terça-feira, 29 de junho de 2021

Lotaria e incerteza: Lá vamos indo aos solavancos

 

PJ e Ministério Público desencadearam a megaoperação para a detenção de Joe Berardo



A origem deste livro é uma das mais curiosas, com uma certa aura romântica a envolvê-la. George Samuel Clason, o autor, nascido no Louisiana em 1874, foi militar, homem de negócios e escritor. Por volta de 1926, lembrou-se de escrever uma série de panfletos informativos sobre como alcançar o sucesso financeiro, com parábolas ambientadas na antiga Babilónia, um império indubitavelmente poderoso. Em linguagem simples e colorida, o autor conta a história de um homem que quis tornar-se rico e o conseguiu, sendo mais tarde convidado pelo próprio Rei a ensinar a sua arte. As cinco leis de ouro em que baseava as suas lições são princípios pedagógicos válidos para a economia de todos os tempos. Um livro que nunca deixou de ser um grande bestseller e é hoje considerado um clássico moderno.

De Jorge Luís Borges: A Lotaria na Babilónia.

Como todos os homens da Babilonia, fui procônsul; como todos, escravo; também conheci a onipotência, o opróbrio, os cárceres. Olhem: à minha mão direita falta-lhe o indicador. Olhem: por este rasgão da capa vê-se no meu estômago uma tatuagem vermelha: é o segundo símbolo, Beth. Esta letra, nas noites de lua cheia, confere-me poder sobre os homens cuja marca é Ghimel, mas sujeita-me aos de Alepe, que nas noites sem lua devem obediência aos de Ghimel. No crepúsculo do amanhecer, num sótão, jugulei ante uma pedra negra touros sagrados. Durante um ano da Lua, fui declarado invisível: gritava e não me respondiam, roubava o pão e não me decapitavam. Conheci o que ignoram os gregos: a incerteza.

Se a lotaria é uma intensificação do acaso, uma periódica infusão do caos no cosmos, não conviria que a casualidade interviesse em todas as fases do sorteio e não apenas numa? Sou o homem mais rico da Babilónia. Pouco tempo me resta. O navio está para zarpar. Por inverosímil que seja, ninguém tentara até então uma teoria geral dos jogos. O babilónio é pouco especulativo. Acata os ditames do acaso, entrega-lhes a vida, a esperança, o terror pânico, mas não lhe ocorre investigar as suas leis labirínticas, nem as esferas giratórias que o revelam. Não é irrisório que o acaso dite a morte de alguém e que as circunstâncias dessa morte – a reserva, a publicidade, o prazo de uma hora ou de um século — não estejam subordinadas ao acaso?

segunda-feira, 28 de junho de 2021

Rebelião de Stonewall




A Rebelião de Stonewall diz respeito a uma série de manifestações, que começaram por ser espontâneas, de membros da comunidade LGBT contra uma invasão do 
bar Stonewall Innda por parte da polícia de Nova Iorque, e que aconteceu nas primeiras horas da manhã de 28 de junho de 1969, localizado no bairro de Greenwich Village em Manhattan. Foram motins amplamente considerados como o evento mais importante que levou ao movimento moderno de libertação gay e à luta pelos direitos LGBT.




A polícia tentou conter parte da multidão, carregando sobre algumas pessoas, o que incitou ainda mais os manifestantes. À medida que a multidão tentava derrubar o carro da polícia, e alguns cortes nos pneus, a agitação atraiu mais pessoas que queriam saber o que se estava a passar. Alguém na multidão declarou que o bar tinha sido invadido porque não pagara à polícia. Várias moedas começaram a cair sobre a polícia, enquanto a multidão gritava "Porcos!" Latas de cerveja pelo ar e a polícia a atacar. Alguns encontraram uma pilha de tijolos num local em construção próximo. A polícia esmagada por cerca de  500 a 600 pessoas, começou a prender algumas, como foi o caso do cantor popular Dave Van Ronk - que tinha sido atraído pela revolta enquanto estava num bar perto do Stonewall. Embora Van Ronk não fosse gay, ele tinha sentido a violência da polícia quando participou numa manifestação contra a guerra do Vietname. Múltiplos relatos do motim afirmam que não houve uma organização pré-existente ou causa aparente para a revolta: o que aconteceu foi algo espontâneo.




A diferença naquela ocasião foi que os frequentadores do Stonewall, cansados de tanto assédio, decidiram resistir à violência policial. Nos dias e semanas seguintes a comunidade LGBT local auto-organizou-se em torno da exigência a poderem viver em segurança a sua sexualidade; passado um ano, decidiram comemorar o 28 de junho, dando assim início nos anos de 1970 àquilo que hoje é designado por "Dia do Orgulho LGBT". Pretendem que os direitos que reivindicam não sejam mais do que pura e simplesmente Direitos Humanos. São direitos de pessoas que são seres humanos como quaisquer outras pessoas. São simplesmente direitos de pessoas a serem pessoas.




No contexto atual, estas reivindicações ainda são muito mal compreendidas em alguns países, porque não são entendidos como verdadeiros direitos políticos. Mas claro que são direitos políticos. Como quaisquer outros direitos humanos, são uma questão profundamente política. Que os direitos humanos são políticos não oferece dúvida. E não têm de de ser controversos. Enquanto direitos humanos eles não são controversos.

Se partirmos do princípio que é consensualmente aceitável a ideia de que foi através da construção de um discurso idiossincrático que conferiu privilégios sociais e de poder ao homem branco, então temos de admitir o desafio desse poder por parte de grupos que subjetivamente se sentem marginalizados por ele, e ao mesmo tempo dar azo a que as suas vozes tenham precedência. Ainda não é líquido que esse consenso esteja estabelecido na sociedade. E, por outro lado, ainda há controvérsia quanto a realidades autocentradas poderem estar a salvo de oportunismos indevidos no assalto ao poder, legitimando o surgimento de novos privilegiados. Portanto, será uma obrigação moral todos os conotados como privilegiados do status quo, incorporarem na sua mundividência outras formas de visão veiculadas pelos designados: "estudos" feministas; pós-coloniais; etc.? Incluindo a superstição, as crenças espirituais tipo Nova Era, e até mesmo as experiências baseadas na identidade e experiências emocionais?

Estes "estudos" têm como premissa a ideia de que pessoas com diferentes identidades marginalizadas têm diferentes conhecimentos decorrentes das suas experiências pessoais, sentidas e vividas em partilha de identidade de grupo, particularmente devido à sua exposição à opressão e exploração sistémicas, quando são forçadas a operar dentro de um sistema dominante que não é o seu. Mas ao contrário do paradigma científico das chamadas "ciências duras" (escrupulosamente despidas de preconceitos ou raciocínios motivados, porque obcecados pela sua luta pela objetividade), os "estudos de Cultura e Justiça Social" não funcionam com a mesma objetividade. Estes “estudos” pressupõem um compromisso político estribado numa Teoria e numa Ideologia. E foi assim que os ‘académicos’, com este tipo de compromisso, se transformaram em efetivos ‘ativistas políticos’. E foi assim que algumas universidades se tornaram progressivamente mais parecidas com ‘igrejas’, na medida em que os seus professores passaram a dizer aos seus alunos que se tornassem membros de organizações de protesto por causas que eles consideravam legítimas.

Hoje há muita gente comum confundida quando ouve um certo discurso nos ‘media’ ativamente pronunciado por uma ampla faixa de intelectuais e ativistas, predominantemente de esquerda, como sendo a verdade dominante, de pleno direito, acerca do que deve ser a Justiça Social. Mas muita dessa gente manifesta-se perplexa, porque quando faz a pergunta: “de onde nasceu essa verdade?”, recebe como resposta que não se podem dar ao luxo de a questionar, quando, pelo contrário, lhes é devido um certo número de atitudes politicamente corretas. Ora, isso tem deixado essas pessoas ainda mais confusas e alarmadas. Por exemplo, engenheiros americanos foram despedidos de uma certa organização hegemónica por dizerem apenas: "que obviamente havia diferenças entre os géneros". Um outro caso passou-se na BBC com um humorista – quando ao ter tecido piadas que poderiam ser interpretadas como racistas por parte de certos cidadãos – que acabou por ser convidado a não continuar com o seu programa.

domingo, 27 de junho de 2021

A causa das coisas e suas consequências


A Europa que não subestime a Rússia. E que não subestime também António Costa, cujas oportunidades conjunturais ainda o podem vir a tornar muito útil à Europa, devido às derivas desfavoráveis por que a Alemanha e a França vão passar nos próximos meses. A Alemanha com a saída de Angela Merkel; e a França com o enfraquecimento de Emmanuel Macron. Merkel, ao não querer utilizar o 'Nord Stream 2' como arma de pressão sobre Putin, perdeu a confiança daqueles que agora a acusam de colocar os interesses económicos do seu país à frente dos interesses do conjunto dos países europeus. As conclusões desta última Cimeira são muito duras em relação à Rússia, lembrando que ainda falta a Putin respeitar o acordo sobre a 'Ucrânia (Minsk 2)', negociado com a União Europeia e nunca cumprido.

A integração europeia tem na sua génese um conjunto de valores democráticos e liberais que constituem o seu mais sólido fundamento. Por isso, é muito mais do que uma simples associação de países que visam prosseguir interesses económicos comuns. Quando esses valores estão em causa é preciso defendê-los. Foi o que a esmagadora maioria dos seus líderes fez na quinta-feira passada, em Bruxelas, diante de mais uma violação desses valores na Hungria: a universidade fundada por George Soros em Budapeste foi encerrada, ao mesmo tempo que Viktor Orbán acolhia com entusiasmo a Universidade Fudan, uma universidade chinesa a se instalar pela primeira vez num país europeu. Os direitos e as liberdades dos indivíduos estão na base das democracias liberais que não permitem, por isso, qualquer espécie de discriminação política, religiosa, étnica, de género ou outra qualquer. Orbán mantém relações próximas com Moscovo e Pequim. A China fez da Hungria a plataforma regional da Huawei e dos seus esforços para expandir a tecnologia 5G, e de Budapeste o destino a nova “estrada dos Balcãs” que liga o Porto do Pireu (comprado por uma empresa estatal chinesa) até ao centro da Europa.

A paisagem política europeia fragmenta-se. E convém ter em mente que, embora Orbán seja um caso extremo, as coisas também não estão famosas na Polónia, na Eslovénia e noutros países da Europa de Leste. Está a dar-se um processo de imitação nesses países, sendo a Eslovénia a assumir a presidência do Conselho da União já a seguir a Portugal. 

Indo agora à causa das coisas: há quem veja na tão falada 'Teoria Cultural' como sendo a forma dominante de pensamento do atual ativismo pela 'Justiça Social', cuja forma de pensar o mundo e a sociedade “bebe do fino do pós-modernismo académico da segunda metade do século XX”, a causa, como reação, da deriva autocrática e extremista desta frente a leste da Europa. É “a Teoria”, que informa muitos dos estudos das humanidades, e que penetram particularmente as ciências sociais, separando radicalmente a Cultura da Biologia subjacente à “natureza humana”. “A Teoria” tem impregnado as academias como uma espécie de paradigma de esquerda ao qual os ativistas de todos os campos e causas se têm inspirado para levar a bom porto as suas lutas reivindicativas contra as "construções sociais modernas e iluministas" efetuadas pelo poder político instalado, de caráter opressor e explorador.

Desde os finais dos anos 1980 que “a Teoria” tem animado especialmente os discursos do "feminismo, dos estudos de género e sexualidade", em suma, as chamadas causas fraturantes. Reúne um conjunto de ideias radicalmente cínicas e céticas em relação à forma de conhecimento, poder e linguagem. Por fim, “a Teoria” saiu das universidades para ser aplicável pelos ativistas em movimentos junto do publico em geral, e veiculada pelos 'media' para a implantação na sociedade de um modelo cultural mais amplo. O que conta neste mundo hipermediatizo, é o Significado. E o Significado, como sabemos, assenta as suas raízes na Linguagem. E se é de certa maneira a Linguagem, através da língua falada, que dá forma à realidade, os 'media' exacerbaram-na de tal modo que a elevaram a um estado que se tornou hiper-real, artificial, um simulacro portanto, de um mundo que não deixa de ser cínico.


sábado, 26 de junho de 2021

A neutralidade: a propósito da posição do nosso Governo, enquanto presidência europeia do Conselho, em relação a Orban



A obrigação de neutralidade serve para questões que não os próprios valores da UE. Ou seja, é neutralidade se se está a discutir uma questão relativa à agricultura ou o que quer que seja e, nesse caso, o governo que está a gerir os trabalhos tenta manter-se neutral. Os tratados têm claríssimo no artigo 2 que é preciso respeitar os direitos das minorias e que os Estados estão obrigados a políticas de não discriminação.

A justificação do nosso Governo não colhe e tanto assim é que, em 2000, durante a presidência portuguesa do engenheiro António Guterres, quando um partido de extrema-direita entrou para o Governo austríaco, foi a presidência portuguesa que tomou a iniciativa de fazer reuniões excluindo o Governo austríaco, o que é ainda mais forte do que assinar uma carta. Na altura, ninguém disse que António Guterres estava a violar regras escritas ou não escritas do Conselho. Pelo contrário, ele foi internacionalmente elogiado.

O conceito de direitos humanos e diversidade cultural é uma pedra angular da nossa humanidade. Tais direitos não são concedidos porque se é cidadão de um país ou se pertence a uma nação, mas pertencem por direito a toda a humanidade. O direito de ser homossexual afirma-se independentemente do país de que se é cidadão. E do que as leis da Hungria pretendem. Um governo pode naturalmente contestar o direito legal de uma pessoa ser homossexual, mas isso não pode pôr em causa o que é considerado o direito humano. O conceito de direitos humanos universais é, desse ponto de vista, uma ideia unificadora, algo que torna cada um de nós importante, algo que podemos todos partilhar, apesar da diversidade dos sistemas jurídicos dos países.

Diz-se com frequência que os países ocidentais reconhecem numerosos direitos humanos, especialmente os que estão ligados à liberdade pública, o que não acontece em alguns países do médio e extremo oriente. Esta ideia unificadora tem sido objecto de críticas virulentas, por parte de líderes de governos autoritários, como é o caso de Viktor Orbán.

É claro que noutros contextos, como os das chamadas “guerras culturais” esta ideia universalista dos Direitos Humanos, como património do Ocidente, tem sido frequentemente apelidada de chauvinista, quando pretende arrogar-se como o lugar único da tolerância, da liberdade e dos direitos humanos em todos os tempos. É verdade que há dissensões no mundo, mas as linhas de divergência não coincidem com as fronteiras nacionais, nem com a grande dicotomia entre o Oriente e o Ocidente. Isto aplica-se tanto às tradições do passado quanto às prioridades e às aspirações atuais. Não devemos ignorar a heterogeneidade no interior de cada cultura.

Haverá alguma dúvida coincidente, ou coincidível, no facto de os ventos autocráticos estarem a desgraçar predominantemente os países da União Europeia, a leste, que outrora estiveram protegidos dos ventos pós-modernos de inspiração marxista que grassaram a ocidente a partir do fim da Segunda Guerra Mundial?

quinta-feira, 24 de junho de 2021

Desonestidade intelectual ou ativismo radical em movimento?



Fig. 1


Esta questão de a UEFA não ter concordado com o presidente da camara de Munique em iluminar o estádio com as cores do arco-íris como manifestação de apoio às queixas dos ativistas LGBTIG+ (ver Fig. 3 mais abaixo) em relação ao que se está a passar na Hungria em relação à lei que limita os seus direitos humanos; e de o governo português, pela sua função na presidência europeia, se ter eximido a assinar a carta de 16 países da União a manifestar o seu protesto em relação à deriva homofóbica do governo húngaro:

Insere-se na questão mais vasta da chamada “guerra cultural” entre modernistas e pós-modernistas, e já com mais de duas décadas de agitação no Ocidente. Esta guerra cultural é tão intensa que acabou por definir a vida política - e cada vez mais a vida social destes primeiros anos do seculo XXI. Chegamos a um momento na história do Ocidente em que a sua marca cultural e civilizacional, definida por Modernidade, está em risco de desaparecer, e com ela a Democracia que lhe servia de sustentáculo.

Fig. 2

Em bom rigor, a ameaça ao status quo demoliberal, surge dos dois extremos do espetro político: uma revolucionária e outra reacionária, ambas iliberais. E isto é assim porque, se a extrema-direita tem adquirido maior fôlego na última década com a ascensão de populistas autocratas vindos do leste da Europa, a esquerda liberal abandonou os valores da modernidade iluminista para abraçar as ideias do pós-modernismo francês e da escola crítica de Frankfurt, que classificam o modernismo de patriarcal e opressor.


Fig. 3


quarta-feira, 23 de junho de 2021

Arqueologia espacial





Oumuamua é um objeto interestelar que passou pelo Sistema Solar. Foi descoberto numa trajetória altamente hiperbólica por Robert Weryk em 19 de outubro de 2017 com observações feitas pelo telescópio Pan-STARRS. O objeto estava a 0,2 UA (30 000 000 km) da Terra. Inicialmente classificado como um cometa, foi reclassificado como um asteroide uma semana depois. É o primeiro objeto descoberto de uma nova classe chamada asteroides hiperbólicos. 
O corpo celeste tem cerca de 400 metros de comprimento e 40 metros de largura. Por causa da velocidade do objeto, mais rápida que o esperado, astrónomos da Universidade de Harvard chegaram a aventar a hipótese de se tratar de um artefacto extraterrestre. Um estudo de 2021 argumenta que o objeto interestelar é uma parte de um planeta semelhante a Plutão (exo-Plutão) fazendo parte de outro sistema solar.

Depois de notar que Oumuamua exibe aceleração não gravitacional, o chefe do departamento de astronomia da Universidade de Harvard sugeriu que poderia ser uma sonda de navegação solar. Mais tarde, o estudo publicado por Seligman & Laughlin em 2020 - depois que observações do Telescópio Espacial Spitzer estabeleceram limites rígidos para a liberação de moléculas baseadas em carbono - sugeriu que se Oumuamua fosse um iceberg de hidrogénio, então o gás hidrogénio puro, que lhe dá um impulso semelhante a um foguete, teria escapado da deteção. A teoria deles é baseada na suposição de que o gelo H2 pode-se formar em densas nuvens moleculares. Se isso for verdade, objetos de gelo H2 podem ser abundantes no universo. O gelo H2 também foi proposto para explicar a matéria escura. O local mais provável para a produção de icebergs de hidrogénio é nos ambientes mais densos do meio interestelar. No entanto, esses ambientes estão muito distantes e não são propícios ao desenvolvimento de icebergs de hidrogénio. Além disso, em regiões com alta densidade de gás, o aquecimento por colisões de gás pode sublimar rapidamente o manto de hidrogénio nos grãos, impedindo-os de crescer ainda mais. Para formar um objeto com o tamanho de 1 km, é preciso primeiro formar grãos de 1 mícron, então esses grãos crescem por colisões pegajosas, mas no caso de um iceberg de hidrogénio, essa teoria não se sustentaria. A sublimação térmica por aquecimento colisional em GMCs poderia destruir icebergs de hidrogénio molecular do tamanho de Oumuamua antes da sua fuga para o meio interestelar como matéria escura. O resfriamento evaporativo nessas situações não reduz o papel da sublimação térmica pela luz das estrelas na destruição de objetos de gelo H2. 



A ilustração precedente mostra o processo de rompimento causado pelas marés que pode dar origem a objetos semelhantes ao Oumuamua. Como rodava a cada oito horas, a luz solar refletida mostrava que tinha uma forma muito extrema, pelo menos dez vezes mais longa do que a sua largura. Quando se tenta combinar esta variação da luz refletida ao longo do tempo, a forma que mais se adequava era a de um objecto plano, com a forma de uma panqueca. O que também é estranho quando não se pensa que pode ser um objecto artificial. Um relatório em junho de 2018, publicado na Nature, mostrou que este objecto tinha um impulso excessivo para longe do Sol além da força da gravidade. Como não havia libertação de gases visível nem evaporação deste objecto, não poderia haver este efeito de foguetão como acontece nos cometas.

Se nós, humanos, estamos a enviar aparelhos para o espaço como a Voyager ou a New Horizons, deveríamos estar a procurar equipamentos no espaço que tenham sido enviados por outros. 
Muitas civilizações existiram antes de nós e morreram, já não existem. Procurar vestígios faz muito mais sentido do que tentar detetar sinais de rádio. É este o sinal de alerta dado pelo Oumuamua. A comunidade científica está de pé atrás porque é algo novo, é um tema em que o público tem muito interesse e muitos académicos preferem manter uma distância do público. Se recuarmos 50 anos, os cientistas começaram a procurar sinais de rádio. Sempre foi pouco convencional, mas deveria ser uma tendência dominante. Investimos centenas de milhões de dólares e não encontrámos matéria escura; mas na busca por relíquias tecnológicas investimos talvez mil vezes menos dinheiro. Se soubermos que não estamos sozinhos, se soubermos que há alguém mais inteligente, isso teria um impacto gigantesco na nossa humanidade. Afetaria as crenças religiosas, crenças filosóficas, afetaria as nossas ambições relacionadas com o espaço, a forma como olhamos uns para os outros. É a questão mais importante, como é que os cientistas podem ignorá-la? Como é que certas ideias como o multiverso são populares entre físicos, mas a possibilidade de vestígios tecnológicos no espaço não é? Nós sabemos que existimos, sabemos que metade das estrelas que se parecem com o Sol tem planetas do tamanho da Terra sensivelmente à mesma distância. Se tivermos circunstâncias semelhantes, poderemos ter resultados semelhantes. 



Nina Lanza acredita que a humanidade pode não estar preparada para lidar com vida fora da Terra, mas para si seria ainda mais difícil aceitar que não há. “Nunca nos conseguimos preparar. É como quando as pessoas se perguntam se estão preparadas para ter filhos. Ninguém está preparado. Pode saber-se como é, intelectualmente, mas nunca se sabe o que acontece no coração”. Para Nina Lanza, provar a hipótese de Marte ter albergado vida, mesmo que microscópica, é o propósito principal de um trabalho que começou há mais de 20 anos, quando viu as primeiras imagens enviadas do planeta pelo robô Pathfinder. “Ao longo da História, os humanos pensaram que eram especiais e têm vindo a perceber que afinal não são. Esse é um tema recorrente da investigação científica. Pensávamos realmente que estávamos no centro do Universo, mas não estamos. Nem estamos perto. Talvez a vida que pulula na Terra seja única, mas dada a vastidão do Universo e a forma como a química da vida parece ser comum, talvez não devamos pensar que somos assim tão especiais”.

Nina Lanza refere que se as missões de investigação científica em Marte não conseguirem encontrar provas de vida, isso não permitirá tirar grandes conclusões sobre o resto do Universo: “Só dirá que continua a ser provável que exista vida em todo o lado e que temos que encontrar maneiras melhores de a descobrir. 
Na Terra, as melhores provas da existência de vida antiga são mais químicas do que outra coisa. Podemos aplicar esse conhecimento às rochas de Marte" . No que respeita ao veículo Perseverance, o trabalho em que Nina Lanza está envolvida consiste em procurar sinais “químicos, mineralógicos, morfológicos e fósseis”, entre outras técnicas. A médio prazo, a fase mais importante do trabalho geológico do Perseverance será obter uma coleção de amostras de rocha e, numa missão posterior, recolhê-las e enviá-las de volta para Terra, algo inédito, que só deverá acontecer entre 2028 e 2031.

terça-feira, 22 de junho de 2021

Algazarra. Numa viagem do Minho ao Algarve





Algazarra é uma expressão muito dita no Algarve, região de Portugal onde os árabes/mouros permaneceram mais tempo na Península Ibérica para além da Andaluzia. Era a vozearia que os mouros faziam antes dos combates, quer no tempo da invasão muçulmana, quer no tempo das Taifas, das lutas entre si pelo poder no Al-Andaluz.



Al-Andaluz foi o único território europeu continental a participar na Idade de Ouro Islâmica, passando por vários períodos políticos. Era inicialmente um emirado integrado na província norte-africana do Califado Omíada, tendo sido também Califado de Córdova, diversas Taifas: província Almorávida; Califado Almóada; Reino Nacérida de Granada. A região ocidental da Península Ibérica era denominada Gharb al-Andalus ("o ocidente do al-Andalus") e incluía o atual território português. De uma maneira geral, o Gharb al-Andalus foi uma região periférica em relação à vida económica, social e cultural de Córdova e Granada.


Foi quando estávamos a passar a zona dos leitões da Bairrada, e o dia renascia, que as raparigas adolescentes no banco de trás acordaram. Uma estava a pesar em cima da outra, e começou a algazarra. Susana, ao lado do marido que conduzia sem dizerem uma palavra há mais de uma hora, virou-se para trás e disse às meninas para não fazerem barulho que o pai ia a conduzir. Uma delas disse: "a conduzir, Porquê?"
"Dá para vocês ficarem quietas?" Disse o condutor. Uma delas empurrava com os pés o banco do condutor. Todas pararam de falar. Não conseguiam entender por que lado a algazarra atrapalhava a condução. E ele não entendia como podiam falar todas ao mesmo tempo, às vezes sobre assuntos diferentes, parecendo que ninguém ouvia ninguém. Porque não se calavam e deixavam que se concentrasse na condução? Por causa da algazarra, tinha deixado passar a próxima estação de serviço onde tencionava abastecer.

A questão fundamental aqui é simples: homens e mulheres são diferentes. Nem melhores nem piores, apenas diferentes. Antropólogos, Psicólogos, Sociólogos sabem disso há anos, mas têm também a dolorosa certeza de que após a viragem para o terceiro milénio depois de Cristo ter descido à Terra, afirmar publicamente as suas conclusões de que "homens e mulheres são diferentes" levantaria uma algazarra dos al-Gharbs-Andaluses no jogo do tresilho. Por isso, muitos deles têm-se fechado em copas. (Fechar-se em copas no jogo do tresilho, um jogo de cartas de três jogadores, um contra dois,  jogado em sentido contrário ao dos ponteiros do relógio, surgido na Espanha no início do século XVII).

Justamente: quando a ciência se começava a preparar para provar que não era apenas no aspeto visível do corpo que havia diferenças entre um homem e uma mulher, mas também no cérebro, eis que a ideia das diferenças entre um homem e uma mulher era uma ideia obscena, típica de párias devassos e gandulos. Ora, como todos os velhos sabem de experiência feita, este tema na atual sociedade "pós-millennials" tornou-se um terreno extremamente acidentado, fértil em controvérsias extremadas, em que as conclusões são sempre muito perturbadoras. Não quer dizer que deixe um rasto de sangue, como a luta de classes, mas que tem agravado as relações entre "géneros", lá isso tem.

Por exemplo: menos de um por cento dos pilotos da aviação comercial são mulheres. Mas quando os académicos cientistas sociais, para as suas teses de doutoramento, e nos trabalhos de campo tentam conversar sobre isso com os funcionários de empresas aéreas, muitos negam-se a opinar, com medo de serem acusados de 'sexistas' ou 'antifeministas'. Muitos se defenderam com um "nada a declarar", e houve companhias que fizeram ameaças caso os seus nomes fossem citados na tese. As mulheres em cargos executivos são, em geral, mais recetivas, embora muitas jogam à defesa, não vá a pesquisa constituir uma ameaça ao feminismo. E quanto aos académicos já bem instalados na vida, não estão para se incomodarem com a compra de uma guerra, e só falam abertamente em salas pouco iluminadas, a portas fechadas e com a garantia de que os nomes deles e dos locais onde trabalham não sejam mencionados. Nos países ocidentais, cerca de 50% dos casamentos acabam em divórcio, e os relacionamentos mais sérios não duram muito. Homens e mulheres de todas as culturas, credos e raças vivem em constante duelo por causa de opiniões, comportamentos, atitudes e crenças.

Tomemos então o assunto: com aquela 'leveza do ser', com um sentido de humor à Milan Kundera - Quando um homem vai aos mictórios, geralmente faz isso por uma razão concreta e definida, como outra coisa qualquer. As mulheres dizem que vão à casinha, usando o espaço para mais do que uma coisa, incluindo reuniões sociais e sala de terapia. Podem entrar como estranhas e sair como amigas de infância. Nunca se viu um homem levantar-se de uma mesa num café ou restaurante, onde estão homens e mulheres, e dizer para o parceiro do lado: "vou verter águas, também quer vir?" 
E depois deixam o tampo de baixo da sanita todo mijado e o tampo de cima levantado.

Os homens ficam maravilhados: com a capacidade que as mulheres têm de entrar num salão de chá repleto de gente e fazer instantaneamente um comentário sobre cada pessoa que lá se encontra. Elas não entendem como eles podem ser tão pouco observadores. Os homens se espantam de ver que uma mulher não consegue ver a luzinha vermelha da reserva do combustível no painel do carro, mas é capaz de topar que um cavalheiro tem uma meia de cada cor num canto escuro do restaurante a 50 metros de distância. Se a viajar a mulher se perde: pára e pergunta. Ele não faz isso, porque para um homem é sinal de fraqueza. Ele anda às voltas, às voltas, e dizendo coisas do género: "descobri um outro caminho que vai dar lá"; ou "estamos quase a chegar"; ou "estou a reconhecer aquele posto de gasolina".

Em suma, Boçalidades: boçal, é o valor facial do homem, ou melhor, é o valor por que as mulheres tomam os homens. Os homens não sabem ouvir, não são gentis e compreensivos, não conversam nem demonstram carinho, não levam a sério os relacionamentos, querem 'fazer sexo' em vez de 'fazer amor'.  Os homens criticam as mulheres por serem aselhas na condução, e não serem capazes de ler um mapa de estradas, quase sempre com o mapa virado de baixo para cima e a cabeça para baixo. São boas, mas não tão boas a ver geometria no espaço. Os homens acham que são o sexo do sentido prático. As mulheres sabem que são elas quando perguntam: "Quantos homens são necessários para colocar um rolo novo de papel higiénico no sítio? Não se sabe, isso nunca aconteceu". Hoje em dia os relacionamentos nos casais cada vez dão menos certo, porquê? Porque os homens não compreendem as mulheres. Não percebem que elas não podem ser como eles. E as mulheres esperam que os homens se comportem do mesmo modo que elas. Termino parafraseando o cantor Miguel Araújo na canção "Maridos das Outras":
«Toda a gente sabe que os homens são brutos, que deixam camas por fazer e coisas por dizer. Mas os maridos das outras não, porque os maridos das outras são, o arquétipo da perfeição, o pináculo da criação . . .»



segunda-feira, 21 de junho de 2021

Fatores de pressão para a migração dos povos





Apesar de haver fatores de atração num determinado país que entusiasmem certas pessoas a migrar para lá, os fatores de pressão interna são de longe os mais predominantes a forçar pessoas a deixar o seu país: sociopolíticos; demográficos; económicos; ambientais. A migração demográfica e económica está relacionada com as normas laborais, o desemprego e a saúde geral da economia de um país.

Os fatores de atração incluem salários mais elevados, melhores oportunidades de emprego, um padrão de vida mais elevado e oportunidades na área da educação. Se as condições económicas não forem favoráveis e parecerem estar em risco de piorar, um maior número de indivíduos irá provavelmente emigrar para países com melhores perspetivas nessas áreas.

A guerra, a perseguição étnica ou racial, religiosa, política e cultural – forçam as pessoas a abandonar os seus países. Aqueles que fogem de conflitos armados, violações dos direitos humanos ou da perseguição são incluídos pelas organizações internacionais como a ONU na classificação de refugiados humanitários. Dado que terão fortes impactos nos países de acolhimento e lugares onde têm de ser instalados. Ora, enquanto alguns países abordam o problema de uma forma mais liberal, outras há que se fecham e tomam atitudes mais hostis. Embora o mais provável é que as pessoas se desloquem para o país que se encontra mais próximo dos seus, e que aceite requerentes de asilo, não é o caso da emigração para a Europa ou os Estados Unidos.

De acordo com a Organização Internacional do Trabalho, os trabalhadores migrantes, definidos como pessoas que migram com vista a serem empregadas, eram cerca de 164 milhões em todo o mundo em 2017. Representavam quase dois terços dos migrantes internacionais. Quase 70% encontravam-se em países de rendimento elevado; 18,6% em países de rendimento médio-alto; 10,1% em países de rendimento médio-baixo; e 3,4% em países de baixo rendimento.

Ultimamente tem crescido o número de refugiados por causa das condições adversas do clima e das catástrofes naturais. No entanto, esta causa sempre existiu. Desde tempos imemoriais, foi sempre uma das causas da migração, tendo em conta que as pessoas fogem de desastres naturais, como inundações, furacões e terramotos. No entanto, espera-se que as alterações climáticas agravem os fenómenos climáticos extremos, o que significa que mais pessoas poderão encontrar-se nesta situação de movimento. De acordo com a Organização Internacional para as Migrações (OIM) o termo migrante ambiental aplica-se a “pessoas ou grupos de pessoas que, devido a alterações ambientais repentinas ou progressivas que afetam negativamente as suas vidas ou as suas condições de vida, vêem-se obrigados a deixar as suas residências habituais, ou escolhem fazê-lo, temporariamente ou permanentemente, e que se deslocam dentro do próprio país ou para o estrangeiro.” Em 19 de setembro de 2016, a OIM se integra no sistema das Nações Unidas como Agência Relacionada. A 12 de Dezembro de 2017, António Vitorino foi proposto pelo Governo de Portugal para Diretor-Geral da OIM. E a 29 de Junho de 2018, os Estados-Membros da OIM elegeram-no para esse cargo, com efetividade desde outubro desse ano.

É difícil estimar quantos migrantes ambientais existem a nível mundial devido a fatores como o crescimento populacional, a pobreza, a governança, a segurança humana e o conflito, os quais têm um impacto neste tema. As estimativas de previsão variam de 25 milhões para mil milhões até ao ano de 2050. Em 2018 – de acordo com a Agência das Nações Unidas para os Refugiados, onde outro português foi Alto Comissário entre 2005 e 2015, para ocupar o cargo de Secretário Geral das Nações Unidas, António Guterres – 13,6 milhões de pessoas foram deslocadas à força devido à perseguição, conflito ou violência, o que eleva o número total de pessoas deslocadas a nível mundial para um novo recorde de 70,8 milhões. 84% dos refugiados a nível mundial são acolhidos por regiões em desenvolvimento. Embora os Fluxos migratórios registados em 2015 e 2016 tenham diminuído, devido à posição geográfica e estabilidade da UE, é provável que a Europa continue a ser um destino para os requerentes de asilo e os migrantes no meio de conflitos internacionais e internos, alterações climáticas e pobreza.

Certas empresas multinacionais pelo seu papel na internacionalização da produção, eliminaram os pequenos produtores locais. Ora isso tem limitado as perspetivas de sobrevivência destes últimos na economia tradicional, criando, dessa forma mão de obra móvel. Além disso, a instalação de pólos de produção voltados para o exterior contribui para o estabelecimento de ligações entre países importadores de capital e países exportadores de capital. Por outro lado, há governos que devido às suas operações militares, provocam o deslocamento de populações e fluxos de refugiados e migrantes. E não bastasse isso, ainda temos o Fundo Monetário Internacional (FMI) a impor medidas de austeridade. Ora, tudo isso, obriga os pobres a encarar a emigração (interna ou para o exterior) como estratégia de sobrevivência. Enfim, os acordos de livre-comércio ao reforçarem os fluxos de capitais, de serviços e de informações transfronteiriças, implicam na circulação transfronteiras de trabalhadores especializados.

Porque é que as reflexões das autoridades políticas sobre migrações internacionais parecem mais limitadas do que em outros domínios? Quando se trata de avaliar as consequências económicas das transformações do comércio e da política internacionais, os peritos e as políticas levam em consideração os efeitos de cada decisão nos diversos setores e buscam um certo compromisso entre esses diferentes aspetos. Mas a imigração nunca é considerada como um desses domínios: é tratada isoladamente dos outros grandes setores de ação política, como se fosse possível pensá-la de modo autónomo. Esta cegueira explica a inadequação das políticas postas em prática com relação aos seus objetivos, estejamos ou não de acordo com eles. Os participantes do debate sobre a imigração não teriam a ganhar se reconhecessem a existência de tais interações entre os diversos setores políticos e se as integrassem em suas reflexões e cálculos?


quarta-feira, 16 de junho de 2021

Os últimos dias de Gorbachev na entrega pacífica do poder a Yeltsin



Na segunda-feira passada, depois da cimeira da NATO, Biden pôde demonstrar aos jornalistas que é, de facto, um “profissional”. As perguntas, sobretudo da imprensa americana, foram todas dirigidas para o seu encontro com Putin nesta quarta-feira. O Presidente lembrou-lhes que não ia “negociar em público” e por antecipação com o seu homólogo russo. Não teve a menor hesitação em reconhecer que Putin é um político “brilhante e duro”. Ou seja, não o subestima. Deixou-lhe, no entanto, um aviso breve e conciso: se mantiver o mesmo comportamento, os EUA “responderão com a mesma moeda”. Lembrou a velha máxima de Reagan nas negociações com a União Soviética, na década de 1980: “Verificar e, depois, confiar”. Aliás, há algumas semelhanças entre ambos. Antes de negociar com Gorbachev o desarmamento nuclear, Reagan descreveu a União Soviética como o “império do mal” e anunciou a célebre “guerra das estrelas” para sublinhar que só negociava com o “inimigo” numa posição de força. Biden conhece Putin, com quem se encontrou na qualidade de vice-presidente de Obama. Não tem quaisquer ilusões. Já como Presidente, quando uma jornalista lhe perguntou se o considerava um “assassino”, respondeu laconicamente: “Sim”. O que pretende deste encontro é simples: criar canais de comunicação que lhe permitam manter uma relação “estável e previsível” com a Rússia. Oferece a Putin em troca aquilo que Putin mais aprecia: ser tratado como um “igual”. [Teresa de Sousa no Público, 16 de junho 2021]

Às 23:00 do dia 21 de dezembro de 1991, um sábado, Gorbachev reuniu com Yakovlev, Chernyaev e Shevardnadze para que o ajudassem a redigir o discurso de despedida. "Entusiasmamo-nos", registaria Chernyaev no seu diário. Gorbachev ia resmungando enquanto trabalhava. Yeltsin recordava-o todos os dias de que tinha de vagar o gabinete no Kremlin. Os presidentes das repúblicas em Alma-Ata deixaram nas mãos de Yeltsin os pormenores da transição de Gorbachev. Os dois homens concordaram que Gorbachev anunciaria formalmente a resignação enquanto presidente e comandante supremo na noite de 25 de dezembro de 1991. Depois disso, Yeltsin e Shaposhnikov chegariam para assumir a custódia da pasta Nuclear. Combinaram que Gorbachev e os seus assessores vagariam os gabinetes até 29 de dezembro, e a bandeira soviética seria retirada da torre do Kremlin a 31 de dezembro. Os dois homens também concordaram com a transferência dos arquivos supersecretos que documentavam os crimes mais terríveis de Estaline.

Gorbachev era demasiado emocional, e este assunto do Estaline era aquele tipo de coisas que não podia guardar só para si. Ficou furioso quando viu as listas de execuções de 1937 a 1938 com as assinaturas e os comentários de Estaline e de outros líderes. Por isso, Gorbachev deu ordens para que essas listas fossem tornadas públicas. Porque haveria de ocultar ainda mais provas dos crimes de Estaline? A 23 de dezembro, Gorbachev abriu o cofre pessoal, retirou uma pilha de dossiers secretos, e tentou entregá-los a Yeltsin. Mas este disse-lhe que os entregasse nos arquivos e fizessem assinar o recibo de entrega. Ele não pretendia ser responsável por eles. Por que haveria de se responsabilizar? Gorbachev já não era secretário-geral. E Yeltsin nunca foi nem seria.

Quando a reunião com Yeltsin finalmente acabou, Gorbachev engoliu 2 tragos de vodka, confessou que não estava a sentir-se bem e desapareceu, indo descansar para uma sala das traseiras. Yeltsin e Yakovlev continuaram a falar, bebendo e comendo, até que Yeltsin se decidiu a retirar-se indo pelo corredor vazio como se marchasse numa parada militar. No dia seguinte, 24 de dezembro, Gorbachev dirigiu umas palavras de despedida aos assessores, conselheiros e outros membros do quadro de pessoal presidencial, entre 40 e 50 ao todo, na sala grande onde o politburo e mais tarde do conselho de estado costumava reunir-se. Disse-lhes que a sessão com Yeltsin fora dura. Este recusara conceder-lhes indemnizações, mas podiam usar a policlínica do Kremlin por 1 ano. Gorbachev instou os funcionários a seguirem o seu exemplo reprimindo as emoções o mais possível.


“Cesso as minhas atividades enquanto presidente da URSS”. No dia 25 de dezembro de 1991 Gorbachev faz o discurso de despedida na televisão. À porta do edifício do Senado, Gorbachev parou e citou Winston Churchill: “O político pensa na próxima eleição – o estadista pensa na próxima geração.” No discurso Gorbachev explicou o motivo por que as coisas haviam corrido mal: "resistência por parte da estrutura partidária arreigada a velhos hábitos e preconceitos ideológicos". Expressou arrependimento, coisa que os russos gostam, pois tendem a valorizar a penitência e o arrependimento. Nove anos mais tarde Yeltsin faria o mesmo, quando abdicou da presidência russa, expressando vergonha e remorsos, depois de prometer renovação, mas enterrando ainda mais o país.

No mesmo dia, que era Natal, os grandes líderes da Europa e da América do Norte telefonaram-lhe transmitindo-lhe respeito e amizade. Nunca tal tinha acontecido no passado. Ao passo que nenhum dos presidentes das repúblicas recém-soberanas, homens com quem tivera relações de camaradagem durante tantos anos, se dignou a estar em Moscovo ou sequer a telefonar-lhe. Na noite de 25 de dezembro de 1991 a bandeira soviética foi retirada do mastro do Kremlin, o mais alto símbolo de poder durante sete décadas.

Sexta-feira, 27 de dezembro - Gorbachev devia chegar ao gabinete às 11 horas para uma entrevista com jornalistas japoneses. Mas às 8:15 Yeltsin entrou na sala de receção de Gorbachev, acompanhado pelo primeiro-ministro-adjunto, o ministro da imprensa e da informação, e o presidente do parlamento russo. A placa na porta do gabinete “Presidente da URSS, M.S. Gorbachev” já havia sido removida. Yeltsin, ao vasculhar as gavetas de uma secretária, encontrou uma trancada. “Porque está trancada?” Alguém entrou com uma chave e abriu a gaveta. Estava vazia. Depois sentaram-se à grande mesa oval e Yeltsin ordenou que lhe trouxessem copos. Quase de imediato apareceu um homem com uma garrafa de uísque e copos, que os convidados encheram e engoliram. “Assim está melhor”, afirmou Yeltsin. Os homens de Yeltsin riam-se. Gorbachev, nas suas memórias chamar-lhes-ia “o triunfo dos saqueadores”. Gorbachev, depois de ter recebido os jornalistas japoneses noutro gabinete mais abaixo, deixou o Kremlin e voltou para a dacha, que teria de deixar dentro de 24 horas, por ordens superiores, e com a grande indignação de Raisa Gorbachev.

Em termos gerais, Gorbachev é bem visto no mundo Ocidental, graças à sua contribuição para o fim da Guerra Fria. Contudo, na Rússia, a sua reputação não é tão favorável devido à crise económica e social que se instalou logo após a queda da URSS. Criou a Fundação Gorbachev em 1992, e em1993 fundou a Cruz Verde Internacional. Foi um dos principais promotores da Carta da Terra em 1994. Tornou-se, igualmente, membro do Clube de Roma. A 17 de Junho de 1995, com o seu amigo Mário Soares ainda Presidente da República, foi agraciado com a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade de Portugal. Em eleições em 1996, Gorbachev ainda se atreveu a concorrer a Presidente da Federação Russa, para se opor a Yeltsin, mas obteve menos de um por cento dos votos. Desde 1993, o Presidente da Rússia deixou de fazer parte do governo que ainda exercia o poder executivo. Gorbachev já não representava uma ameaça real.

Com o objetivo de financiar a sua Fundação, Gorbachev pintou trinta por uma linha com palestras pelo mundo fora pelas quais cobrava honorários avultados. E marcava presença em anúncios publicitários a pisas e sacos Vuitton na TV, para além dos direitos de autor dos livros. Várias foram as universidades no estrangeiro que lhe atribuíram graus honoris causa.  Recebeu de braços abertos a ascensão de Vladimir Putin à presidência e 1999 após renúncia de Yeltsin, em parte porque o via como o anti-Yeltsin. Mas depois de um período inicial afável, a relação entre os dois azedou. Em 1997, Gorbachev entrou num anúncio da Pizza Hut, que passou na televisão norte-americana. A 26 de novembro de 2001 funda o Partido Social Democrata Russo, como resultado da união de vários partidos que partilhavam esta ideologia. Demitiu-se como líder partidário em julho de 2004 em consequência de desacordos com o presidente do partido em relação às opções tomadas durante as eleições de dezembro de 2003. No início de 2004, regista a sua marca de nascença na testa para a utilizar numa marca de vodka que lhe fazia referência. O caso é tanto mais curioso quanto Gorbachev, enquanto líder da União Soviética, tinha sido um feroz combatente contra o alcoolismo. A referida marca de vodka, entretanto, mudou de rótulo.

Vinte anos após a sua renúncia, Gorbachev aconselhou Putin a deixar a presidência, por conta da onda de protestos em massa. Em 2 de março de 2021 Gorbachev fez 90 anos. São raras as imagens recentes de Mikhail Gorbachev. Diz-se que a pandemia agravou o isolamento a que a frágil saúde já o obrigava.


Raisa tinha um pequeno gabinete junto ao do marido, na Fundação, para promover o bem-estar feminino na Rússia. Ela como presidente e a filha Irina como vice-presidente, faziam conferências apesar da saúde de Raisa, sobretudo a depressão, não lhe afetar a meticulosidade com que preparava os conteúdos, falando de forma clara e simples. Mas o espaço tornou-se exíguo, e havia necessidade de encontrar outro edifício. Mas era difícil por falta de verbas. Até que um dia conheceram Ted Turner na Califórnia. Raisa não se conteve e apresentou o seu dilema a Turner. Ele perguntou de quanto precisariam para a construção. Gorbachev não quis adiantar um valor sequer, mas Raisa não esteve com rodeios e disse: “Um milhão d dólares”. Depois de Turner consultar rapidamente aquela que na altura era a sua nova esposa, Jane Fonda, Turner concordou em fornecer esse valor e mais ainda para um belo edifício na Leningradskii Prospect, que só ficou completo após a morte de Raisa em 20 de setembro de 1999.






segunda-feira, 14 de junho de 2021

Idlib na Síria





Na guerra da Síria, o conflito provocou mais mortes e sofrimento do que qualquer outro em curso. E um dos seus efeitos secundários foi o surgimento de uma nova faixa de Gaza na província de Idlib, na Síria. A densidade populacional da província de Idlib é agora maior do que a densidade populacional da Faixa de Gaza, que historicamente tem sido vista como um dos territórios mais enclausurados do mundo. E a religião alauita de Bashar Al-Assad, e do seu clã familiar, um islamismo heterodoxo muito próximo do xiismo iraniano, constitui uma tensão permanente com o islamismo dos seus cidadãos maioritariamente sunita. É observável no terreno que o conflito político-militar tem a ver com a divergência religiosa entre sunitas e xiitas, embora os conflitos étnicos entre árabes e curdos também demarquem uma fratura secular importante.

Idlib é uma cidade no noroeste da Síria que opera como capital do distrito do mesmo nome, situada a 59 Km a sudoeste de Alepo. Desde a revolta de 2011 que Idlib se tornou o foco de protestos e combates na fase inicial da guerra síria. À medida que a revolta entrou em conflito armado, Idlib tornou-se o foco de uma campanha rebelde, que capturou temporariamente a cidade e a província, antes de uma ofensiva do governo em abril de 2012. Depois disso, as forças do governo retomaram a cidade e a província controlada pelos rebeldes após um mês de combates, antes da tentativa de cumprimento do cessar-fogo proposto por Kofi Annan. Após a ofensiva de Idlib em março de 2015 a aliança rebelde Exército de Conquista, liderada pela Frente al-Nusra e Ahrar al-Sham, teve sucesso na Segunda Batalha de Idlib, capturando a cidade, bem como sitiando as cidades de maioria xiita de Al-Fu’ah e Kafriya ao norte da cidade de Idlib. Em 23 de julho de 2017, Tahrir al-Sham, o sucessor da Frente al-Nusra, expulsou as forças restantes de Ahrar al-Sham de Idlib, capturando toda a cidade.




Numa região onde antes da guerra não havia mais de 80.000 habitantes, hoje é uma espécie de Gaza, acomodando mais de 4 milhões de civis e algumas dezenas de milhares de combatentes rebeldes encurralados, praticamente o último reduto da oposição armada sunita a Bashar Al-Assad — um cada vez mais exíguo pedaço de terra encravado no Noroeste da Síria. Na Faixa de Gaza, os palestinianos estão há longos anos bloqueados nas suas fronteiras terrestres e marítimas por Israel, mas também pelo Egipto. No Idlib, os sírios estão cercados pelas forças militares de Bashar Al-Assad e dos seus aliados iraniano e russo e emparedados a Norte pelo exército da Turquia. Tal como o Egipto não quer os palestinianos de Gaza no seu território, a Turquia também não quer os sírios do Idlib. À semelhança da Faixa de Gaza, onde os islamistas-jihadistas do Hamas controlam o território, no Idlib o equivalente é o Jabhat al-Nusra, uma ramificação da Al-Qaeda reciclada como Hayat Tahrir al-Sham.

A Turquia ocupa partes do Norte da Síria, apoia grupos rebeldes jihadistas que fazem o trabalho sujo no terreno contra os curdos e empurra-os para fora do seu território histórico. O Irão treina e equipa milícias armadas xiitas, e envia populações xiitas para repovoar o território onde estavam árabes sunitas fugidos da guerra. Esta intervenção iraniana tem vantagens para o governo de Bashar Al-Assad. Livra-se de sunitas que lhe contestam a legitimidade e ganha xiitas teoricamente mais dóceis.
«Iman diz que não há como voltar. "Não podemos retornar a Ghouta enquanto o regime ainda estiver em vigor. Eles nos fizeram entender que, se retornássemos, seríamos detidos ou executados. Não há mais nenhum lugar seguro, nem mesmo em Idlib."»
No campo onde encontraram refúgio, há pouca ou nenhuma água potável, falta eletricidade e as crianças estão sem estudar por causa do coronavírus. Até mesmo antes da pandemia as crianças não iam para a escola com frequência, por causa dos combates e dos bombardeios. “Tento ensinar aos meus filhos o que eu sei; eles já perderam quase dois anos de estudos quando ainda morávamos em Ghouta."
«Hassan vive na cidade de Idlib desde 2019. Ele mora na casa de um amigo porque não tem dinheiro para alugar um espaço para si, e sua esposa e filhos estão com parentes em outra aldeia. Não há acomodações suficientes na cidade para todos, independentemente de terem dinheiro."Olho para Idlib e vejo uma cidade deprimida, onde não há esperança." Os preços são exorbitantes, pois o comércio com o mundo exterior é impossível. A província está completamente isolada. "A paralisia e a tristeza são as mesmas nos campos e na cidade”. Idlib também não tem água corrente, então, a água tem que ser comprada e, como todo o resto, é muito cara.
“Eu passei por todas as emoções que existem. Fiquei com medo, pensei que talvez tudo isso seja de fato normal, me senti vazio e, em uma ocasião estranha, feliz. Agora me pergunto se não estou acostumado com a situação. Tínhamos medo quando ouvíamos o som dos tiros. Aqui, ouvimos os aviões e os ataques aéreos e começamos a conversar sobre outra coisa.” Os parentes e amigos de Hassan que ficaram em Talbiseh disseram a ele que homens em idade de combate têm medo de sair porque podem ser recrutados à força pelo exército sírio.
"Não quero sair da Síria. Tudo o que eu quero é morar sob o mesmo teto que a minha família. Ninguém sabe o que vai acontecer. Politicamente, nada está claro, nem nas nossas vidas. Continuamos esperançosos, mas é exatamente isso que está nos matando."
Sair da Síria significa pagar contrabandistas, que ajudam as pessoas a chegar à Turquia. Se a família toda fugisse, custaria cerca de 12 mil dólares "Eu poderia vender meus rins", diz ele, rindo.
Abou Fadel nasceu e cresceu na província de Idlib, na vila de Talmenes, a cinco quilômetros de Maarat-al-Nouman.
"Em vez de me perguntar como eu consigo sobreviver, a pergunta é se estou sobrevivendo", diz Abou, de 40 anos. "A resposta é não. Pego dinheiro emprestado de amigos e parentes sem saber quando poderei pagá-los de volta ou sequer se conseguirei fazer isso antes de morrer. Recebemos algumas doações de organizações humanitárias, mas não é regular.” Em junho de 2020, devido aos combates, mais pessoas foram deslocadas no sul da província de Idlib e no norte da província de Hama. “O regime sírio considera terroristas todos os que vivem em Idlib. Meu primo foi preso em Hama enquanto sacava dinheiro. Ele nunca mais voltou. Com as tropas avançando em terra, no melhor cenário, serei recrutado à força pelo exército. E, no pior, serei preso.”A barraca em que a família vive é um frigorifico no inverno e um forno no verão. Abou Fadel passa seus dias andando pelo campo e bebendo chá com os vizinhos. Se a situação se tornar ainda mais sombria, eles buscarão refúgio o mais próximo possível da fronteira turca, onde acreditam ser mais seguro. "Estamos presos aqui e só há uma saída."»

quarta-feira, 9 de junho de 2021

A Paz Gelada



Daqui a uma semana, depois de ter acabado de aterrar na Europa, dar-se-á o encontro de Joe Biden com Vladimir Putin, em Genebra. Depois de Biden ter ofendido Putin à distância, Biden disse que Putin era tão somente um “assassino”, este respondeu com uma versão da frase “Quem diz é quem é”. Como explica Diana Soller, “Biden não pode abandonar a retórica duríssima que tem dirigido à Rússia, nomeadamente no que toca aos direitos humanos”, tanto mais que o caso Lukashenko é mais do que de cabo de esquadra. Nada a que as relações clássicas entre os dois países não estejam já habituadas, para não hipotecar o diálogo. Se dantes era uma “guerra fria”, agora é uma “paz gelada”. O importante é que se evite uma “escalada de tensões”.

Passados estes anos todos sobre a primeira cimeira entre Ronald Reagan & Mikhail Gorbachev em Reiquiavique, que é considerado o marco decisivo para o processo que levaria ao fim da Guerra Fria, eis que o mundo volta a prestar atenção a um encontro entre os moradores da Casa Branca e do Kremlin. Foi a cimeira de Reiquiavique em 11 e 12 de outubro de 1986, realizado na famosa casa de Hofoi, que as negociações falharam no último minuto. Mas o progresso alcançado até então acabou por resultar no Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermédio de 1987, entre os EUA e a União Soviética. Talvez com menos dramatismo, mas não com menos importância. China, cibersegurança e instabilidade no Afeganistão, numa altura em que as tropas da coligação começam a sair, vão ocupar parte da agenda. Será impossível, porém, escapar ao escandaloso episódio do avião desviado pelo regime do Presidente da Bielorrússia, Alexander Lukashenko, para prender um ativista da oposição em 23 de maio passado.




Recordando outros tempos, estávamos em agosto de 1991, numa altura em que Gorbachev havia deixado Moscovo para umas férias bem necessárias, a 4 de agosto, antes de receber o golpe final que marcaria o fim da União Soviética. Durante a semana que se seguiu, pessoal do KGB e das forças armadas prepararam cenários para um governo de emergência. O Comité de Estado proclamaria a 18 de agosto uma série de declarações, e emitia os decretos necessários para que o processo em marcha não tivesse recuo. O primeiro-ministro e mais alguns ministros reuniram-se secretamente a fim de gizarem a tal conspiração, chegando a acordo quanto à composição de uma delegação que iria no dia seguinte viajar até ao Mar Negro, a fim de confrontar Gorbachev com o ato consumado.



Na imagem acima, vê-se a casa onde Gorbachev estava a passar as ditas férias, localizada no meio de uma falésia rochosa sobranceira ao Mar Negro, no extremo sul da península da Crimeia - Vila de Foros.

Ao fim da tarde de domingo, 18 de agosto, Gorbachev estava a trabalhar no gabinete. Por volta das 16:30, termina uma conversa ao telefone com Yanayev, vice-presidente. Quando Shakhnazarov tentou ligar minutos depois, a linha estava muda. Por volta das 16:50, o chefe dos guarda-costas bate à porta do escritório de Gorbachev: "Chegou um grupo". Gorbachev ficou imediatamente desconfiado. Gorbachev pegou no telefone mas a linha estava muda. Saiu e foi ter com a esposa, dizendo: "Aconteceu qualquer coisa má, provavelmente terrível". Entretanto, os conspiradores já lhe tinham entrado pela porta dentro sem pedir licença. Gorbachev quis saber quem os enviara. "O Comité", respondeu Baklanov. "Qual Comité?" O Comité de Estado para a Governação de Emergência, contava com o chefe do KGB - Vladimir Kruchkov; o ministro da defesa - Dmitry Yazov; o vice-presidente Yanayev e Anatoly Lukyanov. Quanto a Boris Yeltsin, fora detido. A delegação exigiu a Gorbachev que assinasse um documento a declarar o estado de emergência. "Nós tratamos do trabalho sujo, depois já pode voltar a Moscovo". Contrariamente às ordens de Gorbachev, Medvedev - chefe dos guarda-costas, saiu obedientemente com a delegação. Mas o restante destacamento de segurança manteve-se no local. Na manhã seguinte, o Comité de Estado para a Governação de Emergência proclamou oficialmente que iria assumir o controlo do país, e, uma vez que  presidente Gorbachev estava doente, a autoridade dele estava a ser exercida pelo vice-presidente Yanayev. As estações de televisão e rádio da República Russa saíram doa ar, e tanques e tropas entraram em Moscovo. A partir daqui, já toda a gente sabe o que aconteceu.

O golpe de agosto de 1991 perpetrado pelo setor mais conservador do Comité Central, foi abortado, mas já nada havia a fazer para o movimento de independência das repúblicas que compunham a União Soviética. As repúblicas do Báltico já tinham tentado separar-se em 1990, mas foram severamente reprimidas. Com o fracasso do golpe, o cenário mudou totalmente. As forças conservadoras estavam derrotadas. E o poder de Gorbatchev ficou completamente esvaziado.

A Rússia, com Boris Yeltsin ao leme, foi a primeira a reconhecer a independência dessas repúblicas. Estava aberto o processo para as outras, que na sua grande maioria também se declararam independentes. Outra consequência importante do golpe foi a suspensão, determinada por Ieltsin em toda a Rússia, das atividades do Partido Comunista, que implicou até mesmo o confisco dos seus bens. E o KGB, o poderoso serviço secreto soviético, teve a sua cúpula dissolvida.

Gorbatchev acabou por admitir a implosão da União Soviética. Mas ainda tentou manter o vínculo entre as repúblicas, propondo a assinatura do chamado Tratado da União. Mas as suas palavras não tiveram eco, e o processo de separação tornou-se irreversível. Em 4 de setembro de 1991, Gorbachev, como presidente da União Soviética, Boris Ieltsin, na qualidade de presidente da Rússia, e mais os líderes de outras nove repúblicas, em sessão extraordinária do Congresso dos Deputados do Povo, apresentaram um plano de transição para criar um novo Parlamento, um Conselho de Estado e uma Comissão Económica Inter-Republicana. Embora tentasse estabelecer os parâmetros para uma nova união entre as diversas repúblicas, esse plano, na verdade, significava o desmantelamento formal da estrutura tradicional do poder soviético. De qualquer forma, a proposta acabou por ser aprovada.

Os líderes ocidentais deram sinais de uma clara preferência pela permanência de Gorbatchev no poder, embora tenham empatado tempo demais o compromisso de uma ajuda económica que há muito Gorbachev vinha implorando a George Bush e apoiado na ajuda de Margarete Thatcher a interceder veementemente, insistindo que não podiam naquela altura abandonar Gorbachev no propósito de levar por diante a Perestroika. O agravamento da situação económica foi o maior tendão de Aquiles em Gorbachev para a derrocada da União Soviética. Era justamente o que tornava mais delicada a posição de Gorbatchev.

Aprovado o plano de mudanças, faltava ainda conseguir a assinatura do Tratado da União com todas as repúblicas. Mas a 1 de dezembro de 1991 a situação se precipitou com a consolidação da independência da Ucrânia, aprovada em plebiscito por 90% da população. Uma semana depois, numa espécie de golpe branco contra Gorbatchev, os presidentes das repúblicas da Rússia, Ucrânia e Bielorrússia, reunidos na cidade de Brest (Bielorrússia), criaram a Comunidade de Estados Independentes (CEI), decretando o fim da União Soviética.

A 17 de dezembro, Gorbatchev recebe a comunicação de que a União Soviética desapareceria oficialmente na passagem de Ano Novo. No dia 21 de dezembro, os líderes de 11 das 15 repúblicas soviéticas reuniram-se em Alma-Ata, então capital do Cazaquistão, para referendar a decisão da Rússia, Ucrânia e Bielorrússia e oficializar a criação da Comunidade de Estados Independentes (CEI) e o fim da União Soviética. 
Em 25 de dezembro de 1991, Gorbachev renunciou e as doze repúblicas restantes surgiram da dissolução da União Soviética como países pós-soviéticos independentes. A Federação Russa passou a ser o Estado sucessor da República Socialista Federativa Soviética Russa, assumindo os direitos e obrigações da antiga União Soviética. Tornou-se reconhecida como a continuação da sua personalidade jurídica.

Abaixo, o mapa das 15 ex-repúblicas soviéticas:




De 1 a 15 - a lista das ex-repúblicas que se tornaram independentes, e as respetivas capitais: 

[1] Arménia (Erevã); [2] Azerbaijão (Bacu); [3] Bielorrússia (Minsque); [4]Estónia (Talim); 
[5] Geórgia Tiblíssi); [6] Cazaquistão (Astana);[7] Quriguistão (Frunze); [8] Letónia (Riga); 
[9] Lituânia (Vilnius); [10] Moldávia (Quixinau);[11]  Rússia (Moscovo); [12] Tagiquistão (Duxambé); [13] Turcomenistão (Asgabate); [14] Ucrânia (Kiev); [15] Uzbequistão (Tasquente).

terça-feira, 8 de junho de 2021

O futuro desnormalizado


Quando cheguei ao número da porta que me haviam indicado, toquei três vezes. Do intercomunicador ouviu-se uma voz velha: "quem é?" E eu disse: "Cá está outra vez um epígono de Hipócrates, um seu imitador de pouco mérito."
Não há nada mais humano que uma contradição. Num país onde o coeficiente de inteligência (QI) per capita é o mais alto do mundo (isto sou eu a dizer que o QI vale o que vale), já ninguém faz domicílios. É uma coisa impressionante como a miséria e a degradação humanas cheiram igual em todos os lugares do mundo. Engoli em seco, no meio daquele ar denso de urina e incenso.

É tão difícil ficar velho sem um motivo. Enquanto jovens deitamo-nos ao sol e parecemos diamantes. E diamantes, como são para sempre, fazemos dos sonhos realidade, e vamos para a guerra como tantas aventuras. É a tal frase batida: “não sei para onde vou, sei que não vou por aqui”. As tais coligações pela negativa, ou seja, não há nada como um inimigo para cooperar. É Darwin no seu melhor: "salve-se quem puder– sempre!" Exceto quando há um inimigo por perto – "Um por todos e todos por um!" (E pluribus uno; In God We Trust). Aqui, o inimigo, chama-se: Hipócrita. Vencer a hipocrisia é mandar deitar o lobo que temos em casa com as ovelhas, é a metáfora para dizer que o castigo a dar aos "bully boy/bully girlfriend" – é mandá-los para uma escola de judo. A sério!
Ele não quer parecer como um cavalo moribundo. Ele tinha cavalos brancos e “ladies” como prémio, por ter ido lutar na guerra pelo seu país. Senhoritas com quem se deitava na cama feita de penas, e coberta a ouro e rendas brancas. E ele dançava com elas, com elegância, dizendo: “O paraíso pode esperar, vamos observar a Estrela Polar”. E parafraseava António Gramsci: "Atenta o presente, se o queres transformar. Deseja o melhor com o otimismo da vontade; mas espera o pior com o pessimismo da razão."
Ele era daqueles que não queria morrer jovem. Mas também não queria viver para sempre. Ele sabia que não tinha esse poder, mas nunca disse nunca. Em vez de atirar a granada, sentou-se numa duna, que a vida é curta. Em vez de louvar os seus heróis, pois a corrida ainda não estava ganha, deitou-se ao sol. Aquela música do viver para sempre, ou de ser eternamente jovem, era música de homens loucos de água e de calor - alguns a dar o ritmo; outros a melodia.
Mais cedo ou tarde todos temos de partir. O Povo cantou a sua glória. A Sorte saudou-o com honrarias. Mas num dia de insurreição, uma bala perdida de um insurgente, perfurou-lhe o coração. Então as Senhoritas recolheram-no e deitaram-no no colchão feito de penas. E enquanto os insurgentes deitavam dinheiro pelo chão, o seu sangue derramado corria no colchão. E ele chorou. E depois morreu.




Personalidades como Elon Musk defendem a terraformação de Marte: transformar o clima e outras características do planeta Marte para o tornar habitável pelos humanos. Mas isso é uma loucura, peço desculpa, porque é na Terra que ele se deveria concentrar para resolver o problema do aquecimento e da crise climática da Terra.

Marte é um sítio pior para se viver do que o topo do Evereste, o Pólo Sul ou o fundo do Oceano. Lidar com as alterações climáticas na Terra, apesar de ser um desafio titânico, acaba por ser menos impossível, comparado com a transformação de Marte para a espécie humana ir para lá viver. É uma ilusão perigosa pensar que podemos escapar dos nossos problemas emigrando em massa para Marte. Não há planeta B, ponto final. Elon Musk disse que queria morrer em Marte. Que não me me diga pelo impacto da queda ao chegar lá.

A questão central é: O que pode fazer o Ocidente – perante regimes autoritários e ditatoriais mais ou menos poderosos (China e Rússia), que desafiam abertamente a ordem internacional – sem medo de represálias? Nada! Historicamente, as pandemias acabam por dar lugar a períodos de euforia, social e económica. Não há nenhuma razão para se pensar que desta vez seja diferente, mesmo que essa euforia esteja errada, tenha pés de barro. A natureza humana conduzirá uma larga maioria a um acerto de contas com o confinamento.

A realidade não é o que parece. Sabem-se algumas coisas sobre o trabalho de Demócrito, mas é pena não se saber mais. Em todo o caso, já se sabe mais sobre Aristóteles. Definitivamente. Depois Newton;  e Einstein. Este mudou a forma de Newton pensar o espaço-tempo. Mas agora precisamos de modificar a forma de pensar de Einstein para estudar a gravidade quântica. Portanto, continua a ser útil saber o que Aristóteles tem a dizer, porque dá-nos uma perspetiva do espaço que pode ser usada hoje. As pessoas foram mais inteligentes no passado do que hoje. Não se pode aceitar? Claro que sabemos muito mais coisas hoje, mas não sobre as coisas mais essenciais, mais fundamentais. Há um texto antigo que inclui uma lista de 30 livros sobre muitos assuntos atribuídos a Demócrito: Sobre os Planetas; Sobre as Cores; Sobre as Diferentes Trajetórias dos Átomos; Descrição do Céu. Todos perdidos. Pensemos na influência que tiveram Platão & Aristóteles na cultura moderna. E se não tivéssemos perdido a obra de Demócrito, a sua influência seria igualmente enorme. O pouco que sabemos da física de Demócrito está no - De Rerum Natura (Da Natureza das Coisas), de Lucrécio - poeta e filósofo romano do século I a.C. Ele diz-nos em verso a Física de Demócrito: fala de átomos, de espaço vazio, de espaço infinito, de partículas que se mexem no espaço. O livro de Lucrécio foi descoberto no século XV num mosteiro alemão. As ideias de Demócrito tiveram muita influência na ciência moderna. Ideias sobre as quais outros se penduraram.

Quando o Império Romano se cristianizou e o pensamento religioso se tornou dominante, o trabalho e pensamento de todos esses Sábios tornou-se incompatível com o pensamento religioso. Aristóteles & Platão podiam ser adaptados, reinterpretados, mas Demócrito não: era muito materialista, muito racionalista. Foi ativamente suprimido e isso não foi bom. A razão da grande noite, a que se chama a Idade Média, um intervalo de tempo imenso que vai da ciência antiga à ciência moderna, deve-se precisamente ao monopólio da religião sobre o pensamento. A dominação da Igreja Cristã de Roma. Chegado o Renascimento, tudo mudou com o reaparecimento dos documentos escritos deixados por esses sábios clássicos. Isso não significa que tenham estado totalmente escondidos, pois na parte oriental do Império Bizantino, e depois o Mundo Árabe, essa ciência antiga era conhecida. De qualquer modo nada que se compare com o que se passou na época do Renascimento, em que os portugueses também deram o seu contributo no campo da ciência náutica. Tudo isso abriu o mundo à mente dos europeus.

Uma questão sempre muito interessante, e que de tempos a tempos ocupa a mente dos cientistas do Espaço Astronómico é a de saber se há vida fora da Terra. E ainda não sabemos. E não sabemos porque, para começar, também ainda não compreendemos a origem da vida na Terra. Compreendemos a evolução darwiniana, da primeira vida até à vida atual, mas ainda não compreendemos a transição entre a química da não-vida e a química complexa das primeiras entidades com metabolismo e reprodução, a que chamamos vida. Por isso, não podemos ainda dizer se é algo incrivelmente raro e que apenas aconteceu aqui na Terra, ou se é algo que esperamos ter acontecido em qualquer ambiente parecido com o da Terra enquanto era jovem. No nosso próprio Sistema Solar, sabemos que não há vida avançada noutro sítio, mas pode ter havido. Ainda não se perdeu a esperança de encontrar vestígios de vida passada em Marte. E há quem pense que pode haver alguma vida debaixo do gelo de Europa, uma lua de Júpiter, e Encélado, uma lua de Saturno. A haver evidência de que a vida emergiu duas vezes no nosso Sistema Solar, então seria lógico que a vida deve existir em literalmente milhões de sítios da nossa galáxia, tendo em conta os seus milhares de milhões de planetas. De momento, quanto à origem do Universo, continua pacífica a teoria do Big Bang entre a maioria dos astrofísicos. Mas quanto à origem da vida no Universo, é uma questão que continua a revelar-se obscura. Mas uma coisa é certa: poucos cientistas acreditam que seja uma exclusividade do planeta Terra. Depois virá outra interrogação: e vida inteligente, pelo menos parecida com a inteligência humana. Ou a sua derivada inteligência artificial ou eletrónica. Haverá?