quinta-feira, 31 de março de 2022

Uma tarde em Sebastopol





O tempo estava mais ameno; em breve poderíamos tomar banho no mar, mas a água continuava fria. Adivinhava-se a primavera no ar e todos aguardavam impacientes pela sua chegada. Tínhamos ido visitar o palácio de verão de Nicolau II em Livadia, que no tempo da Segunda Guerra Mundial havia sido incendiado. Imponente com as suas fachadas regulares e assimétricas e os seus belos pátios em estilo florentino e árabe. 




Subimos então o Caminho Ensolarado, que conduz, por entre as árvores, a um promontório de onde se descortina uma magnífica vista do litoral, as altas montanhas ainda nevadas pairando sobre a estrada de Sebastopol, e, atrás, lá em baixo, o elegante edifício em granito branco da Crimeia de onde partíramos, ainda encardido de fumaça mas reluzente ao sol. O dia anunciava-se magnífico, a caminhada até o promontório nos deixou molhados de suor.




O Palácio de Livadia foi um retiro de verão do último czar russo, Nicolau II, na Crimeia. A Conferência de Yalta foi realizada lá em 1945, quando o palácio abrigou os apartamentos de Roosevelt e outros membros da delegação americana - a delegação russa estava hospedada no Palácio Yusupov, e os britânicos no Palácio Vorontsovcerca. Hoje, o palácio abriga um museu, mas às vezes é usado para cimeiras internacionais.

Outrora concedida a Lambros Katsonis, e posteriormente propriedade da família Potocki, a propriedade Livadia tornou-se uma residência de verão da família imperial russa na década de 1860, quando o arquiteto Ippolito Monighetti construiu um grande palácio, um pequeno palácio e uma igreja. A residência era frequentada por Alexandre II, enquanto o seu sucessor Alexandre III morava (e morreu) no palácio menor. Seu filho, Nicolau II, decidiu demolir o palácio maior e substituí-lo por uma estrutura maior. (O palácio menor foi preservado, como o local da morte de seu pai, mas foi posteriormente destruído durante a Segunda Guerra Mundial.

Por volta de 1909, Nikolay Krasnov, o arquiteto mais elegante de Yalta, responsável pelas grandes residências ducais em Koreiz, foi contratado para preparar os planos de um novo palácio imperial. O diário do czar indica que o projeto foi muito discutido na família imperial; foi decidido que todas as quatro fachadas do palácio deveriam ser diferentes. Após 17 meses de construção, o novo palácio foi inaugurado a 11 de setembro de 1911. Em novembro, a grã-duquesa Olga Nikolaevna celebrou seu 16º aniversário em Livadia. Após a Revolução de fevereiro de 1917, a mãe de Nicolau, a imperatriz viúva Maria Feodorovna, fugiu para Livadia com alguns outros membros da família imperial. Eles foram finalmente resgatados pelo navio britânico HMS Marlborough, enviado pelo sobrinho de Maria Feodorovna, o rei George V. 

O palácio já foi usado como uma instituição mental e agora é um museu histórico. A maioria dos móveis históricos foi perdida, mas qualquer coisa que foi recuperada e pode ser vista. Em agosto de 2007, o palácio foi reconhecido como um marco da história moderna pelo projeto Sete Maravilhas da Ucrânia.

Em 18 de novembro de 2017, no 123º aniversário do enterro do czar Alexandre III, o presidente russo Vladimir Putin dedicou um monumento a Alexandre III no palácio Levadia. Putin disse em parte: "Alexandre III amava a Rússia e acreditava nela e, abrindo este monumento hoje, prestamos homenagem a seus feitos, realizações e méritos, expressamos nosso respeito pela história indissolúvel de nosso país, por pessoas de todas as classes e classes que honestamente serviram à pátria".

Foi neste palácio que a primeira longa-metragem russa, A Defesa de Sebastopol, fez a sua estreia em 1911.




Sebastopol abriga uma grande base naval russa, construída para abrigar a Frota do Mar Negro da marinha da então União Soviética. Em Maio de 2014, por meio de um referendo realizado na região da Crimeia, a região foi anexada pela Federação Russa, contrariando as determinações da ONU, NATO e do governo ucraniano, que não deram legitimidade ao referendo e invalidaram seu resultado.

Sebastopol foi fundada pelos russos em 1783 no lugar onde no século V a.C. existia uma colónia grega chamada Quersoneso e que, no ano 114 d.C., foi conquistada pelos romanos e pertenceu ao Império Otomano, até ter sido tomada pelos russos durante o reinado de Catarina II. Ficou célebre na Guerra da Crimeia o Cerco de Sebastopol (1854-1855) em que o Império Russo foi derrotado, tendo sido a cidade ocupada pela França e pela Grã Bretanha. A cidade também esteve ocupada pelo exército alemão entre 3 de julho de 1942 e 9 de maio de 1944.





quarta-feira, 30 de março de 2022

Cultura russa




Os russos e a sua cultura, que, a bem da verdade, é o resultado de uma série de combinações e sínteses da cultura de diversos povos. Originalmente, surgiu de uma interação dos nativos eslavos com a elite cultural da nobreza varega (viking) que ficou conhecido por Rus’ de Kiev. O elemento oriental já estava presente, pois aquele terreno originalmente tinha sido ocupado por ondas de povos das estepes como citas, hunos, avares e cazares. E quando os russos adotaram o cristianismo no século X, houve uma grande síntese com a cultura bizantina. Nos séculos seguintes, a religião ortodoxa seria considerada um dos grandes esteios definidores da cultura russa. O lado oriental sofreu um processo de unificação de identidade aquando da conquista dos mongóis, que se manteve sob o seu domínio entre os séculos XIII e XV.

O lado ocidental da Rússia teve depois na passagem do século XVII para o século XVIII um grande momento quando Pedro o Grande, fascinado com a civilização ocidental de cariz francês, tratou de o imitar levando para uma cidade que ergueu de raiz, Petersburgo, o que de mais esplendoroso havia no mundo. Mas a idealização da Europa pela Rússia foi profundamente abalada pela Revolução Francesa de 1789. O reinado jacobino do terror deitou por terra a crença da Rússia na Europa como força de progresso e esclarecimento. Parecia que uma onda de crimes e destruição devastaria a Europa, destruindo o centro de toda a arte e ciência e os preciosos tesouros da mente humana. Afinal de contas, a história era um ciclo inútil e não um caminho de progresso, no qual “verdade e erro, virtude e vício, se repetem constantemente”. Seria possível que “a espécie humana tivesse avançado tanto só para ser obrigada a cair de novo nas profundezas do barbarismo?

Criados para acreditar que da França só viriam coisas boas, os russos agora só viam o mal. Os seus piores temores pareciam confirmados pelas histórias de horror que escutaram dos "émigrés" que fugiram de Paris para São Petersburgo. O governo russo rompeu relações com a França revolucionária. Em termos políticos, a nobreza, antes francófila, virou francófoba, enquanto “os franceses” se tornavam sinónimo de inconstância e ateísmo, principalmente em Moscovo e nas províncias, onde as atitudes e os costumes políticos russos tinham sempre se misturado à convenção estrangeira. Em Petersburgo, onde a aristocracia estava totalmente mergulhada na cultura francesa, a reação contra a França foi mais gradual e complicada; houve muitos nobres e patriotas liberais que mantiveram as opiniões a favor dos franceses. As coisas só se complicaram a sério depois de 1812, das invasões napoleónicas. A Rússia entrou em guerra com a França em 1805. Mas até na capital houve um esforço consciente da aristocracia de se libertar do império intelectual dos franceses. O uso de galicismos passou a ser desdenhado nos salões de São Petersburgo. Os nobres russos trocaram Clicquot e Lafite por kvas e vodca, haute cuisine por sopa de repolho.

Nessa busca de uma nova vida baseada em “princípios russos”, o ideal do Iluminismo de uma cultura universal foi finalmente abandonado em troca do caminho nacional. “Que nós, russos, sejamos russos e não cópias dos franceses”, escreveu a princesa Dashkova: “que continuemos patriotas e mantenhamos o caráter dos nossos ancestrais.” Karamzin também renunciou à “humanidade” em nome da “nacionalidade”. Antes da Revolução Francesa, ele defendera a opinião de que “a principal coisa é sermos não eslavos, mas homens. O que é bom para o Homem não pode ser mau para os russos; tudo o que ingleses ou alemães inventaram para o bem da humanidade também me pertence, porque sou um homem.” Karamzin conclamava os colegas escritores a abraçar a língua russa e a tornarem-se quem são: "A nossa língua é capaz não só de elevada eloquência, de sonora poesia descritiva, como também de terna simplicidade, de sons de sentimento e sensibilidade. É mais rica em harmonias do que o francês; presta-se melhor às efusões da alma [...] Homem e nação podem começar com a imitação, mas com o tempo precisam tornar-se quem são para ter o direito de dizer: Existo moralmente!” 

Ali estava o brado de convocação de um novo nacionalismo que floresceu na época de 1812. No século XX a Revolução Russa de 1917 buscaria colocar o comunismo marxista como o verdadeiro ponto definidor ideológico da União Soviética. Fora as grandes transformações económicas e sociais, houve um forte experimentalismo na URSS na década de 1920. Mesmo depois da avalanche repressora do stalinismo na década de 1930, pequenos grupos de indivíduos realizaram trabalhos não ortodoxos na URSS nas décadas subsequentes, como as poetas Anna Akhmatova (1889-1966) e Marina Tsvetaeva (1892-1941), o escritor Pasternak (1890-1960), o cineasta Tarkovski (1932-1986), só para dar alguns exemplos. Basta relembrar dois factos conhecidos que denotam a existência de uma vanguarda artística não conformista na URSS ao longo de sua trajetória: a famosa ocasião em 1962, em que Khrushchev visitou uma exposição com artistas de vanguarda na galeria Manezh e, furioso, disse que aquilo era “uma merda”, e a própria existência da literatura dissidente samizdat nas décadas seguintes. Eram sinais de que a vanguarda existia e incomodava.

O movimento atraiu autores de outros países, como o brasileiro Jorge Amado e o chileno Pablo Neruda. Por outro lado, alguns autores russos produziram obras que não pertenciam ao realismo socialista. Mikhail Bulgakov (1891-1940) criaria a obra-prima 'O Mestre e Margarita'; Boris Pasternak (1890-1960) seria indicado para o prémio Nobel por 'Doutor Jivago'; Alexander Solzhenitsyn (1918-2008) – 'Um dia na vida de Ivan Denisovitch'; os poetas Yevgeny Yevtushenko, e especialmente Anna Akhmatova fariam poesia de alta qualidade que não se enquadrava no cânone estalinista. Isso para não falar dos autores emigrados, como Ivan Bunin (1870-1953), primeiro russo ganhador do Nobel de literatura. Inimigo das vanguardas, era considerado um escritor bastante tradicional e imigrou para o Ocidente na revolução.

Em grande medida, a imposição do novo paradigma empobreceu a variedade de estilos até então existente e gerou uma série de obras estereotipadas e laudatórias. Mas, mesmo após os anos 1930, literatura de boa qualidade podia ser encontrada na URSS. A mudança é formalizada em abril de 1934 no Congresso de Escritores Soviéticos, presidido por Máximo Gorki (1868-1936). Mesmo dentro do realismo socialista algumas obras muito interessantes foram geradas, como os romances Mãe, do próprio Gorki (considerada a primeira obra do realismo socialista), O Don Silencioso, de Mikhail Sholokhov (1905-1984), e Cimento, de Fyodor Gladkov (1883-1958). Isaac Babel (1894-1940) é considerado o primeiro grande escritor da revolução: O Exército de Cavalaria ou Cavalaria Vermelha (a depender da tradução), um livro de contos baseados nos acontecimentos pós-revolução, usou de imagens marcantes e formou mais de uma geração. Babel morreu fuzilado.

A Rússia da última década do século XX e início do século XXI é um somatório de todos esses vetores, amálgamas, sínteses e transformações. E um somatório internamente contraditório. Nela coexistem saudosistas da União Soviética, monarquistas, liberais ocidentalizados, eurasiáticos, nacionalistas dos eslavos ou nacionalistas pragmáticos, muitas vezes com conflitos entre si. 


terça-feira, 29 de março de 2022

Lisboa e os refugiados no tempo da Segunda Guerra Mundial



Durante os anos em que durou a Segunda Guerra Mundial, Lisboa esteve no centro das atenções mundiais. Era a única cidade europeia onde tanto aliados como as potências do Eixo operavam abertamente. A história de Lisboa situava-se no contexto de um país tentando a todo o custo manter a sua autoproclamada neutralidade, mas que, na verdade, estava cada vez mais preso no meio de guerras económicas e navais, entre aliados e alemães. Não foi, entretanto, uma história convencional da Segunda Guerra Mundial. Em vez disso, houve intrigas, traições, oportunismo e jogo duplo, tudo acontecendo na Cidade da Luz e ao longo da sua idílica costa atlântica, do Estoril até Cascais.

No final, um país europeu relativamente pobre não apenas sobreviveu à guerra fisicamente intacto, como emergiu nos finais de 1945 muito mais rico do que era quando o conflito teve início, em 1939. Embora boa parte dessa riqueza fosse considerada pelos Aliados como “ganhos mal obtidos”, os portugueses tiveram permissão para conservar quase tudo. As realidades políticas da Guerra Fria, pós-1945, reafirmaram a importância do país e das suas ilhas atlânticas para a causa das potências ocidentais com a cedência da base das Lages nos Açores aos Americanos.

Lisboa foi a cidade onde um aparente complô alemão para raptar o duque e a duquesa de Windsor se viu frustrado. Eles estavam entre os refugiados mais exóticos, muitos deles judeus, que afluíam para lá em busca de passagem para os Estados Unidos ou a Palestina em um dos navios que zarpavam do porto neutro, ou, para os muito ricos, no serviço do “barco voador” da Pan-American Boeing Clipper, rumo a Nova York, via Açores. A maioria dos refugiados, entretanto, teve que esperar meses, ou até anos, na cidade antes de conseguir passagem. Fugindo dos alemães depois da queda da França, no verão de 1940, muitos refugiados sobreviveram graças a uma rede clandestina de apoio financeiro e organizacional, que se originava dos escritórios de judeus americanos ricos na cidade de Nova York. Os não tão afortunados tiveram que contar com a limitada ajuda dos britânicos, das autoridades portuguesas e das organizações de resgate dirigidas localmente.


Agentes aliados e alemães operavam abertamente na cidade, monitorando cada movimento do “inimigo”. Seu papel era registrar movimentos de embarque no agitado porto de águas profundas de Lisboa, espalhar propaganda e interromper o fornecimento de mercadorias vitais ao inimigo. Entre os agentes em Lisboa, estava um jovem, Ian Fleming, ocupado em arquitetar a Operação Golden Eye e jogar o vinte e um no cassino do Estoril – cenário que mais tarde serviria de inspiração para um filme de James Bond. O Iberian Desk, da Special Operations Executive (SOE), a comissão executiva de operações britânica, era dirigida pelo brilhante espião chefe, e traidor, Kim Philby, que, de Londres, controlava os agentes britânicos que operavam na cidade. Os escritores Graham Greene e Malcolm Muggeridge trabalhavam na mesma secretaria de Philby, antes de Muggeridge ser sucintamente transferido de posto para Lisboa e, no final, para as colónias portuguesas.

Enquanto os agentes britânicos e alemães se vigiavam uns aos outros, seus movimentos eram, por sua vez, seguidos de perto e registados pela polícia secreta portuguesa do capitão Agostinho Lourenço, a Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE). Os relatórios e decisões de Lourenço determinavam que atividades de espionagem na cidade eram, ou não, toleradas pelas autoridades. Como muitos agentes secretos britânicos, alemães e italianos, e jornalistas (entre eles o correspondente local do Times, de Londres) descobriram à própria custa, que tentar contrariar o capitão Lourenço era abreviar severamente a sua estadia em Portugal.

Lisboa era também o fim da linha para prisioneiros de guerra aliados (os POWs) que conseguiam escapar e chegavam à cidade para ser embarcados de volta para a Inglaterra nos voos operados pela BOAC, três vezes por semana, de Lisboa para Whitchurch, perto de Bristol. As listas de passageiros desses voos eram um 'Quem É Quem' da rede de espiões mais importantes na cidade, assim como industriais aliados de caráter duvidoso, envolvidos na guerra do comércio com os alemães. A competição por lugares nos aviões era intensa, com várias agências britânicas lutando pelo limitado número de assentos. Houve casos também em que ricos membros da grande comunidade inglesa de Lisboa foram flagrados tentando usar o serviço para transportar suas criadas. O tão amado ator britânico de Hollywood, e astro de 'E o vento levou', Leslie Howard, embarcaria fatalmente em um desses voos. 

Agentes aliados e do Eixo operavam no aeroporto 24 horas por dia, subornando funcionários da Alfândega para obter acesso às cargas e às listas de passageiros do inimigo. Tanto a BOAC como a Lufthansa operavam voos de saída do aeroporto, com suas aeronaves estacionadas quase lado a lado na pista. Escrevendo em 1944, o oficial chefe de operações da BOAC na cidade descreveu o cenário de todos os dias no aeroporto de Lisboa como igual ao do filme Casablanca, porém 20 vezes pior. Na escuridão da noite, o aeroporto de Lisboa era altamente suscetível à névoa que vinha do rio, o que contribuía para a sua atmosfera de mistério.

Figura central na história de Lisboa é António de Oliveira Salazar, o célebre ditador do Estado Novo. Para Salazar, a Segunda Guerra Mundial era um desafio potencialmente letal ao regime, e para Portugal como um todo. Tamanha foi a sua concentração em conduzir Portugal durante a guerra que, além de ser o primeiro-ministro, presidente do Conselho como ele preferia chamar, enquanto durou o conflito também foi ministro dos Negócios Estrangeiros, ministro da Guerra, ministro do Interior e, durante a primeira parte da guerra, ministro das Finanças. Salazar considerava como missão pessoal, e desafio, impedir que Portugal fosse arrastado para a guerra e repetisse os erros da Primeira Guerra Mundial.

Salazar acreditava que a Segunda Guerra Mundial representava duas grandes ameaças ao país: uma potencial invasão alemã, ou espanhola, e a possibilidade de perder o Império. Portugal havia apoiado Franco na Guerra Civil Espanhola. Lisboa fora usada como um porto de abastecimento para as forças de Franco, e Salazar enviara brigadas portuguesas para lutar a seu lado. Apesar disso, ainda havia em Lisboa um sentimento de que Franco e alguns de seus principais defensores alimentavam ambições territoriais em relação a Portugal. 

A mudança na ordem de prioridades de Salazar durante a Segunda Guerra Mundial encaixou-se em dois períodos bem distintos. A primeira parte da guerra, 1939-1942, foi dedicada a impedir a ameaça de invasão pelo Eixo. A segunda, 1943-1945, a lidar com as crescentes exigências dos aliados em relação a Portugal, em particular às ilhas portuguesas no Atlântico (os Açores) – onde tanto britânicos como americanos planeavam invasões secretas, caso Portugal não cedesse às suas exigências. Embora, no início, Salazar temesse uma vitória dos alemães, com o desenvolvimento da guerra ele foi ficando cada vez mais apreensivo com as perspectivas de uma vitória total dos Aliados. Duas questões o preocupavam: o que esse resultado significaria para Portugal em relação às colónias; e, igualmente preocupante, o que significaria em termos do poder da União Soviética.

Para Salazar o maior inimigo e ameaça à Europa como um todo, não era o nazismo, mas o comunismo e especificamente a União Soviética. Salazar demonstrou mentalidade de Guerra Fria bem antes de a Cortina de Ferro cair sobre a Europa oriental. Ele acreditava que a oposição comunista portuguesa interna usaria a guerra (como realmente fez em 1944/1945 com greves e protestos de massa) como um meio para desafiá-lo. Em diferentes momentos durante a guerra, Salazar também suspeitou que o mais antigo aliado de Portugal, a Grã-Bretanha, preferiria ver seu regime autoritário pelas costas e substituí-lo por um governo mais democrático, associado à volta da monarquia portuguesa.

Um elemento crucial, no papel de Lisboa durante a Segunda Guerra Mundial, e que dominou o pensamento de Salazar durante o conflito, foi o económico. Em Portugal, extraía-se tungsténio, o famoso volfrâmio, um ingrediente vital à máquina de guerra alemã. Em 1943, ambos os lados dependiam quase totalmente do tungsténio português e espanhol para manter a indústria de armamento. Salazar levava a sério a ameaça alemã. A exportação de tungsténio estava condicionada a pagamentos em ouro, e, assim, outra camada de intrigas introduziu-se em Lisboa. Durante a guerra, o ouro era uma forma de pagamento bem mais segura do que o papel-moeda. Mas os Aliados contestavam a origem de boa parte do ouro. Argumentavam que o metal havia sido saqueado pelos alemães dos países que haviam ocupado, e mais tarde subtraído às vítimas do Holocausto. No final da guerra os nazis contrabandearam ouro para Lisboa que depois era encaminhado para o Brasil, e daqui disperso pela América do Sul para ajudar a financiar comunidades nazis pós-guerra na região. Numa constrangedora revelação, a Igreja Católica em Portugal foi forçada a admitir que as obras de reconstrução do santuário de Fátima foram pagas com barras de ouro dos nazis que a igreja havia misteriosamente adquirido do Banco de Portugal.

Depois da guerra, os Aliados, embora insistindo que os atos do governo português, ao vender tungsténio tinham, com efeito, prolongado a guerra, não fizeram Portugal devolver o ouro que o país recebera em pagamento. Pelo contrário, chegou-se a um acordo tácito segundo o qual Portugal podia ficar com quase todo o ouro em troca de permitir aos Estados Unidos o acesso contínuo a uma base aérea nos Açores. A decisão dos Aliados estava em nítido contraste com a política de linha dura adotada em relação a outros países neutros, que haviam recebido ouro da Alemanha e foram obrigados e devolver praticamente tudo.

Para Portugal, e para o regime, a guerra representou um desafio existencial tão grande quanto seria uma batalha literal por sua vida, mesmo que na prática não tenha havido nenhum campo de batalha no país. O drama era manobrar Portugal para longe das atenções das potências em guerra. Foi uma política de neutralidade no fio da navalha, um jogo de póquer para o futuro. E, em Salazar, Portugal tinha um jogador tão astuto quanto qualquer uma das nações beligerantes. Em 1945, Lisboa, e o país em geral, não apenas emergiu fisicamente incólume, mas também muito mais rica. Salazar pôde continuar no poder em Portugal, até que um acidente vascular cerebral o incapacitou em 1968, levando-o finalmente à morte em 1970. O ouro permaneceu em grande parte intocado em contas bancárias portuguesas espalhadas pelo mundo. A Lisboa de Salazar safou-se através dos estrangeiros que deambularam pelas vielas sombrias, refúgios de guerra, ao ponto de ter escapado ao horror que outras cidades maiores da Europa não conseguiram.

segunda-feira, 28 de março de 2022

Petersburgo – a cidade de Piter




Pedro, o Grande, construiu São Petersburgo para ser uma “janela para o Ocidente”, já que queria modernizar a Rússia em sentido ocidentalizado. Piter (como os russos coloquialmente chamam São Petersburgo) possui um estilo e um modo de vida que refletem essas influências. A cidade fica no entroncamento do rio Neva com o golfo da Finlândia no mar Báltico e, como é cortada por inúmeros canais, recebeu também o epíteto de Veneza do Norte. A proximidade da água por toda a parte torna o seu clima tremendamente húmido.

Com o início da Primeira Guerra Mundial, os russos mudaram o excessivamente germânico nome da cidade para o mais russo Petrogrado (ficou assim de 1914 a 1924). Em 1924, três dias após a morte de Lenin, a cidade tornou-se Leningrado. Em 1991, último ano da existência da URSS, a cidade voltou a ter o nome original. O jogo de nomes com a cidade tem dessa forma uma longa história desde que Pedro, o Grande, a batizou assim como homenagem a São Pedro, mas discretamente introduzindo uma homenagem a si mesmo.

De todas as grandes cidades, São Petersburgo é a que está localizada mais a Norte. Isso conduz ao famoso fenómeno das Noites Brancas. Por vezes é confundido com o fenómeno do Sol da Meia-Noite que em algumas regiões ainda mais perto do círculo polar, o sol pode ser visto à meia-noite em dias de verão. Em alguns dias no verão a noite fica relativamente clara (mas sem sol, que se põe por volta das 22 horas). Uma das grandes atrações da cidade de Petersburgo é o festival das Noites Brancas. Por toda a noite, as pessoas se congregam ao som da música, poesia, dança, teatro e fogo de artifício. 

Uma ótima maneira de conhecer Petersburgo é começar por ir às margens do rio Neva. Dali se pode desfrutar uma panorâmica das áreas circundantes da ilha Vassilevski, fortaleza de Pedro e Paulo, Ponte da Trindade e Palácio de Inverno. Em seguida, vale a pena passear de barco pelo rio Neva para conhecer alguns dos principais pontos de Piter. Em primeiro lugar, a fortaleza de Pedro e Paulo, localizada na ilha dos Coelhos, o primeiro edifício da cidade em sua fundação. Serviu como uma proteção militar da cidade no meio do rio e também foi uma famosa prisão. Depois segue-se o ponto focal que dominava o Neva e a capital russa: o Almirantado. Pedro, o Grande, dava tal importância à sua recém-criada marinha, a dar saída para o mar Báltico nas margens do Neva. Daqui irradiariam posteriormente as principais avenidas da cidade: Nevski, Gorokhovaya e Voznesenski. 

O gigantesco Palácio de Inverno, era de onde os czares russos governavam e onde tantos episódios históricos aconteceram: o massacre dos que protestavam na passeata do “Domingo Negro” durante a Revolução de 1905 (mostrado no filme Doutor Jivago) e a famosa “tomada do Palácio de Inverno” pelos bolcheviques que assumiram o poder contra o governo provisório de Kerenski em outubro de 1917. Atualmente, o palácio faz parte do grupo de palácios e edifícios ao longo do Neva que compõe o famoso museu Hermitage, depositário da maior coleção de quadros do mundo. E ainda teríamos para ver dezenas de outros prédios históricos. Além disso, como os parisienses fazem no Sena, a população gosta de sentar em esplanadas e conversar em grupos nas margens do rio.

Diz a propaganda: "Ir a São Petersburgo e não passear pela avenida Nevski é como ir a Roma e não ver o Papa, ou ir a Moscovo e não ver a Praça Vermelha e o Kremlin". A avenida é o coração da cidade, consagrada em obras de grandes escritores russos, como o conto “Avenida Nevski”, de Gogol. Além de destacar-se como centro comercial e da vida noturna da cidade, é coalhada de prédios históricos que mostram os diferentes estilos que imperaram na então capital russa ao longo dos séculos. O equivalente da cerimónia da troca da guarda no palácio de Buckingham, em Londres, é o ritual da elevação de todas as pontes levadiças do rio Neva à noite em horas determinadas para permitir a passagem de navios rumo ao mar Báltico.

O palácio Tauride, o complexo de palácios de Peterhof nas cercanias de São Petersburgo, foi construído por Pedro para ser a “Versalhes” russa. O teatro Marinski, ex-Kirov, rivaliza com o Bolshoi de Moscovo. A calma Tsarskoe Selo (a “Vila do Czar”) é onde fica o Palácio de Catarina. A a catedral de São Isaac é a maior da cidade. O palácio de Smolny e a belíssima Igreja do Salvador, moldam o lírico canal Griboyedov.


terça-feira, 22 de março de 2022

Guerra & guerra


Os cossacos que Clausewitz conheceu estavam muito mais próximos dos piratas saqueadores originais que os próprios andarilhos arrojados que Tolstói romantizaria em seus primeiros romances. O fogo na periferia de Moscovo em 1812, o que levou à conflagração da capital, estava bem dentro do espírito deles. Os cossacos continuavam a ser um povo cruel, e incendiar não estava entre os seus atos mais cruéis, embora fosse suficientemente cruel. Milhares de moscovitas ficaram sem teto em pleno inverno subártico. Na grande retirada que se seguiu, os cossacos demonstraram uma crueldade que fazia lembrar a razia que os nómadas das estepes deixavam na sua passagem no tempo das invasões mongóis.
Cavaleiros nómadas impiedosos cujos estandartes lançavam a sombra da morte por onde quer que suas hordas passassem.
 
Na retirada, as longas colunas do Grande Exército arrastaram-se enterradas até ao joelho na neve eram esperadas por esquadrões de cossacos que caíam rapidamente sobre os que se deixavam abater pela fraqueza; quando um grupo sucumbia, era dominado e aniquilado; e quando os cossacos alcançaram os remanescentes do exército francês que não conseguiram cruzar o rio Berezina antes que Napoleão mandasse queimar as pontes, o massacre foi em massa. O rio Berezina é um rio da Bielorrússia e afluente do Dniepre. Nas suas margens travou-se em novembro de 1812 a Batalha de Berezina na qual o exército de Napoleão sofreu pesadas perdas (cerca de 36 000 homens) na sua retirada da Rússia. "Berezina" tornou-se uma palavra usada na língua francesa como sinónimo de catástrofe. Mais de cem anos antes, 25 de junho de 1708, o exército do rei Carlos XII da Suécia havia já passado o rio Berezina durante a campanha contra Pedro o Grande da Rússia, na Grande Guerra do Norte.



Batalha de Berezina - Peter von Hess

Os limites da guerra civilizada são definidos por dois tipos humanos antitéticos, o pacifista e o “portador legal de armas”. Este último sempre foi respeitado, quando mais não seja por possuir os meios para fazer-se respeitar; o pacifista passou a ser valorizado nos 2 mil anos da era cristã. A reciprocidade deles aparece no diálogo entre o fundador do cristianismo e o soldado profissional romano que pedira que curasse um criado com a sua palavra milagrosa. Podemos supor que Cristo estava reconhecendo a posição moral do portador legal de armas, que deve entregar a sua vida por exigência da autoridade, e que, portanto, pode ser comparado ao pacifista disposto a entregar a sua vida em vez de violar a autoridade de seu próprio credo.

Com efeito, a cultura ocidental não seria o que é se não respeitasse ao mesmo tempo o portador legal de armas e a pessoa que considera o porte de armas intrinsecamente ilegal. A nossa cultura ocidental busca compromissos, e o compromisso ao qual chegou sobre a questão da violência pública é desaprovar a sua manifestação. O pacifismo foi elevado a um ideal; o porte legal de armas — sob um código rigoroso de justiça militar e dentro de um corpus de leis humanitárias — foi aceite como uma necessidade prática.

“A guerra como continuação da política” foi a fórmula que Clausewitz escolheu para expressar o compromisso estabelecido pelos Estados que conhecia. Mantinha-se o respeito pela ética dominante — de soberania absoluta, diplomacia ordenada e tratados legais —, ao mesmo tempo que se levava em conta o princípio superior do interesse de Estado. Se não se admitia o ideal de pacifismo, que o filósofo prussiano Kant acabava de traduzir da esfera religiosa para a política, com certeza distinguia-se claramente o portador legal de armas do rebelde, do pirata e do bandoleiro. Pressupunha-se um alto nível de disciplina militar e um grau imenso de obediência dos subordinados a seus superiores cumpridores da lei. Esperava-se que a guerra assumisse certas formas estreitamente definidas — cerco, batalha campal, escaramuças, incursões, reconhecimento, patrulha, postos avançados —, cada uma delas com suas próprias convenções reconhecidas. Pressupunha-se que as guerras tinham um começo e um fim. O que não se levava em conta de forma alguma era a guerra sem início nem fim.

A guerra endémica de povos sem Estado, ou mesmo em estádio pré-estatal, era a guerra dos bárbaros, em que não havia distinção entre portadores legais e ilegais de armas, uma vez que todos os homens eram guerreiros. Esta forma de guerra que prevalecera durante longos períodos da história da humanidade e ainda sobrevivia nas margens dos Estados civilizados. Com efeito, estas tropas irregulares eram postas ao serviço desses Estados mediante a prática comum de recrutamento, quer de cavalaria, quer de infantaria.

Assim, os oficiais dos Estados civilizados desviavam o olhar dos meios ilegais e incivilizados que esses guerreiros irregulares utilizavam para recompensar-se em campanha, bem como de seus métodos bárbaros de lutar; contudo, sem os serviços que ofereciam, os exércitos excessivamente treinados não seriam capazes de se manter em campo. Todos os exércitos regulares, até mesmo os da Revolução Francesa, recrutavam soldados irregulares para patrulhar, reconhecer e travar escaramuças por eles.  Os cossacos eram um dos casos militares mais notados. Seus patrões civilizados decidiram cobrir com um véu os seus hábitos de saquear, pilhar, assassinar, raptar, violar, extorquir e sistematicamente vandalizar. Preferiam não admitir que se tratava de uma forma de guerrear mais antiga e mais disseminada que aquela que praticavam.

Clausewitz viu de relance que a guerra não era totalmente o que ele afirmava ser. “Se as guerras dos povos civilizados são menos cruéis e destrutivas que as dos selvagens”, começava ele de forma condicional uma de suas mais famosas passagens. Trata-se de um pensamento que não levou adiante porque, com toda a considerável força filosófica de que dispunha, estava batalhando para formular uma teoria universal do que a guerra deveria ser, em vez de tratar do que a guerra realmente era e sempre fora. Nessa empreitada, obteve um alto grau de êxito. Na prática da guerra, é para os princípios de Clausewitz que o governante e o comandante supremo ainda se voltam; mas, para uma descrição fiel à realidade da guerra, a testemunha ocular e o historiador devem fugir dos métodos de Clausewitz, apesar de ele próprio ter sido testemunha ocular e historiador da guerra, alguém que deve ter visto e poderia ter escrito sobre muita coisa que não encontrou lugar em suas teorias.

Os cossacos eram soldados do czar e, ao mesmo tempo, rebeldes contra o absolutismo czarista. A história de suas origens foi chamada de mito, e não há dúvida de que eles as mitificaram ao longo do tempo. Contudo, a essência do mito é simples e verdadeira. Os cossacos — o nome deriva da palavra turca que significa homem livre — eram cristãos fugitivos da servidão aos senhores da Polónia, da Lituânia e da Rússia que preferiram se arriscar nas terras ricas, mas sem lei, da grande estepe da Ásia central. Na época em que Clausewitz conheceu os cossacos, o mito de seu nascimento em liberdade tinha crescido, mas diminuído na realidade. No início, tinham fundado sociedades genuinamente igualitárias — sem senhores, sem mulheres, sem propriedade, encarnação viva do bando de guerreiros livres e nómadas que constitui um ingrediente poderoso e eterno das sagas de todo o mundo. 

Em 1570, Ivan, o Terrível, teve de trocar pólvora, chumbo e dinheiro — três coisas que as estepes não produziam — pela ajuda dos cossacos para libertar prisioneiros russos da escravização muçulmana, mas antes do final de seu reinado começou a usar a força para trazê-los para dentro do sistema czarista. Seus sucessores mantiveram a pressão. Durante as guerras da Rússia contra Napoleão, formaram-se regimentos regulares de cossacos, uma contradição nos termos, embora acompanhasse a moda europeia de então de incorporar unidades de povos das montanhas, das florestas e de cavaleiros às diferentes ordens de batalha dos Estados. Em 1837, o czar Nicolau I completou o processo, representados no Corpo de Guarda Imperial por regimentos de cossacos do Don, dos Urais e do mar Negro, diferenciados de outras unidades de habitantes domesticados das fronteiras e montanheses do Cáucaso apenas por detalhes de seus uniformes exóticos.

De fato, até ao fim do regime czarista o governo russo preservou o princípio de tratar com as várias hostes de cossacos como se fossem sociedades de guerreiros livres, nas quais a responsabilidade de responder na chamada às armas recaía sobre o grupo e não sobre seus indivíduos. Ainda no início da Primeira Guerra Mundial, o ministro da Guerra russo contava com os cossacos para fornecerem regimentos, não soldados, perpetuação de um sistema em parte feudal, parte diplomático, parte mercenário, que numa variedade de formas provia os Estados com contingentes militares já treinados quase que desde o início da história da guerra organizada.

Na batalha de Balaclava, durante a guerra da Criméia de 1854, dois regimentos de cossacos foram enviados para enfrentar a carga da Brigada Ligeira; um oficial russo que observava registou que “assustados pela ordem disciplinada da massa da cavalaria britânica caindo sobre eles, os cossacos não sustentaram posição e, girando para a esquerda, começaram a atirar em suas próprias tropas numa tentativa de abrir caminho para a fuga. Quando a Brigada Ligeira foi expulsa do vale da Morte pela artilharia russa, os primeiros a se recuperar foram os cossacos e, fiéis à sua natureza, dedicaram-se à tarefa que se apresentava — recolher os cavalos abandonados pelos ingleses e colocá-los à venda.
 Apesar de sua conduta mercenária, não podiam ser chamados propriamente de mercenários, que são normalmente fiéis aos seus contratos.



Batalha de Borodino - Peter von Hess

Na Batalha de Borodino, diz-se que os corpos de infantaria de Ostermann-Tolstói ficaram diante do fogo à queima-roupa da artilharia por duas horas, “durante as quais o único movimento era a agitação das linhas provocada pelos corpos que caíam”. Sobreviver à matança não significava o fim do matadouro. Larrey, o cirurgião mais antigo de Napoleão, realizou duas centenas de amputações na noite seguinte a Borodino, e seus pacientes eram felizardos. Eugène Labaume descreveu “o interior das valas” que entrecruzavam o campo de batalha: “quase todos os feridos, por um instinto natural, tinham se arrastado para lá em busca de proteção [...] empilhados uns sobre os outros e nadando desamparadamente no próprio sangue, alguns pediam aos que passavam que os livrassem da sua miséria”.

Essas cenas de matadouro eram o resultado inevitável de uma forma de guerrear que fazia os povos que Clausewitz considerava selvagens, como os cossacos, fugirem quando ameaçavam envolvê-los, mas, se não as tivessem testemunhado, rirem quando alguém as descrevia. O treinamento europeu, quando demonstrado pela primeira vez por Takashima, o reformador militar japonês, a alguns samurais de alta patente em 1841, provocou escárnio; o mestre da artilharia disse que o espetáculo de “homens levantando e manipulando as suas armas todos ao mesmo tempo e com o mesmo movimento parecia que estavam participando de alguma brincadeira de criança”.

Na Ilíada de Homero eram guerreiros que lutavam corpo a corpo, para quem lutar era um ato de se exprimir, pelo qual um homem exibia não apenas a sua coragem, mas também a sua individualidade. Sobreviviam para lutar outro dia, mas não para ganhar a guerra, objetivo que não conseguiam entender.

 Os turcos também tinham uma maneira própria de lutar: avançavam numa carga desconexa com desdém fanático pelas baixas. Os filelenos argumentavam que, se os gregos não enfrentassem os turcos, jamais ganhariam uma batalha; os gregos objetavam que, se fizessem frente ao inimigo à maneira europeia, peito aberto aos mosquetes turcos, seriam todos mortos e perderiam a guerra de qualquer modo. No centro do filelenismo estava a crença de que os gregos modernos eram, sob sua sujeira e ignorância, o mesmo povo da Grécia antiga. O grego moderno é o descendente daqueles seres tão gloriosos que a imaginação quase se recusa a vê-los como pertencendo à nossa espécie, e ele herda muito da sensibilidade, da rapidez de concepção, do entusiasmo e da coragem deles. Mas os filelenos que entraram em um campo de batalha com os gregos não apenas abandonaram rapidamente a crença numa identidade comum entre os antigos e os modernos; os que sobreviveram para voltar à Europa, “quase sem exceção”, escreve o historiador do filelenismo William Saint Clair, “odiavam os gregos com asco profundo e maldiziam-se por sua estupidez de terem sido enganados”.

Os filelenos queriam acreditar que eles exibiriam a mesma tenacidade em ordem unida, na “batalha até a morte a pé” que os antigos hoplitas tinham demonstrado em suas guerras contra os persas. Foi aquele estilo de luta que, por caminhos tortuosos, veio a caracterizar o seu próprio estilo de guerrear na Europa ocidental. Eles esperavam ao menos que os gregos modernos se mostrassem dispostos a reaprender a tática de ordem unida, quando mais não fosse porque isso era a chave para libertarem-se dos turcos. Quando descobriram que não havia essa disposição — que os “objetivos de guerra” dos gregos se limitavam a conquistar a liberdade para continuar subsistindo pelo banditismo, mudando de lado quando lhes convinha, matando seus inimigos religiosos quando surgia a oportunidade, exibindo atavios de mau gosto, brandindo armas ferozes, enchendo suas bolsas com subornos desonrosos e nunca, nunca morrendo até o último homem, ou até o primeiro, se conseguissem —, aos filelenos restou a conclusão de que somente um rompimento na linhagem entre os gregos antigos e modernos poderia explicar o colapso de uma cultura heroica.

Todos nós achamos difícil tomar distância suficiente de nossa própria cultura para perceber como ela faz de nós, como indivíduos, o que somos. Para o homem ocidental moderno, com o seu compromisso com o credo da individualidade, essa dificuldade é tão grande quanto o foi para gente de outros lugares e épocas. Clausewitz era um homem de seu tempo, filho do Iluminismo, contemporâneo dos românticos alemães, um intelectual, um reformista prático, um homem de ação, um crítico de sua sociedade e um apaixonado crente na necessidade de mudá-la. Era um observador perspicaz do presente e um devoto do futuro. No que fracassou foi em ver quão profundamente enraizado estava em seu próprio passado, o passado de um oficial profissional de um Estado centralizado europeu. A guerra abarca muito mais que a política, que é sempre uma expressão de cultura, com frequência um determinante de formas culturais e, em algumas sociedades, é a própria cultura.

sexta-feira, 18 de março de 2022

Suponhamos Eichmann em família, entre amigos



Eichmann cumprira o prometido: ao voltar de Lichtenfeld, no fim da tarde, deixara ao amigo um grande envelope lacrado e carimbado GEHEIME REICHSSACHE! Continha um maço de documentos acompanhado de uma carta datilografada; havia também um bilhete manuscrito de Eichmann convidando o amigo a ir à sua casa no dia seguinte à noite. O amigo, levado por outro amigo, parou no caminho para comprar flores — um número ímpar, como aprendera a fazer na Rússia — e chocolate.

Na Kurfürstenstrasse, Eichmann tinha o seu apartamento numa ala anexa ao seu gabinete, adaptada também para oficiais solteiros de passagem. Abriu a porta ele mesmo, à paisana: 

“Ach! Sturmbannführer Aue. Queria ter dito para o senhor não vir de uniforme. É uma noite muito simples. Enfim, não faz mal. Entre, entre.” 

Apresentou-o à sua mulher, Vera, uma austríaca de personalidade murcha, mas que corou de prazer e deu um sorriso encantador quando ele estendeu as flores com uma mesura. Eichmann mandou dois de seus filhos se alinharem, Dieter, que devia ter seis anos, e Klaus. O pequeno Horst já estava a dormir, disse Frau Eichmann. Conduziram-no ao salão, onde já havia diversos homens e mulheres, de pé ou sentados em sofás. Estavam presentes o Hauptsturmführer Novak, um austríaco de origem croata com traços rígidos e alongados, mas curiosamente desprezível; um violinista; e alguns outros todos colegas de Eichmann, com suas esposas.

“Noto que cultiva o espírito de camaradagem no seio de sua secção.” — “Como pode ver. Gosto de ter relações cordiais com os meus subordinados. Que quer beber? Um pequeno schnaps? Krieg ist Krieg...”. Peguei o copo e o ergui: “Desta vez, bebo à saúde de sua encantadora família.” Ele estalou os calcanhares e inclinou a cabeça: “Obrigado.” Conversamos um pouco, depois Eichmann me levou até ao aparador para mostrar uma fotografia com uma moldura preta, representando um homem ainda jovem de uniforme. “Seu irmão?”, perguntei. — “É” fitou-me com o seu curioso aspeto de pássaro, particularmente acentuado sob aquela luz pelo nariz adunco e as orelhas de abano. “Imagino que nunca o tenha visto por lá...” Citou uma divisão e balancei a cabeça: “Não. Cheguei bem tarde, depois do cerco. E conheci pouca gente.” — “Ah, entendo. Helmut caiu durante uma das ofensivas de outono. Não sabemos as circunstâncias exatas, mas recebemos uma notificação oficial.” — Aquilo foi um árduo sacrifício. Ele esfregou os lábios: “Sim. Esperamos que não tenha sido em vão. Mas acredito no génio do Führer.”




Frau Eichmann servia bolos e chá; Günther chegou, pegou uma chávena e se aninhou num canto para beber, sem falar com ninguém. Eu o observava furtivamente enquanto os outros conversavam. Era um homem visivelmente muito orgulhoso e cioso de sua postura opaca e fechada, que ele erigia como uma crítica muda perante seus colegas mais loquazes. Diziam-no filho de Hans F.K. Günther, decano da antropologia racial alemã, cuja obra tinha então imensa influência; se era verdade, este podia sentir-se orgulhoso de seu rebento, que passara da teoria à prática. Foi embora ao fim de trinta minutos, despedindo-se displicentemente. Era hora da música: “Sempre antes do jantar”, Eichmann fez questão de me dizer. “Depois de comer nos concentramos demais na digestão para poder tocar bem.” Vera Eichmann pegou a viola e outro oficial tirou um violoncelo do estojo. Tocaram dois dos três quartetos de cordas de Brahms, agradáveis mas de pouco interesse para o meu gosto; a execução era convencional, sem grandes surpresas: apenas o violoncelista tinha um talento especial. Eichmann tocava lenta e metodicamente, os olhos focados na sua partitura; não cometia erros, mas parecia não compreender que aquilo não bastava. Lembrei então do seu comentário da antevéspera: “Boll toca melhor que eu, e Heydrich tocava melhor ainda.” Enfim, talvez ele reconhecesse isso e aceitasse seus limites, extraindo prazer do pouco de que era capaz.

Aplaudi entusiasticamente; Frau Eichmann pareceu particularmente lisonjeada com isso. “Vou colocar as crianças para dormir”, disse. “Depois iremos para a mesa.” Pegamos uma taça enquanto a esperávamos: as mulheres comentavam o racionamento ou os boatos, os homens as últimas notícias, pouco interessantes, pois a linha da frente permanecia estável e nada acontecera desde a queda de Túnis. O ambiente era informal, gemütlich à moda austríaca, um pouquinho exagerado. Depois Eichmann nos convidou para passarmos à sala de jantar. Designou pessoalmente os lugares, colocando-me à sua direita, na ponta da mesa. Abriu algumas garrafas de vinho do Reno, e Vera Eichmann trouxe um assado com um molho de bagas e ervilhas. Isso me fez esquecer a cozinha intragável de Frau Gutknecht e até mesmo a cantina frugal da SS-Haus. “Delicioso”, cumprimentei Frau Eichmann. “A senhora é uma cozinheira fora de série.” — “Ah, tenho sorte. Volta e meia Dolfi encontra iguarias raras. As lojas estão quase vazias.”

“Estalinegrado? Mas porque foi meter-se lá? Não estava bem aqui? Aliás, onde fica isso?” 

Eichmann ria e se engasgava com o vinho. Eu prosseguia: “Um dia, de manhã, saio junto com ela. Vemos passar um portador de estrela, provavelmente um Mischling privilegiado. E eis que ela exclama: "Oh! Veja, Herr Offizier, um judeu! Ainda não usou o gás com esse aí?” Todos riam, Eichmann chorava de rir e escondia o rosto no guardanapo. Apenas Frau Eichmann mantinha a seriedade: quando me dei conta, parei. Ela parecia querer fazer uma pergunta, mas se conteve. Para me recompor, servi mais vinho a Eichmann: “Beba, vamos.” Ele ainda ria. A conversa mudou de tom e comi; um dos convidados contava uma história engraçada sobre Göring.

Eichmann assumiu um ar grave e dirigiu-se a mim: “Sturmbannführer Aue, o senhor estudou. Queria fazer-lhe uma pergunta, uma pergunta séria.” Fiz-lhe sinal com o garfo para continuar: “Leu Kant, suponho... Neste momento”, prosseguiu esfregando os lábios, “estou lendo a Crítica da Razão Prática. Naturalmente, um homem como eu, quero dizer, sem formação universitária, não consegue entender tudo. Mas mesmo assim dá para entender determinadas coisas. E refleti muito na questão do imperativo kantiano. Estou certo de que concorda comigo quando digo que todo o homem honesto deve viver segundo esse imperativo.” Bebi um golo de vinho e concordei. Eichmann continuava: “O imperativo, tal como o compreendo, diz: O princípio da minha vontade individual deve ser tal que possa se tornar o princípio da Lei moral. Agindo, o homem legisla.” 

Limpei a boca: “Acho que sei aonde quer chegar. Está-se perguntando se nosso trabalho é pautado pelo imperativo kantiano.” — “Não é só isso. Mas um dos meus amigos, que também se interessa por esse género de questões, afirma que em tempos de guerra, em virtude, digamos, do estado de exceção decorrente do perigo, o imperativo kantiano é suspenso, pois, naturalmente, o que desejamos fazer ao inimigo não desejamos que o inimigo nos faça, e, portanto, o que fazemos não se pode tornar a base de uma lei geral. É a opinião dele, veja bem. Ora, eu, da minha parte, sinto que ele está errado e que na verdade, por nossa fidelidade ao dever, de certa forma por obediência às ordens superiores... precisamos justamente empenhar ainda mais nossa vontade no sentido de cumprir as ordens. Para vivê-las de maneira positiva. Mas ainda não descobri o argumento indefensável para provar o erro do meu amigo.”

Todos concordamos que em um Estado Nacional-socialista o fundamento último da lei positiva é a vontade do Führer. É o princípio, bastante difundido, Führerworte haben Gesetzeskraft. Naturalmente, na prática reconhecemos que o Führer não pode cuidar de tudo e que portanto outros devem agir e legislar em seu nome. A rigor, essa ideia devia ser estendida ao Volk inteiro. Nessa linha, o Dr. Frank, em seu tratado de direito constitucional, estendeu a definição do Führerprinzip da seguinte forma: Aja de maneira a que o Führer, se conhecesse sua ação, a aprovasse. Não há nenhuma contradição entre esse princípio e o imperativo de Kant.” — “Percebo, percebo. Frei sein ist Knechtsein, ser livre é ser um vassalo, como diz o velho provérbio alemão.” — “Precisamente. Esse princípio é aplicável a qualquer membro da Volksgemeinschaft.

É preciso viver o seu nacional-socialismo vivendo a sua própria vontade como a do Führer e, portanto, para repetir os termos de Kant, como fundamento da Volksrecht. Aquele que apenas obedece às ordens como um autómato, sem examiná-las de maneira crítica para penetrar a sua necessidade íntima, não trabalha na direção do Führer; na maior parte do tempo, afasta-se dela. Naturalmente, o próprio princípio do direito constitucional völkisch é o Volk: ele não se aplica fora do Volk. O erro do seu amigo é recorrer a um direito supranacional inteiramente mítico, uma invenção aberrante da Revolução Francesa. Todo o direito deve repousar em um fundamento. Historicamente, este sempre foi uma ficção ou uma abstração, Deus, o Rei ou o Povo. Nosso grande avanço foi fundamentar o conceito jurídico de Nação sobre algo concreto e inalienável: o Volk, cuja vontade coletiva exprime-se pelo Führer que o representa. Quando o senhor diz Frei sein ist Knechtsein, é preciso entender que o primeiro vassalo de todos é precisamente o Führer, pois ele nada é senão puro serviço.

Não servimos o Führer enquanto tal, mas enquanto representante do Volk, servimos o Volk e devemos servi-lo como o serve o Führer, com total abnegação. Eis porque, diante de tarefas dolorosas, precisamos nos curvar e controlar nossos sentimentos para realizá-las com firmeza.” Eichmann escutava atentamente, o pescoço esticado, os olhos parados atrás das lentes grossas. “Sim, sim”, disse ele com ardor, “compreendo-o perfeitamente. Nosso dever, nosso cumprimento do dever, é a mais elevada expressão da nossa liberdade humana.” — “Exatamente. Se a nossa vontade é servir nosso Führer e nosso Volk, logo, por definição, somos também portadores do princípio da lei do Volk, tal como expressa pelo Führer ou derivada de sua vontade.”

“Com licença”, interveio um dos comensais, “mas, a propósito, Kant não era antissemita?” — “Decerto”, respondi. “Mas seu antissemitismo era puramente religioso, tributário de sua crença na vida futura. Estas são conceções que superamos amplamente.” Frau Eichmann, ajudada por uma das convidadas, tirava a mesa. Eichmann servia schnaps e acendia um cigarro. Durante alguns minutos o falatório prosseguiu. Bebi meu schnaps e fumei também. Frau Eichmann serviu o café.

Eichmann fez-me um sinal: “Venha comigo. Quero mostrar-lhe uma coisa.” Acompanhei-o até ao seu quarto. Acendeu a luz, me apontou uma cadeira, pegou uma chave no bolso e, enquanto eu me sentava, abriu uma gaveta da escrivaninha e dela tirou um álbum bem grosso encapado em couro preto enrugado. Com os olhos brilhando, estendeu-me o álbum e sentou-se na cama. Folheei-o: tratava-se de uma série de relatos, alguns em papel brístol, outros em papel comum, e fotografias, o conjunto encadernado como o álbum que eu concebera em Kiev após a Grosse Aktion. A folha de rosto, impressa em letras góticas, anunciava: O BAIRRO JUDEU DE VARSÓVIA NÃO EXISTE MAIS!

Os Waffen-SS estavam chocados. Eichmann parecia mais assustado que admirado. O Brigadeführer Stroop afirma que até mulheres escondiam granadas sob as saias para se fazerem explodir com um alemão quando se rendiam. Elas sabiam o que as esperava. O bairro foi completamente esvaziado. Todos os judeus capturados vivos foram encaminhados para Treblinka. É um dos centros dirigidos pelo Gruppenführer Globocnik. Sem seleção. O Obergruppenführer Heydrich tinha razão.

Os fracos e os velhos morrem logo; no fim, sobram apenas os jovens, os fortes, os espertos. O que preocupa sobremaneira, porque é o produto da seleção natural, o manancial biológico mais forte: se estes sobrevivem, daqui a cinquenta anos começa tudo de novo. Eu já lhe disse que esse motim nos preocupou muito. Caso se repita, pode ser uma catástrofe. Não podemos dar-lhes nenhuma oportunidade. Imagine uma revolta dessas num campo de concentração! Impensável! Por outro lado, precisamos dos trabalhadores. A questão do trabalho está completamente fora da minha alçada, e cada um tem as suas ideias. Em todo o caso: como diz frequentemente o Amtchef, é impossível aplainar uma tábua sem tirar lascas. É tudo o que tenho a dizer. Devolvi-lhe o álbum. Agradeço por me ter mostrado isso, muito interessante. Juntamo-nos aos demais; os primeiros convidados já se haviam despedido.



domingo, 13 de março de 2022

O discurso do Reichsführer quando ainda pensava ganhar a guerra *



O Reichsführer falava obrigatoriamente ali em nome do Führer, e dizia aquilo, aquelas palavras que não deviam ser ditas, e tomava nota meticulosamente dos presentes e ausentes. Dos chefes da SS, só não assistiam ao discurso: Kaltenbrunner, que estava com flebite; Daluege, com um problema sério no coração e de licença por um ou dois anos; Wolff, recém-nomeado HSSPF para a Itália e plenipotenciário junto a Mussolini; e Globocnik. A bela costa adriática daria um ótimo vazadouro para todas as pessoas sem serventia para nós, até Blobel viria a se juntar a eles um pouco mais tarde, quem sabe fossem mortos pelos guerrilheiros de Tito, isso nos pouparia parte do trabalho; e, quanto às personalidades do Partido, também foram notadas algumas ausências, mas nunca vi a lista. Tudo isso, portanto, o Reichsführer o fazia deliberadamente, sob instruções, e isso só podia ter uma razão: fazer com que mais tarde nenhum deles pudesse dizer que não sabia, pudesse tentar fingir, em caso de derrota, que era inocente do pior, pudesse jamais sonhar em tirar o cavalinho da chuva; era para amaciá-los, e eles percebiam isso muito bem, daí a sua angústia.

A Conferência de Moscovo, em cujo desfecho os Aliados juraram perseguir os “criminosos de guerra” até ao recanto mais remoto do planeta, ainda não acontecera, seria dali a algumas semanas, antes do fim do mês de outubro de 1943, mas a BBC já difundia, desde o verão sobretudo, uma propaganda maciça com esse tema, dando nomes, aliás com certa precisão, pois às vezes citava oficiais e até suboficiais de KL específicos, estava muito bem informada, a Staatspolizei por sinal se indagava como, e isso, é absolutamente exato observar, provocava um certo nervosismo nos envolvidos, ainda mais que as notícias da linha da frente não eram boas. Para preservar a Itália fôramos obrigados a desguarnecer a frente do Leste, e havia poucas chances de que conseguíssemos permanecer no Donetsk. Já perdêramos Briansk, Smolensk, Poltava e Krementchug, a Crimeia estava ameaçada, em suma, qualquer um podia ver que a coisa ia mal, e certamente vários deviam ser os que se perguntavam sobre o futuro, o da Alemanha de um modo geral, naturalmente, mas o deles em particular também.

Daí uma certa eficácia dessa propaganda inglesa, que não apenas desmoralizava alguns, citados, mas também outros, ainda não citados, encorajando-os a pensar que o fim do Reich não significaria automaticamente o seu próprio fim, tornando, por conseguinte, o espectro da derrota um pouquinho menos inconcebível. Isso é plausível, em todo o caso, no que se referia aos quadros do Partido, da SS e da Wehrmacht, a necessidade de os fazer compreender que uma eventual derrota também lhes dizia respeito pessoalmente, uma tentativa de motivá-los um pouco, que os pretensos crimes de alguns seriam aos olhos dos Aliados crimes de todos, no nível do aparelho em todo o caso, que todos os navios, ou pontes, como quiserem, ardiam em chamas, que não existia possibilidade de voltar atrás, e que a única salvação era a vitória.

E, com efeito, a vitória teria colocado tudo nos eixos, pois, se tivéssemos vencido, imaginem por um instante, se a Alemanha houvesse esmagado os vermelhos e destruído a União Soviética, nunca teria existido essa balela sobre crimes, ou melhor, teria, mas sobre crimes bolcheviques, devidamente documentados graças aos arquivos confiscados. Os arquivos do NKVD de Smolensk, evacuados para a Alemanha e recuperados no fim da guerra pelos americanos, desempenharam exatamente esse papel quando enfim chegou a hora em que foi preciso quase de um dia para o outro explicar aos bons eleitores democráticos porque os monstros infames da véspera deviam agora servir de muralha contra os heroicos aliados da véspera, então revelados como monstros ainda piores.

Stalin, como sabemos, zombava daqueles processos, tomava-os pelo que eram, uma hipocrisia, ainda por cima inútil. E depois todo o mundo, ingleses e americanos à frente, teria composto conosco, as diplomacias se realinhariam de acordo com novas realidades, e, apesar da inevitável gritaria dos judeus de Nova Iorque, os da Europa, que de toda a forma não iriam fazer falta a ninguém, teriam sido considerados perdas e danos, como todos os outros mortos aliás, ciganos, polacos, sei lá mais o quê.

Durante os anos 30, o que acontecia na Rússia, Roosevelt sabia. Esse amigo dos homens nunca se impediu de enaltecer a lealdade e humanidade de Stalin, a despeito aliás das repetidas advertências de Churchill, um pouco menos ingénuo sob certo ponto de vista, um pouco menos realista de outro, e se, portanto, tivéssemos feito a nossa parte e efetivamente vencido essa guerra, teria decerto acontecido a mesma coisa, aos poucos os empedernidos, que não teriam deixado de nos chamar de inimigos da espécie humana.

A Grã-Bretanha e a França viram-se obrigadas a garantir a estabilidade a fim de restaurar a ordem em suas colónias insurgentes ou, no caso dos Estados Unidos, de garantir a estabilidade do comércio mundial e combater os focos de revolta comunistas, como, aliás, sempre acabaram por fazer, com os resultados que conhecemos. Pois seria um erro grave pensar que o senso moral das potências ocidentais difere tão fundamentalmente do alemão. Afinal, uma potência é uma potência, e não se torna uma por acaso, ou tampouco permanece como tal. Os monegascos, ou os luxemburgueses, podem dar-se ao luxo de uma certa retidão política; é um pouco diferente no caso dos ingleses. Não era um administrador britânico, educado em Oxford ou em Cambridge, que já em 1922 preconizava massacres administrativos para garantir a segurança das colónias, lamentando amargamente que a situação política in the Home Islands tornasse impossíveis essas medidas salutares?

Não conviria reconhecer que a França, na véspera da Grande Guerra, atuava com muito mais intensidade no domínio do antissemitismo (sem falar na Rússia dos pogroms. E os planos, como sabemos, eram ainda mais ambiciosos: para os russos, a limpeza natural necessária deveria atingir, segundo os especialistas do Plano Quadrienal e do RSHA, trinta milhões, quando não se situar entre quarenta e seis e cinquenta e um milhões segundo o parecer dissidente de um Dezernent um tanto zeloso do Ostministerium.
O Reichsführer, transcorridos sete meses, fez-lhe então compreender que a sua proposta era interessante, mas prematura: “Vocês devem achar que os entretenho com demasiada frieza acerca de tudo isso. É, simplesmente, a fim de demonstrar que a destruição, sob nossos auspícios, do povo de Moisés, não procedia unicamente de um ódio irracional pelos judeus. A que ponto os antissemitas do tipo emocional eram malvistos no SD e na SS em geral?” Se pensarmos bem, podemos deduzir que essa vontade, ou pelo menos essa capacidade de aceitar a necessidade de uma abordagem muito mais radical dos problemas que afligem qualquer sociedade, não pode ter nascido senão das derrotas durante a Grande Guerra. Todos os países (exceto talvez os Estados Unidos) sofreram; mas a vitória, bem como a arrogância e o conforto moral resultantes da vitória, sem dúvida permitiu aos ingleses e franceses, e até aos italianos, esquecerem com mais facilidade seus sofrimentos e suas perdas e se recuperarem, às vezes até mesmo se comprazerem em sua autossatisfação e, portanto, se atemorizarem com mais facilidade, receando ver compromisso tão frágil desagregar-se.
Os alemães não tinham mais nada a perder. Foram tratados como criminosos, humilhados e despedaçados, e os mortos foram aviltados. Objetivamente, a sorte dos russos não foi nada melhor. Nada mais lógico, então, que pensar: Ora bolas, se é assim, se é justo sacrificar o melhor da nação, enviar para a morte os homens mais patriotas, mais inteligentes, mais devotados, mais leais da nossa raça, e tudo isso em nome da salvação da nação, e isso não servir para nada, então que direito à vida preservariam os piores elementos, os criminosos, os loucos, os débeis, os associais, os judeus, sem falar nos inimigos externos?

Os bolcheviques raciocinaram da mesma forma. Uma vez que respeitar as regras da pretensa humanidade não serviu de nada, porque insistir nesse respeito, que nem ao menos é reconhecido? Daí, inevitavelmente, uma abordagem um pouco mais rígida, mais dura, mais radical dos problemas. Em todas as sociedades, em todos os tempos, os problemas sociais foram arbitrados considerando-se tanto as necessidades da coletividade como os direitos do indivíduo. 
Os gregos abandonavam as suas crianças débeis; os árabes, reconhecendo que elas constituíam, economicamente falando, um fardo muito pesado para as suas famílias, mas não desejando matá-las, entregavam-nas aos cuidados da comunidade, pelo mecanismo da caridade religiosa obrigatória (um imposto para obras beneficentes). Ora, se adotarmos tal visão de conjunto, poderemos constatar que pelo menos na Europa, a partir do século XVIII, todas as diferentes soluções para os diferentes problemas – o suplício para os criminosos, o exílio para os doentes contagiosos (leprosos e tuberculosos), a caridade cristã para os imbecis – convergiram, sob a influência do Iluminismo, para um tipo de solução única, aplicável a todos os casos e declinável à vontade: o confinamento institucionalizado, financiado pelo Estado, uma forma de exílio interior se quisermos, às vezes com pretensões pedagógicas, mas sobretudo com finalidade prática - os criminosos na prisão, os doentes no hospital, os loucos no hospício. Depois da Grande Guerra muitos compreenderam que elas não eram apropriadas, que não eram mais suficientes para fazer face à nova amplitude dos problemas, em virtude da restrição dos recursos económicos e também do nível, outrora impensável, dos problemas (os milhões de mortos da guerra). Faziam-se necessárias novas soluções.

Mas por que então, seria a pergunta de hoje, os judeus? O que os judeus têm a ver com os loucos, os criminosos, os contagiosos? Entretanto, não é difícil admitir que, historicamente, os próprios judeus constituíram-se um povo eleito, o que foi um problema, querendo permanecer isolados a todo o custo. Os primeiros escritos contra os judeus, os dos gregos de Alexandria, muito antes de Cristo e do antissemitismo teológico, os acusavam de ser associais, de violar as leis da hospitalidade, fundamento e princípio político primordial do mundo antigo. Eram assim em nome dos seus interditos alimentares, que os impediam de comer na casa dos outros uma boa chouriça, ou um bom presunto. E o mesmo como anfitriões.
É claro que, depois de Jesus Cristo, houve a questão religiosa. Não procuro aqui, como poderiam achar, transformar os judeus em responsáveis pela sua catástrofe; procuro simplesmente dizer que uma certa história da Europa, lamentável na visão de alguns, inevitável na de outros, fez de modo com que, mesmo em nossos dias, em tempos de crise, seja natural voltar-se contra os judeus e que, se empreendêssemos uma refundação da sociedade pela violência, cedo ou tarde os judeus receberiam o seu quinhão. Cedo, no nosso caso, tarde, no dos soviéticos. E isso não seria em absoluto um acaso. Alguns judeus também, afastada a ameaça do antissemitismo, soçobram na desmedida.
*Reichsführer-SS foi um título especial da SS que existiu entre 1925 e 1945, a patente mais alta da SS após 1934. Era equivalente à patente de marechal de campo na Wehrmacht. Nunca houve mais de um Reichsführer-SS simultaneamente na SS, e ao todo apenas houve cinco: Julius Schreck (1925-1926); Joseph Berchtold (1926-1927); Erhard Heiden (1927-1929); Heinrich Himmler (1929-1945); Karl Hanke (1945). Exigia que os seus membros demonstrassem a sua ascendência ariana até 1750, com a finalidade de criar uma ordem de combatentes de "raça pura".

sexta-feira, 11 de março de 2022

Os judeus do Cáucaso



No século IX, Eldad ha-Dani visitou o Cáucaso e observou que os judeus das montanhas possuíam um excelente conhecimento do Talmude. Em determinada época os talmudistas de Derbent e de Chemakha, no Azerbaijão, eram muito reputados. Um viajante judeu, um tal de Judas Tchorny, achava que os judeus tinham chegado ao Cáucaso não depois, mas antes da destruição do Primeiro Templo, tendo vivido isolados de tudo, sob proteção persa, até ao século IV. Apenas mais tarde, quando os tártaros invadiram a Pérsia, os Bergjuden encontraram judeus da Babilónia que lhes ensinaram o Talmude. Portanto, apenas nessa época eles teriam adotado a tradição e os ensinamentos rabínicos. Mas isso não está comprovado. Para provas de sua antiguidade, seria preciso antes voltar-se para os vestígios arqueológicos, como as ruínas abandonadas do Azerbaijão denominadas Chifut Tebe, ‘Colina dos Judeus’, ou Chifut Kabur, ‘Túmulo dos Judeus’. São muito antigas. Quanto à língua, é um dialeto irânico ocidental moderno — isto é, não anterior ao século VIII ou IX, até mesmo X —, o que parece contradizer uma ascendência Caldeia direta, tal como propõe Pantyukov a partir de Quatrefages. Quatrefages, aliás, achava que os lesguianos, alguns svanos e khevsurs também tinham origens judaicas; em georgiano, khevis uria quer dizer ‘judeu do vale’.

O barão Peter Uslar, mais sensatamente, sugere uma migração judaica frequente e regular para o Cáucaso ao longo de dois mil anos, cada leva integrando-se mais ou menos às tribos locais. Uma explicação do problema da língua seria que os judeus trocaram mulheres com uma tribo irânica, os tatas, que chegaram mais tarde; eles próprios teriam vindo na época dos Aqueménidas como colonos militares para defender o desfiladeiro de Derbent contra os nómadas das planícies do Norte.

Cazares ou czares eram um povo de origem turcomana seminómade que dominou a região da Ásia Central a partir do século VII ao X. A palavra czar parece estar ligada a formas verbais túrquicas, significando "errante". Há lendas que sugerem que os judeus asquenazes são cazares que se converteram ao Judaísmo e passaram a fazer parte do povo judeu. Devido a ausência de evidências genéticas para a teoria cazar, ela não é levada a sério pelos académicos. A teoria mais aceita é a de que os judeus asquenazes são descendentes de judeus naturais que se casaram com cazares, assim sendo tanto descendentes dos judeus convertidos quanto dos hebreus originais.

A Cazária, Império Cazar ou Canato Cazar, foi um estado não-eslavo hoje extinto que existiu nas estepes entre o mar Cáspio e o mar Negro e parcialmente ao longo do rio Volga. É hoje considerado um símbolo tradicional da Rússia. Os Cazares foram importantes aliados do Império Bizantino contra o Império Sassânida, e também uma significativa potência regional em seu momento de máximo esplendor. Empreenderam uma série de guerras, todas vitoriosas, contra os califados árabes, evitando assim, possivelmente, a invasão muçulmana na Europa Oriental. Nos finais do século X, o seu poder declinaria frente à Rússia de Kiev, desaparecendo da história.

Os judeus de antes da Diáspora têm uma longa tradição guerreira. Esse conjunto de factos parece opor-se a uma origem Cazar. Ao contrário, a hipótese de Vsevolod Miller, de que os Bergjuden é que teriam levado o judaísmo aos Cazares, soa mais plausível. Um facto bastante convincente é que, tirando alguns rebeldes que se juntaram a Chamil, a maioria dos Bergjuden do Daguestão, talvez em virtude das perseguições muçulmanas, escolheu o lado russo durante as guerras do Cáucaso. Depois da vitória, as autoridades czaristas os recompensaram concedendo-lhes igualdade de direitos em relação às outras tribos caucasianas e acesso a postos na administração. Em primeiro lugar temos os documentos históricos, depois esse documento vivo que é a língua; em seguida, os resultados da antropologia física e cultural; as pesquisas etnológicas de campo; e a genética. Se nos pautarmos pelos documentos históricos, parece estabelecido que os judeus viviam no Cáucaso muito antes da conversão dos Czares.”

Os Bergjuden, então, praticamente não participavam da administração, exceto alguns arquivistas e funcionários subalternos. Seria interessante examinar a situação no Daguestão. Todos, na sala, sabiam pertinentemente que não havia chance de a Wehrmacht chegar ao Daguestão. Alguns inclusive suspeitavam – à exceção, talvez, de Korsemann e Bierkamp que, ao contrário, o Grupo de Exércitos A não tardaria a evacuar o Cáucaso. Ainda que Hoth conseguisse fazer a sua junção com Paulus, seria apenas para recuar o 6º Exército para o Tchir, quem sabe para o baixo Don. Bastava examinar um mapa para compreender que a posição do Grupo de Exércitos A ia-se tornando insustentável.
Köstring devia ter algumas certezas em relação a isso. Logo, era impensável encrespar-se com os povos montanheses por questão tão irrelevante quanto a dos Bergjuden: assim que estes percebessem o retorno do Exército Vermelho, haveria distúrbios - ainda que para provar, um pouco tardiamente decerto, a sua lealdade e o seu patriotismo. Recentemente, um dos Einsatzkommandos liquidara um sanatório para crianças tuberculosas numa zona remota da região de Krasnodar. A maior parte das crianças era de origem montanhesa, os conselhos nacionais protestaram vigorosamente, escaramuças custaram a vida de vários soldados.

Anoitecia. Uma geada espessa cobria tudo: os galhos retorcidos das árvores, os fios e postes das barreiras, a erva abundante, a terra dos campos quase nus. Era como um mundo de horríveis formas brancas, angustiantes, feéricas, um universo cristalino de onde a vida parecia banida. Olhei para as montanhas: o vasto paredão azul obstruía o horizonte, guardião de outro mundo, este, oculto. O sol, possivelmente para as bandas da Abecásia, caía por trás das cristas, mas a sua luz ainda vinha roçar os cumes, depositando sobre a neve sumptuosas e delicadas centelhas cor-de-rosa, amarelas, laranja, fúcsia, que corriam delicadamente de um pico ao outro. Era de uma beleza cruel, de tirar o fôlego, quase humana, mas ao mesmo tempo transcendendo todas as mazelas humanas. Pouco a pouco, bem ao fundo, o mar tragava o sol e as cores apagavam-se uma a uma, fazendo a neve passar de azul a um cinza alvar que reluzia serenamente na noite. As árvores incrustadas pela geada apareciam nos feixes dos faróis como criaturas em pleno movimento. Eu me sentia do outro lado, naquele país tão bem conhecido das crianças, do qual não se volta mais.
Os Judeus estiveram presentes na Arménia e na Geórgia contemporânea desde o Cativeiro de Babilónia. Os registos existem desde o século IV, mostrando que havia cidades arménias possuindo populações judaicas que variam de 10 000 a 30 000, juntamente com importantes assentamentos judaicos na Crimeia. A presença de judeus nos territórios correspondentes à Bielorrússia, Ucrânia e a parte europeia da Rússia moderna pode ser percebida entre os séculos VII e XIV. Sob a influência das comunidades judaicas caucasianas, Bulan - o General dos Cazares, e as classes dominantes da Cazária (localizada no que hoje é a Ucrânia, sul da Rússia e Cazaquistão), podem ter adotado ou se convertido ao judaísmo em algum momento no meio ou final do século VIII, ou início do século IX. Após a conquista do reino da Cazária por Esvetoslau I (969), a população Cazar judaica pode ter sido assimilada, ou migrado em parte.

Nos séculos XI e XII, a população judaica pode ter sido restrita a uma região separada em Kiev, conhecida como Cidade Judaica (antigo eslavo oriental: Жидове, Zhidove, ou seja, "Os Judeus"). A comunidade de Kiev estava orientada para Bizâncio. Outras comunidades ou grupos de indivíduos são conhecidos de Czernicóvia, e, provavelmente, Volodimíria. Naquela época, provavelmente terão sido encontrados judeus também no nordeste da Rússia, nos domínios do Príncipe André, o Pio (1169–1174), embora seja incerto até que ponto eles teriam vivido lá permanentemente. Embora o nordeste da Rússia tenha uma população judaica baixa, países a oeste tinham populações judaicas em rápido crescimento, à medida que as ondas de pogroms dos países da Europa Ocidental marcavam os últimos séculos da Idade Média. Uma parte considerável das populações judaicas moveram-se para países mais tolerantes da Europa Central e Oriental, bem como do Médio Oriente. Muitos judeus da Europa Ocidental migraram para a Polónia a convite do governante Casimiro III o Grande.

Os judeus asquenazes, de origem europeia, representam cerca de 90% dos mais de 13 milhões de judeus existentes no mundo atualmente. Segundo a hipótese conhecida como 'renana', os asquenazes descendem dos judeus que fugiram da Palestina após a conquista muçulmana, no ano 638 d.C. Ainda de acordo com esta teoria, eles se radicaram no sul da Europa e depois, no final da Idade Média, cerca de 50 mil deles se deslocaram da Renânia, na Alemanha, para a Europa do Leste. Alguns, entretanto, consideram esta hipótese inverosímil, porque o cenário seria impossível em termos demográficos, pressupondo um salto da população dos judeus da Europa oriental de 50.000 indivíduos no século XV a cerca de 8 milhões no começo do século XX. A taxa de natalidade seria, assim, dez vezes superior àquela da população local não judia. Isto apesar das dificuldades económicas, as doenças, as guerras e os pogroms, que arruinaram as comunidades judaicas.

Para tentar ver isto de forma mais clara, um estudo publicado na revista britânica Genome Biology and Evolution comparou os genomas (que formam o património genético) de 1.287 indivíduos sem vínculo familiar descendentes de oito grupos de populações judias e 74 de não judias. O geneticista Eran Elhaik (da Escola de Saúde Pública Johns Hopkins, em Baltimore, Estados Unidos) analisou estes dados, em busca de mutações no código de DNA ligadas à origem geográfica de um grupo. Estes indicadores já tinham sido utilizados no passado para lançar luz às origens dos bascos ou dos pigmeus do sul da África. Entre os judeus da Europa, o geneticista encontrou assinaturas ancestrais que apontam claramente para o Cáucaso e também, mais em menor medida, para o Médio Oriente. Segundo Eran Elhaik, estes resultados sustentam a teoria rival da hipótese renana, conhecida com o nome de 'hipótese Cazar'. De acordo com esta teoria, os judeus do leste europeu descendem dos Cazares, uma mistura de clãs turcos que se instalaram no Cáucaso nos primeiros séculos de nossa era e, influenciados pelos judeus da Palestina, se converteram ao judaísmo no século VIII. Os judeus Cazares construíram um império florescente, atraindo os judeus da Mesopotâmia e do Império Bizantino. Mas o império Cazar ruiu no século XIII, atacado pelos mongóis e debilitado pelas epidemias da peste negra.
Não pareciam russos típicos. "São judeus da montanha", explicou-me um amigo moscovita. "Vêm do Azerbaijão, anteriormente uma república soviética na região do Cáucaso". Fiz, de imediato, a associação. Os mercados de Moscovo guardam a tradição de contar com comerciantes do Cáucaso, que trazem produtos agrícolas de suas terras natais, premiadas com um clima mais ameno do que o cortante frio moscovita. Etnias como chechenos, azerbaijanos, ossétios, ingushétios, entre outros, predominam na paisagem das feiras livres. Em sua maioria muçulmanos, apresentam feições que lembram os turcos, como tez bem clara, muitas vezes com fartos cabelos e bigodes negros. A vestimenta mais frequente é o casaco de couro preto, para ajudar a enfrentar as intempéries da capital russa. Os nativos de Moscovo às vezes se referem de forma pejorativa aos originários do Cáucaso, chamando-os de "tchorney" (negros, em russo). Os judeus da montanha, portanto, também traziam a Moscovo algumas tradições comuns do Cáucaso, como os trajes e a presença maciça no comércio. Instalados no ondulado relevo caucasiano, há muitos séculos, e convivendo com a população maioritariamente muçulmana do Azerbaijão, ainda representam mais um exemplo histórico de resistência cultural e religiosa, já que mantiveram as tradições praticamente intactas, apesar das décadas de opressão e ateísmo soviético. E se destacam por manter vivo um fenómeno provavelmente único na atualidade, o da predominância judaica num centro urbano da Diáspora e que remete aos tempos do shtetel, na Europa Oriental. Krasnaya Sloboda, em solo azerbaijano, concentra quatro mil habitantes, que em sua esmagadora maioria são judeus da montanha.

A teoria mais difundida sustenta que após o fim do exílio judaico na Babilónia, há cerca de 2,5 mil anos, alguns grupos permaneceram na região que corresponde à Pérsia histórica e ao atual Irão. De lá, os judeus buscaram refúgio nas montanhas do Cáucaso. Os "gorski ivrei" (judeus da montanha, em russo) falam o tat, dialeto originário do persa e modelado por uma influência hebraica. Antes de os comunistas tomarem o poder no Azerbaijão, em 1920, Krasnaya Sloboda abrigava 11 sinagogas. O Kremlin permitiu que apenas uma continuasse. Visitei-a em 1993, depois de desembarcar em Baku, a capital azerbaijana, e seguir de carro até àquele shtetel oriental. Acompanhei os serviços religiosos num sábado pela manhã. Conversei com líderes comunitários que me falaram, com entusiasmo, do renascimento e fortalecimento das tradições, agora livres das amarras do regime soviético, recentemente extinto. A cashrut, por exemplo, era uma característica marcante da rotina alimentar judaica, que visualmente mantinha os contornos de uma pequena cidade reconstruída no período da URSS. Ou seja, edifícios modestos em sua estrutura e acabamento, numa "arquitetura igualitária" imposta por Moscovo.

Segundo o Congresso Judaico Mundial, a comunidade judaica hoje, no Azerbaijão, país com população total de 8 milhões, contabiliza cerca de 20 mil integrantes, dos quais 15 mil seriam judeus da montanha, espalhados por cidades como Baku e Kuba, além da pequenina Krasnaya Sloboda. O restante da população judaica é formado por ashkenazi com raízes na Rússia ou por judeus originários da vizinha Geórgia, conhecidos na sociedade israelita como "gruzinim". Desde 1989, ao redor de 30 mil judeus azerbaijanos, entre os da montanha e os ashkenazi, emigraram para Israel. Depois de minha visita a Krasnaya Sloboda, retornei a Baku. Mas, antes de embarcar em mais um vôo da Aeroflot, visitei a família de Albert Agarunov, protagonista de uma história rara em tempos modernos. Trata-se de um judeu que se transformou em herói nacional num país muçulmano. Voluntariamente, Albert alistou-se para participar na guerra travada, nos anos 90, entre os vizinhos arménios e azerbaijanos. O jovem morreu em combate. Sua coragem e heroísmo tornaram-se célebres em todo o país.