quinta-feira, 28 de julho de 2022

A epistemologia do que julgamos ser verdade



O que dizemos e fazemos quotidianamente na nossa vida, a que se costuma chamar "senso comum", é o que pensamos como são as coisas. Ao passo que o que dizem os filósofos acerca do que julgamos como são as coisas é muito diferente. O que está em causa é o reconhecimento de certa correspondência inteligível entre nossas palavras e as coisas no mundo. Indissociável desse reconhecimento, acompanha-o também uma confiança em relação ao nosso sentir comum. Daí não vermos como se poderia dispensar o vocabulário que usamos para viver e conviver. Por conseguinte, os nossos hábitos linguísticos e o nosso comportamento a condizer é considerada configurar-se como se fosse a verdade.

Fala-se do “realismo do senso comum”, algo como uma forma incipiente de realismo metafísico, que estaria, por assim dizer, embutida na prática corriqueira da linguagem. O realismo metafísico, sob essa perspectiva, que não é senão demasiado comum na literatura filosófica corrente, não mais seria que o prolongamento, sofisticado e elaborado em linguagem filosófica, de uma postura realista mais tosca e não elaborada, identificada àquele sentimento humano de que há uma realidade que nos transcende e que se diz em nosso discurso e se “espelha” em nossas verdades ordinárias.

Há uma ideia fortemente consolidada de que, independentemente de nós, a realidade é só uma e que a essa realidade corresponde uma só verdade. E como acreditamos que é possível nós conhecermos a verdade, e, por conseguinte, poder dizer verdades sobre ela, parece-nos em geral que a verdade das nossas proposições não está em nós. Não depende, portanto, de nós a reconhecermos. Um mundo real está aí, as verdades lhe dizem respeito, mas a realidade e a verdade não precisam de nós. Assim costumamos julgar.

Muito de nossos esforços, como indivíduos e como sociedade, vai na direção de querermos ampliar mais e mais nosso conhecimento do mundo. 
E entendemos que temos sido e somos, com frequência, bem-sucedidos. Essa busca humana da verdade, filósofos das mais variadas tendências sempre a tematizaram, os próprios filósofos céticos não deixaram de reconhecê-la. Sexto Empírico chega mesmo a dizer que o homem é um animal que, por natureza, ama a verdade, que o “o homem é indagador por natureza e há, infundido em seu peito, um grande e apaixonado anseio pela verdade”. E os contextos não nos sugerem ironia nem qualquer alusão a uma eventual propensão do homem comum a ser dogmático.

As filosofias fizeram da verdade um de seus temas preferenciais e bom número de filósofos pretendeu ter estabelecido verdades definitivas e absolutas, cujo reconhecimento se exprime então em seus discursos verdadeiros. Opuseram a realidade às aparências e se julgaram capazes de, para além das aparências, chegar à “realidade mesma” das coisas, conhecendo como estas são por natureza. 
Ao longo dos séculos – e isso desde a filosofia clássica grega – o dogmatismo filosófico foi com muita frequência associado a uma postura metafísica realista e à noção de verdade como correspondência. O realismo metafísico postula uma realidade concebida como existente em si mesma, com uma natureza constituída de modo determinado e independentemente de nossa capacidade cognitiva, por vezes como independente também de qualquer conhecimento que lhe pudesse dizer respeito, humano ou outro. 

Eram metafisicamente realistas os dogmatismos clássicos e helenísticos que o ceticismo grego combateu. Eram-no a teoria platónica das Formas, a metafísica aristotélica, o materialismo epicurista e o sistema estoico. As doutrinas da verdade, sob diferentes roupagens, propunham basicamente uma noção de correspondência da verdade. Aristóteles legou-nos em sua Metafísica uma formulação que se tornou paradigmática: “Dizer que o ser não é, ou que o não-ser é, é falso, mas que o ser é e que o não-ser não é, verdadeiro”. O ceticismo grego tinha diante dos olhos essa noção de verdade que o pensamento antigo formulou.

As principais correntes filosóficas medievais mantiveram fundamentalmente a “opção” grega pelo realismo metafísico e pela noção de correspondência da verdade que o acompanhava. E ela foi também preservada em boa parte no pensamento filosófico moderno, pelo menos até ao advento do empirismo cético de Hume e da revolução epistemológica kantiana que lhe sucedeu. Na filosofia depois de Kant, essa noção metafísica de verdade e essa postura realista caíram em descrédito crescente. Nietzsche criticou-as severamente e a filosofia contemporânea, sob diferentes óticas e perspectivas, as tem continuamente questionado – em verdade as tem ostensivamente rejeitado.

Das críticas que se fizeram e se fazem à noção de verdade como correspondência entre o discurso e as coisas, Kant foi um filósofo sumamente oportuno. Na Crítica da Razão Pura, o filósofo deu efetivamente um passo decisivo para uma nova conceção que levou ao aprofundamento da questão que envolve as noções de realismo e de verdade como correspondência. Kant teve a felicidade de poder mostrar que a rejeição do realismo metafísico (que ele chamou de “transcendental”) não implica necessariamente a recusa de toda a postura que se possa legitimamente chamar de “realista”. A noção de correspondência na formulação da verdade pode ser preservada, mesmo abandonando a sua interpretação metafísica. Por outras palavras, Kant rompeu com a ligação milenar que se estabelecera entre o realismo metafísico e a noção de correspondência na noção de 'verdade'. Deixouportanto, manifesto o caráter contingente e não essencial dessa ligação. 

Os crentes no realismo transcendental - que consideram espaço e tempo como dados reais em si mesmos, que existem independentes da nossa percepção através dos nossos sentidos - vão mais longe, interpretando a aparência das coisas como coisas-em-si, que existe independentemente de nós e da nossa sensibilidade. Essa suposição errónea, que aquilo que nós vemos deve ter uma existência por si mesma, acabaria por significar que as nossas representações sensoriais são inadequadas para estabelecer a realidade das coisas. 

Mas se pensarmos bem, as aparências não podem ser independentes. A aparência é o resultado do encontro da coisa-em-si com os nossos sentidos e a sua representação no nosso cérebro. Como o cérebro faz isso, se é como fotografasse, se é como se desenhasse, é um problema diferente que faz parte do labor dos neurocientistas. Não é um problema filosófico ou conceptual. Está mal concebida a ideia de procurar se a causa da percepção reside no interior do nosso cérebro, ou no mundo exterior ao cérebro. Kant tem razão num ponto: é impossível apresentarmos uma prova satisfatória e inequívoca de que estamos certos quando dizemos que uma coisa é assim e assado. Temos de acreditar nas provas indiretas, desde o modo como conseguimos sobreviver no dia-a-dia, bem como no sucesso do empreendimento científico. Se foi possível ir à lua e voltar, é porque aquilo que se sabia estava certo.

Do que se disse até aqui, não resulta que devamos deitar fora o idealista cético. O idealista cético é, em verdade, um “benfeitor da razão humana”, precisamente porque nos compele a uma vigília atenta e nos faz ver que, sob pena de nos contradizermos a cada passo, devemos tomar todas as nossas percepções, chamemo-las de internas ou de externas, tão-somente como uma consciência do que está sob dependência de nossa sensibilidade, compelindo-nos a considerar os objetos externos dessas percepções como coisas reais e verdadeiras. E devemos deixar cair tanto o conceito de coisa-em-si, como de transcendental, que são conceitos que geram mais confusão do que iluminação. E assim, espaço e tempo são realidades independentemente dos nossos sentidos, conceitos e intuições a priori. As dificuldades com que depara o realismo transcendental e o impedem de estabelecer a realidade dos objetos externos não mais reaparecem, já que toda a percepção fornece prova imediata de algo real no espaço ou, antes, é o próprio real. Somos realistas empíricos quando concedemos à matéria uma realidade que não é inferida mas sim imediatamente percebida. E assim deixamos cair por terra o idealismo.

Aquilo que os idealistas metafísicos chamaram aparência ou fenômeno, que tantas doutrinas de realidades absolutas e coisas-em-si gerou, é o que os neurocientistas chama de representações. Pode assim interpretar-se a realidade no espaço e no tempo, opondo-a às coisas fictícias, aos objetos do sonho e da imaginação, distinguindo-a dos eventos puramente mentais, caracterizando-a decididamente como exterior ao sujeito empírico, preservando, em suma, a nossa intuição comum da realidade exterior. Nesse domínio empírico, continua sempre possível falar de correspondência entre o nosso conhecimento e os objetos. Ora, é nesses termos que podemos definir a noção de verdade. Não é essencial ao realismo a metafísica, que significa que se pode adequadamente pensar a relação e a correspondência como pilares conceptuais na noção de verdade.


segunda-feira, 25 de julho de 2022

Marx acreditava que a história da sociedade humana faz parte da história natural



A história do patriarcado e a da sociedade classista, estão de tal maneira interligadas na prática que seria difícil imaginar o derrube de um sem que grandes ondas de choque se abatessem sobre a outra. Marx encara as relações sexualmente reprodutivas como de primordial importância e, em A ideologia alemã, chega a afirmar que, antes de tudo, a família é a única relação social. Quando se trata da produção da vida em si — “tanto da do indivíduo por meio do trabalho quanto a da nova vida por meio da procriação” —, as duas grandes narrativas históricas de produção sexual e material, sem as quais a história humana rapidamente chegaria ao fim, são vistas por Marx como intimamente interligadas. O que homens e mulheres criam de forma mais notável são outros homens e mulheres. Ao fazê-lo, geram a mão de obra de que qualquer sistema social necessita para se sustentar. Apesar de histórias distintas, no entanto, ambas são pontos seculares de conflito e injustiça, e suas respetivas vítimas, portanto, detêm um interesse conjunto na emancipação política.

Ao longo da primeira metade do século XX, Marx foi a inspiração primordial por trás de movimentos anticoloniais. Os marxistas, assim, foram vanguardistas quanto às três maiores lutas políticas da Idade Moderna: a resistência ao colonialismo, a emancipação das mulheres e a luta contra o fascismo. Para a maioria dos grandes teóricos de primeira geração das guerras anticoloniais, o marxismo forneceu o ponto de partida indispensável. Nas décadas de 1920 e 1930, praticamente os únicos homens e as únicas mulheres que pregavam a igualdade racial eram comunistas.

Os pós-modernos têm por vezes acusado o marxismo de ser eurocêntrico, tentando impor seus próprios valores brancos, racionalistas e ocidentais em setores bem diversos do planeta. Não há dúvida de que a obra de Marx é limitada pelas condições sociais do autor. Se seu pensamento é válido, dificilmente poderia ser de outra forma. Marx foi um intelectual europeu de classe média. No entanto, não muitos intelectuais europeus de classe média clamavam pelo derrube do império ou pela emancipação dos trabalhadores das fábricas.

Os que buscam a emancipação política não se podem dar ao luxo de ser exigentes demais quanto ao pedigree dos que lhes estendem a mão. Fidel Castro não virou as costas à revolução socialista porque Marx era um burguês alemão. Os radicais asiáticos e africanos têm sido teimosamente indiferentes ao facto de Trotsky ter sido um judeu russo. São, em geral, os liberais da classe média que se aborrecem com o hábito de “patronizar” operários com sermões, digamos, sobre o multiculturalismo.

A acusação de que Marx não passa de mais um racionalista do Iluminismo disposto a saquear a natureza em nome do homem é totalmente falsa. Poucos pensadores vitorianos prefiguraram de maneira tão impressionante o ambientalismo moderno. Marx está plenamente ciente do conflito entre a exploração capitalista de curto prazo dos recursos naturais e a produção sustentável de prazo mais longo. O avanço económico, insiste repetidas vezes, tem de ocorrer sem pôr em risco as condições naturais, globais, das quais dependem as futuras gerações. Não existe a menor dúvida de que Marx estaria na linha da frente do movimento ambientalista caso fosse vivo. Por trás dessa preocupação com a natureza reside uma visão filosófica. Marx era um naturalista e um materialista para quem homens e mulheres são parte da natureza e se esquecem de sua condição de criaturas em risco.

O que se altera — o que torna históricos os seres naturais — são as várias formas que nós, humanos, usamos para trabalhar a natureza. A humanidade produz seus meios de subsistência de maneiras diversas. Isso é natural no sentido de ser necessário para a reprodução das espécies. No entanto, também é cultural ou histórico, envolvendo, como envolve, tipos específicos de soberania, conflito e exploração. Não há motivo para supor que aceitar a natureza “eterna” do trabalho nos leve equivocadamente a crer que tais formas sociais também sejam eternas. Marx acreditava que a história da sociedade humana faz parte da história natural. Isso significa, entre outras coisas, que a sociabilidade está embutida no tipo de animais que somos. A cooperação é necessária à nossa sobrevivência material, mas também faz parte de nossa autorrealização como espécie.

Para Marx, a relação entre a natureza e a humanidade não é simétrica. No fim, como ele observa em A ideologia alemã, a natureza é que dá as cartas. Para o indivíduo, isso se chama morte. O sonho de imortalidade é uma visão que secretamente odeia o material porque ele bloqueia o nosso caminho para o infinito. Essa é a razão por que o mundo material tem de ser vencido pela força ou dissolvido na cultura. É o que os pós-modernos não aceitam, os limites que nos fazem ser quem somos.

Os seres humanos para Marx são parte da natureza, embora capazes de se defender dela; e essa separação parcial da natureza é em si parte de sua natureza. A própria tecnologia com a qual trabalhamos a natureza é moldada a partir dela. No entanto, embora Marx veja a natureza e a cultura formando uma unidade complexa, ele se recusa a dissolver uma na outra. Ele rejeita a bela fantasia, velha como a própria humanidade, em que uma natureza magnânima gentilmente se curva a nossos desejos. Marx crê no que chama de uma “humanização da natureza”, mas a natureza para ele sempre será, de certa forma, recalcitrante com a humanidade, apesar de essa resistência a nossas necessidades poder ser minimizada. E isso tem seu aspeto positivo, já que superar obstáculos faz parte de nossa criatividade. Um mundo mágico também seria um mundo tedioso.

As duas grandes ameaças à sobrevivência humana que agora nos confrontam são a militar e a ambiental. Provavelmente acabarão convergindo mais e mais no futuro, conforme as lutas por recursos escassos venham a se transformar em conflito armado. Ao longo dos anos, os comunistas se incluíram entre os mais ardorosos defensores da paz. Mas, se quiser entender as causas da agressão global, o movimento pela paz não pode se dar o luxo de ignorar a natureza da besta que a alimenta. E isso significa que ele não pode se dar o luxo de ignorar os insights do marxismo.

O mesmo se aplica aos ambientalistas. O capitalismo não pode evitar a devastação ecológica, dada a natureza antissocial de seu impulso para acumular. O capitalismo pode vir a tolerar a igualdade racial e de género, mas não pode, por natureza, alcançar a paz mundial ou respeitar o mundo material. Por isso, com o capitalismo, a prazo estaremos mesmo todos mortos. Então, aí está. Marx tinha uma profunda desconfiança quanto ao dogma abstrato, e não era assim tão cético quanto ao papel do indivíduo na história. Não tinha tempo para o conceito de uma sociedade perfeita e era cauteloso com relação à noção de igualdade como se vestíssemos todos a mesma farda. Diversidade sim, mas não uniformidade.

Não se concentrou de forma tacanha na classe de operários braçais nem encarava a sociedade em termos de duas classes nitidamente polarizadas. Marx não fez da produção material um fetiche. Ao contrário, achava que ela deveria ser abolida na medida do possível. Seu ideal era o lazer, não o trabalho. Se prestou tamanha atenção ao fator económico, foi a fim de reduzir o seu poder sobre a humanidade. Seu materialismo era plenamente compatível com convicções morais e espirituais profundas.

sábado, 23 de julho de 2022

História e cultura em Hegel



A Cultura, em Hegel, são as relações dos homens com a Natureza pelo desejo, pelo trabalho e pela linguagem, as instituições sociais, o Estado, a religião, a arte, a ciência, a filosofia. É o real enquanto manifestação do Espírito. Não se trata, segundo Hegel, de dizer que o Espírito produz a Cultura, mas sim de que ele é a Cultura, pois ele existe encarnado nela; o Espírito se manifesta nas obras que produz. Não pensa a História como uma sucessão contínua de factos no tempo, pois o tempo não é uma sucessão de instantes, nem é um recipiente vazio onde se alojariam os acontecimentos, mas é um movimento dotado de força interna, criador dos acontecimentos.

A História é um processo dotado de uma força, aquilo que para Aristóteles era o motor interno que produz os acontecimentos. Esse motor interno é o gerador da contradição, uma coisa diferente de oposição. A contradição só existe numa relação. São criados e transformados nela e por ela. Numa relação de contradição, portanto, os termos que se negam um ao outro só existem nessa negação. Assim, o escravo é o não-senhor e o senhor é o não-escravo e só haverá escravo onde houver senhor e só haverá senhor onde houver escravo. Somente quando o senhor afirma que o escravo não é homem, mas um instrumento de trabalho, e somente quando o escravo afirma sua não humanidade, dizendo que só o senhor é homem, temos contradição. A contradição é um motor temporal: ou seja, as contradições não existem como factos dados no mundo, mas são produzidas. A produção e superação das contradições são o movimento da História. A produção e superação das contradições revelam que o real se realiza como luta. Mas a síntese ou realidade nova também surgirá fraturada e reabre a luta dos contraditórios, de sua negação recíproca e da criação de uma nova síntese.

As relações entre os sujeitos são relações morais e de direito. Ora, o Direito e a Moral estão em conflito. A resolução dessa contradição se faz em dois momentos: no primeiro, surge a família e, no segundo, surge a sociedade civil. As individualidades naturais imediatas são integradas numa realidade nova que faz a mediação entre o indivíduo como pessoa e o indivíduo como sujeito. Surge uma vida comunitária e Hegel a denomina por unidade do Espírito Subjetivo. No entanto, a existência de múltiplas famílias reabre a contradição. Esta, agora, se estabelece entre o membro da família e o não membro da família. A luta entre as famílias constitui o primeiro momento da sociedade civil. A sociedade civil resolve as lutas familiares criando a diferença entre os interesses públicos e os privados. A sociedade civil é a negação da família. Isto não significa que a família deixou de existir, mas significa apenas que a realidade da família não depende dela própria, mas é determinada pelas relações da sociedade civil.

Isto significa que o indivíduo social não se define como membro da família (como pai, mãe, filho, irmão), mas se define por algo que desestrutura a família: as classes sociais. A sociedade civil é constituída por três classes, a primeira das quais se encontra ainda amarrada à família, enquanto a terceira já não possui qualquer relação com a vida familiar, é inteiramente definida pela vida social. A primeira é aristocracia ou nobreza, proprietária da terra e que se conserva justamente pelos laços de sangue e pela linhagem (por isso ainda está próxima da família). A terceira, que Hegel denomina de classe universal, é a classe média constituída pelos funcionários do Estado (governantes, dirigentes, magistrados, professores, funcionários públicos em geral). Entre essas duas classes, existe uma, intermediária, e que é o coração da sociedade civil: a classe formal, isto é, os indivíduos que vivem da indústria e do comércio, do trabalho próprio ou do trabalho alheio. Formam as corporações (sindicatos) e seus interesses definem toda a esfera da vida civil. 

Pela mediação das classes sociais, a sociedade civil nega o indivíduo isolado (pessoa e sujeito) e o indivíduo como membro da família, fazendo-o aparecer como indivíduo membro da sociedade, e pertencente a uma classe social. A unidade ou síntese do proprietário, do sujeito e do membro da família chama-se, agora, o cidadão. Ora, entre os cidadãos (ou seja, entre as classes sociais) existem conflitos e se reabre a contradição. Agora, a contradição se estabelece entre os interesses de cada classe social e os das outras, e entre os interesses dos próprios membros de uma classe social. Ou seja, ressurge, de modo novo, a contradição entre o privado (cada classe) e o público (todas as classes). A resolução dessa contradição é feita pelo Estado.

O Estado constitui a unidade final. Ele sintetiza numa realidade coletiva, a totalidade dos interesses individuais, familiares, sociais, privados e públicos. Somente nele o cidadão se torna verdadeiramente real e somente nele se define a existência social e moral dos homens. O Estado é o Espírito Objetivo. O Estado é uma comunidade. Mas difere da comunidade familiar e da comunidade das classes sociais (suas corporações), porque não possui nenhum interesse particular, mas apenas os interesses comuns e gerais de todos. E uma comunidade universal (isto é; seus interesses não sendo particulares, desta ou daquela família, deste ou daquele indivíduo, desta ou daquela classe, são interesses universais). O Estado não é, pois, um dado imediato da vida social, mas um produto da sociedade enquanto Espírito Subjetivo que busca tornar-se Espírito Objetivo. O Estado é a Ideia política por excelência, uma das mais altas sínteses do Espírito. Nele se harmonizam os interesses da pessoa (proprietário), do sujeito (moral) e do cidadão (sociedade e política).

quinta-feira, 21 de julho de 2022

Ideologia em Marx



Para começar, Marx, em “A Ideologia Alemã”, não separa a produção das ideias e as condições sociais e históricas nas quais são produzidas. Mas tal separação, aliás, é o que caracteriza a Ideologia. Marx concebe a História como um conhecimento dialético e materialista da realidade social. E que entre as várias fontes dessa conceção se encontra a filosofia hegeliana, criticada, mas conservada em aspetos essenciais.

Da conceção hegeliana, Marx conserva o conceito de dialética como movimento interno de produção da realidade cujo motor é a contradição. Porém, Marx demonstra que a contradição não é a do Espírito consigo mesmo, entre sua face subjetiva e sua face objetiva, entre sua exteriorização em obras e sua interiorização em ideias: a contradição se estabelece entre homens reais em condições históricas e sociais reais e se chama luta de classes. Da conceção hegeliana, Marx também conserva as diferenças entre abstrato/concreto, imediato/ Imediato, aparecer/ser. Tanto assim que define o concreto como “unidade do diverso, síntese de muitas determinações”, devendo-se entender o conceito de determinação não como sinónimo de conjunto de propriedades ou de características, mas como os resultados que constituem uma realidade no processo pelo qual ela é produzida. Ou seja, enquanto o conceito de “propriedades” ou de “características” pressupõe um objeto como dado e acabado, o conceito de “determinação” pressupõe uma realidade como um processo temporal.

A análise da mercadoria revelará, por exemplo, que há mais mercadorias do que supúnhamos à primeira vista, pois um elemento fundamental do modo de produção capitalista, o trabalhador, que aparece como um ser humano, é, na verdade, uma mercadoria – ele vende no mercado a sua força-de-trabalho. Vemos, pois, que a mercadoria não é uma coisa (como aparece), mas trabalho social, tempo de trabalho. E que não é qualquer tempo de trabalho, mas tempo de trabalho não pago, portanto, a mercadoria oculta o facto de que há exploração económica.

Ora, a matéria, como provam as ciências naturais, é algo inerte, constituído por relações mecânicas de causa e efeito, de partes exteriores umas às outras, sendo inconcebível supor que haja interioridade naquilo que é material. E a reflexão supõe uma interiorização, uma volta sobre si e para dentro de si. Como colocar reflexão na matéria? E que a matéria de que fala Marx não é a matéria física ou química, a coisa inerte que não possui atividade interna. A matéria de que fala Marx é a matéria social, isto é, as relações sociais entendidas como relações de produção, ou seja, como o modo pelo qual os homens produzem e reproduzem suas condições materiais de existência e o modo como pensam e interpretam essas relações. A matéria do materialismo histórico-dialético é os homens produzindo, em condições determinadas, seu modo de se reproduzirem como homens e de organizarem suas vidas como homens.

Nas considerações sobre “a ideologia em geral”, Marx e Engels determinam o momento de surgimento das ideologias no instante em que a divisão social do trabalho separa trabalho material ou manual e trabalho intelectual. Para compreendermos por que esta separação aparecerá como independência das ideias com relação ao real e, posteriormente, como privilégio destas sobre aquele, precisamos acompanhar em linhas gerais o processo da divisão social do trabalho, tal como Marx e Engels o expõem na Ideologia Alemã.

Os homens, escrevem Engels e Marx, se distinguem dos animais não porque tenham consciência (como dizem os ideólogos burgueses), mas porque produzem as condições de sua própria existência material e espiritual. São o que produzem e são como produzem. Essa produção das condições de existência depende de condições naturais (as do meio ambiente e as biofisiológicas do organismo humano) e do aumento da população pela procriação. Esta, além de ser natural, já é também social, pois determina a forma de intercâmbio e de cooperação entre os homens, forma esta que, por sua vez, determina a forma da produção na divisão do trabalho.

A produção e reprodução das condições de existência através do trabalho (relação com a natureza), da divisão do trabalho (relação de intercâmbio e, de cooperação entre os homens), da procriação (sexualidade e família), constituem em cada época o conjunto das forças produtivas que determinam e são determinadas pela divisão social do trabalho. Essa divisão, que já se inicia na própria família, conduz à separação entre pastoreio e agricultura, entre ambos e a indústria e entre os três e o comércio. Estas separações conduzem à separação entre cidade e campo, ao mesmo tempo em que, no interior de cada esfera de atividade, novas formas de divisão do trabalho se desenvolvem.

A divisão social do trabalho não é uma simples divisão de tarefas, mas a manifestação de algo fundamental na existência histórica: a existência de diferentes formas da propriedade, isto é, a divisão entre as condições e instrumentos ou meios do trabalho e o próprio trabalho, incidindo, por sua vez, na desigual distribuição do produto do trabalho. Numa palavra: a divisão social do trabalho engendra e é engendrada pela desigualdade social ou pela forma da propriedade.

A propriedade começa como propriedade tribal e a estrutura social é a de uma família ampliada e hierarquizada por tarefas, funções, poderes e consumo. A segunda forma da propriedade é a comunal ou estatal, isto é, propriedade privada coletiva dos cidadãos ativos do Estado (Grécia, Roma, por exemplo), e a estrutura da sociedade é constituída pela divisão entre senhores (cidadãos) e escravos. Esta separação permite aos senhores se distanciarem da terra e dos ofícios, que ficam a cargo dos escravos – esta separação leva os senhores a viverem nas cidades e a partir daí se estabelece a separação entre a cidade e o campo, de onde resultarão lutas sociais e políticas. A terceira forma da propriedade é a feudal ou estamental e que se apresenta como propriedade privada territorial trabalhada por servos da gleba, e como propriedade dos instrumentos de trabalho pelos artesãos livres ou oficiais das corporações que vivem nos burgos (cidades medievais). 

A estrutura da sociedade cria os proprietários como nobreza feudal e como oficiais livres dos burgos, e os trabalhadores como servos da terra enfeudada e como aprendizes nas corporações dos burgos. Junto a eles, há uma figura social intermediária: o comerciante. As transformações dessa estrutura social, ou seja, da forma da propriedade e da divisão do trabalho, dá origem à forma da propriedade que conhecemos: a propriedade privada capitalista. Aqui a divisão social do trabalho alcança seu ápice: de um lado, os proprietários privados do capital (portanto dos meios, condições e instrumentos da produção e da distribuição), que são também os proprietários do produto do trabalho, e, de outro lado, a massa dos assalariados ou dos trabalhadores despossuídos, que dispõem exclusivamente de sua força de trabalho, que vendem como mercadoria ao proprietário do capital.

Na Ideologia Alemã, Marx expõe de modo muito breve a passagem dessas formas da propriedade ou da divisão social do trabalho, cujas transformações constituem o solo real da história real. Nos Fundamentos para a Contribuição à Crítica da Economia Política, Marx retoma a exposição de maneira extremamente minuciosa, corrige várias das afirmações feitas na Ideologia Alemã, introduz novas determinações na forma da propriedade e, sobretudo, define a relação de produção a partir do processo de constituição das forças produtivas na divisão social do trabalho, introduzindo o conceito, inexistente no texto da Ideologia Alemã, de modo de produção. Este não é um dado, mas uma forma social criada pelas ações económicas e políticas dos agentes sociais (independentemente de sua vontade e de sua consciência. A consciência estará indissoluvelmente ligada às condições materiais de produção da existência, e as ideias nascem da atividade material.

Cada um não pode escapar da atividade que lhe é socialmente imposta. A partir desse momento, todo o conjunto das relações sociais aparece nas ideias como se fossem coisas em si, existentes por si mesmas e não como consequência das ações humanas. Pelo contrário, as ações humanas são representadas como decorrentes da sociedade, que é vista como existindo por si mesma e dominando os homens. Se a Natureza, pelas ideias religiosas, se “humaniza” ao ser divinizada, em contrapartida a Sociedade se “naturaliza”, isto é, aparece como um dado natural, necessário e eterno, e não como resultado da praxis humana. Esta fixação da atividade social – esta consolidação de nosso próprio produto num poder objetivo superior a nós, que escapa de nosso controlo, que contraria nossas expectativas e reduz a nada nossos cálculos – é um dos momentos fundamentais do desenvolvimento histórico que até aqui tivemos.

A ideologia propriamente dita, isto é, o sistema ordenado de ideias, é como algo separado e independente das condições materiais, visto que os teóricos, os ideólogos, os intelectuais não estão diretamente vinculados à produção material das condições de existência. E, sem perceber, exprimem essa desvinculação ou separação através de suas ideias. As ideias aparecem como produzidas somente pelo pensamento, porque os seus pensadores estão distanciados da produção material.

As ideias podem parecer estar em contradição com as relações sociais existentes, mas o mundo social é que é contraditório. Por exemplo, faz parte da ideologia burguesa afirmar que a educação é um direito de todos os homens. Ora, na realidade sabemos que isto não ocorre. Nossa tendência, então, será a de dizer que há uma contradição entre a ideia de educação e a realidade. Na verdade, porém, essa contradição existe porque simplesmente exprime, sem saber, uma outra: a contradição entre os que produzem a riqueza material e cultural com o seu trabalho e aqueles que usufruem dessas riquezas, excluindo delas os produtores. Porque estes se encontram excluídos do direito de usufruir os bens que produzem, estão excluídos da educação, que é um desses bens. Em geral, o pedreiro que faz a escola; o marceneiro que faz as carteiras, mesas e lousas, são analfabetos e não têm condições de enviar seus filhos para a escola que foi por eles produzida. O facto de ser a maioria analfabeta a construir as escolas que os seus filhos não vão frequentar é a consequência da verdadeira contradição entre a ideia burguesa e a realidade.

As relações sociais e a consciência da ideia podem entrar e efetivamente entram em contradição como resultado da divisão social do trabalho material e intelectual. Quem produz não consome. E quem consome não produz. E é esta a contradição da perceção da desigualdade social: uns pensam, outros trabalham; uns consomem, outros produzem e não podem consumir os produtos de seu trabalho. Na realidade há antagonismos entre classes sociais particulares, pois onde houver propriedade privada não pode haver interesse social comum.

segunda-feira, 18 de julho de 2022

Discurso franco e filosofia de vida



Michel Foucault (1926-1984), no inverno de 1984, alguns meses antes de morrer, dedicou a sua última série de lições no Collège de France ao tema do discurso franco na Antiguidade clássica. Investigando, tal como fizera Nietzsche um século antes, possíveis antecedentes de sua própria abordagem à sinceridade, Foucault analisou a vida de Sócrates e – usando provas compiladas por Diógenes Laércio – a vida, muito mais estranha, de Diógenes de Sinope (m. c. 320 a.C.), o cínico arquetípico que, segundo as descrições antigas, vivia num barril, carregando uma lamparina à luz do dia e dizendo a todos os que perguntavam: “Estou em busca de um homem”, que significava com coluna vertebral e honesto.

Foucault, é claro, sabia que as lendas acerca de um filósofo como Diógenes não eram mais levadas a sério. Porém, tal como Nietzsche, ele menosprezava a “negligência” moderna diante do que chamou de “problema” da vida filosófica. Esse problema, especulava, desaparecera por duas razões: em primeiro lugar, porque as instituições religiosas, em especial o monasticismo cristão, haviam absorvido, ou (em suas próprias palavras) “confiscado”, o “tema da prática da verdadeira vida”. E, depois, “porque a relação com a verdade agora só pode ser validada e expressa como conhecimento científico”.

Foucault não foi a única figura do século XX a reconhecer que a filosofia poderia ser um modo de vida, como uma busca nietzschiana por “tornar-se o que se é”, e não apenas um estudo dos traços mais gerais do mundo e das categorias do pensamento. Heidegger com ‘Ser e Tempo’ e Sartre com ‘O Ser e o Nada’ caminharam no mesmo sentido. Ainda assim, o próprio Foucault recorda que, apesar de sua durabilidade, o tema da vida filosófica tem sido desafiado, desde o Renascimento e a Reforma, pelas conquistas práticas da física, da química e da biologia modernas, assim como pelo crescente número de tradições religiosas e espirituais que, como o protestantismo, enfatizam o autoexame. Daí o problema da vida filosófica: dadas a evidente força pragmática da ciência aplicada e a força igualmente evidente das comunidades de fé em dar um sentido para a vida, por que deveríamos nos esforçar para elaborar “nossas próprias ponderações” em resposta a questões monumentais, como “O que posso saber?”, “O que devo fazer?” e “O que posso esperar?”.

Acerca dos filósofos antigos, os mitos devem ser levados em consideração, pois tais lendas formaram uma parte constitutiva da tradição filosófica do Ocidente. Que as vidas de muitos filósofos antigos estejam além de qualquer possibilidade de crença é um facto cultural por si só: isso ajuda a explicar a contínua fascinação. Foi Platão, em seus diálogos socráticos, quem popularizou a palavra filosofia. No século seguinte ao da morte de Sócrates, um grupo distinto e identificável de “filósofos” floresceu pela primeira vez. Monumentos em homenagem a eles – bustos, estátuas – foram erguidos em Atenas e em outros lugares de língua grega. E então, ao olhar para trás, estudiosos antigos estenderam a palavra filósofo a sábios gregos mais velhos.

Hoje, muitos dizem que o primeiro filósofo foi Pitágoras (c. 580-500 a.C.), alegando, a partir de argumentos socráticos, que ele não considerava sábio homem algum, mas apenas deus. Em sua Metafísica, Aristóteles foi ainda mais longe, aplicando o termo a uma ampla gama de teóricos pré-socráticos, de Tales a Anaxágoras (c. 500-429 a.C.), e afirmando, também a partir de Sócrates, que tais pensadores “filosofavam para escapar da ignorância”, espantados como estavam diante dos primeiros princípios por trás de todas as coisas.

Para Sócrates, assim como para muitos (mas não todos) daqueles que tentaram se pautar por seu exemplo, essa ambição de alguma forma girava em torno da resposta ao adágio “Conhece-te a ti mesmo”. Mesmo na Antiguidade, o autoexame representa apenas uma parte da história da filosofia. Desde o início – em Platão e em Agostinho –, o problema da filosofia se desdobra na complicada relação entre o que hoje chamamos de “ciência” e “religião”: no caso de Platão, entre a lógica matemática e a relação mística; em Agostinho, entre a busca aberta pela sabedoria e a transmissão de um pequeno número de dogmas invariáveis.

Os filósofos antigos declaravam ser “natural acreditar em grandes homens”. Hoje, uma crença deste género não parece natural, e o que faz de alguém “grande” está longe de ser evidente. Quando Nietzsche cogitou aproximar-se da vida filosófica “para ver se seria possível viver de acordo com ela”, ele aparentemente pensava num personagem exemplar – e mítico – como Sócrates. Porém, está no destino de um filósofo moderno como Nietzsche legar-nos cadernos e cartas que fornecem, com detalhes, indícios de uma série de inconsistências e idiossincrasias que tornam absurdo questionar seriamente se seria possível viver dessa maneira. Além disso, é consequência da crítica do próprio Nietzsche à moral cristã o facto de todos que a levam a sério acharem difícil, se não impossível, encontrar um código de conduta que seja bom para todos e, portanto, digno de ser copiado.

Qual a relação entre razão e fé, entre filosofia e religião? E de que maneira a busca pela sabedoria se relaciona tanto com as formas mais rigorosas de investigação quanto com a “ciência”? Exerce-se melhor a filosofia em particular ou em público? Quais são suas implicações, caso existam, para a política, a diplomacia e a conduta dos cidadãos numa sociedade democrática?

Acima de tudo, o que é esse “eu” que tantos filósofos tentaram conhecer? E de que forma a conceção que temos dele mudou ao longo da história, em parte como consequência do tratamento dado por sucessivos filósofos às suas investigações? O autoconhecimento seria mesmo possível? E, caso seja, até que ponto? Mesmo após autoexaminar-se durante anos, Nietzsche declarou que “somos necessariamente estranhos para nós mesmos”.

quinta-feira, 14 de julho de 2022

O Ano Zero antes da Guerra Fria - 1945



O próprio Ano Zero seria em certa medida eclipsado da memória coletiva do mundo pelos anos de destruição que o precederam e por novos dramas que ainda adviriam na Coreia, no Vietname, na Índia e no Paquistão, em Israel, no Camboja, em Ruanda, no Iraque, no Afeganistão e em outros lugares. Mas, para aqueles que chegaram à maioridade depois do Ano Zero, depois de tanta coisa ser criada entre as ruínas da guerra, foi talvez o ano mais importante de todos. Aqueles dentre nós que cresceram na Europa Ocidental, ou mesmo no Japão, puderam desfrutar sem temores o Estado de bem-estar social, economias cujo crescimento parecia irrefreável, uma lei internacional, um “mundo livre” protegido pela aparentemente inexpugnável hegemonia americana. Não iria durar, é claro. Nada dura para sempre. Mas isso não é razão para não prestar homenagem aos homens e mulheres que estavam vivos em 1945, a suas adversidades, e a suas esperanças e aspirações. 

É difícil dizer quando exatamente começou a Guerra Fria. Divergências sérias já eram visíveis em Yalta, por mais que Roosevelt tentasse manter Stalin a seu lado — a ponto de fustigar Churchill sem necessidade. Os ministros do Exterior das Cinco Grandes Potências — Estados Unidos, Grã-Bretanha, União Soviética, França e China — tinham-se reunido para discutir vários tratados de paz, especialmente com a Itália, a Finlândia e os países balcânicos. Não discordaram em nada que fosse substancial. Na verdade, os Estados Unidos, em prol da harmonia na aliança entre as grandes potências, já tinham concordado em reconhecer o governo provisório imposto pelos soviéticos na Polónia sem maiores questionamentos quanto à sua natureza, e estavam preparados para fazer o mesmo no caso da Hungria. Em seu relatório sobre a conferência, o secretário de Estado James F. Byrnes declarou que seu governo “compartilha o desejo da União Soviética de ter governos amigáveis à União Soviética na Europa Oriental e Central”.

Mas Molotov tinha outra agenda. O comunismo era a principal força em duas das grandes potências, fora a União Soviética: na França, onde o Partido Comunista ainda era muito poderoso, e na China, onde uma guerra civil em fogo brando logo chegaria à fervura. Se Molotov pudesse humilhar os nacionalistas chineses e os franceses, e ainda envolver os Estados Unidos, a causa comunista sairia bastante fortalecida. Assim exigiu que a França e a China fossem excluídas das discussões sobre os tratados, uma vez que não eram signatárias dos termos de rendição dos países mais relevantes. O objetivo era fustigar os franceses, insultar os chineses e irritar os britânicos. John Foster Dulles, em suas memórias, não pôde deixar de expressar a sua admiração pelos talentos e pelo sangue-frio diplomáticos de Molotov. O ministro do Exterior francês, Georges Bidault, um ex-líder da resistência e futuro presidente, foi constantemente menosprezado, provocado e humilhado. 
O ministro chinês era simplesmente ignorado, como se nem estivesse presente na sala. E Bevin, que era temperamental, era alfinetado até irromper em explosões de fúria, a que se seguiam pedidos de desculpas que poderiam resultar em concessões à posição soviética. Foi dito a Bevin e Byrnes que a União Soviética não mais cooperaria caso a França e a China não fossem excluídas. Byrnes recusou-se a impor mais humilhação a seus aliados, e a conferência foi abandonada. 

Estava marcado o fim de uma época, a época de Teerã, Yalta, Potsdam. Marcava o fim de qualquer pretensão por parte dos comunistas soviéticos de que eram ‘amigos’ do lado ocidental da Europa. Começava o período em que a hostilidade era proclamada abertamente. O mundo, e em particular as duas Grandes Potências, tinham pela frente uma escolha dolorosa. Uma das opções era fortalecer as Nações Unidas. Nesse caso, inevitavelmente, as Grandes Potências teriam de abrir mão de uma grande medida de soberania nacional, e o poder de veto no Conselho de Segurança seria abolido. Os russos teriam o direito de inspecionar as instalações atómicas americanas e vice-versa. Essa era a solução preferida pelo próprio Baldwin, não só por razões morais, mas em benefício da autopreservação. Dulles, como sempre, tinha uma visão mais moralista. A ONU deveria permanecer sempre fraca, porque não havia em âmbito mundial um consenso quanto a julgamento moral. Para ele, a Guerra Fria era um conflito moral tanto quanto político, uma guerra do bem contra o mal. Um mundo dividido em dois blocos, um suspeitando do outro, um mundo que poderia manter-se estável por muitos anos, mas que depois iria tender para uma guerra de grandes proporções.

E foi isso que aconteceu. Não haveria um governo mundial, muito menos uma democracia mundial. Os poderes deixados aos dois países europeus representados no Conselho de Segurança logo seriam ainda mais exauridos pela sangrenta extinção de seus impérios. Os soviéticos e os americanos derivavam para uma aberta animosidade. E a China, um país gravemente ferido pela ocupação japonesa, dividia-se ele mesmo em dois blocos, desmoralizados nacionalistas mantendo as cidades importantes ao sul da Manchúria, e os comunistas dominando o interior e grande parte do norte. 
Um artigo publicado na New York Times Magazine em 14 de outubro de 1945 expressava uma confiança total na liderança do generalíssimo Chiang Kai-shek. Isso não lhe valeria nada. Exatamente quatro anos depois, o generalíssimo se limitaria a exercer a sua autoridade sobre uma pequena ilha ao largo da costa de Fujian, antes conhecida como Formosa, e hoje como Taiwan.

E assim o Ano Zero finalmente terminava, num misto de gratidão e de ansiedade. Agradecidas por ter sido alcançado algum tipo de paz na maioria dos lugares, as pessoas tinham menos ilusões quanto a um futuro glorioso, e crescentes temores quanto a um mundo cada vez mais dividido. Milhões ainda sentiam frio e fome demais para comemorar o Ano-Novo com algum semblante de alegria. Além disso, as notícias eram frequentemente sombrias: revoltas devido à falta de alimento eram esperadas na Alemanha ocupada; atos de terrorismo estavam gerando caos na Palestina; os coreanos estavam protestando em fúria contra o estatuto de regime semicolonial; a luta continuava na Indonésia, com soldados britânicos e fuzileiros holandeses, “supridos de equipamento americano”, tentando esmagar a rebelião nativa. Mas a sensação que se tinha ao ler os jornais de todo o mundo no último dia de 1945 era de que as pessoas precisavam de descomprimir. Durante uma guerra de âmbito mundial, o que acontece em qualquer lugar é importante. Em tempos de paz, as pessoas precisam de comemorar a vida dentro de suas casas. O New York Times falava na tempestade do dia anterior, e anunciava que a cidade se preparava para uma noite de passagem de Ano-Novo como já não passava desde 1940. Porém, mais do que os artigos, foram os anúncios no Times que exibiram o quase inimaginável abismo entre o novo mundo e o velho.

Se há algo a ser deduzido desses vislumbres do estado de espírito global nessa véspera de Ano-Novo, é que um certo sentido de normalidade começava a se introduzir novamente no cotidiano de pessoas que tinham sorte o bastante para serem capazes de erguer a cabeça da calamitosa desgraça que marcou o período imediato do pós-guerra. Não era um luxo ao alcance dos que ainda estavam deslocados na Alemanha, nos campos japoneses de prisioneiros ou em qualquer limbo sórdido em que se encontrassem.

Diante da tarefa de reconstruir seus países despedaçados, eles não tinham tempo para festejos, nem mesmo para muita lamentação. Havia trabalho a ser feito. Isso propiciou uma percepção mais circunspecta da realidade, mais cinzenta, mais ordenada, menos excitante que as convulsões da guerra e da libertação. Em alguns lugares, claro, novas guerras — contra senhores coloniais ou inimigos domésticos em conflitos civis — continuariam em andamento, e novas ditaduras seriam impostas. 

terça-feira, 5 de julho de 2022

Charles Sanders Peirce




Eu sei que esta pedra vai cair se ela for liberada porque a experiência me convenceu de que objetos desse tipo sempre caem; e se alguma pessoa presente tiver qualquer dúvida sobre essa questão, ficarei feliz em fazer a experiência – e farei com ela uma aposta de cem para um nesse resultado.

C. S. Peirce, 10 de setembro de 1839 – 19 de abril de 1914, lógico e cientista americano que estabeleceu os princípios do Pragmatismo, não existe filósofo americano com talentos mais diversos. As suas contribuições para a Lógica, o método científico e a Semiótica tiveram efeito duradouro no raciocínio de pensadores sobre esses assuntos. Peirce buscou uma compreensão sistemática do mundo e de tudo que há nele. Dedicou sua vida a alcançar clareza de pensamento, uma tarefa diária.

Não existem livros que tenha publicado, como outros autores do seu calibre. O trabalho de sua vida é uma manta de retalhos formada por artigos e ensaios de tudo e mais alguma coisa: matemática, astronomia, química, geodesia, agrimensura, cartografia, meteorologia, espectroscopia, psicologia, filologia, lexicografia, história da ciência e economia matemática - reunidos pelos seus epígonos. Peirce é conhecido pela organização do seu pensamento em tríades, exemplificado pelo triângulo abaixo: signo - interpretante - objeto.



Peirce foi educado durante boa parte de sua vida dentro de casa por seu pai, tido como um dos principais responsáveis pela criação do departamento de matemática de Harvard. Além de suas realizações académicas, o pai de Peirce era um homem prático, cofundador do 'Smithsonian Institution' e do 'US Coast and Geodetic Survey', um centro de pesquisa geodésica americano no qual Charles trabalharia durante a maior parte de sua vida profissional. As origens do pragmatismo de Peirce podem ser encontradas no estilo da instrução de seu pai, que incluía difíceis problemas matemáticos e científicos, cujas respostas eram submetidas a escrutínio rigoroso. Peirce formou-se em Harvard aos vinte anos de idade, com um diploma de química. Pelos dois anos seguintes, trabalhou como cientista para o centro de pesquisa geodésica americano, e, de 1879 a 1884, foi também professor de Lógica no Departamento de Matemática da Universidade Johns Hopkins.

Apesar de ser um génio – porque Peirce foi sem dúvida um génio, talvez até mesmo a maior mente filosófica americana de todos os tempos –, ele perdeu o seu cargo na Johns Hopkins e jamais seria nomeado novamente para uma função académica. Peirce era um homem não convencional, e depois que sua primeira mulher o deixou, ele passou a viver com a mulher que se tornaria a sua segunda esposa. Juliette Peirce havia sido conhecida anteriormente como Anette Froissy e também como Juliette Pourtalai; suas origens eram obscuras, e as autoridades da Universidade Johns Hopkins acreditavam que ela era uma cigana. A escandalosa relação de Peirce com Juliette custou-lhe o emprego. Ele podia, ainda, ser um colega de trabalho difícil e agressivo, talvez porque sofresse de nevralgia do nervo trigémeo, uma doença crónica que causa dores penetrantes na face. Peirce utilizava cocaína, morfina e álcool para se tratar, e não há dúvidas de que isso contribuiu indiretamente para se ir desligando da universidade. Apesar de sua produtividade prolífica – ele deixou 100 mil páginas de manuscritos não publicados. Conquistou muito pouco reconhecimento ao longo de sua vida, acabando os seus dias doente e na pobreza.

Peirce leu a Crítica da Razão Pura pela primeira vez quando tinha 16 anos – estudou a obra por três anos, dominando o texto e se contrapondo às questões que levantava. Ele continuaria a estudar esse texto ao longo de toda a vida, voltando a Kant frequentemente à medida que desenvolvia o seu próprio pensamento. O primeiro e precoce estudo de Peirce sobre lógica o levou a considerar o de Kant “pueril”; rejeitou o apriorismo de Kant, assim como a sua ideia de que o espaço era subjetivo. Apesar dessas objeções, Peirce tinha muito em comum com o filósofo. Ambos procuraram explicações para fenómenos que iam do conceito de matéria às origens e leis físicas do Universo. O pensamento de Peirce não foi afetado pela divisão que ocorreu na filosofia no início do século XX, quando ela se dividiu em filosofia analítica e continental – duas tendências aparentemente irreconciliáveis. Ele seguiu seu próprio caminho como pensador independente. Peirce foi um lógico, um teórico do método científico, e não um defensor de metafísica “suave”; mas seu rígido pensamento sobre lógica e ciência, voltado para o senso comum, o levaria por fim a adotar alguns dos princípios metafísicos de Kant, Hegel e outros idealistas.

Para Peirce, experiência era tudo, e todo o nosso conhecimento precisava ser baseado nela. Como consequência, ele rejeitava o conceito de Kant da “coisa em si” (Ding an sich), considerando-o algo que não podia ser “indicado” ou “encontrado” na natureza. Todo conhecimento deve-se referir à experiência, e, por conseguinte, a todo significado – não pode haver significado independente da experiência. É nesse sentido que Peirce é por vezes denominado um realista. Experimentamos a realidade tal como ela é, e não apenas as ideias que temos dessa própria realidade.

A maior contribuição de Peirce para o pensamento moderno diz respeito ao Pragmatismo como corrente filosófica americana, que sustenta que uma proposição é verdadeira se funcionar. Embora William James tenha sido o primeiro a publicar a palavra “pragmatismo”, ele creditou a sua elaboração e o seu uso inicial a Peirce, que traçou as suas ideias fundamentais em dois artigos publicados em 1878 no acessível periódico científico Popular Science Monthly. O primeiro artigo, “Como esclarecer nossas ideias”, definia uma ideia clara como “aquela que foi tão bem apreendida que será reconhecida onde quer que seja encontrada, de modo que não será confundida com nenhuma outra. Se ela falhar em atingir essa clareza, pode-se dizer que é uma ideia obscura.” O modo pelo qual tornamos as ideias claras é denominado inferência. No artigo “A fixação da crença”, Peirce escreveu: “Nós atingimos o domínio completo do poder de inferir, a última de todas as nossas faculdades; pois ela é menos um dom natural do que uma longa e difícil arte”. É mediante a lógica e o acréscimo de conclusões demonstráveis, que possam ser compartilhadas por uma comunidade de observadores, que surge o conhecimento.

Peirce foi um cientista profissional durante toda a sua vida (nisto, ele se assemelhava aos pré-socráticos, que não enxergavam a distinção entre filosofia e ciência com a qual convivemos hoje). Para Peirce, filosofia é a filosofia da ciência, e isso é demonstrado por seu método pragmático. Além de William James, alguns pragmáticos centrais foram Josiah Royce (1855-1916), John Dewey, George Herbert Mead (1863-1931) e George Santayana. Proeminente entre os pragmáticos do século XXI está Susan Haack.

Para Peirce, a lógica fornecia a sustentação para um estudo mais geral e inclusivo, que ele denominava Semiótica, ou a teoria dos sinais, diferente do que Ferdinand de Saussure e seus seguidores chamavam “Semiologia”. Grande parte do pensamento sistemático de Peirce, como já disse, era organizado por tríades. A teoria dos sinais organizava-se numa tríade: o signo em si; o objeto a que refere; e o interpretante. O “interpretante” é o sujeito de grande parte do debate contemporâneo. O papel do interpretante é determinar como o signo representa o objeto. Pode ser considerado o significado do signo, mas também é visto como um processo, produto e efeito. Um interpretante torna-se outro signo em si mesmo, e assim o processo semiótico prossegue. Esta é uma diferença fundamental entre a Semiótica de Peirce e a Semiologia de Saussure. Segundo esta, existe uma tensão dualista entre o significante e o significado, cuja relação pode ser arbitrária.

Peirce deixou quase 100 mil páginas manuscritas não publicadas, e a tarefa de organizá-las e publicá-las de modo que a arquitetura de seu pensamento se torne clara é longa e desafiadora. Pode-se apostar com segurança, no entanto, que quando essa tarefa for terminada, a obra de Peirce dará aos futuros pensadores um volume enorme de material a ser considerado.

sábado, 2 de julho de 2022

A face de Janus




Diz-se, façamos de conta em conversas de café, que o Ocidente perdeu a face de Janus que contempla o mundo. Na minha lista de génios, à volta de cem, desde Tales a Zuckerberg, pelo meio encontra-se Leonardo da Vinci, Darwin, Einstein, e por aí fora. E, todavia, todos eles cometeram muitos erros e enganaram-se imenso. Neste tipo de Universo, só temos acesso àquilo que ficou designado pelos filósofos de “Aparência”. E, pelo menos, de uma coisa estamos certos: no mundo de aparências o erro e o engano são as coisas mais abundantes e mais bem distribuídas universalmente. Historicamente, as civilizações confiaram no sangue, nos deuses e nos inimigos partilhados para contrariar a tendência de se dividirem à medida que iam crescendo. Mas o que é que mantém unidas democracias seculares grandes e diversificadas, como os Estados Unidos e a Índia, ou, até mesmo, a Grã-Bretanha moderna e a França?

Mark Zuckerberg, bem como a maioria dos atuais génios da matemática, são aquele tipo de pessoa que uns chamam ingénuo e outros autista. Não são pessoas malévolas, claro está, que tenham desejado as perversidades das suas invenções. Mas, ao reajustar tudo numa corrida pelo crescimento, esta conceção ingénua da psicologia humana, que não compreende a sua complexidade, negligenciaram os custos externos que eles próprios impuseram à sociedade. No século XXI, as empresas de tecnologia americanas reajustaram o mundo e criaram produtos que parecem agora ser corrosivos para a democracia, obstáculos à compreensão partilhada e destruidores dos afetos sentimentais humanos.

Os sociólogos identificaram pelo menos três grandes forças que unem coletivamente as democracias bem-sucedidas: capital social (extensas redes sociais com altos níveis de confiança), instituições fortes e histórias partilhadas. As redes sociais enfraqueceram todas as três forças. Nas suas primeiras encarnações, plataformas como o Myspace e o Facebook eram relativamente inofensivas. Mas atividades que podem impressionar os outros não cimentam uma amizade da mesma maneira que uma conversa de café.

Antes de 2009, o Facebook dava aos utilizadores uma cronologia simples. Isso começou a mudar em 2009, quando o Facebook deu aos utilizadores uma forma de, publicamente, dar “gostos” nas publicações com o clique de um botão. Nesse mesmo ano, o Twitter introduziu algo ainda mais poderoso: o botão de retweet, que permitiu aos utilizadores subscreverem publicamente uma publicação, ao mesmo tempo que a partilhavam com todos os seus seguidores. O Facebook copiou rapidamente essa inovação com o seu próprio botão de “partilhar”, que ficou disponível para os utilizadores de smartphones em 2012. Os botões “gosto” e “partilhar” rapidamente se tornaram funcionalidades padrão da maioria das outras plataformas.

Em 2013, as redes sociais tinham-se tornado num novo paradigma social. Com jeito e sorte era possível criar uma publicação que se “tornasse viral” e o tornasse “famoso na internet” por alguns dias. Se errasse, poderia ficar soterrado em comentários de ódio. As nossas publicações alcançam a fama ou a ignomínia com base nos cliques de milhares de estranhos e, em contrapartida, contribuímos com milhares de cliques para o jogo. E nesta altura já muitos inventores destas novas tecnologias se penalizavam porque se tinham enganado quanto ao seu otimismo acerca da bondade humana. O que se estava a destapar era a verdadeira natureza humana tapada por camadas e camadas de sucessivas doutrinas morais hipócritas. Os filósofos da modernidade iluminista eram excelentes psicólogos sociais. Sabiam que a democracia tinha um calcanhar de Aquiles porque dependia do julgamento coletivo do povo sujeito à turbulência das paixões indisciplinadas.

A nossa tendência é para nos dividirmos em fações, em seitas, que se inflamam pela animosidade mútua, dispostos ao vexame e à opressão. A Democracia é o melhor sistema político de governação dos povos possível; mas a sua autoridade é, por consequência, das mais frágeis. Quando os cidadãos perdem confiança nos líderes eleitos, nas autoridades de saúde, nos tribunais, na polícia, nas universidades e na integridade das eleições, então todas as decisões são contestadas. E é assim que autocracias como a China se encontram no topo da lista dos países com a autoridade mais estável. Quando as pessoas perdem confiança nas instituições, perdem confiança nas histórias contadas por essas instituições. Isso é particularmente verdadeiro para as instituições encarregadas da educação das crianças. Os currículos de história causaram muitas vezes controvérsia política, mas o Facebook e o Twitter tornam possível aos pais mostrar a sua indignação todos os dias com um novo trecho das aulas de história dos seus filhos — e das aulas de matemática e das escolhas literárias e de quaisquer novas alterações pedagógicas em qualquer parte do país. Os motivos dos professores e administradores são questionados, e por vezes seguem-se leis ou reformas curriculares abrangentes, que degradam o ensino e reduzem ainda mais a confiança no mesmo. Um resultado é que os jovens educados na era da Internet têm menos probabilidade de chegar a uma história coerente de quem somos como povo, e menos probabilidade de compartilhar qualquer história com aqueles que frequentaram escolas diferentes ou que foram educados numa década diferente.

Aqui chegados, hoje as redes sociais de muitos movimentos niilistas têm um poder solvente universal, quebram laços e enfraquecem instituições. Podem protestar e derrubar, mas nunca governar. Exigem a destruição das instituições existentes, mas não oferecem uma visão alternativa do futuro ou uma organização que o pudesse fazer. Na maioria das vezes, são pessoas a gritar umas com as outras e a viver em bolhas de um tipo ou de outro.

Como se isso já não bastasse para a degradação da democracia, as ideologias de direita e de esquerda radicalizaram-se em populismos dos extremos. Como tudo o que vem da América, é imitado e espalha-se como uma epidemia. E assim a última década é marcada pela era Trump, do racismo e xenofobia, à direita; e pela cultura do cancelamento à esquerda. Tudo isto tem tido origem e efeitos transformadores na vida universitária, e agora na política e na cultura que se espalhou no mundo Europa-América.

A estupidez à direita é mais visível nas muitas teorias da conspiração que se espalham através dos meios de comunicação social de direita. Mas à esquerda também existe um outro tipo de estupidez: a estupidez estrutural, embora de uma forma diferente. O problema é que a esquerda controla os altos comandos da cultura: universidades, organizações noticiosas, ONGs, publicidade, grande parte de Silicon Valley, e os sindicatos de professores e faculdades de ensino que moldam a educação do ensino primário ao secundário. E em muitas dessas instituições, a dissidência foi sufocada. Muitas instituições de esquerda começaram a disparar contra si próprias. E, infelizmente, essas são as pessoas que informam, instruem e entretêm a maior parte do mundo mediático. Confusos e assustados, os líderes raramente desafiaram os ativistas ou a sua narrativa não liberal. Acusações de racismo ou transfobia, por parte de grupos que se sentem vitimizados, a pessoas só porque discordam do politicamente correto.

É provável que a polarização política aumente num futuro próximo. Os níveis de raiva, desinformação e violência vão aumentar. As reformas devem reduzir a enorme influência de extremistas irritados. Uma democracia não pode sobreviver se as suas praças públicas forem lugares onde as pessoas receiam falar livremente e onde não se possa chegar a um consenso estável. O poder que as redes sociais dão aos trolls está a criar um sistema que se assemelha menos a uma democracia e mais ao domínio do mais agressivo. As reformas devem limitar a amplificação que as plataformas dão às franjas agressivas. Talvez a maior alteração que reduziria a toxicidade das plataformas existentes fosse a verificação do utilizador como condição prévia para obter a amplificação algorítmica que as redes sociais oferecem. Esta mudança eliminaria a maior parte das centenas de milhões de bots e de contas falsas que poluem atualmente as principais plataformas. Também reduziria provavelmente a frequência das ameaças de morte, ameaças de violação, maldade racista e trolls em geral. Estudos mostram que o comportamento antissocial se torna mais comum online quando as pessoas sentem que a sua identidade é desconhecida e que não podem ser localizados.