sábado, 26 de fevereiro de 2022

A Finlândia de novo na mira da Rússia




Finlândia e Suécia receberam ameaça de retaliação por parte de Putin no caso de se atreverem aderir à NATO.

A Finlândia, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, tendo nessa guerra sido invadida pela URSS, tem-se mantido neutra. Faz parte da União Europeia, mas não da NATO. Ora, recentemente tanto a Finlândia como a Suécia, devido às intenções de Putin de doravante não dar vida fácil à União Europeia e à NATO ao ambicionar recuperar o antigo poder da URSS. E é o que se está a ver agora com a invasão da Ucrânia, cujo desenlace ainda não se consegue adivinhar.

Na manhã de 30 de novembro de 1939, o Exército Vermelho lançou uma ofensiva militar maciça através da fronteira com a Finlândia. Para os povos da Europa Ocidental, que estavam em guerra havia quase três meses, parecia certo que a Finlândia sucumbiria em pouco tempo. Divisões soviéticas, totalizando cerca de 465 mil homens, lançaram-se contra nove divisões finlandesas, num total de 130 mil homens. No mesmo momento, mil aviões soviéticos entravam em ação contra 150 aviões finlandeses, todos antigos.

Em 2 de dezembro, a agência de notícias soviética Tass anunciava a criação de um “governo popular da Finlândia”, mas, nas fronteiras, a resistência finlandesa era impressionante. Pequenas unidades militares conseguiam deslocar-se rapidamente em bicicletas ou esquis pelos estreitos caminhos florestais. Os defensores lançavam garrafas cheias de gasolina, com um trapo incendiado no gargalo, dentro dos tanques soviéticos: essa bomba incendiária tão simples, mas com efeito tão eficazmente devastador, que não tardou receber o nome de “cocktail Molotov”. Em 12 de dezembro, as tropas finlandesas, a leste de Suomussalmi, combateram um contingente soviético muito superior numericamente. Sem artilharia nem armas antitanque, os finlandeses conseguiram, ainda assim, manter a sua posição durante cinco dias enquanto a temperatura chegava a 35 graus negativos. Os reforços soviéticos comandados pelo general Vinogradov, engarrafados numa estreita estrada de terra batida, ladeada por um arvoredo denso, foram atacados, num duro combate corpo a corpo, por tropas finlandesas decididas a não se deixarem vencer. E esse não foi o único ponto em que os tanques do Exército Vermelho não conseguiram avançar.

Entretanto, as tropas de Hitler entravam no território da Polónia numa invasão sem precedentes. Vinogradov foi forçado a transpor novamente a fronteira russa. Mais de 1.500 militares soviéticos foram enterrados pelos finlandeses, enquanto outros 25 mil foram sepultados pela neve, mortos em combate ou pelo frio. O general Vinogradov foi executado pelo seu fracasso. Para as tropas finlandesas dos setores restantes na frente, a vitória de Suomussalmi foi um estímulo poderoso. O coronel Hjalmar Siilasvuo, que comandara os defensores, foi promovido a general e enviado para enfrentar outra divisão russa, encurralada nas florestas de Kuhmo. Depois da guerra, ele escreveria a propósito dos defensores de Suomussalmi: “Eles mostraram ao povo o caminho da glória, um caminho cheio de asperezas, é verdade, mas o único possível.”

A Finlândia pagou um preço alto pela paz, cedendo à Rússia grandes extensões de território ao longo da costa do Báltico e ao norte e arrendando-lhes, por trinta anos, a península de Hanko. Mais de 27 mil militares finlandeses haviam morrido. Segundo Molotov, a guerra russo-finlandesa fizera 58 mil baixas no lado russo, mas os finlandeses julgam que o número verdadeiro chega, pelo menos, a 75 mil e, possivelmente, ao dobro. Durante três meses e meio, as tropas soviéticas foram postas à prova num conflito feroz; apesar das perdas, deram mostras de perícia, tenacidade e coragem. Não obstante os reveses iniciais, conseguiram aproveitar os rigores do inverno e, principalmente, puderam contar com reservas substanciais de homens, muito superiores em relação ao adversário. Frequentemente repelidas, sempre renovaram os ataques. “Terminou mais uma guerra da história”, escreveu Geoffrey Cox, sentado, nesse 13 de março, à mesa de uma pequena cafetaria finlandesa enquanto a rádio anunciava o fim das hostilidades. “Lá fora, o relógio da estação, iluminado pela primeira vez desde 29 de novembro, brilha contra a escuridão do céu, sinal do século XX para indicar que a paz chegou.”

Para o povo da Polónia, não havia sequer perspetivas de paz. No momento em que as armas soviéticas e finlandesas se calavam no extremo oriental do Báltico, nos portos de Stettin e de Schneidemühl, em seu extremo ocidental eram deportados judeus alemães, em vagões de mercadorias selados, para a província de Lublin. As deportações terminaram em 12 de março. Numa caminhada de catorze horas a partir de Lublin, em direção leste, 72 entre os 1.200 deportados de Stettin morreram por causa do frio.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

De: As Benevolentes, a propósito de julgamento em Lisboa de 27 neonazis





Excerto de 'As Benevolentes', de Jonathan Littlel

«Sobretudo com as mulheres e as crianças, nosso trabalho era às vezes quase impossível, asqueroso. Os homens queixavam-se sem parar, sobretudo os mais velhos, os que tinham família. Diante daquela gente sem defesa, aquelas mães que eram obrigadas a presenciar a morte dos filhos sem poder protegê-los, que não podiam senão morrer com eles, nossos homens eram vítimas de uma extrema sensação de impotência, sentindo-se igualmente sem defesa. “Eu só quero permanecer íntegro”, disse-me um dia um jovem Sturmmann da Waffen-SS, e, embora eu compreendesse bem esse desejo, não podia ajudá-lo. A atitude dos judeus não facilitava as coisas. Blobel teve que transferir para a Alemanha um Rottenführer de trinta anos que dialogara com um condenado; o judeu, da idade do Rottenführer, tinha nos braços uma criança de cerca de dois anos e meio. Sua mulher, ao seu lado, carregava um recém-nascido de olhos azuis; o homem olhara para o Rottenführer diretamente nos olhos e lhe dissera calmamente num alemão sem sotaque: “Por favor, mein Herr, fuzile as crianças adequadamente.” — “Ele vinha de Hamburgo”, explicou mais tarde o Rottenführer a Sperath, que depois nos contara a história, “era praticamente meu vizinho, seus filhos tinham a idade dos meus.” Durante uma execução, vi uma criança agonizando na vala: o atirador devia ter hesitado, o tiro acertara muito embaixo, nas costas... Eu brincava com um amigo de caubói e índio, com pistolas feitas de lata. Era pouco depois da Grande Guerra, meu pai tinha voltado, eu devia ter cinco ou seis anos, como o menino na vala. Eu estava escondido atrás de uma árvore; quando meu amigo se aproximou, dei um pulo e esvaziei minha pistola na barriga dele, gritando: “Pan! Pan!” Ele soltou a arma, pôs as duas mãos na barriga e desmoronou girando sobre si mesmo. Recolhi sua pistola e quis devolvê-la: “Pegue. Vamos continuar a brincadeira.” — “Não posso. Sou um cadáver.” Fechei os olhos, na minha frente a criança continuava a arquejar. Depois da ação, visitei o shtetl, agora vazio, deserto, entrei nas isbás, casas baixas de pobres com calendários soviéticos e imagens recortadas de revistas nas paredes, alguns objetos religiosos, móveis rudimentares. Aquilo certamente tinha pouco a ver com a internationales Finanzjudentum. Em uma das casas, encontrei uma grande panela com água ainda a ferver no fogão; pelo chão, tigelas de água fria e uma tina. Fechei a porta, tirei a roupa e tomei um banho com aquela água e um pedaço de sabão duro. Quase não resfriei a água quente: queimava, a minha pele ficou ao rubro. Em seguida vesti-me e saí; na entrada da aldeia, as casas já ardiam. Mas minha pergunta não arredava pé, voltei mais algumas vezes, e foi assim que em outra ocasião, na beirada do fosso, uma garotinha de uns quatro anos pegou delicadamente na minha mão. Tentei desprender-me dela, mas ela se agarrava fortemente. À nossa frente, judeus eram fuzilados. “Gdje mama?”, perguntei em ucraniano à menina. Ela apontou com o dedo para a vala. Acariciei seus cabelos. Ficamos assim por vários minutos. A vertigem tomava conta de mim, sentia vontade de chorar. “Venha comigo”, disse-lhe em alemão, “não tenha medo, venha.” Dirigi-me para a entrada do fosso; ela ficou no lugar, grudada na minha mão, depois me seguiu. Levantei-a e a entreguei-a a um Waffen-SS: “Seja gentil com ela”, eu a sentir-me bastante estúpido. Sentia uma raiva louca, mas não queria zangar-me com a menina, nem com o soldado. Este desceu no fosso com a garotinha nos braços e eu me desviei abruptamente, embrenhando-me na floresta. Era uma grande e clara floresta de pinheiros, bastante arejada e banhada por uma luz suave. Atrás de mim as rajadas crepitavam. Quando eu era pequeno, brincava muito em florestas como aquela nos arredores de Kiel, onde morava depois da guerra: na verdade, brincadeiras curiosas. Meu pai me dera de aniversário uma caixa com vários volumes do Tarzan, do escritor americano E.R. Burroughs, que eu lia e relia com paixão, à mesa, na casa de banho, à noite com uma lanterna de bolso, e na floresta, como meu herói, ficava inteiramente nu e deslizava por entre as árvores e os grandes arbustos, deitava-me sobre leitos de agulhas de pinheiro secas, deliciando-me com as espetadelas na pele, agachava-me atrás de uma moita ou então de uma árvore caída em uma elevação, por cima de um carreiro, para espiar os que por ali vagavam, os outros, os humanos. Não eram brincadeiras explicitamente eróticas, eu era muito menino para isso. Mas para mim a floresta inteira tornara-se um terreno mágico, uma vasta pele tão sensível quanto a minha pele nua de criança arrepiada de frio. Mais tarde, devo acrescentar, essas brincadeiras assumiram uma feição ainda mais estranha, era ainda em Kiel, mas possivelmente depois da partida do meu pai, eu devia ter nove, dez anos no máximo: nu, pendurava-me com o cinto em um galho de árvore pelo pescoço e deixava-me cair com todo o meu peso, o sangue, congestionado, estufava o meu rosto, minhas têmporas pulsavam intensamente, meu fôlego vinha num assobio, finalmente eu me recompunha, recuperava a respiração, depois recomeçava. Brincadeiras desse género, um grande prazer, uma liberdade sem limites, eis o que antes aquelas florestas significavam para mim; agora, bosques me davam medo.»

terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

Lendo Tucídides a propósito da Guerra na Ucrânia





À luz da evidência apresentada até agora, todavia, ninguém erraria se mantivesse o ponto de vista de que os factos na antiguidade foram muito próximos de como os descrevi, não dando muito crédito, de um lado, às versões que os poetas cantaram, adornando e amplificando os seus temas, e de outro considerando que os logógrafos [os historiadores mais antigos eram chamados logógrafos; a partir de Tucídides a palavra adquiriu uma conotação pejorativa] compuseram as suas obras mais com a intenção de agradar aos ouvidos que de dizer a verdade. Uma vez que as suas histórias não podem ser verificadas, eles em sua maioria enveredaram, com o passar do tempo, para a região da fábula, tendo perdido assim a credibilidade.

Deve-se olhar os factos como estabelecidos com precisão suficiente, à base de informações mais nítidas, embora considerando que ocorreram em épocas mais remotas. Assim, apesar de os homens estarem sempre inclinados, enquanto envolvidos numa determinada guerra, a julgá-la a maior, e depois que ela termina voltarem a admirar mais os acontecimentos anteriores, ficará provado, para quem julga por factos reais, que a presente guerra terá sido mais importante que qualquer outra ocorrida no passado.

Quanto aos discursos pronunciados por diversas personalidades quando estavam prestes a desencadear a guerra ou quando já estavam dentro dela, foi difícil recordar com precisão rigorosa os que eu mesmo ouvi ou os que me foram transmitidos por várias fontes. Tais discursos, portanto, são reproduzidos com as palavras que, no meu entendimento, os diferentes oradores deveriam ter usado, considerando os respetivos assuntos e os sentimentos mais pertinentes à ocasião em que foram pronunciados, embora ao mesmo tempo eu tenha aderido tão estritamente quanto possível ao sentido geral do que havia sido dito. Quanto aos factos da guerra, considerei meu dever relatá-los, não como apurados através de alguma fonte casual nem como me parecia provável, mas somente após investigar cada detalhe com o maior rigor possível, seja no caso de eventos dos quais eu mesmo participei, seja naqueles a respeito dos quais obtive informações de terceiros. O empenho em apurar os factos se constituiu numa tarefa laboriosa, pois as testemunhas oculares de vários eventos nem sempre faziam os mesmos relatos a respeito das mesmas coisas, mas variavam de acordo com as suas simpatias por um lado ou pelo outro, ou de acordo com sua memória. Pode acontecer que a ausência do fabuloso em minha narrativa pareça menos agradável ao ouvido, mas quem quer que deseje ter uma ideia clara tanto dos eventos ocorridos quanto daqueles que algum dia voltarão a ocorrer em circunstâncias idênticas ou semelhantes em consequência de seu conteúdo humano, julgará a minha história útil e isto me bastará. Na verdade, ela foi feita para ser um património sempre útil, e não uma composição a ser ouvida apenas no momento da competição.

O acontecimento mais importante dos tempos passados foi a guerra com os persas, e, todavia, ela foi prontamente decidida em dois combates navais (Artemísion e Salamina) e duas batalhas terrestres (Termópilas e Plateia). Mas a guerra do Peloponeso estendeu-se por longo tempo, e no seu curso a Hélade sofreu desastres como jamais houvera num lapso de tempo comparável. Nunca tantas cidades foram capturadas e devastadas, algumas pelos bárbaros outras pelos próprios helenos combatendo uns contra os outros, enquanto algumas, após a captura, sofreram uma mudança total de habitantes. Nunca tanta gente foi exilada ou massacrada, quer no curso da própria guerra, quer em consequência de dissensões civis. Assim, as histórias dos tempos anteriores, transmitidas por tradição oral, mas muito raramente confirmadas pelos factos, deixaram de ser incríveis; as referentes a terramotos, por exemplo, pois eles ocorreram em extensas regiões do mundo e foram também de grande violência; eclipses do sol, que ocorreram a intervalos mais frequentes do que os mencionados para todo o tempo passado; grandes secas, também, em algumas regiões, com a sequela da fome; finalmente - o desastre que causou mais infortúnios à Hélade e destruiu uma considerável parcela de sua população - a peste epidémica. Todos esses desastres, na verdade, ocorreram simultaneamente com a guerra, e ela começou quando os atenienses e peloponésios romperam a trégua de trinta anos, concluída entre eles após a captura da Eubeia.

Os atenienses estavam a ficar muito poderosos, e isto inquietava os lacedemónios, compelindo-os a recorrerem à guerra. As razões publicamente alegadas pelos dois lados, todavia, e que os teriam levado a romper a trégua e entrar em guerra, foram as seguintes: Há uma cidade chamada Epidamno à direita de quem navega para o golfo Jónio, e seus vizinhos imediatos são os componentes de uma tribo bárbara, os taulâncios, de raça ilíria. A cidade foi colonizada pelos corcireus e seu fundador foi Fálios, filho de Eratóclides, de origem coríntia e descendente de Héracles, vindo da metrópole de acordo com o costume antigo; alguns coríntios e outros dórios, todavia, juntaram-se aos corcireus no estabelecimento da colónia. Com o passar do tempo a cidade dos epidâmnios tornou-se grande e populosa, mas dizem que sobrevieram lutas civis por muitos anos, e em consequência de uma guerra com os bárbaros vizinhos ela ficou arruinada e sem grande parte de suas forças. Finalmente, pouco antes da presente guerra o povo baniu os aristocratas e estes, fazendo causa comum com os bárbaros e atacando a cidade saquearam por terra e por mar os habitantes que haviam ficado lá. Estes, fortemente pressionados, enviaram emissários a Corcira, por ser a metrópole, pedindo aos corcireus para não permanecerem indiferentes enquanto eles eram arruinados, e para reconciliá-los com os banidos e porem termo à guerra com os bárbaros; os emissários apresentaram o pedido sentados como suplicantes no templo de Hera. Os corcireus, todavia, não acolheram as súplicas e os mandaram de volta frustrados.

Os epidâmnios, percebendo que não receberiam qualquer ajuda de Corcira, ficaram perplexos quanto à solução para as suas dificuldades; mandaram então mensageiros a Delfos para perguntarem ao deus se deveriam entregar a cidade aos coríntios, na qualidade de fundadores, e tentar obter alguma ajuda deles. A resposta foi que deveriam entregá-la aos coríntios e recebê-los como chefes. Diante disso os epidâmnios foram a Corinto e entregaram a cidade para ser uma colónia coríntia, de acordo com o oráculo, explicando que seu fundador viera de Corinto e repetindo a resposta do oráculo; pediram aos coríntios para não ficarem apenas observando, mas para virem salvá-los. Os coríntios concordaram em levar-lhes ajuda, em parte porque a colónia lhes pertencia tanto quanto aos corcireus, e em parte também por ódio aos corcireus, pelo facto de estes, apesar de serem colonos coríntios, terem negligenciado a metrópole, já que nem nos festivais conjuntos de congraçamento eles concediam os privilégios costumeiros aos coríntios, nem começavam com um representante de Corinto os ritos iniciais nos sacrifícios, como as outras colónias faziam; ao contrário, tratavam-nos com desprezo, porque naquela época Corcira estava em igualdade de condições com os mais prósperos dos helenos em termos de riqueza, e ainda mais forte quanto à preparação para a guerra, enquanto em poder marítimo algumas vezes se vangloriava de ser grandemente superior, por causa da ocupação anterior da ilha pelos feácios cuja glória decorria de suas naus. Esta fora a razão pela qual havia continuado a desenvolver ininterruptamente a sua frota, e era de facto poderosa, pois dispunha de cento e vinte trirremes quando a guerra começou.

Desta forma os coríntios, tendo todos aqueles motivos de queixas, mandaram de bom grado a Epidamno a ajuda pedida, convidando quem quer que desejasse a ir também na qualidade de colono, e despachando como guarnição alguns ambraciotas e leucádios e um destacamento próprio. Estes seguiram para Apolónia, colónia dos coríntios, indo por terra com receio dos corcireus, que poderiam impedir-lhes a passagem se tentassem cruzar o mar. Quando, porém, os corcireus perceberam que os colonos e a guarnição haviam chegado a Epidamno, e que sua colónia tinha sido entregue aos coríntios, ficaram indignados. Navegaram imediatamente com vinte e cinco naus, e depois com uma segunda frota, e intimaram insolentemente os epidâmnios a dispensar a guarnição enviada pelos coríntios e os colonos, e também a receber de volta os exilados, pois os epidâmnios banidos tinham ido para Corcira e, apontando as sepulturas dos antepassados comuns invocando os laços de parentesco, haviam pedido aos corcireus para reinstalá-los em suas terras. Como os epidâmnios não lhes dessem ouvidos, os corcireus partiram contra eles com quarenta naus, acompanhados pelos exilados que pretendiam reinstalar e levando com eles, também, os ilírios. Parando diante da cidade, proclamaram que os estrangeiros e quaisquer epidâmnios que desejassem poderiam retirar-se em segurança; os que assim não agissem seriam tratados como inimigos. Os epidâmnios, porém, não se deixaram persuadir e os corcireus sitiaram a cidade, situada num istmo.

Os coríntios, todavia, ao receberem mensageiros de Epidamno com a notícia do cerco, prepararam uma expedição e proclamaram Epidamno colónia sua; disseram que qualquer habitante de Corinto que desejasse poderia ir para lá, na base de direitos iguais para todos, e que se alguém não estivesse disposto a viajar imediatamente, mas quisesse participar da colónia, poderia fazer um depósito de cinquenta dracmas coríntios e ficar em casa. Foi grande o número dos que viajaram, bem como dos que fizeram o depósito. Pediram também aos megáricos que os comboiassem com suas naus, no caso de os corcireus tentarem evitar a viagem; os megáricos prepararam-se para segui-los com oito naus e os peleanos da Cefalónia com quatro. Os epidáurios, aos quais foi feito um pedido semelhante, forneceram cinco naus, os hermiónios uma, os trezénios duas, os leucádios dez e os ambraciotas oito. Aos tebanos e fliásios pediram dinheiro, e aos eleus naus sem tripulação, além de dinheiro. Os próprios coríntios aprontaram trinta naus e três mil hoplitas.

Quando os corcireus souberam desses preparativos partiram para Corinto, levando representantes lacedemónios e siciónios, e exortaram os coríntios a retirar a guarnição e os colonos de Epidamno, cidade à qual não teriam qualquer direito. Se, todavia, tivessem alguma pretensão neste sentido, disseram os corcireus, estariam dispostos a submeter o assunto à arbitragem de qualquer cidade do Peloponeso escolhida por mútuo acordo, e a parte à qual a colónia fosse adjudicada tomar-se-ia senhora dela; estariam dispostos, também, a submeter o caso à decisão do oráculo de Delfos. Não queriam a guerra, mas se a resposta fosse "não", também seriam compelidos, se os coríntios forçassem tal desfecho, a fazer amigos que não desejavam (outros além dos atuais), a fim de salvaguardar seus interesses. Os coríntios responderam que, se os corcireus retirassem suas naus e os bárbaros de Epidamno, examinariam o assunto, mas que nesse ínterim não lhes ficaria bem discutir uma arbitragem, enquanto os epidâmnios estavam sitiados. A isto os corcireus replicaram que concordariam, se os coríntios, por seu turno, retirassem suas forças de Epidamno; estariam prontos, todavia, a aceitar a arbitragem sob a condição de que ambas as partes ficassem onde estavam e de que observassem uma trégua até haver uma decisão.

Os coríntios, porém, não acolheram qualquer dessas propostas, e logo que suas naus foram tripuladas e seus aliados ficaram prontos, mandaram primeiro um arauto para declarar a guerra aos corcireus; em seguida, zarpando com setenta e cinco naus e dois mil hoplitas, navegaram rumo a Epidamno para atacar os corcireus. Suas naus estavam sob o comando de Aristeu filho de Pelicos, Calícrates filho de Cálias, e Timanor filho de Timantes; sua infantaria era comandada por Arquetimo filho de Eurítmicos e Exarquias filho de Isarcos. Quando, porém, a expedição chegou a Actéon, no território de Anactório, onde fica o santuário de Apolo na embocadura do Golfo de Ambrácia, os corcireus despacharam um arauto em uma nau pequena para intimá-la a deter o avanço, e ao mesmo tempo apressaram-se a tripular as suas naus, havendo previamente reforçado as mais velhas com vigas transversais, de modo a torná-las aptas a navegar, e aceleraram os reparos das outras. Quando o seu arauto voltou sem mensagens de paz dos coríntios, e já estando as suas naus plenamente tripuladas (eram oitenta, pois quarenta estavam sitiando Epidamno), saíram em direção ao inimigo, alinharam as naus e travaram batalha; obtiveram completa vitória e destruíram quinze naus dos coríntios. No mesmo dia aconteceu também que suas tropas envolvidas no assédio de Epidamno forçaram a cidade a capitular, sob a condição de que outros imigrantes seriam vendidos como escravos, mas os coríntios ficariam acorrentados até que outra solução fosse acordada.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

A lua é grande demais para um berlinde




Imagine o tamanho do comprimento de Planck
Imaginação é tudo aquilo em que cremos e queremos acreditar. É uma espécie de onirocricia. 

Se uma partícula ou ponto de aproximadamente 0,1 mm de tamanho (que é aproximadamente a menor coisa que o ser humano pode ver a olho nu) fosse ampliada até o tamanho do universo observável, então no centro desse tamanho do universo observável, um ponto de 0,1 mm seria o equivalente do comprimento de PlanckEm física, comprimento de Planck, denotado por ℓP, é uma unidade de comprimento igual a 1,616199(97) × 10−35 m  e corresponde à distância que a luz percorre no vácuo durante um tempo de Planck. É a unidade básica do Sistema de Unidades de Planck. O comprimento de Planck pode ser definido a partir de três constantes físicas fundamentais: 1) c - velocidade da luz no vácuo;  2) constante de Planck; 3) constante gravitacional.

O comprimento de Planck desempenha uma função importante na física moderna, pois para comprimentos inferiores a este, tanto a mecânica quântica, como a relatividade geral deixam de conseguir descrever o comportamento de partículas. Espaços inferiores ao comprimento de Planck têm sido alvo de exaustiva investigação na busca de uma teoria unificadora da relatividade com a mecânica quântica.

Os sonhos são reais. O filme é real, a narrativa é que não. Terry Gilliam, um dos fundadores dos Monty Python, diz que nós, como espécie, somos absurdos. Como criação de Deus, ainda somos piores. O absurdo é fundamental para o comportamento humano e para a vida. E a comédia faz falta, para mostrar às pessoas que afinal não somos assim tão importantes. Não dominamos o mundo. Por isso, não vale a pena levar-nos tão a sério. O que é saudável. E quando não conseguimos rir de nós mesmos, já desistimos de algumas das melhores qualidades do ser humano. Há agora uns novos calvinistas que com a sua superioridade moral nos querem reduzir o mundo a algo muito mesquinho.

A pretensão de interpretação dos sonhos é uma idiotice. É querermos levar-nos demasiado a sério. Um dos problemas de Marx e do marxismo foi que os seus discípulos, sobretudo quando vencedores, transformaram um pensamento analítico numa série de dogmas equivalentes aos das religiões reveladas. E aquilo que é compreensível numa religião, que admite a transcendência da revelação e, por isso, o dogma, é particularmente irracional numa ideologia que, mais que uma interpretação da realidade, sempre se quis impor como uma verdadeira "Ciência do Homem e da História", declaradamente fundada na Razão, mas insuscetível de ser abalada pela contraprova dos factos. Porque é que o zelo de grande parte dos discípulos e continuadores de Marx tende a fazer das suas teses e cânones de interpretação verdadeiros e indiscutíveis dogmas? Porque, aparentemente, a persistência da natureza humana, com a sua “mistura de trevas e brilho” e a sua continuada ânsia de transcendência, ora impede a morte das religiões, ora tende a transformar a mais “científica” das ideologias numa religião em fundamentalista e furiosa cruzada.

A Natureza comporta-se como o velho sábio, quando foi consultado por dois cientistas para desempatar uma disputa que estavam a ter acerca da origem do Universo. Um, apostava que a teoria da relatividade geral estava certa, portanto explicava tudo acerca do Universo. O outro contrapunha a teoria quântica, porque batia certo com a experiência. Depois de ter ouvido o primeiro, o sábio disse: “Você tem toda a razão”. O segundo insistiu para ser ouvido. O sábio então escutou-o com toda a atenção, e depois disse: “Você também tem razão”. Então a mulher do sábio, que estava a ouvir a conversa do outro lado da sala, gritou: “Mas os dois não podem ter razão ao mesmo tempo!”. O sábio pensou um pouco, e tendendo a concordar concluiu: “Você também tem razão”.

A cada experiência e a cada teste, a Natureza continua a dizer “tem razão” para a relatividade geral, e continua a dizer “tem razão” para a mecânica quântica, apesar dos pressupostos contrários em que as duas teorias parecem se fundamentar. É claro que há algo que ainda nos escapa.

Todos os seres humanos, incluindo os cientistas, elaboram uma cosmovisão através da qual interpretam e explicam a realidade. Sendo que todos nós queremos entender o significado de nossas experiências, nossa cosmovisão pessoal atua como um mapa mental que nos orienta em nossas decisões e ações. Ninguém precisa de obter um diploma em filosofia para possuir uma cosmovisão. Nem mesmo os cientistas conseguem estudar um objeto, um organismo ou um fenómeno natural com uma atitude absolutamente objetiva. Todos abordam as suas pesquisas se baseando em certas suposições sobre o Universo e a vida, ou seja, com base em sua cosmovisão.

A nossa cosmovisão individual vai-se formando durante a adolescência e amadurece no começo da vida adulta. No princípio, é o resultado de várias influências, incluindo a família, os estudos, a religião, as informações dos meios de comunicação e a cultura à nossa volta. Ao longo da vida, vamos ajustando a nossa cosmovisão, respondendo a novas informações e novas experiências. Basicamente, toda a cosmovisão responde a pelo menos quatro perguntas fundamentais: Quem sou? – A origem, natureza e propósito dos seres humanos. Onde estou? – A natureza e a extensão da realidade. O que está errado? – A causa da injustiça, do sofrimento, do mal e da morte. Qual é a solução? – Maneiras de vencer esses obstáculos às realizações humanas, conseguindo satisfação e bem-estar na vida.

Certamente é possível ampliar essa lista. Mas o facto é que a nossa cosmovisão fornece o fundamento para os nossos valores e reflete-se em nossas decisões e conduta. Ela tem influência, por exemplo, sobre aquilo que escolhemos como nossa vocação ou profissão, a maneira através da qual nos relacionamos com outros seres humanos, o modo como empregamos os nossos recursos financeiros, a forma como utilizamos a tecnologia, a nossa atitude para com o meio ambiente e até sobre as nossas decisões sociopolíticas.

A Lua é grande demais para ser sensível à diminuta granularidade quântica e, portanto, quando descrevemos o seu movimento podemos esquecer os quanta. Por outro lado, um átomo é leve demais para curvar o espaço de modo significativo e, ao descrevê-lo, podemos negligenciar a curvatura do espaço. Mas há situações físicas nas quais entram em jogo tanto a curvatura do espaço quanto a granularidade quântica, e nestas já não temos uma teoria física que funcione. Um exemplo é o interior dos buracos negros. Outro exemplo é o que aconteceu com o Universo precisamente no big bang. De maneira geral, não sabemos como o espaço e o tempo são caracterizados em escala muito pequena. Em todos esses casos, as teorias hoje confirmadas se tornam confusas e já não nos dizem nada: a mecânica quântica não consegue tratar a curvatura do espaço-tempo e a relatividade geral não consegue levar em conta os quanta. Essa é a origem do problema da gravidade quântica. Para compreender o que são o espaço e o tempo quânticos, temos de fazer uma revisão profunda do nosso modo de conceber as coisas.

Matvei Bronštein, uma figura romântica e lendária: um russo muito jovem que viveu na época de Stalin, e teve uma morte trágica, deu-se conta que tinha de modificar as bases conceptuais para compreender a gravidade quântica. Vamos supor que queremos observar uma região do espaço muito, muito, muito pequena. Para fazer isso, temos de colocar alguma coisa nessa região, de forma a marcar o ponto que queremos considerar: por exemplo, colocamos ali uma partícula. Mas Heisenberg compreendeu que não se pode localizar uma partícula em um ponto do espaço por mais que um único instante. Depois ela escapa. Quanto mais se tenta localizar a partícula em uma região pequena, maior é a velocidade com que ela escapa. É o “princípio da indeterminação” de Heisenberg. Se a partícula escapa em grande velocidade, isso significa que há muita energia. Matvei, um ano depois de ter compreendido pela primeira vez que as nossas ideias sobre o espaço e o tempo deviam sofrer uma mudança radical, foi preso pela polícia de Stalin e condenado à morte. Sua execução aconteceu no mesmo dia do processo, em 18 de fevereiro de 1938. Tinha trinta anos.

Mas agora vamos relembrar a teoria de Einstein. A energia faz com que o espaço se curve. Muita energia significa curvar muito o espaço. Se concentro muita energia em uma região muito pequena, o resultado é que curvo demais o espaço, e este mergulha em um buraco negro, como uma estrela que colapsa. Mas se a partícula mergulha em um buraco negro, não a vejo mais. Não posso mais usar a partícula para marcar uma região do espaço, como eu desejava. Em suma, não tenho condições de medir regiões arbitrariamente pequenas de espaço, porque, se tento fazê-lo, essas regiões desaparecem dentro de um buraco negro. É nessa escala muito diminuta que se manifesta a gravidade quântica. Nessa escala, o espaço e o tempo mudam de natureza. Tornam-se alguma outra coisa, tornam-se “espaço e tempo quânticos”, e o problema é compreender o que isso significa.

A pessoa que contribuiu mais que qualquer outra para desenvolver a pesquisa sobre a gravidade quântica foi John Wheeler, personagem lendária que atravessou a física do século passado. Aluno e colaborador de Niels Bohr em Copenhague, colaborador de Einstein quando este se transferiu para os Estados Unidos, entre seus alunos incluem-se personagens como Richard Feynman. John Wheeler esteve no centro da física de todo um século. Era dotado de grande imaginação. Foi ele quem inventou e popularizou o termo “buraco negro” para designar as regiões do espaço das quais nada mais pode sair. Seu nome está ligado sobretudo às pesquisas, muitas vezes mais intuitivas que matemáticas, sobre como pensar o espaço-tempo quântico. Apreendida profundamente a lição de Matvei Bronštein segundo a qual as propriedades quânticas do campo gravitacional implicam uma modificação da noção de espaço em pequena escala, Wheeler procurou imagens para pensar esse espaço quântico. Imaginou-o como uma nuvem de diferentes geometrias sobrepostas, assim como podemos imaginar um eletrão quântico solto em uma nuvem de diferentes posições.

sábado, 19 de fevereiro de 2022

Dos mistérios da fé e outros enigmas





A fé é uma coisa muito estranha. Pasquale Bacco, médico italiano, ninguém sabe explicar o que lhe passou pela cabeça para negar a letalidade do vírus da covid-19 ao ponto de ter realizado mais de 300 comícios a induzir as pessoas a não usarem máscaras e a não acreditarem naquilo que os médicos dos cuidados intensivos diziam.

Hoje, Bacco está convencido de que a covid mata e que as vacinas são a solução. Fez-se vacinar. Está a cumprir uma pena de suspensão de seis meses imposta pela Ordem dos Médicos. Perguntado como perdeu a racionalidade, ele responde: “Não te dás conta. Perdi a cabeça sendo uma pessoa racional. Neste momento, desencadeia-se um processo perigoso. O No Vax é uma fé e tu tornas-te um deus. (…) Entrei numa absoluta loucura. São pessoas cheias de medo e que encontram em ti uma segurança. Eu tinha tudo. Os clientes privados multiplicavam-se. Sentes-te um deus, entras num estado de aturdimento absoluto, as pessoas tocam-te, choram.”

Quando viu morrer um jovem de 29 anos, com covid, a mãe disse-lhe, com uma grande candura, que ele era seu fã. A postura da mãe do rapaz soou-lhe a contrassenso, o que em vez de o acalmar, perturbou-o ainda mais, fazendo-o sentir-se um grande canalha. E num impulso de coragem temerária fez o seu derradeiro comício no Circo Máximo de Roma desdizendo o que anteriormente tinha dito. Perante 15 mil pessoas, disse que as vacinas imunizam, que não podia continuar a dizer o contrário. E então o absurdo foi estrondoso: as pessoas estavam em êxtase, e aplaudiam-no, agarravam-se às pernas dele em choro compulsivo. As pessoas, liminarmente, não escutavam sequer o que ele estava a dizer.

As associações “não-vacina” têm contas bancárias com 400 mil euros. As doações são muitas. Basta olhar para quem são e quem os preside para compreender tudo. São todos velhos ricos. O antigo magistrado, o antigo primário, o antigo conselheiro jurídico. Todos os profissionais no final das suas carreiras que criaram um brinquedo para a velhice, para satisfazer as suas perversões. Foram treinados sobre o que dizer. Então um processo espontâneo foi gerado. Há muitos que ainda estão convencidos de que ele está a fazer tudo para eliminar os grandes poderes que impõem a vacina. Ele é visto como se fosse um deus.

Hanka Horká




Hanka Horká, 57 anos, era uma conhecida cantora checa de música folk europeia, dentro do grupo Asonance, que se contaminou de propósito para obter a imunidade natural à covid-19, e tornar a viver sem ter de se confinar. E efetivamente contraiu o Sars-Cov2 e morreu devido à covid-19.

Explicou nas redes sociais que a cura seria uma forma de imunização mais rápida do que a vacina. Algumas pessoas da família tinham sobrevivido à covid. Fez-se contaminar com a variante delta. Dias antes de morrer repetia nas redes sociais: “Conto-vos o meu segredo, sim, aguentei e sobrevivi. Foi até divertido.” Queria poder ir ao teatro, jantar fora, ir à sauna, ter uma vida social normal. Dois dias antes de morrer incentivou os fãs a seguir o seu exemplo.

Horká recusou o isolamento depois de o teste ter dado positivo. Acreditava que o seu sistema imunitário seria suficiente para travar a doença e ao apanhá-la pretendia ter um certificado de recuperação que lhe abrisse as portas a uma vida social. Na República Checa, a prova de vacinação ou de infeção recente pelo vírus era necessária para aceder a muitos locais.

Nos dias a seguir disse que se sentia melhor e vestiu-se para dar um passeio. Quando voltou estava mal e foi estender-se na cama. Em dez minutos acabou tudo. Dois dias antes da sua morte, Hanka Horká escreveu nas redes sociais que estava a recuperar. “Agora, vai haver teatro, sauna, teatro, concerto, sauna”, anunciou, satisfeita com a forma como se estava a sentir.




terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

Os russos





A Rússia [Federação Russa] é o maior país do mundo, numa extensão territorial que comporta 9 fusos horários, e o 9º em população – 142 milhões de habitantes. Assim, é simultaneamente um país europeu e asiático. Na verdade, é ao mesmo tempo o maior país da Europa e o maior país da Ásia. Isso cria uma dificuldade para classificar os russos como identidade entre Europa e Ásia, Ocidente e Oriente. Os de identidade eslava consideram-se europeus; os de identidade asiática nem tanto. Ao nos concentrarmos na geografia física, podemos afirmar que, dos mais de 17 milhões de km2 da Rússia, cerca de 23% (ou 3,9 milhões de km2) situam-se na Europa e 77% (13,1 milhões de km2) na Ásia. Ou seja, a maior parte da Rússia está na Ásia. Já com a povoação ocorre o contrário: apenas 25% da sua população está na parte asiática. Os montes Urais formam a fronteira entre a parte europeia e asiática da Rússia. A Sibéria constitui todo o imenso território asiático do país, cobrindo não apenas as partes geladas no Norte, mas também desertos quentíssimos ao Sul.

Dito isto, é importante observar que a origem da civilização russa não está na Rússia atual, mas sim na Ucrânia: foi o chamado Estado de Kiev (ou Rus’ de Kiev), que existiu do século IX ao XIII. Naquela época não havia ainda a diferenciação entre os russos atuais, os russos vermelhos e os russos brancos da Bielorrússia que formavam o grupo dos eslavos orientais. Rus’ era uma florescente confederação de cidades-Estado com vassalagem ao Grande Príncipe da cidade de Kiev (atual capital da Ucrânia).

Depois, devido à pouca união e centralização entre as suas partes constitutivas, não foi capaz de resistir à invasão dos descendentes de Gengis Cã, e essas terras, então, ficaram sob jugo mongol dos séculos XIII ao XV. O jugo mongol, ao destruir a autoridade central de Kiev e dispersar os eslavos, abriu caminho para o aparecimento de russos, ucranianos e bielorussos como povos separados. A partir do século XV, a cidade de Moscovo liderou a rebelião contra os mongóis e unificou os eslavos, agora sob um império altamente centralizado.

Ivan III, o Grande, acabaria definitivamente com o jugo mongol em 1480. O primeiro czar, Ivan IV, o Terrível, inicia a construção do Império Russo ao conquistar novos territórios. Com a conquista dos reinos mongóis de Kazan (1552) e Astrakhan (1556), ele passa a dominar o rio Volga. No século XVIII houve a expansão para o leste, na Sibéria, e até ao rio Dniepre. No século XVIII, Pedro, o Grande (1682-1725), levou as fronteiras ao norte até ao mar Báltico (alcançando finalmente uma saída para os oceanos). Os três países bálticos têm muito em comum culturalmente, mas os lituanos e letões estão mais próximos entre si que dos estonianos. Isso porque a língua estoniana é do ramo fino-úgrico (como o finlandês) da família linguística uraliana, enquanto o lituano e o letão são as únicas línguas bálticas remanescentes na família indo-europeia (família a que pertence a maioria dos idiomas dos países europeus).

Catarina II, a Grande (1762-1796), conquistou a Crimeia ao sul (chegando ao mar Negro). No século XIX houve a incorporação da Geórgia (1801), Finlândia (1809), das montanhas do Cáucaso ao sul e da Ásia central muçulmana, completando a construção do Império dos Czares. A URSS não adicionaria novos territórios e a Finlândia conquistaria a independência em 1918. Com o final da URSS em 1991, as 15 repúblicas constitutivas tornaram-se países independentes. Doze delas (exceto as três do mar Báltico: Estónia, Letónia e Lituânia) formaram a CEI (Comunidade dos Estados Independentes).

As montanhas do Cáucaso separam a Rússia da Geórgia, Arménia e Azerbaijão. Ex-repúblicas soviéticas, seguem agora como países independentes. Geórgia é a terra natal de Stalin. Atravessando a cadeia de montanhas do Cáucaso, encontramos as três ex-repúblicas soviéticas transcaucasianas, bastante mais quentes. A Geórgia e a Armênia são cristãs, ao passo que o Azerbaijão é muçulmano. A Geórgia segue a religião ortodoxa, sendo que a Igreja Ortodoxa Georgiana é autocéfala (isto é, independente, não tendo que se reportar hierarquicamente a nenhuma autoridade superior). Já a Igreja Arménia pertence às chamadas Igrejas Ortodoxas Orientais Antigas ou Igrejas que não da Calcedónia, que, por discordâncias eclesiásticas (aceitavam a autoridade apenas dos três primeiros concílios ecuménicos de Niceia, Constantinopla e Éfeso), não fazem parte da Igreja Ortodoxa.

Um apontamento em relação à Moldávia soviética. Tem origens históricas comuns com a Roménia, em que a língua é praticamente idêntica à daquele país e existe um movimento que prega a união entre Moldova (nome atual oficial da Moldávia) e Roménia. A religião principal é a ortodoxa, mas refletindo o grande debate entre a identidade romena ou não de Moldova, existem duas igrejas ortodoxas no país: a Igreja Ortodoxa Moldava, subordinada à jurisdição da Igreja Ortodoxa Russa, e a Igreja Ortodoxa da Bessarábia, subordinada à Igreja Ortodoxa da Roménia.

Finalmente, o último grande grupo de ex-repúblicas soviéticas e parte do Império Russo são as antigas cinco repúblicas soviéticas da Ásia central: Cazaquistão, Uzbequistão, Turquemenistão, Tadjiquistão e Quirguistão. São todas islâmicas. A sua islamização foi resultado dos choques e inter-relações entre os grandes impérios e nações islâmicas de origem árabe, turca e mongol que por séculos ocorreram na Ásia central.

As 15 ex-repúblicas soviéticas citadas são hoje países independentes, mas suas nacionalidades predominantes existem também dentro da Rússia atual, que comporta ainda cerca de uma centena de outras nacionalidades, subnacionalidades e grupos étnicos.

Dos cerca de 147 milhões de habitantes da Federação Russa atual, 80,58% são russos étnicos (russkie), seguidos dos tártaros (3,98%), chuvaches (1,26%), povos do Daguestão (1,45%), bashkirs (1,01%), bielorussos (0,79%), moldavos (0,70%), chechenos (0,74%) e alemães (0,4%). Fora os russos, o segundo maior grupo de nacionalidades indígenas da Rússia é formado pelos povos da bacia do rio Volga e dos montes Urais (cerca de 8% da população): tártaros, bashkirs, calmucos, komis, maris, moldavos, udmurtes e chuvaches. Os tártaros (segunda maior nacionalidade da Federação Russa) se destacam formando sozinhos quase metade deste grupo. Tártaros e bashkirs são muçulmanos, os calmucos são budistas e o restante do grupo é de religião ortodoxa.

Os povos do norte da cadeia de montanhas do Cáucaso formam outro grupo de nacionalidades da Rússia: chechenos, abazas, adigueses, balcares, inguches, cabardinos, carachaios, ossetas, cherquesses, e os povos do Daguestão (avares, aguís, darguínicos, cumicos, laks, lezguianos, nogais, rutuls, tabassarães e tsakhurs) constituem pouco menos de 3% da população. Todos são muçulmanos (exceto os ossetas, cuja maioria é cristã). Os povos da Sibéria e do extremo norte (buriatas, altai, tuvanos, caçasses, shors, iacutos, e uma série de outras pequenas etnias) são responsáveis por 0,6% da população. Os buriatas e tuvanos são budistas; os outros professam a religião ortodoxa.

Por aqui se vê que os russos são uma manta de retalho de dezenas de etnias ou nacionalidades. O que acontece é que a nacionalidade na Rússia segue o princípio do jus sanguinis. Isso significa que uma coisa é a cidadania russa. Outra coisa é a nacionalidade. Pode-se nascer em solo russo, mas o que conta é a herança de sangue, que o mesmo é dizer que o que conta é a cultura que se herda transmitida pela família. E é assim que as culturas nacionais são preservadas integralmente através do princípio do jus sanguinis. A Federação Russa é uma mancha dispersa de nacionalidades diferentes. Isso é uma riqueza cultural, mas também exibe potencial para problemas separatistas, como o caso da Chechénia, que iniciou uma guerra pela sua independência da Rússia em 1994. Até hoje, no entanto, se mantém parte dela.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

Os mistérios do Universo




Durante séculos, a cultura ocidental esteve fortemente conectada à cosmovisão cristã. Por essa razão, a resposta para qualquer pergunta estava enraizada na crença em Deus, como Senhor de Todo o Universo. Muitos dos fundadores da ciência moderna - Copérnico, Galileu, Kepler, Pascal, Boyle, Newton e Halley - acreditavam nesses conceitos centrais. Mas nos últimos 200 anos a comunidade científica afastou-se da cosmovisão cristã e assumiu uma postura que descarta qualquer intervenção sobrenatural na origem, funcionamento e manutenção do mundo. 

Como se originou a vida? Neste mistério, 
visões filosóficas opostas polarizam o debate. O homem, diferente de qualquer outro ser vivo, não consegue sobreviver apenas por instinto ou pelas leis da Natureza, sem uma ciência consciente. Porque é que tantas leis que percebemos na natureza parecem tão confiáveis e, ao mesmo tempo, tão misteriosas? Considerando desde os componentes de uma minúscula célula até as imensas galáxias do cosmos em expansão, a religião, a filosofia, a ciência, a literatura e as artes respondem de maneiras diversas a essas intrigantes questões.

Uma razão importante pela qual existe desacordo entre cientistas que estudam um fenómeno específico é que eles realizam investigações com base em paradigmas diferentes. A ideia proposta por Thomas S. Kuhn sugere que a ciência não constitui uma atividade empiricamente autónoma e objetiva, mas um empreendimento coletivo influenciado por fatores históricos e sociais. Durante os períodos de “ciência normal”, argumenta Kuhn, a comunidade científica age seguindo um modelo ou paradigma geralmente aceite. No entanto, ao se acumularem resultados que não se encaixam dentro desse modelo, ocorre uma “mudança de paradigma”. A partir de então, um novo consenso ou paradigma passa a fornecer as pressuposições e o modelo para se entender o mundo natural e levar-se a cabo as pesquisas científicas. Kuhn oferece como exemplo a mudança de paradigma que aconteceu no século XVI, quando a concepção geocêntrica do Universo sustentada por Ptolomeu foi substituída pelo modelo heliocêntrico do Sistema Solar proposto por Copérnico.

Outra mudança de paradigma significativa aconteceu na década de 1960, quando o peso da evidência confirmou as ideias que Alfred Wegener (1880-1930) havia demonstrado acerca do movimento dos continentes. Até então, pensava-se que as massas continentais de nosso planeta eram fixas, conectadas por pontes terrestres que posteriormente teriam submergido. Em uma conferência apresentada em 1912, Wegener propôs que os continentes atuais teriam formado um supercontinente, a que ele deu o nome de Pangeia. Mais tarde, eles voltaram a afastar-se. Durante várias décadas, destacados geólogos recusaram a teoria da deriva dos continentes, em parte por inércia intelectual e, especialmente, por falta de evidências concretas que a sustentassem. Também faltava um mecanismo que a pudesse explicar. No entanto, com o acúmulo de dados favoráveis, a teoria de que os continentes foram se separando foi aceite como válida, sendo hoje o paradigma dentro do qual operam ciências como a geologia, a geofísica, a oceanografia e a paleontologia.

O debate atual sobre as mudanças climáticas oferece outro exemplo de divergência de paradigma epistemológico. Durante os últimos anos, numerosos cientistas vêm analisando dados que sugerem um aumento gradual da temperatura de nosso planeta. As projeções feitas em modelos indicam que, se o aquecimento da atmosfera continuar por vários anos no ritmo atual, a humanidade enfrentará uma catástrofe irreversível. No entanto, ainda há cientistas que estão em desacordo quanto à causa principal desse fenómeno. Um grupo crê que o aumento da temperatura deve-se aos ciclos climáticos naturais que ocorrem independentemente da atividade humana. Os cientistas que empregam esse paradigma enfatizam a correlação entre os ciclos solares e a temperatura de nosso planeta. Mas a maioria hoje crê que a atividade humana é a principal responsável pelo aumento da temperatura. Os cientistas que utilizam esse paradigma buscam uma correlação entre as emissões de carbono e outras substâncias e os índices de mudança climática. É claro que as implicações éticas, económicas e políticas desse debate e a sua solução complicam a discussão do tema. A um nível mais fundamental, pode-se atribuir as discrepâncias entre cientistas em diversas disciplinas às pressuposições com que interpretam a origem do mundo natural e as leis que regem o seu funcionamento.

No famoso mito narrado por Platão no Livro VII da República, os homens estão acorrentados no fundo de uma caverna escura e veem diante de si apenas sombras, projetadas na parede atrás deles por um fogo. Pensam que aquela é a realidade. Um deles se liberta, sai e descobre a luz do sol e a vastidão do mundo. No início, a luz o deixa aturdido, o confunde: seus olhos não estão acostumados. Mas ele consegue olhar e volta feliz à caverna para contar aos companheiros aquilo que viu. Eles não conseguem acreditar. Todos nós estamos no fundo de uma caverna, presos à corrente da nossa ignorância, dos nossos preconceitos, e nossos frágeis sentidos nos mostram sombras. Procurar ver mais longe muitas vezes nos confunde: não estamos acostumados. Mas tentamos. A ciência é isso. O pensamento científico explora e redesenha o mundo, oferece-nos imagens dele que pouco a pouco ficam melhores, ensina-nos a pensá-lo de maneira mais eficaz. A ciência é uma exploração contínua das formas de pensamento. Sua força é a capacidade visionária de derrubar ideias preconcebidas, desvelar novos territórios do real e construir imagens novas e melhores do mundo. 

Esta aventura apoia-se em todo o conhecimento acumulado, mas a sua essência é a mudança, o provisório, uma procura permanente da verdade sem nunca se chegar ao fim. Olhamos cada vez para mais longe, mas o Universo é infinito, sem um começo e sem um fim. O Mundo é ilimitado e incomensurável. Não o podemos observar pelo lado de fora, porque não há um "fora". Mas nós, enquanto cientistas fazemos de conta que o observamos como se viéssemos de fora do Universo, de um não lugar. Mas nós, fazemos parte, somos o próprio Universo que queremos observar de fora. Estamos imersos em seu mistério e em sua beleza, e além existem sempre mais territórios ainda inexplorados. A incerteza em que estamos mergulhados, nossa precariedade, suspensa sobre o abismo da imensidão daquilo que não sabemos, é o absurdo absoluto de Albert Camus. 

Para compreender a importância da descoberta de que todos os seres vivos no nosso planeta têm os mesmos antepassados, não é preciso seguir as complexas argumentações do livro de Darwin. Para isso basta sentarmo-nos confortavelmente e ver correr a Coleção BBC Vida Selvagem - Richard Attenborough. Ver o 
mundo de um ponto de vista que pouco a pouco se torna mais amplo.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

Um contributo para a compreensão da medicina chinesa


O encontro entre culturas e seus saberes pode criar um espaço de acréscimo mútuo, em que os ganhos não comprometam as identidades. A hibridização entre o saber médico chinês e a medicina ocidental, é um desses exemplos, mais significativo na China com o partido comunista desde Mao, mas também cada vez mais na Europa com a importação da acupunctura. É a partir de 1949 que a medicina clássica chinesa sofre uma grande desvalorização com a adoção em grande escala da medicina baseada na ciência do paradigma ocidental, imbatível quer no diagnóstico, quer no tratamento. Mas o crescimento exponencial da medicina ocidental na China deveu-se à imposição por parte do poder político. E a sua tácita imposição como um dado adquirido de forma artificial gerou um grande mal-estar nos médicos chineses formados na tradição de uma civilização milenar contínua, sem interrupções durante cinco milénios, fundamentada num arcaboiço epistemológico alheio à ciência que floresceu no Ocidente com o dealbar da modernidade. Incentivada e financiada por países ocidentais, a biomedicina estabeleceu-se na China conjugando-se com a medicina chinesa de forma híbrida.

Ora, como de facto a acupunctura só funciona em contexto, numa sociedade impregnada numa civilização cujo paradigma epistemológico não tem nada a ver com o paradigma epistemológico da sociedade ocidental, obviamente quando praticada incompetentemente e descontextualizada, só pode dar asneira. Mas, por outro lado, os estudos científicos realizados de forma inapropriada com a aplicação de agulhas em pontos específicos no corpo sem a compreensão dos mecanismos de ação da acupunctura, não poderiam ser fiáveis nas suas conclusões. Esse quadro tem levado ao questionamento sobre se os métodos adotados para comprovar a eficácia da acupuntura são os mais indicados, especialmente por partir de um paradigma com fundamentação epistemológica deslocada. Essa forma de proceder subverte o modo clássico singularizado de um método que não se pode acomodar a um escrutínio baseado numa epistemologia diferente. Contudo, vale assinalar que há trabalhos científicos com resultados diferentes, uma vez que o desenho dos ensaios clínicos levou em linha de conta as especificidades da acupunctura que caem fora do paradigma analítico da ciência ocidental.

A adoção de preceitos ocidentais na medicina chinesa provocou uma intensa perda de identidade cultural ao ser descartado o paradigma clássico taoista. A hibridização resultante da ação política favoreceu o desnivelamento na atribuição de valor entre as duas medicinas, com a balança pendendo para a ocidental. Mesmo que tenha havido ganhos mútuos no decorrer do processo, não houve uma partilha equilibrada de conhecimentos entre as partes, mas uma supremacia da ciência ocidental.

A desvalorização da medicina clássica chinesa, e a sua posterior adaptação à lógica ocidental, afetou a forma como os chineses compreenderam a melhor maneira de desenvolver a sua própria medicina. E foi o que aconteceu, por exemplo, com a acupunctura, ao serem utilizados métodos inapropriados nas investigações para validação da sua eficácia. A sobreposição de valores que a ciência ocidental impõe a outros modos de produção de conhecimento estrangula a possibilidade de haver parcerias reais de compartilhamento de saberes e cria uma falsa ideia de integração. É esse o mito do conhecimento científico e o quanto este favorece o domínio da biomedicina e a submissão de outras práticas à sua lógica, como vem acontecendo com a medicina chinesa. E é isso que traz a impossibilidade sociológica de validar as medicinas complementares e alternativas, já que tal validação é baseada no modelo de produção de evidências da ciência ocidental e em noções de “verdade” cunhadas pela biomedicina. O processo de colonização ocidental em relação aos saberes do Oriente permanece vivo pela imposição do seu modo de produzir evidências, o que proporciona uma relação de subalternidade a qualquer conhecimento que não seja produzido pelo método científico.

No que concerne à medicina clássica chinesa, pela sua cada vez maior assimilação pela biomedicina, perde-se uma estrutura caracteristicamente preventiva que produz, simultaneamente, atenção à saúde, educação para a saúde e incentivo ao autocuidado, tanto para quem a aplica como para quem a recebe. A prevenção não é obtida por uma orientação verticalizada, com a imposição do saber médico em detrimento do saber leigo; o cuidado é compartilhado e construído pela aprendizagem mútua de caminhos singularizados. Nesse sentido, a medicina clássica chinesa caminhou na mesma direção que as propostas mais atuais de cuidado à saúde. Então qual é o sentido e a quem interessa a imposição de valores e métodos a que ela tem sido submetida no Ocidente?

Para Sean Hsiang-lin, a medicina chinesa, que no início do século XX foi considerada a antítese da modernidade, passou a ser o exemplo, no final do século, da criação de um tipo diferente de modernidade. Entretanto, pode-se argumentar que não há diferentes formas de modernidade, mas que são variados os tentáculos do pensamento moderno, especialmente na sua capacidade de capturar, absorver, incorporar e transformar saberes e encapsulá-los numa nova base discursiva. A constituição moderna, abordada por Bruno Latour, explica tudo e esquece o híbrido que está no meio de um todo holístico.

Fica clara a necessidade de esclarecer a discussão sobre a imposição de valores culturais. Essa imposição é evidenciada na crença da ciência moderna como única forma de produzir conhecimento e no discurso que afirma a superioridade científica em relação ao conhecimento clássico da medicina chinesa. A tradição clássica tem como fundamento básico também a existência de uma energia vital subtil, adquirida diretamente da natureza desde o momento da conceção. Essa vitalidade pode ser reabsorvida e autoestimulada e, numa aceção cosmológica, é o produto da inter-relação humana com o cosmos. Isso implica uma prática de técnicas do seu cultivo, como é o caso das práticas meditativas e do “conhece-te a ti mesmo”.

O conhecimento da medicina clássica chinesa é um conhecimento adquirido por uma prática pessoal, em que a serenidade e a introspecção são fundamentais para cada um, autonomamente, equilibrar a sua vitalidade e desenvolver consciência corporal. Faz parte essencial da aprendizagem dos terapeutas em medicina clássica chinesa conhecer minimamente a sua própria vitalidade e ser capaz de cuidar de si mesmo para, então, cuidar da vitalidade de outras pessoas. A expertise terapêutica não se dá somente pela aprendizagem teórica, meramente cognitiva e racional, mas também se dá pelo entendimento pessoal dos fatores internos e externos que interferem positiva ou negativamente no equilíbrio energético. O desenvolvimento de seu autocuidado também faz parte da prática terapêutica e isso só é possível com o acolhimento à subjetividade e a atenção ao contexto social do sujeito. As ações de cuidado não se resumem à aplicação técnica, muito menos padronizada.

Por sua vez, a formação médica ocidental e as ações de seus praticantes estão mais para um cientista que estuda a doença do que para um terapeuta focado no sujeito doente. Com isso, priorizam-se os estudos laboratoriais de natureza analítica e desenvolve-se um modelo de cuidado prescritivo. O abandono do diagnóstico diferencial clássico e a utilização dos métodos ocidentais focados no processo patológico, para além do seu caráter despersonalizante, reduz ao mínimo a ação interna dos seus próprios recursos. Sabe-se hoje que, por exemplo, o sistema imunitário recebe uma forte influência do sistema neurológico em que o estado emocional releva o processo de cura.

Na medicina clássica chinesa o tratamento visa redirecionar o fluxo da vitalidade anímica. Como exemplo, pessoas que procuram o tratamento com dores no estômago podem referir terem sido diagnosticadas pela biomedicina com gastrite, no entanto, para a medicina chinesa, os caminhos que levaram ao desenvolvimento daquela condição não foram os mesmos, não só do ponto de vista histórico de cada um, mas especialmente das características próprias de cada organismo e sua reação aos estímulos vividos, o que conduz a tratamentos personalizados.

Além da transformação contemporânea que se operou na medicina clássica chinesa por via da introdução biomédica, ocorreu, por outro lado, um efeito boomerang em direção ao Ocidente. Após a década de 1970, fruto da atividade científica dirigida especificamente à acupuntura, outra vertente dessa técnica apareceu, com desenvolvimento de teorias e explicações científicas para a sua ação. Essa nova teoria, denominada acupuntura de base neuronal, cresceu rapidamente, permitindo o aparecimento de um movimento entre os acupuncturistas formados na medicina ocidental. 
A acupunctura científica pouco ou nada tem a ver com a acupuntura tradicional chinesa, a não ser a inserção de agulhas no corpo. A utilização da acupunctura pela população mundial, conjuntamente com outras práticas “alternativas”, tem crescido em maior velocidade do que a sua validação científica. Esse aumento tem sido relacionado com várias mudanças sociais ditas da "pós-modernidade New Age". São procurados tratamentos mais personalizados, fugindo do modelo reducionista biomédico ainda demasiado paternalista, e reducionista, priorizando a entidade patológica em detrimento da pessoa. 

A introdução da acupunctura no Ocidente fez-se pela via da sua legitimação nos termos da ciência ocidental. E esse foi o erro ao negligenciar-se que essa era uma técnica consolidada por um fundamento epistemológico de uma experiência milenar. O seu efeito foi reduzido à libertação de mediadores neuroquímicos. Dessa maneira, pode-se considerar que a orientação positivista e racionalista da acupunctura resultou num erro crasso devido a toda a sua descontextualização, dado o facto de a acupuntura, atualmente, ser cada vez mais operada nos ambientes ocidentais distantes do solo cultural chinês. Assim, o único benefício que daí resultou foi tornar-se apenas num grande negócio.