de Caffa ou Kaffa), pelos otomanos (sob o nome de Keve), polacos, cossacos, e enfim, pelos russos. Teodósia era um porto importante onde, no tempo dos genoveses (Caffa), podia acolher até 200 navios. Foi o centro de influência genovesa no norte do mar Negro. Os genoveses estabeleceram-se no local em 1281, mas logo tiveram que deixá-lo por causa dos ataques dos tártaros. Mas voltaram em 1312. No fim do século XV, a cidade tinha cerca de 70.000 habitantes - 80% genoveses - e havia-se tornado um centro comercial importante. Grande parte do comércio no mar Negro passava por Caffa, e os genoveses procuraram monopolizar esse comércio, com certo sucesso. 

É então em 1346 que um exército mongol, vindo de oriente, cerca a cidade. Trazem com eles vários cadáveres de soldados que haviam morrido de uma doença pestilenta. Os mongóis livram-se dos cadáveres de uma forma astuciosa. Sabendo o que estavam a fazer, atiraram-nos para dentro da cidade, ultrapassando os muros à força das catapultas. Irrompe assim uma epidemia em Caffa. Era a Peste Negra. O ar, rapidamente contaminado pelos cadáveres em decomposição, provocou uma grande mortandade na cidade. Os genoveses que ainda sobreviviam trataram de fugir da cidade. À medida que se deslocavam ao longo do Mediterrâneo, iam propagando a peste, e a morte. Entre 1347 e 1353, a Peste Negra dizimou 75 milhões de pessoas na Europa, reduzindo a sua população para cerca de metade. Nas ilhas Britânicas morreu 30 a 50 por cento da população. E a população de Florença decaiu em cerca de dois terços (de 120 mil antes da peste para 40 mil mais tarde).

Entre 1337 e 1453 os europeus passaram por uma série de conflitos travados entre a Casa Plantageneta que governava o Reino de Inglaterra, e a Casa de Valois, que governava o Reino de França, por causa da disputa da sucessão do trono francês. Foi a Guerra dos 100 anos. A tudo isto ainda se juntaram as conquistas otomanas desde 1352 e que culminaram na tomada de Constantinopla em 1453. Ora, todos estes acontecimentos fizeram regredir de tal forma a atividade económica em toda Europa, que levou os historiadores a considerar a data de 1453 como o marco da 2ª Queda do Império Romano: Império Romano do Oriente que afetou também por arrasto o Sacro Império Romano Germânico. A produção de bens alimentares decaiu por falta de camponeses para trabalharem os campos. E muitos dos que sobreviveram à peste acabaram por morrer de fome. As cortes europeias iam sucumbindo ao peso das dívidas internacionais que contraíam.

quinta-feira, 19 de março de 2020

Atravessar paredes é ir para além dos nossos limites


A Lógica serve-se de uma linguagem particularmente rigorosa. No entanto, são poucos os seus postulados aceites sem necessidade de serem provados, aqueles que são compreensíveis e espontaneamente evidentes. Kurt Gödel, matemático austríaco e amigo de Einstein, em 1931 acabou com todas as ilusões. Só nos sistemas lógicos mais simples se podem demonstrar todas as proposições verdadeiras. Trata-se então de afirmações verdadeiras que, no entanto, não podem ser demonstradas. Isto veio abalar os alicerces da própria ciência, pois ela não faz mais do que constatar que o conhecimento humano terá sempre de apresentar lacunas.

É neste ponto que revisitamos o paradoxo do mentiroso que remonta a Epiménides – um poeta, filósofo e místico que viveu em Creta no século VI a.C. a quem é atribuída a autoria do enigma conhecido pelo “paradoxo do mentiroso” – , e que ocupou os melhores anos da vida filosófica de Bertrand Russell, igualmente com a sua prodigiosa invenção de paradoxos. Um silogismo deste género – Todos os escorpiões mentem sempre; eu sou escorpião; logo, eu minto sempre – não pode ser demonstrado. Ele é logicamente válido; e, no entanto, todos os instrumentos de uma lógica útil fracassam perante ele. O problema consiste no facto de o silogismo fazer uma afirmação sobre si próprio. Quem se define como um constante mentiroso está, sob o ponto de vista lógico, a debitar afirmações indeterminadas. Estamos, portanto, perante uma autorreferência. Este tipo de autorreferências conduz, frequentemente, a contradições insolúveis. Neste tipo de situação diz-se que existe uma realimentação (feedback). 


É o que se passa também com as demonstrações da física quântica. O mundo que o físico pretende demonstrar, numa experiência ao nível das partículas, é um mundo de que ele também faz parte. De modo que a sua demonstração é do domínio estocástico, é indeterminada. Em teoria probabilística, o padrão estocástico é aquele cujo estado é indeterminado. Durante a medição do spin de um eletrão ele muda o seu estado. Esta é uma particularidade importante da mecânica quântica que não acontece nas medições habituais, em que as coisas não mudam assim tão depressa. No mundo dos quanta a medição intromete-se no sistema. É um pouco semelhante com o que se se passa na Bolsa de Valores Financeiros: quando os investidores compram e vendem ações estão também a mudar o seu preço. Quer com os físicos a medir partículas, quer com os investidores a jogar na Bolsa, em ambos os casos estamos na presença de uma realimentação. Assim como a longo prazo sabemos que no lançamento da moeda ao ar são tantas as vezes que saiu cara como saiu coroa; da mesma forma o spin do eletrão irá pender as mesmas vezes para um lado e para o outro. Mas é impossível prever em que direção o eletrão se posiciona numa determinada experiência. Na moeda ao ar é a mesma coisa: ambas as hipóteses têm precisamente as mesmas possibilidades. A situação é indeterminada. Mas é preciso chamar a atenção para o seguinte: tal facto não tem nada a ver com o nosso desconhecimento. Por absurdo, por mais que melhorasse a nossa capacidade de conhecer tudo o que há para conhecer, é uma impossibilidade absoluta. E é assim porque são assim as próprias leis da Natureza.

A nossa habitual compreensão da realidade falha no mundo das partículas minúsculas. Ao nível das bolas de bilhar é possível calcular a sua trajetória; já ao nível dos eletrões isso não faz sentido, porque um eletrão não tem trajetória. A famosa relação de incerteza da teoria quântica que Werner Heisenberg descobriu, diz que grandezas mensuráveis, como a posição e o momento linear, a energia ou o tempo, dependem umas das outras. O mesmo é válido para o spin ao longo de diferentes eixos. A partir do momento em que determinamos uma grandeza, a outra torna-se indeterminada. É impossível determinar ambas as grandezas ao mesmo tempo. Podemos até chegar a encontrar o eletrão do outro lado da parede, um limite físico cuja barreira estamos habituados a ter como impossível de ser atravessada. Os eletrões e até mesmo átomos inteiros podem, de facto, atravessar paredes.

A matemática é razão pura. Toda a sua construção racional se baseia em poucos princípios compreensíveis. Mas apesar de um computador ser construído de acordo com regras matemáticas muito claras, ele pode pregar-nos a partida quando a imagem da ampulheta surge no ecrã e nunca mais saímos dali, a não ser que recorramos ao botão do reset. É claro nestas ocasiões ninguém vai pensar em Kurt Gödel – o matemático dos irritantes limites da lógica; ou em Werner Heisenberg – o físico da incerteza e da indeterminação. Fazer com que um computador preveja se e quando os seus processamentos podem terminar é, sob o ponto de vista lógico, impossível, porque lhe estaríamos a exigir uma informação sobre si próprio. É o mesmo que procurar uma indicação que nos permita saber se aquele que nos está a dizer que é um mentiroso, está a mentir ou não. O computador só poderia fornecer-nos uma informação, referente a esse processo da ampulheta pendurada, no fim do processamento, no fim de concluído o processo. Mas então nesta altura, a questão do tempo que a ampulheta iria demorar suspensa tornar-se ia supérflua, redundante.


Agora reparem nas histórias que se costumam contar ao serão, ou quando não se tem nada que fazer:
Numa sala em Paris, enquanto uma sobrinha de um fulano a viver na Argentina se senta para lhe escrever uma carta de saudades, há um quadro que cai da parede. A madame não chegou a enviar a carta pelo correio, porque entretanto recebe um telegrama a informar que o seu tio morreu.
Este tipo de coincidências estranhas estão a acontecer a toda a hora. Como a nossa mente não está preparada, nem foi construída pela natureza para desprezar este tipo de padrão nos acontecimentos, ultimamente têm surgido teóricos da conspiração, principalmente os seguidores de Carl Gustav Jung, com o argumento de que esse tipo de coincidências obedecem às leis da mecânica quântica. E na verdade, Jung, instruído por Wolfgang Pauli - Nobel da Física em 1945, acabou por desenvolver a sua teoria da sincronicidade. Mas a verdade é que, no Instituto de Estudos Avançados de Freiburg tenta-se há mais de meio século demonstrar a justeza das teorias de Jung sem sucesso. Na realidade, Jung e os seus seguidores equivocaram-se, porque a Teoria Quântica não pode oferecer quaisquer bases teóricas para essas ideias, como capacidades parapsíquicas ou visionárias. pregos enferrujados a deixar cair quadros na parede, e relações de parentesco são coisas que só combinam na mente das pessoas. A escala de grandeza da nossa existência não se compadece com os efeitos fantasmagóricos que se fazem sentir um pouco por toda a parte ao nível microscópico. Pelo que se explicou acima com o exemplo da moeda ao ar ao longo de um grande número de tentativas, a lei dos grandes números acab apor tornar irrelevantes os acasos da física quântica. Mesmo para o modo como o nosso cérebro funciona, os fenómenos da física quântica não desempenham, tanto quanto se conseguiu saber até hoje, qualquer papel. Assim, os efeitos quânticos não podem ser responsabilizados pelo livre-arbítrio, como alguns psicólogos bem intencionados têm afirmado.

Esta é a careca descoberta dos videntes. A liberdade só existe na medida em que é impossível prever. Porque se fosse possível, ainda que por uma minoria de gente privilegiada com dotes extraordinários, cairia por terra qualquer veleidade de liberdade humana. Ora, o nosso comportamento não pode ser determinado nem previsto. E entre as muitas consequências da nossa liberdade resulta uma das mais espantosas. É que nem os próprios conseguem prever e perceber a maior parte das suas escolhas, decisões e comportamentos em geral. No fundo, deparamo-nos com essa imprevisibilidade em todos os âmbitos existenciais. As previsões fracassam devido à autorreferência. E o que torna imprevisível é o facto de as nossas decisões terem muito pouco de racional devido ao facto de estarem dependentes da nossa inter-relação com o mundo e as outras pessoas. E quanto mais rica for essa inter-relação mais imprevisível se torna. Avaliar uma outra pessoa não funciona da mesma maneira quando pesamos ou medimos uma coisa. A única coisa que se assemelha às experiências da física quântica é que, quando se trata de relações humanas, sempre que se observa um determinado estado acabamos por modificá-lo. O relacionamento entre pessoas, ao se modificarem mutuamente, o já referido fenómeno da autorreferência torna o relacionamento imprevisível.

quarta-feira, 18 de março de 2020

O mundo visto com método, mas sem plano. O sentido para o risco


Há muitas pessoas, e não apenas aquelas cuja personalidade entra no diagnóstico de perturbação paranoide, que acreditam que tudo o que lhes acontece obedece a um plano, a uma providência. É bom que se diga que nem todas as pessoas que acreditam que podem ver o seu destino nas cartas do Tarot, ou nas cartas dos horóscopos traçados por astrólogos famosos, quiromantes, ou seja, uma parafernália de crenças alojadas na esfera da superstição, são paranóicas segundo os critérios de diagnóstico psiquiátrico dentro do espetro paranoide.

Essas pessoas dizem coisas do género: “Tenho-me perguntado o que teria acontecido se… de certeza que foi isto e aquilo que aconteceu”. A certeza é possível que nunca chegaremos a ter. O que podemos ter como certo, basta um gesto inadvertido de um qualquer negociante anónimo algures no caos. E isso é o bastante para de um dia para o outro a vida de todo o mundo ser virada de pernas para o ar devido a minudências do acaso. É verdade que a ciência é cada vez melhor, e amanhã será melhor do que hoje. Mas também é verdade que quanto mais se sabe cientificamente, mais nos enredamos numa sequência infinita de causas e efeitos. A capacidade de assimilação do nosso cérebro é limitada, porque o túnel por que te de passar a informação é uma espécie de gargalo, a que chamamos atenção. Não conseguimos suportar uma realidade demasiado complexa. Foi por isso que, desde tempos imemoriais, tivemos que recorrer a aforismos que nos dessem a sensação de serem regras a que devíamos atender: "em abril águas mil"; "um mal nunca vem só". Que hoje em dia são levadas para a caricatura, para a charada, como: "chuva em novembro, Natal em dezembro". Nós bem sabemos que o mundo não é assim tão simples como nós desejamos. Mas dá-nos jeito, tranquiliza-nos que façamos de conta que não temos outro remédio.

Os matemáticos não se têm cansado de nos dizer por estes dias que o crescimento diário do número de infetados com o Covid-19 é exponencial. É ilustradora aquela história oriental do sábio que inventou o xadrez. O rei quis recompensá-lo pela invenção. Ao perguntar-lhe qual era o seu desejo, o sábio disse: "basta colocar um grão de arroz na primeira casa do tabuleiro e depois preencher o resto do tabuleiro duplicando o número de grãos de casa em casa. O rei sorriu, por um pedido aparentemente tão modesto. Mas logo se apercebeu do logro. O sábio tinha pedido mais grãos de arroz do que aqueles que era possível existir em todo o mundo. É a um crescimento assim tão rápido, no qual um determinado número é continuamente duplicado que os matemáticos dão pelo nome de crescimento exponencial. É o mesmo efeito da bola de neve: um minúsculo fragmento de gelo solta-se e põe-se em movimento. Pouco tempo depois uma avalanche atinge o vale. É o que acontece quando cometemos imprecisões, por minúsculas que pareçam. Ou quando um grosseiro boato atinge milhões de pessoas nas redes sociais. Tudo isto tem a ver com os chamados sistemas caóticos, metaforizados com a paráfrase do bater das asas de uma borboleta em Macau provocar uma tempestade nos Açores. Mesmo com a ajuda dos melhores computadores, é praticamente impossível fazer previsões da dinâmica de um sistema não-linear para além de um período de tempo extremamente reduzido.

Este é o tipo de questões que provocam em nós um duplo efeito: fascínio e aflição. Tempo e acaso, dois grandes tiranos da humanidade. Muito pouco da Natureza obedece às nossas ordens no duplo sentido: determinação e ordenação. O primeiro estremecimento que é de pânico, a ciência vem depois transformá-lo em deslumbramento. Os matemáticos provam que o acaso ocorre mesmo quando tudo está aparentemente em ordem. Os físicos descobrem que não o podemos evitar. Os biólogos resignam-se ao facto de toda a vida – desde os vírus aos humanos – obedecer à evolução por seleção natural da variação por mutação. Os psicólogos acatam os princípios da indeterminação, incerteza e imprevisibilidade, que estão na base da nossa personalidade para amar. E os neurocientistas explicam aos filósofos como o cérebro e a mente são um só, para que estes nos digam por que temos tanta dificuldade em perceber a nossa força geradora de tantos paradoxos e contradições entre o amor e a guerra.

Hoje o mundo é mais complexo do que o mundo da pandemia anterior. E é cada vez mais imprevisível. Ao avaliarmos a maneira como os ingleses começaram a delinear a sua estratégia de ataque ao novo coronavírus, quase oposta à dos países continentais da Europa, verificamos que os ingleses arrastam uma longa tradição de diferenças, em relação aos outros europeus, que ainda perduram nos dias de hoje. O Brexit é apenas o acontecimento relevante mais recente. A língua inglesa desde sempre acentuou os aspetos amigáveis do risco. A palavra inglesa para 'risco' é chance. 'Correr um risco', eles dizem: to take a chance. Por conseguinte, chance significa também oportunidade, e até sorte. Dando de barato que a neurociência mainstream é de origem anglo-saxónica, isto é, cujas bases filosóficas estão filiadas na filosofia analítica, cuja matriz é anglo-saxónica, tradicionalmente diferente da filosofia europeia continental franco-alemã, no fundo o que os neurocientistas dizem é que os nossos cérebros funcionam como os ingleses dizem: é o acaso que não só é o motor da evolução da vida, como é também o acaso que comanda as nossas vidas, e toda a criatividade humana. Até mesmo as nossas características mais humanas – como o altruísmo, a compaixão, a capacidade de estabelecer valores morais – não existiriam se o nosso comportamento fosse sempre previsível.

No entanto, há sempre um preço a pagar por essas escolhas, ou opções. E pelos vistos, o primeiro-ministro inglês, e todos os seus consultores na área da saúde, estavam dispostos a pagar esse preço com insegurança, e número de mortos dados ao sacrifício. Aliás, foi assim que os ingleses, inspirados por Churchill, se comportaram aquando dos bombardeamentos alemães a que estiveram sujeitos durante a 2ª Guerra Mundial. Ora, pela parte que nos toca, os portugueses livraram-se da morte e da insegurança na 2ª Guerra Mundial, inspirados por um primeiro-ministro medricas, mas astuto, que na época se designava por presidente do conselho, e de nome Salazar. E a verdade é que os portugueses não são dados muito ao risco, como os ingleses, a maioria das pessoas não se sente bem em situações inseguras. É por isso que as evitam sempre que podem, acabando por privar-se de inúmeras oportunidades. Mas, num mundo cada vez mais complexo e intrincado, somos constantemente obrigados a tomar decisões sem estar na posse de todas as informações necessárias. Não vale apenas sonhar com a crença de que está nas nossas mãos o poder de planear a nossa vida até ao mais ínfimo pormenor. 

De qualquer forma, os riscos ocupam um espaço maior nas nossas cabeças, do que as oportunidades. A evolução da teoria darwinista produziu o medo como sinal para nos proteger dos perigos. Por isso, o sentimento negativo é o que predomina. Ainda que racionalmente, e do ponto de vista objetivo, tenhamos mais razões para termos esperança no futuro, do ponto de vista subjetivo o que predomina é o pessimismo, a preocupação, o senhor Seguro morreu de velho e a dona Prudência fez-lhe o enterro.

terça-feira, 17 de março de 2020

Acaso ou coincidência


Etimologicamente, acaso significa ‘sem causa’. É a aleatoriedade ou ausência de causas. Uma estrutura com aleatoriedade objetiva é impossível de descrever completamente, tem um comportamento impossível de ser previsto e controlado. É o conhecido exemplo da ‘moeda ao ar’. Repetindo o gesto, partindo sempre de um mesmo estado, uma mesma postura, o resultado é aleatório.

O termo coincidência é utilizado para referir eventos que nos aparentam alguma relação entre si, mas efetivamente sem qualquer relação de causa e efeito. O que é esperado é que haja coincidências quando temos conhecimento de imensos acontecimentos, aos quais atribuímos um qualquer significado, a ocorrer ao mesmo tempo. 
Do ponto de vista estatístico, quanto maior a amostra e o número de opções, maior a possibilidade de nos impressionarmos com as coincidências. As coincidências são inevitáveis, ​​e geralmente não têm nada de especial, quando comparadas com o significado que a nossa intuição lhes atribui. Medir a probabilidade de uma série de coincidências é o método mais eficaz para distinguir eventos que nos parecem causalmente conectados, de uma mera coincidência. Estabelecer mecanismos de causa e efeito, isto é, causalidade, é notoriamente uma tarefa difícil. Mas o que podemos à partida ter em mente é que, o facto de haver uma correlação entre dois ou mais fenómenos distintos, não quer dizer que tenha de implicar uma relação de causalidade. 

Karl Gustav Jung [1875-1961] foi, por assim dizer, o autor que mais estudou a fundo o fenómeno da sincronicidade. É o conceito do significado simbólico atribuído a eventos  coincidentes. Eventos causalmente não relacionados, mas cuja ocorrência simultânea confere significado para as pessoas que os observam. O facto de tais acontecimentos ocorrerem simultaneamente, e tido como altamente improvável a sua natureza casual, legitima que a nossa intuição lhes atribua um certo significado, mesmo que não lhes seja atribuída uma relação de causa e efeito. Era este o sentido que Jung queria dar ao significado de sincronicidade. 

O cérebro, não apenas o nosso, mas também o de muitos animais, é profícuo a  sinalizar acontecimentos com significado. E a partir de certa altura um significado passa a constituir uma regra. Os neurónios envolvidos nesta função libertam uma substância mensageira: a dopamina. Esta minúscula molécula, composta apenas por 22 átomos, não serve apenas para acontecimentos inesperados. Dirige também a atenção de modo a facilitar a aprendizagem. Quando acontece alguma coisa que não estávamos à espera, a dopamina leva a que prestemos mais atenção ao acontecimento, pois o inesperado pode trazer novas oportunidades. Isto implica que tenhamos de assumir alguns riscos, se bem que limitados, para aprendermos. A dopamina modifica a transmissão de sinais entre neurónios, pois é assim que o cérebro armazena informações durante a aprendizagem. E enquanto aprendemos a estabelecer relações, o cérebro transforma-se.

Marie-Louise von Franz, uma seguidora de Jung, partilhava a crença de que os números são os arquétipos da ordem e os principais participantes na criação da sincronicidade. Esta hipótese tem implicações relevantes para alguns dos fenómenos do caos na dinâmica não linear. A teoria dos sistemas dinâmicos forneceu um novo contexto para especular sobre a sincronicidade, porque fornece previsões sobre as transições de fase entre estados emergentes de ordem. Essa visão, no entanto, não faz parte do pensamento matemático convencional.

Uma vez que o nosso cérebro está programado para procurar padrões, as observações que não podemos explicar não nos deixam descansados. Facilmente chegamos à conclusão de que se houver uma coincidência de acontecimentos, também tem de haver forçosamente uma conexão. E na verdade a diferença entre coincidência e causalidade em determinados eventos não é assim tão evidente, sobretudo em situações complexas com inúmeras influências a desempenhar o seu papel. É por isso que o excesso de informação não é muito benéfico para as pessoas que apresentam tendência para a paranoia. Nos dias de hoje a televisão e a internet descarregam sobre as pessoas uma tal quantidade de notícias que não lhes permite ter o discernimento suficiente para evitar estabelecer conexões entre elas. É também por isso que as teorias da conspiração são tão propícias a germinar e a se propagarem nas redes sociais, sobretudo quando os acontecimentos transportam consigo uma grande carga emocional.

No seu constante afã de descobrirmos padrões nos acontecimentos à nossa volta, podemos muito bem exagerar, vendo contextos onde eles não existem. Temos uma intrínseca aversão ao acaso, à desordem da Natureza. É por isso que tendemos a ver logo um significado nos mais ténues sinais. Acreditamos numa teoria sem termos a mínima evidência para ela; e é por isso que confundimos constantemente coincidência com causalidade; acaso com determinação; sorte com capacidade. É bem conhecida a reação do jogador de casino quando ao fim de uma série de perdas olha para o lado e desconfia que o indivíduo que está atrás de si lhe está a dar azar, não tardando a interpelá-lo com a pergunta: “ó amigo, está com os pés frios?” E para bom entendedor, o sujeito desanda dali rapidamente. Aquela frase é um cliché dos jogadores de casino, ou de sorte e azar. Os clichés e os preconceitos são abundantes em situações de grande tensão interior, em que reduzimos o campo de visão alargado das hipóteses. Os psicólogos chamam a esse efeito “visão de túnel”.

Já dentro da ciência convencional existe o conceito de serendipidade para a ocorrência afortunada de uma descoberta ou invenção não planeada. Os exemplos também são abundantes: desde o caso eureka de Arquimedes, passando pela descoberta da penicilina por Fleming, até Nikola Tesla [1856-1943]. Tesla é muitas vezes descrito como um importante cientista e inventor. É mais conhecido pelas suas muitas contribuições revolucionárias no campo do eletromagnetismo no fim do século XIX e início do século XX. Tornou-se largamente respeitado como um dos maiores engenheiros electrotécnicos dessa época nos EUA. Todavia, nunca tendo dado muita atenção às suas finanças, Tesla morreu empobrecido aos 86 anos.

Serendipidade deriva de Serendip, o nome antigo árabe para o 
Sri Lanka, que no tempo de Vasco da Gama era o Ceilão. A palavra foi exportada para muitos outros idiomas, com o significado geral de "descoberta inesperada" ou "chance de sorte". O New Oxford Dictionary of English define serendipidade como o desenvolvimento de coisas úteis e muito importantes, mas por acaso, sem ter por trás qualquer iniciativa com uma intenção ou um projeto. As inovações como casos de serendipidade geralmente apresentam uma característica importante: são criadas por indivíduos com ideias que, enquanto os outros só viam nessas ideias uma "bacorada" (vara de bácoros, que em sentido figurado significa disparate), eles viam o "toque de Midas" (expressão que em sentido figurado significa fazer da caca ouro). 

A serendipidade pode desempenhar um papel importante na pesquisa da verdade, seja ela de cariz científico ou criminal, para além do tradicional método e comportamento científico, baseado na lógica e na previsibilidade. Pesquisadores bem-sucedidos têm sido aqueles que conseguem observar os fenómenos e os resultados das experiências laboratoriais sob as mais diversas e diferentes perspetivas, que violam muitas vezes os dogmas e preconceitos a que os cientistas também estão sujeitos. Questionam desassombradamente os pressupostos da ciência com argumentos que escapam ao paradigma das observações empíricas. Percebendo que tais ousadias podem gerar importantes ideias de pesquisa, estes pesquisadores quando chegam a ter a sorte de adquirir o estatuto de‘sénior’, gostam de apreciar o inesperado, o "fora da caixa", encorajando os cientistas ‘júnior’ a observar e a discutir com eles esses factos inesperados.

Por fim, a serendipidade é muitas vezes incompreendida quando interpretada de forma incorreta, como sinónimo de oportunidade, coincidência, sorte ou providência, o que prejudica o seu contributo nos processos de inovação. Assim, a serendipidade pode ser virtuosa em ambientes de grupos multidisciplinares de cientistas trabalhando em conjunto, firmando a ideia de que o trabalho e o interesse de um pesquisador pode ser compartilhado com outros que podem descobrir algo de diferente, algo de novo, para um outro paradigma de conhecimento e de ciência.