quinta-feira, 31 de agosto de 2023

O desastre de Teutoberg Wald no tempo de Octaviano, o Augusto



Quando Júlio César invadiu a Gália, deixou claro que não pretendia ocupar o território a leste do Reno, mas controlou todas as terras a oeste. O Reno era a fronteira entre os povos gauleses e os germânicos, o que justificava o argumento da sua “pacificação” da Gália ter sido completa. Com a Gália mantida à distância dos germânicos para além do Reno, a antiga província romana da Gália Transalpina e a própria Itália ficavam protegidas dos germânicos, mais primitivos e selvagens do que os gauleses. Na verdade a situação era mais complicada, e Júlio César admitia-o, dado que já havia vários povos germânicos estabelecidos a oeste do rio Reno. Por outro lado, um guerreiro identificava-se com sua própria tribo ou clã, e não propriamente como um germânico.  

Júlio César apresentou um retrato das tribos gaulesas como inerentemente instáveis; elas eram divididas por lutas pelo poder entre chefes ambiciosos que buscavam a supremacia e que faziam quase anualmente guerra contra seus vizinhos. Os germânicos tornaram-se profundamente envolvidos na região quando líderes gauleses buscaram a sua ajuda. Ou quando um povo migrava para o outro lado do Reno em busca de terras mais férteis ou seguras para se estabelecer. César pode ter exagerado o cenário para justificar a sua intervenção em defesa dos interesses de Roma e de seus aliados.

Desde o começo da sua carreira, Octaviano confiou muito em seu grande amigo Marco Vipsânio Agripa para comandar as tropas. Foi Agripa que comandou as frotas que derrotaram Sexto Pompeu – o último filho de Pompeu que ainda sobrevivia. Até à sua morte, em 12 a.C., Agripa havia sido frequentemente escolhido para travar as guerras mais importantes do império, tendo realizado campanhas na Hispânia, na Gália, na Germânia, nos Bálcãs e no Oriente. Era, evidentemente, um comandante muito capaz.

Agripa operou na Gália em diversos momentos entre 38 a.C. e 19 a.C., e houve muitas outras campanhas travadas em menor escala sob outros comandantes. Assim como na época de Júlio César, as tribos gaulesas próximas do Reno sempre buscavam a ajuda de bandos guerreiros entre os germânicos. Estes, “com frequência ainda maior”, pilhavam as ricas terras da Gália; às vezes, esses ataques eram em grande escala. Em 16 a.C., um exército formado por três tribos, os sicambros, os tencteros e os usípetes, emboscou um destacamento da cavalaria romana e, depois de derrotá-lo, surpreendeu o exército principal do governador provincial Marco Lólio, infligindo uma grande derrota aos romanos. 

A campanha tinha começado quando os germânicos aprisionaram e crucificaram mercadores romanos que operavam nas suas terras. Como em outros lugares, os mercadores romanos e italianos atuavam muito à frente do exército. Suas atividades e práticas eram, por vezes, ressentidas, e eles eram quase sempre o primeiro alvo quando as tribos se tornavam hostis a Roma. Tanto para assegurar a estabilidade e a paz na Gália quanto em resposta aos ataques e à violência contra os cidadãos, as legiões de Augusto iam, com frequência cada vez maior, realizar ações punitivas contra os germânicos.

Tibério e Druso foram ambos colocados à frente de grandes exércitos quando contavam pouco mais de 20 anos. Os filhos do primeiro casamento da mulher do imperador, Lívia, eram membros da antiga elite senatorial, pertencendo ao clã patrício Claudiano tanto pelo lado da mãe como pelo do pai. Poucas famílias eram tão distintas como eles, os quais eram extremamente orgulhosos do seu valor. Druso era um herói nos moldes tradicionais, carismático e popular tanto entre as tropas como diante dos cidadãos de Roma. Houve um desânimo geral quando Druso morreu, em 9 a.C., devido a ferimentos causados na queda do cavalo quando regressava de uma campanha na Germânia.

Druso foi o primeiro comandante romano a alcançar o Elba, onde, segundo a versão oficial dos eventos ele foi avisado para não prosseguir pelo surgimento de uma deusa. Depois da sua morte, Tibério passou vários anos operando na mesma área. Com o tempo, uma província romana entre o Reno e o Elba começou a tomar forma. Em 6 d.C., um ataque foi planejado e preparado contra Marobóduo, rei de uma importante confederação de tribos suevas e de vários de seus vizinhos nas terras entre o Reno e o Danúbio. Contudo, uma grande rebelião na Panónia e na Daumásia irrompeu inesperadamente, exigindo a atenção de Tibério e de boa parte do exército romano. É interessante notar que ele considerava tal força um exército grande demais para um único general controlar com eficiência, por isso dividiu-o em dois grupos independentes e, subsequentemente, em colunas muito menores. Foram necessários quase três anos de lutas árduas e custosas para sufocar a rebelião.

Tibério não tinha o encanto do irmão mais novo nem, aparentemente, a habilidade de fazer os outros, em especial senadores, gostarem de si. Mesmo quando jovem, ele parece nunca ter adotado o estilo extravagante de liderança de Druso ou de Pompeu. Era considerado um disciplinador muito rígido, mesmo pelos padrões estabelecidos por Augusto, tendo reintroduzido alguns métodos arcaicos de punição. Numa ocasião, expulsou o legado que comandava uma legião porque ele havia mandado alguns dos seus soldados escoltarem um escravo numa expedição de caça em território hostil. 
Negava luxos aos seus oficiais, pois ele também aplicava a si a mesma receita, dormia na terra exposta e muitas vezes até sem uma tenda. Ele era cuidadoso com a rotina, certificando-se de que todas as suas ordens fossem escritas e estando sempre disponível aos oficiais para explicar o que exigia deles. 

Augusto confiou as tropas a Tibério, da mesma forma que no passado confiara a Agripa. Praticamente entregou-lhe todos os comandos mais importantes na segunda metade do seu principado. Mas esperou longo tempo antes de indicá-lo como sucessor. Os preferidos eram vários outros, quase sempre mais jovens, membros da família ligados a ele pelo sangue e não simplesmente pelo casamento. Todavia, morreram prematuramente. Os rumores acusavam Lívia, esposa de Augusto, a causadora de várias intrigas. A família imperial teve uma taxa de mortalidade prematura excepcionalmente elevada, mesmo para os padrões da época. O que está claro é que, no final, Augusto adotou Tibério como filho e compartilhou o poder com ele durante os últimos dias da sua vida. 

Tibério tinha um filho de sangue também com o nome de Druso o Jovem, mas foi instruído a adotar Germânico, que era filho do seu irmão Druso. Germânico tinha 6 anos de idade quando o pai morreu em 9 a.C., mas o seu nome - Germânico - mostrou-se singularmente apropriado, pois, como adulto, conquistou a fama em campanhas na Germânia. Sua mãe era Antónia, filha de Marco António e Octávia, irmã de Augusto. A rejeição de Octávia a favor de Cleópatra adicionara um elemento pessoal à Guerra Civil.

Como na Gália, o processo de transformar a Germânia num território conquistado numa província formal provocou nova resistência. O líder rebelde mais importante era um príncipe dos queruscos chamado Armínio, que servia como comandante de um contingente de homens da sua tribo no exército romano. No passado, ele tinha recebido a cidadania romana com o status de equestre e fora íntimo do legado provincial, Públio Quintílio Varo. A família de Varo tinha uma reputação militar um tanto questionável, pois tanto seu pai como seu avô apoiaram o lado errado na Guerra Civil e por fim foram obrigados a se suicidar; contudo, ele era muito experiente, tendo servido anteriormente como governador da Síria, onde suprimira uma rebelião na Judeia em 4 a.C. Sua nomeação para o comando germânico conformava-se à tendência de Augusto a confiar, basicamente, na sua família estendida, uma vez que era casado com uma filha de Agripa.

No final do verão de 9 d.C., Varo recebeu relatos de uma revolta e, do mesmo modo como agira em 4 a.C., respondeu da maneira tradicional romana ao reunir o seu exército e marchar imediatamente contra o inimigo. A necessidade de reagir tão logo fosse possível a uma insurgência era considerada uma justificação razoável para um general romano ir a campo com uma força pequena ou mal abastecida, composta apenas por tropas disponíveis no momento. Varo enfraqueceu a sua tropa ao enviar muitos pequenos destacamentos, marchando com um exército sobrecarregado por um grande comboio de bagagem e acompanhado por uma horda de seguidores de acampamento, que incluía as famílias dos soldados. Abandonada por Armínio e seus batedores germânicos, a lenta coluna marchou em direção à emboscada numa área difícil, coberta de pântanos e floresta densa -Teutoberg Wald

Atacando repentinamente durante vários dias, os guerreiros de Armínio enfraqueceram a coluna romana até ao seu último remanescente. Três legiões – XVII, XVIII e XIX – foram massacradas, juntamente com seis coortes de infantaria auxiliar e três alae da cavalaria. Varo fez o que nenhum general romano deveria fazer. Em desespero, suicidou-se antes do final da batalha. Escavações em Kalkriese (perto da moderna Osnabrück) revelaram cruéis evidências da provável última grande ação realizada por seu exército. A maioria dos pequenos destacamentos de tropas espalhadas pela província sofreu destino semelhante nos dias seguintes. Alguns poucos sobreviventes conseguiram chegar ao Reno, onde as duas legiões que sobraram esperavam ser atacadas a qualquer momento.

O desastre de Teutoberg Wald foi um golpe terrível na velhice de Augusto. 
Augusto estava agora muito velho e, em 13 d.C., Tibério retornou a Roma para ajudar o príncipe e assegurar que a sucessão fosse realizada sem entraves depois da sua morte.

Germânico substituiu-o como comandante supremo na fronteira do RenoPor algum tempo, o exército esteve reduzido à força de 25 legiões, e os números XVII, XVIII e XIX nunca mais foram usados. 

Quando já estava suficientemente forte, Tibério começou a enviar expedições punitivas contra as tribos germânicas na fronteira do Reno. A reputação romana de invencibilidade fora abalada pela derrota de Varo e levaria vários anos de duras campanhas para começar a recuperá-la. Todas as tropas disponíveis foram transferidas de outras províncias para reforçar o seu exército. Eram oito legiões e pelo menos o mesmo número de tropas auxiliares nas duas províncias da Germânia - Superior e Inferior - que se estendiam ao longo da margem ocidental do rio Reno

Em 11 d.C., Tibério foi reforçado por Germânico, que com 22 anos ganhara experiência sob seu comando durante a rebelião das tribos da Panónia. Mas a invasão germânica esperada não se materializou, e os guerreiros de Armínio, aparentemente, seguiram a prática da maioria dos exércitos tribais ao longo de toda a História, dispersando-se e voltando para seus lares a fim de exibir os espólios e celebrar a sua glória. 

terça-feira, 29 de agosto de 2023

O processo de desnaturalização e estranhamento da realidade




Como pode acontecer em muitas outras coisas, os fundamentos últimos e os princípios de toda a igualdade já há algum tempo que começaram a degenerar em extravagâncias e arbitrariedade. Eu confesso que quando vi em direto o Dirigente Desportivo dar aquele beijo à atleta - apesar de achar um gesto indecente numa cerimónia pública de júbilo desportivo, e de grande impacto mediático - nunca pensei que tinha estado perante um crime público. Muito menos as repercussões que está a ter.

Daí eu concluir o seguinte: estamos mesmo a atravessar tempos muito extravagantes impróprios para um septuagenário que já ultrapassou o seu prazo de validade para ter um conhecimento suficientemente prudente para uma vida decente (devo esta tirada ao título de um livro de Boaventura de Sousa Santos, um sociólogo português emérito, já com 20 anos de edição). A sociologia sempre defendeu a ideia de que um dos seus papéis é a desnaturalização. Diversos críticos da sociedade burguesa de inspiração marxista ditaram a palavra de ordem: desnaturalização. Nesse contexto, muitos equívocos foram cometidos.

A atual saga do feminismo contra o machismo traz de novo a campo mediático a célebre discussão entre antropólogos e biólogos: diz-se que os antropólogos são pela cultura contra a natura; e que os biólogos são da natura contra a cultura. Ora isso não é bem exato. Serge Moscovici [1925-2014] dedicou-se a estudar esta questão, um psicólogo social romeno que se radicou em Paris - um cientista das ciências sociais e humanas. A Bertrand editou em 1977 um livro seu com o título: A Sociedade Contranatura.




Serge Moscovici problematizou e criticou a conceção de natureza que dizia que havia uma natureza e uma sociedade em oposição mútua. Mas para ele natureza e sociedade não têm que ser dois pares do mesmo fenómeno em oposição mútua. Hoje o que é preciso é defender mais a natureza da agressão do homem, do que defender o homem das intempéries da natureza. Já há algum tempo que se começou a repensar esta dicotomia no sentido de pôr fim à velha mundividência: a natureza não ter nada de humano; e o humano não ter nada de natural.

Ora, o padrão organizativo chamado "sociedade", além de não ser uma característica exclusivamente humana, não pode representar algo que esteja acima da natureza, ou que não tenha nada a ver com a natureza. Natureza e sociedade não se excluem mutuamente. O homo sapiens, a título individual ou pessoal, não tem muito mais do que se adaptar à natureza e ao ambiente em que vive. Mas os seres humanos enquanto sociedade foram mais ousados no sentido de transformar a natureza para proveito próprio. O que, ao contrário do que se possa pensar, não é uma exclusividade humana.

Convém saber como as pessoas constroem a realidade através dos processos de comunicação interpessoal quotidiana. E no seio da psicologia social há uma teoria: "Teoria das Representações Sociais" a que Serge Moscovici prestou grande atenção. É o caso do machismo misógino, que como representação social, e o seu significado, está cada dia que passa a ser mais partilhado pela sociedade ocidental em que o feminismo é hegemónico no sentido normativo. E que não pode escapar ao seu específico processo coercivo. Quando se estabelece um conflito polarizado, em que de um lado estão "os nós" que estão certos, e do outro "os eles" que estão errados, o que acontece é uma polarização entre pressões e resistência. A mudança é sempre efetuada por meios coercivos.

Para que o carácter hegemónico se mantenha, e para obter eficácia nos seus objetivos, é central o contributo da comunicação social. Para que vingue uma consensualidade alargada é fundamental o papel dos média. Daqui vão resultar clivagens que tendem a culminar em relações de dominação feitas à custa das chamadas "pressões". E qualquer mudança que tenha a ver com a normatividade comportamental hegemónica acaba também inevitavelmente em posições e ações de resistência.



Os gato fedorento
à esquerda - Tiago Dores; à direita - Ricardo Araújo Pereira
O que é certo é que o anão
– Roberto!
O Roberto a gente foi tinha batido com a cabeça no chão e digo eu ‘queres ver que este gajo vai ficar como o atrasado mental
– Fernando!
O Fernando infelizmente não porque o atrasado mental, o Fernando, é um gajo que não bate nem de perto nem de longe enquanto o anão
– Roberto!
O Roberto ainda conseguia dizer as letras é o que acontece no final do acidente aparece o mariconço
– Eu!
Ele, aparece e diz o mariconço, Ele, diz: eh pá então mas



segunda-feira, 28 de agosto de 2023

Não deitem fora o bebé com a água do banho



Num programa televisivo, a dada altura vê-se Meryl Streep a dar um beijo na boca do ator Mark Ruffalo. O que tinha acontecido para um gesto inusitado por parte de Meryl Streep? Parece que Mark Ruffalo tinha elogiado Meryl Streep com uma frase do género: «apesar de muita coisa ter mudado na sua vida nos últimos anos, aparenta 45 anos, e não 65.» Para retribuir o elogia, Meryl prega um chocho na boca do ator. Este ficou visivelmente embraçado, com um sorriso constrangido de envergonhado.




O governo espanhol está muito preocupado com o “beijo de Luís Rubiales”, Presidente da Real Federação Espanhola de Futebol, e ex-jogador profissional, e está a fazer pressão para que o caso se resolva o mais rápido possível: que Rubiales seja mesmo afastado de forma definitiva do cargo. Passaram 7 dias desde esse momento do beijo, mas a polémica continua adensando-se até cada vez mais nos órgãos de comunicação social e redes sociais. A indignação é quase unânime, embora aqui e ali haja vozes que recomendam alguma sensatez para que não se caia no exagero da histeria.




Nas arenas específicas da luta contra o patriarcado e a opressão machista, este caso tem dado que falar na esteira do que tem sido ultimamente a agenda feminista na denúncia do abuso e assédio sexual por parte do sexo masculino. De alguma forma este caso é mais uma gota que faz transbordar o copo.

Portanto, existe este problema no desporto bem como em muitas outras esferas. É um problema generalizado da atividade humana, mas também temos de ter muito cuidado porque é muito fácil resvalar-se para julgamentos sumários com os tribunais de opinião por parte de rebanhos unanimistas da moral ditada por cartilhas. Já estão a pedir o impedimento sumário de Rubiales assumir qualquer cargo público, saltando por cima do estado de direito. É fundamental que analisemos estes casos não apenas através de um só prisma. É muito importante a igualdade de género. É importante a denúncia do abuso por parte de quem está em posições de poder. Mas que com isso não se destruam outros valores que são igualmente importantes. Por exemplo, a atleta e a família da atleta já pediram à comunicação social para moderarem esta violência mediática que elas também sofrem com o vasculho.

A talho de foice, trago aqui o caso da  música Fat Bottomed Girls dos Queen para dizer que isto anda tudo ligado e que os tempos foram sempre muito interessantes para os historiadores. Digo-o com a desfaçatez do pé direito calçado com o sapato esquerdo de Heródoto; e o esquerdo calçado com o direito de Tucídides. Pois bem, essa música 
foi removida de uma reedição de “Greatest Hits”, coletânea do grupo que é o álbum mais vendido de sempre no Reino Unido. As crianças não podem ser expostas a qualquer espécie de body shaming. Ou seja, agora já não há gordos, magros, lingrinhas ou minorcas. É uma forma estimável e decente de falar de casos traumáticos, exibir respeito pelas vítimas e proteger os frágeis.

Mas será que estamos a criar uma geração com poucas ferramentas para lidar com a adversidade? Ou é uma ideologia de vitimização que tende a reforçar o processo de trauma que torna a vítima ainda mais vulnerável? Lassidão, tolice e boas intenções são sempre a capa visível da tirania.

domingo, 27 de agosto de 2023

A origem da marreta Wagner





Em 2022 passou nas redes sociais um vídeo mostrando um mercenário do Grupo Wagner a ser espancado com uma marreta por ter tentado desertar. Yegeny Progozhin, o patrão do Grupo Wagner, um dia apresentou-se aos seus instrutores com uma marreta dizendo que queria que eles a usassem na punição de quem se portasse mal. O nome "Wagner" foi dado pelo seu fundador - Dmitry Utkin, um tenente-coronel russo - como homenagem a Richard Wagner, para além da sua ideologia nazi e crente da fé nativa eslava.




Ora, esta simbologia está toda ligada, incluindo a marreta que na mitologia nórdica é a arma do deus do trovão - Thor, onde Wagner também se inspirou para a sua Ópera - O Crepúsculo dos Deuses - a 4ª ópera de um ciclo de 4 óperas denominado - O Anel do Nibelungo.




Nietzsche, na sua penúltima obra em 1888 – Crepúsculo dos Ídolos, ou Como Filosofar com o Martelo –, e numa das cartas acrescentadas em apêndice à primeira edição, escreveu que era como um aperitivo destinado a "abrir o apetite" dos leitores para a sua filosofia. O título é uma paródia à Ópera de Wagner Crepúsculo dos Deuses. No subtítulo, a palavra "martelo" deve ser entendida como marreta, para destroçar os ídolos, e também como diapasão para, ao tocar as estátuas dos ídolos, comprovar que são ocos. Trata-se de uma síntese e introdução a toda a sua obra, e ao mesmo tempo uma "declaração de guerra". É com espírito guerreiro que ele se lança contra os "ídolos", as ilusões antigas e novas do Ocidente: a moral cristã, os grandes equívocos da filosofia, as ideias e tendências modernas e seus representantes. De tão variados e abrangentes, esses ataques compõem um mosaico dos temas e atitudes do autor.



[…] Em algumas circunstâncias ainda mais desejada por mim, está em auscultar ídolos... Há mais ídolos do que realidades no mundo: este é o meu “mau olhar” para este mundo, é também o meu “mau ouvido” ... Fazer perguntas com o martelo e talvez ouvir, como resposta, aquele célebre som oco que vem de vísceras infladas — que deleite para alguém que tem outros ouvidos por trás dos ouvidos — para mim, velho psicólogo e aliciador, ante o qual o que queria guardar silêncio tem de manifestar-se.

Também este livro — seu título já o revela — é sobretudo um descanso, um torrão banhado de sol, uma escapada para o ócio de um psicólogo. Talvez também uma nova guerra? E serão perscrutados novos ídolos?

Este pequeno livro é uma grande declaração de guerra; e, quanto ao escrutínio de ídolos, desta vez eles não são ídolos da época, mas ídolos eternos, aqui tocados com o martelo como se este fosse um diapasão — não há, absolutamente, ídolos mais velhos, mais convencidos, mais empolados.

E tampouco mais ocos. Isso não impede que sejam os mais acreditados; e, principalmente no caso mais nobre, tampouco são chamados de ídolos.

Turim, em 30 de setembro de 1888, dia em que foi terminado o primeiro livro da Transvaloração de todos os valores

Friedrich Nietzsche

quinta-feira, 24 de agosto de 2023

Qualia ou fenomenologia - Como o cérebro gera a subjetividade da experiência dos sentidos



Qualia - é um termo usado na filosofia da mente para caracterizar as qualidades da subjetividade da experiência vivida na primeira pessoa. Por exemplo, o aspeto das cores tal como as vemos, ou a qualidade da dor tal como a sentimos. Neste caso, a "fenomenologia" desenvolvida pela filosofia da escola de Husserl tem a ver com a estrutura específica do que aparece aos nossos sentidos incluindo a consciência. Tomando os conceitos de Husserl e o todo das suas investigações, o "fenómeno" é o fluxo imanente da vivência daquilo de que estamos cientes e que é a base condicional do nosso conhecimento. 

Ora, ninguém consegue explicar como se passa da estrutura do cérebro e do seu funcionamento para a fenomenologia. Ou seja, como é que explica o cientista, que é a perspetiva vista por uma terceira pessoa a "espreitar" para o nosso cérebro, as sensações que estamos a ter na contemplação de um pôr do sol à beira-mar. A fenomenologia ou as qualidades subjetivas do aspeto visual do que estamos a contemplar mais as sensações que estamos a sentir no nosso corpo e ainda outros sentimentos que nos são trazidos pela memória. As propriedades dessas experiências sensoriais e cognoscíveis pelo próprio, em experiência direta, não são transponíveis para as narrativas epistemológicas descritas de forma indireta por um neurocientista acerca dos seus correlatos cerebrais.

David Chalmers - um filósofo australiano, tem tentado resolver este quebra-cabeças filosófico. Mas os seus resultados práticos têm sido fracassados. Como estudante de graduação estudou física e matemática, e trabalhou também como matemático na pós-graduação antes de abraçar a carreira de filósofo da mente. Embora a física nunca tenha sido central no seu trabalho conceptual, Chalmers considera que a neurociência precisará dos conhecimentos da mecânica quântica para explicar a emergência da consciência. Enquanto na Universidade do Arizona, esteve a dirigir o Centro de Estudos da Consciência. Depois voltou para a Austrália onde é diretor do Centro da Consciência da Universidade Nacional da Austrália.

É no vocabulário que se tornou padrão em neurociência que Chalmers tenta explicar a correlação da atividade neural com os aspectos da consciência: os “correlatos neurais da consciência”. A tecnologia de imagem cerebral tem atualmente permitido uma visualização detalhada da atividade metabólica do cérebro relacionada com o pensamento e o sentimento, bem como a sua cartografia.

A exploração do que se passa dentro do cérebro, 
colocando eletrodos diretamente no cérebro exposto, não é nova. Neurocirurgiões já correlacionam há muito tempo a atividade e estimulação elétricas com a informação relatada pelo próprio a ser examinado das suas percepções conscientes. Isso é feito em grande parte com propósitos terapêuticos, é claro, e a experimentação científica é limitada. A eletroencefalografia (EEG), a detecção de potenciais elétricos no couro cabeludo, é ainda mais antiga. A EEG pode detectar rapidamente atividade neural mas não pode dizer em que local do cérebro a atividade está ocorrendo.

A tomografia por emissão de positrões (PET, na sigla em inglês), um benefício derivado da mecânica quântica, detecta exatamente no cérebro que neurónios estão em atividade numa determinada atividade cerebral. Aqui, átomos radiativos, de oxigênio, por exemplo, são injetados na corrente sanguínea. Detectores de radiação e análise computacional podem determinar onde há aumento de atividade metabólica por requisição de mais oxigénio. E assim se pode correlacionar esse facto com os relatos de percepções conscientes.

Outra tecnologia de imagem cerebral também com resultados extraordinários é a produzida por ressonância magnética funcional (IRMf). É melhor que a PET para localizar atividade sem ter de utilizar material radioativo. Mas o paciente tem de manter a cabeça o mais possível imóvel, quieta, mergulhado num ambiente sonoro desagradável produzido pelos magnetos. Outra das aplicações práticas da mecânica quântica. A IRMf é capaz de identificar qual a parte do cérebro que está mais ativa durante uma função cerebral devido ao consumo de oxigénio.

A IRMf pode correlacionar uma região do cérebro com os processos neurais envolvidos em, digamos, memória, fala, visão e consciência reportada. As imagens cerebrais geradas por computador, que são coloridas artificialmente, podem exibir exatamente as regiões do cérebro a receber mais sangue inclusivamente no processo de um determinado pensamento. Como qualquer técnica baseada em atividade metabólica, o processo é de certo modo demorado. Tal conjunto completo de correlatos neurais da consciência é o objetivo de grande parte da pesquisa atual sobre consciência envolvendo o cérebro.

O caráter dos estados cerebrais e dos estados fenomenológicos [estados vivenciados] parecem diferentes demais para ser completamente redutíveis um ao outro. A sua relação deve ser mais complexa do que tradicionalmente se imagina. Será necessário um outro paradigma conceptual ou epistemológico porque parece ser impossível explicar a consciência puramente em termos de correlatos neurais. Na melhor das hipóteses, há alguma coisa sobre o papel físico que a consciência pode desempenhar. Mas nada nos diz como a consciência aparece.

 Nenhuma mera presença de um processo físico nos diz como emerge a experiência fenomenológica. O surgimento da experiência, a parte fenomenológica da consciência vai além do que pode ser deduzido a partir da teoria física. Isto parece conduzir-nos para um novo tipo de dualismo, que não é o mesmo dualismo tão debatido por António Damásio, que é o dualismo de matriz cartesiana. A natureza essencial do problema da medição em mecânica quântica tem estado em discussão desde a criação da teoria quântica. Da mesma maneira, desde que a consciência passou a ser cientificamente analisada pela psicologia e pela filosofia, sua natureza essencial tem sido debatida. 

terça-feira, 22 de agosto de 2023

As ondas migratórias



Em Portugal, no segundo trimestre de 2023, nos números divulgados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), o emprego mais qualificado caiu. E caiu muito. Entre o segundo trimestre de 2022 e o segundo trimestre de 2023, contam-se no país menos 128 mil pessoas empregadas com licenciatura do ensino superior. Um recuo de 7,3%.

Polícia Marítima resgata 50 migrantes, incluindo 12 crianças, que seguiam em três embarcações no Mediterrâneo, ao largo da ilha italiana de Pantelleria, divulgou esta força policial, que desde junho de 2023 já resgatou 233 pessoas naquela situação. A Polícia Marítima, que se encontra em missão no Mediterrâneo no âmbito da Operação 'Themis' da agência europeia FRONTEX, recebeu um alerta para a existência de duas embarcações com migrantes a bordo, explicou a Autoridade Marítima Nacional (AMN), em comunicado. "À chegada ao local, os elementos da Polícia Marítima intercetaram duas embarcações com 23 homens, duas mulheres e três crianças, que apresentavam sinais de desidratação e fadiga e sem coletes de salvação, tendo sido resgatadas para o porto de Pantelleria, onde aguardavam as autoridades italianas", explicou a AMN.

Os países precisam de imigrantes para as suas empresas e serviços. O que acontece é que a partir de um certo limiar de imigrantes as culturas dos países em que se estabelecem sofrem choques assimétricos. Nos Estados Unidos, a população hispânica cresceu de 22 milhões em 1990 para 51 milhões em 2011. O hispânico respondeu por mais de metade do crescimento populacional dos Estados Unidos na década de 2010. E em Dearborn, Michigan, o quartel-general da Ford Motor Company, 40% da população é de cultura muçulmana. Lá se encontra a maior mesquita da América do Norte.

As Nações Unidas calculam que há 214 milhões de migrantes no planeta, um aumento de 37% nas últimas duas décadas. A Europa está vivendo uma onda migratória vinda do Sul e do Oriente sem precedentes. Os governos têm-se mostrado incapazes de deter essa onda de imigrantes vinda de África e da Ásia. Os fluxos das rotas clandestinas no ano de 2023 têm-se intensificado pelo chamado corredor central do Mediterrâneo que têm como ponto de partida a Líbia.

Novos cidadãos também são, é claro, eleitores, que podem modificar o espetro político a que os autóctones estavam habituados. A remessa de dinheiro para os seus países de origem naturalmente tem imenso efeito positivo na economia de seus familiares e do seu país em geral.

Mas talvez o aspeto que mais esteja transformando os países de acolhimento é o aspeto das cidades na sua transformação urbanística. O processo de urbanização que já era o mais intenso da história, está acelerando ainda mais. Pela primeira vez na história, há mais gente morando nas cidades do que nas áreas rurais.

A circulação de cérebros é outra forma de mobilidade. Embora não envolva população tão numerosa, quanto a migração de trabalhadores de menor nível de instrução, não deixa de produzir também grandes impactos nos países dos dois lados da equação. Países economicamente mais débeis como Portugal, tendem a perder muitos de seus cidadãos mais capacitados e instruídos para os países mais ricos, atraídos pelas perspetivas de uma vida melhor pelos salários serem mais elevados que no país de origem. Essa bem conhecida “drenagem de cérebros” priva os países de origem de cientistas, empresários e outros profissionais que custaram caro para se formar e, como é natural, reduz o seu capital humano.

É inevitável, no caso dos empresários, que a cultura de negócios mais dinâmica, competitiva e transformadora, que predomina nos grandes centros de inovação empresarial do mundo, entre em choque com os modos monopolizadores e tradicionais nos países em desenvolvimento, onde prevalecem empresas de propriedade do Estado ou conglomerados de negócios largamente hegemónicos.

Seja como for, essa movimentação de gente, num contexto de crescimento explosivo, modifica extraordinariamente a maneira de as pessoas se relacionarem em sociedade. Calcula-se que durante o último ano cerca de 320 milhões de pessoas voaram para comparecer em reuniões profissionais, convenções ou encontros internacionais. O que exatamente significam para o poder político todas essas mudanças? Não sabemos. Mas começa a haver um certo mal-estar na Europa por causa de algumas reações de países, como é o caso da Hungria, considerado pelos restantes países europeus, nas suas chancelarias, uma atitude muito politicamente incorreta. Mas o que se verifica nesses mesmos países é que as pessoas por se sentirem cada vez mais inseguras estão a votar mais eleitoralmente em partidos de extrema-direita, mais xenófobos.

Exercer o poder significa não só manter o controlo e coordenação de um território no seu interior, mas também das suas fronteiras, o que requer mais investimento no seu policiamento numa altura em que as fronteiras se tornaram mais porosas. Com a população mais móvel, fica mais complicado para as organizações estabelecidas manterem o seu domínio.

O que se seguiu ao assassinato de Júlio César




Júlio César - Museu do Louvre

Os conspiradores que assassinaram Júlio César parece que não tiveram uma ideia muito clara do que viria depois. Podem ter esperado que, com o ditador morto, a vida pública iria voltar ao normal. Mas o que aconteceu foi que em poucos meses rebentou uma nova guerra civil. Marco António reuniu muitas das legiões de César para vingar a sua morte. O Senado, que durante algum tempo até simpatizou com os conspiradores, tentou usar o filho adotivo de Júlio César - Caio Júlio César Octaviano (mais citado pelos historiadores como Octaviano) – como figura destinada a enfraquecer o controlo de Marco António sobre as legiões veteranas.

Octaviano, a não ser pelo nome, com apenas 19 anos não lhe era reconhecido grande valor. Cícero teria dito que o Senado deveria “louvar o jovem, recompensá-lo e, então, descartá-lo” logo que tivesse cumprido o seu propósito. Entretanto, foi-lhe concedido o imperium proconsular, o que oficializava o seu comando sobre grande número dos veteranos de César, nomeadamente a Legio X, que apoiava a sua causa. Percebendo a atitude do Senado para com ele, e ansioso por combater os conspiradores, em 43 a.C. Octaviano retirou-se e foi juntar-se a Marco António e Marco Lépido. E assim se uniram para formar o Segundo Triunvirato.

Diferentemente do Primeiro Triunvirato, a aliança entre Crasso, Pompeu e Júlio César, cada qual recebeu o título de triúnviro oficializado pela lei. Tal anúncio ecoava a posição de Sula enquanto ditador, bem como o comportamento dos triúnviros quando capturaram Roma e instituíram novas interdições, condenando à morte um número significativo de senadores e membros da ordem equestre.

Cícero pagou o preço pelas suas Filípicas, uma série de discursos cáusticos que havia pronunciado e publicado para atacar Marco António. Este ordenou que a sua cabeça e sua mão fossem pregadas na plataforma do orador no Fórum
Consta que as suas últimas palavras foram: "Não há nada adequado sobre o que está fazendo, soldado, mas tente me matar adequadamente". Ele se ajoelhou perante seus captores, inclinando a cabeça para fora da liteira destinado a facilitar a execução. Ao expor o pescoço e garganta aos soldados, estava indicando que não resistiria. Segundo Plutarco, Herénio primeiro o matou e depois cortou a cabeça. Por ordem de António, suas mãos, que haviam escrito as "Filípicas" contra ele, foram cortadas também; elas e a cabeça foram pregadas na Rostra no Fórum Romano seguindo a tradição inaugurada por Mário e Sula. Contudo, Cícero foi a única vítima das proscrições do Segundo Triunvirato a sofrer esta humilhação.



Cícero - Palácio da Justiça, Roma

Bruto e Cássio passado um ano, depois dos exércitos terem sido derrotados nas duas batalhas de Filipos, morreram por suas próprias mãos. Os triúnviros dividiram o controlo das províncias. Mas a pouco e pouco as suas alianças foram-se degradando. Lépido foi colocado de lado de forma pacífica, mas a luta entre António e Octaviano foi decidida à força na batalha naval de Áccio, em 31 a.C. Marco António acantonou-se no Egito sob os favores de Cleópatra. Amantes por mais de uma década e casados durante um ano, suicidaram-se.

Depois de Áccio, Octaviano comandou as maiores forças militares alguma vez controladas por qualquer general romano, com nada menos do que sessenta legiões comprometidas a ele pelo juramento de obedecer-lhe – um total que ele logo reduziria a 28 unidades permanentes. Com a morte de Marco António, não havia mais nenhum rival sério a ameaçar a sua supremacia, e, com efeito, as batalhas, condenações e o suicídio fizeram muito no sentido de diminuir as fileiras dos membros mais poderosos do Senado.

Júlio César foi assassinado porque seu poder era colossal. Seu filho adotivo sobreviveu porque criou um regime no qual o controlo que exercia sobre os assuntos de Estado era velado. Octaviano – que mais tarde receberia o nome de Augusto em votação no Senado, o que lhe ajudou a gradualmente a se desassociar do seu passado brutal como triúnviro – não era nem ditador nem rei, mas princeps senatus, um título honorífico tradicional conferido ao senador de maior distinção. Por conta desse título, o regime que ele criou é hoje conhecido como Império, em oposição a República. Na realidade, imperadores com poder absoluto, Augusto e seus sucessores fingiram ser não mais do que o magistrado-mor do Estado.

O regime de Augusto não foi uma criação instantânea. Foi produto de um desenvolvimento gradual, de tentativa e alguns erros. Seu sucesso se deveu em grande parte à habilidade política de Octaviano, ao profundo desejo de estabilidade após décadas de sublevação e também devido à longevidade do princeps. Quando morreu, em 14 d.C., quase ninguém que estivesse vivo podia lembrar-se do tempo em que a República funcionara do modo tradicional.

segunda-feira, 21 de agosto de 2023

Germânico e as tribos germânicas



Germânico Júlio César [15 a.C. – 19 d.C.] foi um dos mais importantes generais dos primeiros anos do Império Romano, especialmente por suas campanhas na Germânia. 
"Germânico" foi acrescentado ao seu nome em 9 a.C. por via do seu pai, ao qual esse nome havia sido dado depois das grandes vitórias que ele havia obtido na Germânia. Em 4 a.C., Germânico foi adotado por seu tio paterno - Tibério - o sucessor de Augusto como imperador uma década depois. Por causa disto, Germânico passou a fazer parte da gente Júlia, outra importante família da época da qual ele já era parente pelo lado de sua mãe. Sua ligação aos Júlios foi consolidada através de seu casamento com Agripina (a velha), que era neta de Augusto.


Agripina e Germânico, por Rubens

Segestes era um chefe de tribo germânica - queruscos - mas esteve envolvido nas campanhas do lado dos Romanos que estes levavam a cabo para a conquista da Germânia durante o reinado do imperador Augusto

Armínio era um nobre militar pertencente também à tribo dos queruscos, rival de Segestes. Armínio tinha casado com Tusnelda, que era filha de Segestes. Ora, este casamento, contra a vontade de Segestes, acabou por minar ainda mais a relação entre eles. 

Segestes, como era partidário dos Romanos, entretanto alerta o governador romano - Públio Quintílio Varo - que Armínio e outros nobres queruscos estavam a preparar uma conspiração no sentido de se revoltarem. Estávamos no ano 9 d.C. Mas o seu alerta não foi levado em grande consideração. O que se seguiu foi que Varo acabou por morrer numa batalha que ocorreu na floresta de Teutoburgo. Os queruscos continuaram com os seus planos, e Segestes, em trocas de correspondência com Germânico, continuava a reiterar os planos que os queruscos tinham em mira. 




Os queruscos, ao descobrirem a traição de Segestes, tentaram o seu assassinato em sua própria casa. Mas este atentado não foi bem sucedido uma vez que na hora certa foi salvo por um destacamento romano, ainda que com enormes dificuldades. Germânico concedeu a Segestes um refúgio em Narbo Márcio. Sigismundo, o filho de Segestes que havia participado na revolta, acabou por ser perdoado por Germânico. O filho não só tinha lutado contra Roma em 9 d.C., como também, segundo se dizia, havia desonrado o cadáver de Varo, porém, uma vez mais, a vantagem a ser obtida ao acolher desertores inimigos foi maior do que a cólera romana. Além dos preparativos práticos, Germânico dedicou atenção particular à saúde e ao moral dos seus homens, visitando os hospitais dos quartéis de inverno, conversando com os soldados e elogiando seus feitos de coragem.

A campanha diplomática para trazer chefes guerreiros germânicos para o lado de Roma continuou no tempo de Segimero, do irmão de Segestes. Na primavera de 16 d.C., o exército uniu-se à esquadra no território dos batavos, uma tribo que ocupava a “ilha” entre o Reno e o Waal e que forneceu muitos auxiliares para o exército romano. Os batavos eram uma ramificação dos catos que tinham atravessado o Reno e lá se estabelecido após uma disputa interna. Antes do início da campanha principal, Germânico enviou uma pequena coluna ligeira para atacar os catos. Ao mesmo tempo, chegaram notícias de que um forte romano construído perto do local do desastre de Varo estava sob ataque. Grande parte do exército foi incumbida da tarefa de construir quase mil barcos para serem adicionados à frota já estacionada no Reno. O exército seria transportado até ao local mais longe possível por água, navegando ao longo da costa do mar do Norte e passando pelas Ilhas Frísias para aportar já no interior do território inimigo.



Ilhas Frísias Orientais

sábado, 19 de agosto de 2023

Da Horda de Ouro à Moscóvia



A Rússia de Moscovo é um dos estados da zona das florestas tributários do Canato da Horda de Ouro. É um dos quatro grandes estados sucessores do Império de Gengis Khan, que se desmembrou em 1259. Os Senhores da Moscóvia, vulneráveis pela sua demasiada exposição aos nómadas da estepe, eram como vassalos do longínquo Canato do Sarai no Mar Cáspio. No entanto, por via da conversão ao cristianismo e criação subsequente da Igreja Ortodoxa filiada em Constantinopla, forjaram uma identidade distinta. Na realidade, os mongóis, só tardiamente se iriam converter ao islamismo. 

Dessa feita, a ascensão da Moscóvia a uma posição predominante na Ásia Central deveu-se em grande medida ao oportunismo dos seus príncipes, que se tornaram aliados e colaboradores dos canatos da estepe. O apoio mongol garantiu-lhes o título de grandes príncipes depois de 1331. Nessa altura o poder mongol havia repelido o Grão-ducado da Lituânia, que era rival da Rússia de Moscovo. A Lituânia em meados do século XIV estava associada à Polónia, que era católica. Moscovo tinha toda a conveniência receber o apoio da Igreja Ortodoxa.

Em 8 de setembro de 1380 dá-se um embate entre os russos de Moscovo de um lado e os tártaros e mongóis da Horda de Ouro, do outro, na Batalha de Culicovo, próximo do rio Dom. Dessa batalha os russos saíram vencedores. Os russos aproveitaram as divisões já existentes na Horda de Ouro e declararam a independência. Esta independência foi de curta duração porque Tamerlão ainda tinha uma palavra a dizer 
a partir da sua base original na Ásia Central. Embora acabasse por não conseguir construir um novo império tão vasto como o de Gengis Khan, Tamerlão destruiu o que restava do sistema mongol, incluindo o Canato da Horda de Ouro, que se dividiu gradualmente nos diferentes canatos: Crimeia, Astracã, Kazan e Sibir’. 

Na década de 1440, Basílio II de Moscovo já gozava de uma independência real. Em 1480, o seu sucessor, Ivan III (1462–1505), impediu a última tentativa da estepe voltar a impor as suas condições ao Estado russoOs cem anos que se seguiram a 1480 constituíram um período vital da expansão da Moscóvia e de toda a trajetória que se viria a verificar no Centro e Norte da Eurásia. Com o seu núcleo territorial no alto Volga, a Moscóvia tornou-se charneira entre o vasto império da floresta a Norte, e o Leste depois de chegar à costa asiática do Pacífico. Ivan III apresentou-se como um grande monarca ao estilo europeu, combinando estilos bizantinos e ocidentais de poder dinástico. Em 1492 intitulou-se Grão-duque da Moscóvia e de todas as Rússias. O seu casamento com Sofia Paleólogo, uma princesa bizantina, foi negociado sob os auspícios do Papa. Os seus embaixadores espalharam-se por toda a Europa. Foram chamados a Moscovo - artesãos, construtores e arquitetos italianos. A administração foi reorganizada com base num intrincado sistema de chancelarias, conservação de registos e hierarquias burocráticas. A subida ao trono de Ivan IV, o Terrível, foi assinalada por uma coroação com todo o rigor e circunstância, que adotou rituais copiados dos extintos rituais dos imperadores bizantinos. 

Assim se tornou um império a partir da estepe do Cáspio e do Sul dos Urais, conquistado com tanto esforço. Mas os governantes de Moscovo mal poderiam ter acalentado essas ambições imperiais se tivessem governado apenas um pequeno principado na Rússia ocidental, vigiado pela Polónia-Lituânia católica. Acresce que deste lado ocidental havia também a disputa de adversários ricos do Norte da Rússia sediados em Novgorod, com o seu império de peles e comércio hanseático. 

Por conseguinte, o aumento do poder russo no Norte da Eurásia implicou a consolidação do domínio da Moscóvia sobre os Estados da Horda de Ouro. A dinâmica monarquia associada Polónia/Lituânia, em 1504 estendia-se do Báltico ao Mar Negro. Quer quisessem quer não, os grão-duques da Moscóvia só poderiam sobreviver entrando no sistema diplomático europeu para procurar aliados contra a Polónia. Por outro lado, não menos importante, tinha de competir em termos culturais e ideológicos com as monarquias europeias que vinham implantando um novo estilo desde o século XV. Grande parte da história posterior da Rússia iria girar em torno do delicado equilíbrio entre o distintivo legado bizantino, incorporado na Igreja Ortodoxa Russa, e o empréstimo cultural da Europa Ocidental ditado pela necessidade política e económica.

Seja como for, o património cultural das origens da Rússia provinha também de uma forte influência da Rus' de Kiev. E as origens da Rus’ de Kiev encontram-se nas migrações que se tinham verificado para leste de povos eslavos em direção à orla da zona das florestas, onde esta se cruzava com a estepe e os seus nómadas guerreiros. A estes guerreiros os russos chamavam tártaros. Na origem, o centro em Kiev era dirigido pelos varegues ou vikings, um entreposto fluvial que explorava a rota comercial dos escandinavos do Báltico com Bizâncio e o Próximo Oriente. Com a chegada do cristianismo ortodoxo, no século IX, a Rus’ de Kiev passou a ser um grande posto avançado de Constantinopla. Kiev tornou-se a sede de um vasto empreendimento missionário que fundou mosteiros que se estenderam por lugares das florestas do Norte tão longínquos como a região do Mar Branco. 

sexta-feira, 18 de agosto de 2023

Das vidas de oligarcas no frio da Sibéria



Mikhail Borisovich Khodorkovsky é um oligarca russo, empresário e ativista da oposição a Putin que teve de se exilar no Ocidente.  Já nos finais de 1980 havia começado como empresário. Mas depois do fim da URSS ele acumulou uma riqueza considerável ao obter o controlo de uma série de campos de petróleo da Sibéria unificados sob o nome de Yukos, uma das principais empresas a emergir da série de privatizações durante a década de 1990. Os privados compravam ações emitidas pelo estado, ou seja, um “empréstimo”. 
Em 2001, Khodorkovsky fundou a “Rússia Aberta”, uma organização reformista que pretendia "construir e fortalecer a sociedade civil" no país. Em outubro de 2003 foi preso pelas autoridades russas acusado de corrupção. Nesta altura é considerado o homem mais rico da Rússia, com uma fortuna estimada em quinze mil milhões e dólares. O governo, com Vladimir Putin como primeiro-ministro, congelou as ações da Yukos pouco depois, por causa da fuga aos impostos. O governo de Putin toma depois novas medidas contra a Yukos, levando a um colapso do preço das ações da empresa e à evaporação de grande parte da riqueza de Khodorkovsky.

Khodorkovsky tinha juntado dinheiro suficiente para fundar um banco. E depois juntou mais dinheiro para conseguir fazer uma licitação em leilão da petrolífera Yukos. Ninguém sabe ao certo em que momento Putin passou a vê-lo como um traidor. A tensão entre os dois foi evidente numa reunião pública em fevereiro de 2003. Era mais um dos encontros habituais de empresários no Kremlin no imponente salão de Santa Catarina. Khodorkovsky apareceu vestido de forma descontraída, com uma camisola de gola alta, e atendeu uma chamada a meio da reunião, atitudes de que o Presidente, apreciador da formalidade, não gostou. O verdadeiro problema surgiu quando chegou a vez de Khodorkovski falar. A sua apresentação de PowerPoint trazia o título: Corrupção na Rússia um travão ao crescimento económico. E o empresário passou ao ataque denunciando suspeitas de corrupção em negócios. Putin ficou muito irritado, e reagiu muito mal a isso.

Numa conversa com um amigo, Putin, transmite o seu desagrado: «Depois de tudo aquilo em que ele já metera a mão, agora vem aqui acusar-me de aceitar subornos? Ele teve a lata de me dar lições de moral em frente de toda a gente.» Outros problemas se acumularam para Khodorkovsky nos meses seguintes. Negoceia uma fusão com a empresa de Roman Abramovich, e começa a sondar a possibilidade de juntar ao negócio petrolíferas americanas. Tudo isso desagrada profundamente o Kremlin e o Presidente. Putin tem de fazer do dono da Yukos um exemplo que sirva de aviso para outros oligarcas. A 25/10/2003, apenas 2 meses antes das eleições, 
Khodorkovsky numa viagem que faz de avião para a Sibéria, depois de o avião ter aterrado, sai de lá algemado e é formalmente acusado dos crimes de fraude e evasão fiscal.

Em 2003 ainda era possível acreditar que Vladimir Putin iria colocar a Rússia no caminho da democracia. A última vez que Putin foi visto descontraído publicamente foi em maio de 2003, durante o concerto de Paul McCartney, na Praça Vermelha. Há uma gravação deste famoso momento, em que a meio do concerto ele sai do Kremlin, a pé, e senta-se ali, no concerto. Em maio de 2005 Khodorkovski é julgado e dado por culpado. É condenado a nove anos de prisão. Em dezembro de 2010, enquanto ainda cumpria a pena, Khodorkovsky é de novo condenado aquando do julgamento do seu parceiro de negócios, Platon Lebedev, por peculato e lavagem de dinheiro. A pena de prisão de Khodorkovski foi estendida até 2014. Mas foi libertado em 2013. Dizem que foi por influência de Hans-Dietrich Genscher, através de Putin.

Havia uma preocupação internacional generalizada, na medida em que aqueles julgamentos e sentenças tinham por trás motivações políticas. Khodorkovsky apresentou vários recursos no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, pedindo reparação por alegadas violações dos seus direitos humanos por parte da Rússia. Em resposta ao seu primeiro pedido, que dizia respeito a acontecimentos de 2003 a 2005, o tribunal considerou que de facto haviam sido cometidas várias violações dos direitos humanos, por parte das autoridades russas, no tratamento dado a Khodorkovski. Ele foi considerado um prisioneiro de consciência pela Amnistia Internacional. Em 2014, Khodorkovsky relançou o Rússia Aberta para promover várias reformas na sociedade civil russa, incluindo eleições livres e justas, educação política, proteção de jornalistas e ativistas, endossando o Estado de Direito e garantindo a independência dos média.

quinta-feira, 17 de agosto de 2023

A Rússia para lá dos Urais no século XVI



No século XVI a Rússia travou-se uma série de guerras para afastar a influência polaca dos seus territórios ocidentais que seduziam os inquietos boiardos da Moscóvia. Assim instigados, os russos mantiveram as suas formidáveis conquistas territoriais na floresta e na estepe que fundavam as bases de um império de comércio de peles nas florestas do Norte. É sabido que este comércio já havia sido lançado pela república de Novgorod muito antes de ser anexada por Moscovo em 1478. Entretanto, Moscovo, chega a enviar em 1483 a sua primeira expedição além dos Urais. Mas é na 
década de 50 do século XVI que uma dinâmica família de mercadores constrói um império comercial na Sibéria para adquirir as peles fornecidas pelos povos indígenas das florestas. É a família Stroganov.

São os Stroganoves que desencadeiam um conflito com o Canato de Sibir’, que também dependia do comércio de peles e do controlo do seu fornecimento. Em 1582, Ermak, um aventureiro cossaco contratado pelos Stroganoves, conseguiu tomar a capital de Sibir’. Mas o imperialismo privado dos Stroganoves desmoronou-se depois da morte de Ermak em 1585. Seria Moscovo, liderado por Boris Godunov, que levaria a cabo a conquista militar da Sibéria Ocidental no final do século. O caminho ficou então aberto para a corrida frenética dos promyshlenniki, o nome que chamavam aos comerciantes de peles. Alcançaram o rio Ienissei em 1609, o Lena em 1632, o Pacífico em 1639 e o rio Amur, nas fronteiras manchus da China, em 1643. Em 1645 existiam já cerca de 70.000 russos além dos Urais. É do legado da intervenção de Boris Godunov que se consolida decisivamente o controlo administrativo da Rússia a partir de Moscovo, de uma extensa colónia florestal.

A relativa facilidade com que a conquista russa do Norte da Ásia foi levada a cabo deveu-se em parte ao baixo nível de organização política e capacidade tecnológica dos povos das florestas que os russos encontraram na Sibéria. As armas de fogo dos russos conferiram-lhes uma importante vantagem tecnológica. No entanto, como descobriram os Stroganoves, só depois do derrube do poder do Canato de Sibir’  é que os russos ficariam livres para comerciar e conquistar. Essa era a ligação vital entre a floresta e a estepe. Na última década do século XVI, os russos tinham já consolidado o seu domínio sobre os canatos vizinhos de Kazan e Astracã, que anexados a Moscovo em 1552 e 1556, respetivamente. 

Uma explicação para o sucesso russo poderá encontrar-se na crise social e política das sociedades da estepe em redor do Volga no século XVI. Os canatos não eram monarquias dinásticas e nunca fizeram a transição para um Estado monárquico. Assemelhavam-se a confederações tribais pouco coesas em que os cãs dependiam do apoio dos chefes tribais. As suas economias dependiam do comércio (sobretudo com a Ásia Central), da tributação das suas populações sedentárias e das incursões dos elementos nómadas dominantes nos territórios russos povoados a norte e oeste. No século XVI, contudo, esta economia política já se encontrava em desordem. Tamerlão tinha destruído as grandes cidades comerciais de Azov, Astracã e Urgench, que sustentavam a estepe. O empobrecimento resultante pode ter acelerado o processo de sedentarização através do qual a velha ordem igualitária da tribo nómada tártara se transformou num mundo dividido de proprietários rurais e camponeses sem terra. Com reduzido poder militar (por causa dessa transformação) e menor solidariedade interna, os conflitos políticos nos canatos tornaram-se cada vez mais irresolúveis. Além disso, como estados sucessores da Horda de Ouro - Kazan, Astracã, Crimeia e Sibir’ - estavam também envolvidos numa competição recíproca pelo domínio da estepe. Moscovo, o 5º estado sucessor da Horda de Ouro, tirou partido disso para desempenhar um papel ativo na diplomacia da estepe.

No início do século XVI, consequentemente, Moscovo já se tornara bastante mais forte do que Kazan e Astracã. Com efeito, impôs uma forma de protetorado a Kazan em várias ocasiões antes de 1552, além de anexar aos poucos o seu território com novas colónias fortificadas. Em 1552, o cã de Kazan, Xá Ali, era já um fantoche russo. Muitos príncipes tártaros já se tinham passado para o lado dos russos (e alguns tinham-se convertido ao cristianismo). Importantes elementos tribais, como os Nogai, conspiravam para apoiar um novo . Não se sabe ao certo se Ivan II pretendia anexar Kazan em 1552. Mas a resistência da cidade e a sua violenta conquista garantiram esse resultado. Foi com a ajuda dos Nogai que o Canato de Astracã foi subjugado e anexado numa segunda campanha fulminante.

Apesar do assombro deste imperialismo das estepes, seria imprudente exagerar o seu alcance imediato. Não existia qualquer tesouro de minérios para financiar a construção de uma grande superestrutura imperial, se bem que Moscovo, e os seus comerciantes, pudessem ter beneficiado do acesso mais fácil ao comércio com o Irão e a Ásia Central. As terras do Volga foram abertas à colonização camponesa russa. Mas, para lá do corredor fluvial, o domínio russo era incerto e o Volga continuava a ser uma região de fronteira perigosa. As incursões tártaras a partir da Crimeia não tinham cessado. Em 1592 chegaram a Moscovo, e os seus subúrbios foram incendiados.

Era necessário um enorme esforço para construir as linhas fortificadas ou de defesa que deviam deter os invasores. Uma destas, a de Belgorod, estendia-se ao longo de mais de 800 Km. No início do século XVII os russos tiveram de enfrentar os calmucos, que chegaram em força à estepe a norte do mar Cáspio. Mais a sul, no Cáucaso, a influência russa era contida pelo novo estado safávida. A conquista do Canato da Crimeia e o fecho definitivo da fronteira da estepe do Volga - Portões dos Urais, entre os Urais e o mar Cáspio - teriam de esperar pelo final do século XVIII.

Esta foi uma etapa decisiva na afirmação da Rússia como um forte Estado. A Rússia 
como motor da expansão europeia para o Norte da Eurásia. As elites de Moscovo tiveram de dispender um grande esforço para transformarem o regime da Moscóvia num regime dinástico: capaz de absorver os Estados do Norte da Rússia; resistir à Polónia–Lituânia; intimidar os canatos do Volga. No entantoem 1600, ainda não se encontravam livres dos polacos-lituanos. Os ataques polacos no início do século XVII foram repelidos com a ajuda sueca. Só depois se dotaram das instituições necessárias para sustentar três séculos de expansão imperial. Baseando-se no legado de favores mongóis e no apoio da Igreja Ortodoxa, os governantes de Moscovo fizeram uma dupla revolução. Transformaram o antigo sistema militar de séquitos de boiardos num exército de pólvora com mosqueteiros e artilharia. Centralizaram o domínio sobre as terras através do sistema das pomestia, através do qual as herdades nobres eram detidas sob promessa de serviço militar ou administrativo. 

Os boiardos, que tinham a liberdade de oferecer a sua lealdade a quem quisessem, passaram a estar submetidos a uma estrutura rígida de fidelidade e obrigações, enquanto novos homens da servidão do Estado eram recompensados com terras conquistadas e confiscadas. A segunda revolução foi uma consequência da primeira. Numa economia agrícola pobre, o fardo da tributação e serviços para sustentar o esforço militar só podia ser suportado se a aristocracia rural gozasse de um controlo rigoroso sobre as comunidades camponesas até então móveis, livres e geralmente rebeldes. O equivalente à fixação da lealdade dos boiardos foi a sujeição do trabalho camponês à instituição da servidão, imposta por uma combinação impiedosa de autoridade estatal, domínio nobre e influência da Igreja. 

Como vanguarda leste da expansão europeia, e não como um Estado tampão fraco entre a Polónia e a estepe, a Rússia tornou-se uma Esparta eurasiática, dispondo de um exército de mais de 100 000 homens no final do século XVI. No entanto, continuava ameaçada a ocidente por Estados europeus mais ricos e atormentada a sul pela sua fronteira da estepe, ainda aberta. A trajetória da Rússia foi penosa e traumática. Passou pelo chamado Tempo de Dificuldades, a anarquia que antecedeu a ascensão da Dinastia Romanov ao poder em 1613. Moscovo foi invadida por exércitos polacos em 1605 e novamente em 1610. A expansão enfrentou maior resistência e um ambiente mais agreste, e aí o preço da eclosão ocidental foi um regime interno de crescente opressão social e política, cujos efeitos acabariam por se fazer sentir do mar Báltico ao Pacífico.

quarta-feira, 16 de agosto de 2023

De espião em Dresden a presidente em Moscovo



Por finais de 1999 a Rússia estava em estado de alerta devido a várias explosões em edifícios de diferentes cidades, que mataram mais de 300 pessoas. Vivia-se um clima de medo e desconfiança porque dizia-se à boca pequena que o FSB podia estar por trás dos vários atentados. A maior parte dos altos quadros do FSB tinham sido espiões do KGB, onde pontuava Vladimir Vladimirovitch Putin. Sim, aquele que havia montado uma teia de poder que começou no KGB há quase quatro décadas e que nos dias de hoje leva a cabo uma guerra na Ucrânia cujo desfecho ainda ninguém arrisca adivinhar.

O ano de 1999 começa com Boris Yeltsin ainda ao comando dos destinos da Rússia, um país onde ainda se ressentia o fim da União Soviética. Mas o Presidente já não tinha o vigor dos primeiros tempos. Vladimir Putin é o chefe do FSB. Durante a década de 1990, que estava a chegar ao fim, era Yury Ilyich Skuratov que ocupava o lugar de procurador-geral. Ele e a sua equipa andavam fortemente empenhados em investigações relacionadas com a forte corrupção que grassava na sociedade russa, onde se envolviam endemicamente altos funcionários do estado. 

Mas eis que em abril de 1999 rebenta um escândalo que deixa o procurador em muito maus lençóis. O ministro do interior, que então era Sergei Stepashin, concorda com Putin que seja divulgado na televisão o escândalo que comprometeria o procurador-geral: uma gravação filmada mostrando um homem nu, muito semelhante a Skuratov, na cama com duas mulheres num hotel da capital. Skuratov acaba por ser demitido do cargo apesar de ter começado de início por resistir à pressão.

O ano 2000 é ano de eleições para a presidência da Rússia, e Skuratov, já demitido do cargo de procurador-geral, concorre às eleições presidenciais russas. A campanha de Skuratov tinha como objetivo principal limpar o seu bom nome do escândalo, veiculando informação que tentava repor a sua boa reputação. A narrativa apresentava um homem de família decente e um marido fiel que havia sido vítima de "mentiras" e "invenções".

Grande parte das versões que se conhecem hoje acerca do caso, partem de declarações prestadas em entrevista de Vladimir Stanislavovich Milov, que havia sido vice-ministro da Energia da Federação Russa, e frequentava na altura os corredores do Kremlin. Depois passa para a oposição, tendo sido
 cofundador em 2008 do movimento de oposição Solidarnost. Em 2009 concorreu à Duma como candidato independente. A partir de 2016 passou a apoiar a candidatura presidencial de Alexei Navalny, sendo também coautor da plataforma de Navalny. Desde a invasão russa da Ucrânia em fevereiro de 2022 que se encontra exilado algures no Ocidente. Milov não tem dúvidas que foi em finais de 1999 que Yeltsin tomou a decisão de promover Putin. Ele seria o homem que o iria defender das acusações que inevitavelmente seria alvo quando deixasse o poder. Putin iria garantir que ele não iria ser acusado. E que a sua família não iria ser acusada. E foi assim que quando em Setembro de 1999 dois agentes do FSB tinham sido apanhados em flagrante numa tentativa de colocação de bomba num prédio, algures numa cidade da Rússia, o caso foi abafado. À medida que o tempo passa, a teoria da conspiração adensa-se, e o advogado que investiga a possível ligação do FSB aos atentados é preso. E alguns deputados que se debruçam sobre o tema morrem em circunstâncias estranhas.

Mas Putin já não era diretor do FSB, as secretas russas. Por essa altura Yeltsin já o tinha nomeado primeiro-ministro. E o primeiro-ministro Vladimir Putin ainda não tinha mais do que 24 horas no cargo, já aviões militares russos começavam a bombardear a cidade de Grozni. Os atentados eram a justificação que faltava para avançar para uma nova guerra na Tchetchénia depois da primeira derrota russa no início da década de 90. Os relatos que vão chegando são aterradores. A artilharia do exército russo arrasa todos os edifícios. Os civis vivem fechados nos abrigos. Dia e noite os hospitais são bombardeados como se fossem edifícios militares e quando os soldados russos ocupam aldeias, o rasto de morte que deixam pelo caminho é visível, violações, tortura, decapitações.

Em 1968, Putin, ainda um adolescente, entra pelo seu próprio pé na sede do KGB em são Petersburgo. Volodia, como lhe chamam os amigos, pergunta o que é preciso para se tornar um agente. Tem 16 anos e vira um filme de espiões (O Escudo e a Espada) uma data de vezes porque havia ficado fascinado. Dizem-lhe que ali não são aceites voluntários. É preciso ser escolhido e é preciso ter um curso superior. Qual? – pergunta. Sugerem-lhe que vá para direito. Nunca abandona o sonho de vir a trabalhar no KGB, mas o convite só surgirá no quarto ano da universidade. Putin leva muito a sério a formação inicial no KGB, tão a sério que um dos instrutores chega a fazer piadas com o facto de ele aparecer sempre nas aulas de fato completo com colete, mesmo em dias de verão. Mas Vladimir não deixa grande marca, apesar de ser um estudante disciplinado.

No verão de 1976, o jovem Volodia, começa a trabalhar como agente do KGB. É colocado no departamento de contraespionagem. E em 1985 vai para uma das cidades mais destruídas pelos bombardeamentos na Segunda Guerra Mundial, uma das poucas regiões da Alemanha onde não chegavam canais de televisão ocidentais – Dresden.

Em 1989, tinha o Muro de Berlim acabado de cair quando em Dresden Vladimir tem de enfrentar uma manifestação que ameaça invadir as instalações onde trabalha e chefia. Telefona então para a unidade mais próxima do exército vermelho para pedir reforços. Do outro lado da linha um soldado informa-o de que vai pedir instruções a Moscovo. Sem ter obtido resposta, Putin volta a ligar. A voz que lhe chega do outro lado é perentória: «Não podemos fazer nada sem ordens de Moscovo, e Moscovo está em silêncio.» Moscovo estava em silêncio, e Vladimir Putin pensa: «O país já não existe. Desapareceu!». A União estava moribunda, tinha uma doença terminal, sem cura, uma paralisia do poder. Apodera-se de Putin um medo pessoal muito forte. De que é que Putin tem medo? Pura e simplesmente do poder das multidões. 
O poder das multidões foi o que Vladimir Putin, Presidente da Federação Russa, viu em 2014 na praça Maidan, em Kiev. Aquilo que ele mais temia, no caso da Ucrânia, era o contágio.

sábado, 12 de agosto de 2023

Terceira Guerra Servil liderada por Espártaco - 73-71 a.C. - no tempo de Pompeu e Crasso



Embora livre de conflitos intestinos desde a derrota de Lépido, Roma não estava totalmente em paz. Em 73 a.C., um grupo de cerca de 80 gladiadores escapara de uma escola da profissão, em Cápua, e se refugiara nas encostas do monte Vesúvio. Atacando e saqueando a área vizinha, receberam reforços de muitos escravos fugitivos, até que o seu líder - Espártaco - viu-se no comando de um grande exército, sempre em crescimento. Pouco se sabe sobre esse homem, apenas se sabe que era da Trácia. Várias fontes afirmam que havia lutado contra os Romanos, fora capturado, acabando como auxiliar nas legiões romanas. Apesar de a segunda afirmação ser mais duvidosa, pois os Romanos orgulhavam-se de declarar que seus inimigos mais perigosos eram sempre aqueles que tinham treinado, exatamente como Jugurta, que aprendera a combater quando servira com Emiliano em Numância.

Seja qual for a verdade sobre as suas origens, ele demonstrou ser um génio de táticas, liderança e organização, transformando um bando - germânicos, trácios, gauleses e escravos de outras nacionalidades - num exército formidável. Os Romanos enviaram primeiro pequenas forças contra eles, mas foram derrotados. Então, reuniram exércitos completos sob comandantes consulares. Mas continuavam a ser vencidos por Espártaco. Em cada vitória capturava mais armas e armaduras para equipar os seus homens. Mas com o tempo, os escravos passaram a construir oficinas para fabricar equipamento militar.

Depois de tanta derrota o Senado passou o comando principal da luta a Marco Licínio Crasso, que fora pretor no ano anterior. Crasso era outro homem que apoiara Sula durante a guerra civil – seu pai e seu irmão mais velho tinham sido mortos no expurgo de Mário. Ele serviu Sula com distinção, embora não de forma espetacular como Pompeu. Comandara uma das alas do exército na Batalha de Porta Colina. Crasso recebeu muitas propriedades confiscadas das vítimas das proscrições. Converteu tais ganhos numa enorme fortuna por meio de investimentos audaciosos e atividades mercantis.

Crasso iniciou o seu comando na Terceira Guerra Servil ordenando que as legiões derrotadas pelos seus predecessores sofressem a arcaica punição da dizimação, em que era sorteado um soldado por cada dez a fim de ser espancado pelos colegas até à morte. A maioria dos legionários sofria apenas um castigo simbólico, recebendo uma ração de cevada em vez de trigo, e em alguns casos eram forçados a armar as tendas fora das paliçadas do acampamento do exército. Tal medida brutal era uma indicação do que representavam os escravos, em que Crasso era implacável. A essas duas legiões, ele acrescentou outras seis recém arregimentadas. 

Um grupo do exército principal de Espártaco afastara-se, acabando por ser derrotado. Crasso construiu uma imensa linha de fortificações, isolando o  exército principal de Espártaco no extremo sudoeste da Itália. Mas Espártaco conseguiu romper a linha de defesa. Finalmente, em 71 a.C., acabou por ser derrotado após um combate muito encarniçado. No início da ação, o antigo gladiador cortara a garganta do seu próprio cavalo. O animal, que havia sido capturado de um comandante romano derrotado, era naturalmente um cavalo de grande valor. Pois bem, isso foi para demonstrar a seus homens que não iria fugir, mas lutar e morrer com eles. O gesto foi semelhante à decisão de Mário de colocar-se à frente do pelotão em Águas Sêxtias.

Plutarco afirma que Espártaco foi morto quando tentava alcançar Crasso, tendo já matado dois centuriões que o enfrentaram juntos. Seis mil guerrilheiros de Espártaco foram feitos prisioneiros. Crasso mandou que todos fossem crucificados a intervalos regulares ao longo da Via Ápia (de Roma a Cápua), como uma tétrica demonstração do destino que aguardava os escravos rebeldes. Os Romanos, como sociedade, dependiam tanto da escravatura que a ideia de os escravos se rebelarem contra si aterrorizava-os. Assim, só ficaram mais descansados depois da morte de Espártaco, que se tinha mostrado ser um oponente de grande gabarito. 

Ora, quando o exército de Pompeu regressou à Itália, ainda veio a tempo de aniquilar vários milhares de escravos que tinham pertencido às fileiras de Espártaco. Isto foi o pretexto de Pompeu se vangloriar e celebrar. Pompeu afirmou ter sido o homem que pôs fim à 
Terceira Guerra Servil. Isso apenas aumentou a animosidade que já existia entre ele e Crasso, a qual datava da época em que Pompeu recebera uma posição mais proeminente de Sula, e despertara a inveja de Crasso. Pompeu estava agora com 35 anos e havia decidido, depois de muito tempo, participar formalmente na política ativa, tratando de se eleger como cônsul. 

Crasso, que era oito ou nove anos mais velho que Pompeu, e cuja carreira desde a guerra civil tinha sido deveras convencional, também estava ansioso por obter o posto mais alto da magistratura. E deu-se o caso de os dois homens estacionarem os seus exércitos perto de Roma. Estava-se mesmo a ver que os dois ensaiavam o propósito de entrar triunfalmente em Roma. Em algum momento dos últimos meses de 71 a.C. os dois comandantes vitoriosos terão enterrado a sua animosidade para anunciarem que se haviam unido para uma campanha eleitoral conjunta. 

O Senado rapidamente percebeu que tal combinação não poderia ser enfrentada. Assim, permitiu que Pompeu concorresse apesar de ainda não ter a idade mínima estabelecida pela lei de Sula. Os dois homens concorreram in absentia, uma vez que nenhum deles recebeu permissão para entrar na cidade até ao dia em que seriam ovacionados pelo seu triunfo. A popularidade de Pompeu e o dinheiro de Crasso, faziam muita coisa. É claro, combinado com as suas realizações genuínas e, possivelmente, com o medo dos seus exércitos. Seja como for, a entrada de Pompeu pela Via Sacra foi estrondosa em 29 de dezembro de 71 a.C., iniciando o seu consulado, e tornando-se senador, tudo no mesmo dia.

Havia um último ato de Pompeu para que a sua posição fosse legitimada na vida pública romana. Era uma cerimónia já ultrapassada, mas que o povo romano adorava. Era tradição que os censores eleitos a cada cinco anos fizessem um ato formal a qualquer membro da classe equestre que tivesse chegado ao fim do seu serviço militar, detalhando as suas ações com louvor e circunstância. Por esta altura essa prática era considerada arcaica, uma vez que os membros da classe equestre não mais forneciam a cavalaria para as legiões. E apenas uma parte dessa classe escolhia servir como tribuno ou outro cargo. Mas não era a diminuição da sua relevância que levava os romanos a abandonarem as cerimónias tradicionais.

Chegou então o dia de os censores iniciarem a tarefa quando Pompeu chegou montado num cavalo que simbolizava o antigo papel militar, acompanhado de doze lictores que seguiam o cônsul. Este ordenou que seus lictores abrissem caminho para ele chegar até aos censores. Estes ficaram tão atrapalhados que ainda demoraram algum tempo para articularem as palavras tradicionais, inquirindo o cavaleiro se tinha cumprido as suas obrigações para com a República. Pompeu respondeu, com uma voz que alcançou a multidão, que servira sempre que o Estado lhe pedira, e sempre obedecera ao seu comando. Entre hurras e aplausos, os censores acabaram por cumprir as formalidades, acompanhando o cônsul até à sua casa, como prova de respeito.