sábado, 30 de dezembro de 2023

O Mar Báltico e as suas guerras



O Báltico é um mar setentrional, de um azul brilhante sob a luz do sol, cinza turvo sob a neblina e a chuva, e dourado intenso ao pôr do sol, quando o mundo se transforma no verdadeiro âmbar que só pode ser encontrado nessas encostas. Nas costas ao norte, o Báltico é adornado por florestas de pinheiros, fiordes de granito vermelho, praias de seixos e uma miríade de ilhas minúsculas. A costa sul é mais delicada: lá, um litoral esverdeado é recordado por praias de areia branca, dunas, pântanos e falésias baixas e cobertas de lama. As longas extensões, habitadas por cardumes e tomadas por areia, abrem espaço para lagoas rasas, com vinte quilómetros de largura e oitenta de extensão. Apesar de as terras serem pantanosas e planas, quatro rios históricos correm para o mar: Neva, Duína, Vístula e Oder, todos lançando água doce no oceano, o que faz a corrente predominante ser para fora do Báltico. Por esse motivo, é difícil a água salgada entrar no Báltico e não há correntes em Riga, Estocolmo ou na foz do Neva.

É a falta de sal que permite a criação do gelo. O inverno chega ao Báltico no final de outubro com fortes geadas e flocos de neve à noite. Em outubro, nos tempos de navegação, navios estrangeiros deixavam o local, descendo pelo Báltico, os cascos cheios de ferro e cobre, os deques carregados de enormes quantidades de madeira. Os capitães nativos do Báltico manobravam seus navios em direção ao porto, esvaziavam-nos e deixavam os cascos presos no gelo até a primavera. Com o início de novembro, a água nas baías e nas angras já estava coberta com uma fina camada de gelo. Ao final do mês, Kronstadt e São Petersburgo já estavam congeladas; em dezembro, o mesmo acontecia com Talim e Estocolmo. O mar aberto não congelava, mas o gelo que se soltava e os frequentes temporais dificultavam a navegação. O pequeno canal entre Suécia e Dinamarca com frequência se enchia do gelo solto, e, em alguns invernos, ficava totalmente congelado.

A primavera faz o gelo derreter e a vida retornar, mais uma vez, ao Báltico. Nos tempos de Pedro, frotas de mercadores começavam a chegar de Amesterdão e de Londres. Manobravam pelo canal de menos de cinco quilómetros de extensão, passando entre colinas baixas e o famoso castelo de Helsingor a estibordo e os penhascos da costa sueca, próximos ao porto, a bombordo. Em junho, o Báltico se via tomado por velas: navios mercantes holandeses, com a água da cor do cobalto ricocheteando contra suas proas arredondadas e o vento abrindo as enormes velas, misturavam-se aos cascos fortes de carvalho de embarcações inglesas enviadas para buscar mastros e longarinas, alcatrão e terebintina, resinas, óleos e linho para velas, sem os quais a Marinha Real não conseguiria sobreviver. Ao longo do curto verão setentrional, sob o brilhante céu azul, navios cruzavam o Báltico, ancorando nos portos dos cais. Na encosta, os capitães ceavam com mercadores, enquanto os marinheiros bebiam nos bares.

Governadas pelos cavaleiros da Ordem Teutônica e posteriormente por uma aristocracia alemã, constituintes da Liga Hanseática e da Igreja Luterana, as cidades mantiveram a sua independência cultural e religiosa, mesmo depois de o exército de Pedro ter marchado de Poltava, capturando Riga, e anexar essas províncias ao império russo por duzentos anos. Desde a costa mais meridional do Báltico até ao Círculo Polar Ártico, a Suécia se estende ao longo de mais de 1.500 Km. Trata-se de uma região de pinheiros e bétulas, com 96 mil lagos, neve e gelo. Como no norte da Rússia, os verões são curtos e frescos. O gelo se forma em novembro e derrete em abril, e o país então passa por apenas cinco meses sem geadas. É uma terra fria, severa e bela, que criou uma raça de pessoas duras e resignadas.

No século XVII, Estocolmo tornou-se um importante porto comercial. Mercadores holandeses e ingleses chegavam aos montes, ancorando no cais para carregar seus navios com ferro e cobre suecos. Conforme as docas, os estaleiros, os mercados e as instituições bancárias cresciam, a cidade expandia-se para outras ilhas. Com o aumento da riqueza, as torres das igrejas e os telhados das construções públicas passaram a ser banhadas em cobre, o que lhes dava um brilho alaranjado quando tocados pelos raios do pôr do sol. Os gostos luxuosos de Versalhes chegaram aos palácios e mansões da nobreza da cidade. Navios que partiam da Suécia carregando ferro retornavam de Amesterdão e Londres com móveis de nogueira ingleses, cadeiras douradas francesas, porcelana de Delft da Holanda, artigos de vidro italianos e alemães, papéis de parede dourados, tapetes, tecidos e intrincados talheres de prata.

O século XVII foi a era de grandeza da Suécia. Desde a ascensão, aos dezesseis anos, de Gustavo Adolfo, em 1611, até à morte de Carlos XII, em 1718, o país esteve no auge de sua história imperial, cobrindo toda a costa norte do Báltico e os principais territórios ao longo da costa sul. Isso incluía toda a Finlândia e também Carélia, Estónia, Ingria e Livónia, envolvendo, assim, toda a área ao redor do Golfo da Bótnia e do Golfo da Finlândia. A Suécia detinha o controlo da Pomerânia ocidental e dos portos de Estetino, Stralsund e Wismar, na costa da Alemanha do Norte. Governava os bispados de Bremen e Verden, a oeste da península dinamarquesa, dando acesso ao Mar do Norte. E também controlava a maioria das ilhas do Báltico.

O comércio era ainda mais importante do que os territórios. Aqui, a supremacia sueca era assegurada pela instalação da bandeira azul e amarela na foz de todos os rios – com a exceção de um – que corriam para o Báltico: o Neva, na cabeça do Golfo da Finlândia; o Duína, que encontrava o mar na região pantanosa próxima a Riga; e o Oder, que alcançava o Báltico em Estetino. Somente a foz do Vístula, que corria para o norte, atravessando a Polónia e desembocando no Báltico em Gdánsk, não era sueca. O facto de esses vastos territórios serem posse de uma coroa cuja população mal ultrapassava 1,5 milhão de habitantes era uma conquista dos grandes comandantes e fortes soldados suecos. 
O primeiro e maior deles foi Gustavo Adolfo, o Leão do Norte, salvador da causa protestante na Alemanha, cujas campanhas o levaram até ao Danúbio, tendo sido assassinado aos 38 anos enquanto guiava uma carga de cavalaria.

A Guerra dos Trinta Anos terminou com a Paz de Vestfália, recompensando com abundância os esforços da Suécia. O país conquistou as províncias alemãs que lhe concederam o controlo da foz do Oder, do Weser e do Elba. Essas posses germânicas também resultaram em uma anomalia: a Suécia, Senhora Protestante do Norte, também era parte do Sacro Império Romano e tinha assentos na Dieta Imperial. Mais significativo do que esse poder vazio, todavia, era o acesso à Europa Central que esses territórios concederam à Suécia. Com eles servindo como pontas de lança no continente, os soldados suecos podiam marchar até qualquer ponto da Europa, e isso tornava o país uma força a ser considerada em todos os cálculos de guerra e paz do continente. É claro, do outro lado estava a Rússia. E foi preciso esperar por Pedro, o Grande, para que a Suécia visse ameaçado o seu estatuto de Senhora do Norte.

Na história da Rússia há um tempo que é designado por "Tempo de Dificuldades", que se seguiu à morte de Ivan, o Terrível. A Suécia ocupava um vasto território, circundando o Mar Báltico, que incluía até mesmo Novgorod. Em 1616, a Suécia entregou Novgorod, mas conservou todo o litoral ancorado em fortalezas como Nöteborg (no lago Ladoga), Narva e Riga, mantendo a Rússia isolada do mar. O czar Aleixo tentou reconquistar essas terras, mas viu-se forçado a deixar esse plano de lado. As guerras mais importantes eram com a Polónia, e a Rússia não podia enfrentar Polónia e Suécia simultaneamente. A posse sueca das províncias foi reafirmada pela Paz de Kardis, assinada entre Rússia e Suécia em 1664. A contenda entre Rússia e Suécia pela posse das terras costeiras no Golfo da Finlândia arrastava-se há séculos. A Suécia havia sido inimiga das cidades Estado de Moscovo e Novgorod desde o século XIII. Carélia e Íngria, que se distribuíam a norte e a sul do rio Neva, eram antigas terras russas; o herói russo Alexandre Nevski conquistou o nome Nevski (“de Neva”) ao derrotar os suecos no rio Neva em 1240.

No tempo de Pedro, o Grande, aquelas terras eram russas, e a Rússia estava enfrentando perdas económicas substanciais por falta delas. Pelos portos (em mãos suecas) de Riga, Reval e Narva circulava uma enorme quantidade de comércio russo e, sobre ele, os tributos suecos mostravam-se pesados. Em Viena, quando encontrou o imperador decidido a promover a paz, Pedro compreendeu que não poderia guerrear sozinho contra o Império Otomano, e percebeu que o acesso de seu país ao Mar Negro estava bloqueado. No entanto, ali estava o Báltico, com suas ondas banhando a costa a poucos quilómetros da fronteira russa, e ele poderia funcionar como um acesso direto à Holanda, à Inglaterra e ao Ocidente. Diante da chance de, ao lado da Polónia e da Dinamarca, recuperar esse território por meio de uma guerra contra um rei ainda criança, Pedro achou a tentação irresistível.

Johann Reinhold von Patkul era um patriota sem pátria. Patkul era membro da antiga nobreza da Livónia (atual Letónia e parte da Estónia), a dura descendência alemã dos cavaleiros da Ordem Teutónica, que havia conquistado e mantido sob controlo a Livónia, a Estónia e a Curlândia até meados do século XVI. Depois de severas derrotas infligidas por Ivan, o Terrível, a Ordem Teutónica dissolveu-se e a Livónia caiu nas mãos da Polónia. 
Os livónios, como eram protestantes, buscaram a proteção da Suécia também protestante. Em 1660, depois de uma longa contenda, a Livónia tornou-se província sueca e, como tal, adquiriu seu peso nas questões políticas. Isso incluía a famosa e bastante rejeitada política de “redução” de Carlos XI. Depois da morte prematura de Gustavo Adolfo, a aristocracia sueca rapidamente ganhou mais poder relativo sobre as questões de Estado, tornando-se ao mesmo tempo odiada pelas outras classes da população. 

Com a ascensão de Carlos XI, tanto o novo rei como o Parlamento da Suécia estavam decididos a reduzir a influência da aristocracia, concedendo ao rei poder absoluto. Um meio eficaz consistiu em exigir o retorno à coroa de numerosas terras distribuídas aos nobres para serem administradas. Os nobres haviam começado a tratar essas terras como se fossem suas propriedades hereditárias. Essa “redução”, iniciada em 1680, foi aplicada com severidade implacável não apenas na Suécia, mas em todas as províncias do império, inclusive a Livónia. Essa ordem atingiu a Livónia com mais força porque, apenas dois anos antes, Carlos XI havia solenemente afirmado os direitos dos barões livónios, garantindo com todas as letras que eles não seriam sujeitos a nenhuma “redução” que pudesse vir a ser imposta. Os barões protestaram contra o confisco e enviaram emissários a Estocolmo para defender a sua causa.

Patkul foi um desses emissários. Era um homem culto, falava diversas línguas, escrevia em grego e latim, além de ser um oficial militar experiente. Também tinha temperamento forte, era sério e implacável. Quando ele falava, sua coragem e dedicação feroz à causa o tornavam uma figura imponente e majestosa. Patkul apresentou seu caso com eloquência. O rei reafirmou a redução como uma “necessidade nacional” e declarou que a Livónia não poderia ser tratada de modo diferente do restante reino. Patkul regressou à Livónia e esboçou uma petição feroz, a qual enviou a Estocolmo. O conteúdo foi considerado traição e ele foi condenado à revelia a perder a mão direita e a cabeça. Entretanto, escapou dos oficiais suecos enviados para encarcerá-lo e passou a vagar pela Europa em busca de uma oportunidade de libertar seu país de origem. 

Em outubro de 1698, Patkul chegou secretamente a Varsóvia e passou a persuadir Augusto a tomar a iniciativa de formar uma aliança contra a Suécia. Patkul já havia visitado o rei Frederico IV da Dinamarca e encontrara-o disposto a colaborar. Os dinamarqueses nunca tinham aceitado plenamente a perda do território no sul da Suécia, que lhes fora tirado por Gustavo Adolfo, e estavam ansiosos por instaurar os dias em que o Oresund, o estreito que separa o Báltico do Mar do Norte e a Dinamarca da Suécia, pudesse ser visto como “uma corrente de água que atravessa os domínios do Rei da Dinamarca”. Além disso, os dinamarqueses ressentiam e temiam a presença das tropas suecas em sua fronteira meridional, no território do duque de Holstein-Gottorp.

Augusto mostrou-se intrigado pela proposta de Patkul, especialmente diante da afirmação de que os nobres da Livónia estavam prontos para reconhecê-lo como seu rei hereditário. Para Augusto, isso trazia uma perspectiva interessante. Sua ambição era transformar a coroa eletiva polaca numa coroa hereditária. Ao se apossar da Livónia com tropas saxônicas e entregar a província à nobreza polaca, ele esperava conquistar o apoio dessa nobreza ao reivindicar de modo permanente o trono polaco. Augusto tornou-se ainda mais ansioso sob o feitiço de Patkul. Ao avaliar a possível reação das maiores potências europeias a tal guerra – uma preocupação de Augusto –, Patkul estimou que Áustria, França, Holanda e Inglaterra sem dúvida “fariam barulho intenso por conta de seu comércio, mas provavelmente não agiriam”. Como mais um incentivo a Augusto, Patkul assegurou que a conquista da Livónia seria simples, e até mesmo ofereceu uma descrição exata das fortificações de Riga, cidade que seria o maior objetivo de Augusto.

O resultado dos esforços de Patkul ultrapassou as maiores fantasias: um tratado de ofensiva contra a Suécia foi criado entre Dinamarca e Polónia. Frederico IV deveria libertar as províncias de Schleswig e Holstein das tropas suecas, preparando um ataque pelo estreito na Scania, província mais meridional da Suécia. Entre janeiro e fevereiro de 1700, Augusto deveria estar preparado para colocar as tropas saxónicas em marcha a caminho da Livónia para tentar capturar Riga de surpresa. Assim, as forças suecas acabariam se dividindo em Alemanha do Norte, Báltico superior e sua terra natal e, na ausência de um rei adulto para unir a nação e guiar o exército, esperava-se que o império sueco cedesse rapidamente. Por fim, Patkul propôs que Pedro da Rússia fosse trazido para a guerra como um aliado adicional contra os suecos. Ataques russos a Ingria, na cabeceira do Golfo da Finlândia, distrairiam os suecos. Pedro talvez pudesse oferecer dinheiro, suprimentos e homens para apoiar o cerco saxão em Riga. Nem Patkul, nem os demais envolvidos acreditavam muito na qualidade das tropas russas, porém esperavam que a quantidade de homens compensasse a diferença. “A infantaria russa seria mais bem aproveitada trabalhando nas trincheiras e recebendo tiros do inimigo”, sugeriu Patkul, “ao passo que as tropas do rei [Augusto] poderiam ser preservadas e usadas para cobrir as aproximações”.

Com o nome de Kindler e camuflado num grupo de doze engenheiros saxões contratados pelo czar, Patkul acompanhou o representante pessoal de Augusto, general George von Carlowitz, de Varsóvia a Moscovo para tentar convencer Pedro. Todavia, em Moscovo, os dois conspiradores viram-se numa situação peculiar. Os suecos, sentindo que estavam a ser formadas alianças contra eles, esperavam apaziguar Pedro enviando a Moscovo, no verão de 1699, uma esplêndida embaixada que anunciaria a ascensão do rei Carlos XII e pediria a reafirmação e a renovação de todos os tratados existentes, conforme era costume quando um novo monarca assumia o poder. O esplendor da embaixada sueca tinha como objetivo reparar a afronta que o czar afirmava ter sofrido ao passar por Riga em 1697. Quando a embaixada chegou à fronteira russa, em meados de junho, o tio de Pedro, Lev Naryshkin, recebeu-os polidamente, mas explicou que teriam de esperar o regresso do czar, que estava com a sua frota em Azov.

O regresso de Pedro a Moscovo, no início de outubro, foi um momento dramático. Ele encontrou duas embaixadas à sua espera: a sueca, oficial, pedindo-lhe para reafirmar a existência dos tratados de paz, e a polaca, secreta, de Carlowitz e Patkul, pedindo-lhe para entrar na guerra contra a Suécia. Depois disso, por duas semanas, as duas negociações seguiram lado a lado – as oficiais e indesejáveis, com a Suécia, sendo conduzidas abertamente no Ministério das Relações Exteriores, enquanto as sérias e secretas, com Carlowitz, eram conduzidas pessoalmente por Pedro em Preobrajenskoe, com apenas Teodoro Golovin e um intérprete, Pedro Shafirov, presentes ao lado do czar.

Os suecos estavam cientes da presença de Carlowitz e sabiam que algum tipo de tratado estava sendo discutido, no entanto pensavam tratar-se de um tratado de paz e não suspeitavam nada da verdade. Para evitar levantar suspeitas, os suecos foram recebidos com honras por Pedro, a quem apresentaram uma imagem de corpo inteiro de seu novo rei montado em um cavalo. E, para amparar a fraude, Pedro passou pela formalidade de reafirmar os tratados anteriores com a Suécia, mas, como um leve conforto para sua consciência, evitou beijar a cruz na cerimónia de assinatura. Quando os embaixadores suecos perceberam a omissão e reclamaram, o czar afirmou que já tinha feito um juramento de observar todos os tratados quando chegou ao trono e que era costume russo não repetir esse gesto. Em 24 de novembro, os embaixadores suecos tiveram uma audiência final com o czar. Pedro se saiu muito bem e entregou-lhes uma carta formal por ele escrita, a ser entregue ao rei Carlos XII, confirmando os tratados de paz entre Suécia e Rússia.

Enquanto isso, a missão de Carlowitz e Patkul prosseguia com sucesso. Pedro recebeu Carlowitz (Patkul continuava disfarçado) e leu a carta que ele lhe entregara, mas que provavelmente fora escrita por Patkul. Em troca do apoio do czar na formação de uma aliança, era oferecida a promessa de Augusto de apoiar as exigências russas acerca da reintegração de Íngria e Carélia. Pedro então chamou Heins, embaixador dinamarquês incluído nas negociações secretas, uma vez que a Dinamarca já havia assinado seu tratado de aliança com a Polónia. Heins confirmou a promessa existente na carta. E assim foi: apenas três dias depois da embaixada sueca deixar Moscovo, Pedro assinou um tratado concordando que a Rússia atacaria a Suécia, se possível, em abril de 1700 (o czar cuidadosamente recusou apontar uma data específica). Uma cláusula afirmava que o ataque russo viria apenas após a assinatura de um tratado de paz ou de um armistício entre a Rússia e a Turquia. Uma vez que o acordo foi assinado, Patkul, que até agora permanecia nos bastidores, foi apresentado ao czar. Duas semanas mais tarde, Carlowitz deixou Moscovo a caminho da Saxónia, planeando seguir pela estrada que atravessava Riga e aproveitar a oportunidade para examinar as fortificações da cidade.

Se o czar queria cumprir a promessa feita a Augusto, todo um novo exército precisava ser criado, treinado, equipado e colocado para marchar dentro de três meses. Pedro agiu rápido. Um decreto foi enviado a todos os proprietários de terras – civis ou do clero. Aos civis, foi solicitado que enviassem ao czar um servo como recruta para cada cinquenta servos que possuíssem. Os mosteiros e os demais proprietários de terra eclesiásticos foram mais severamente taxados, devendo enviar um recruta para cada 25 servos. Pedro também buscou voluntários em meio a homens livres da população moscovita, prometendo um bom pagamento: onze rublos por ano, além de uma pensão para bebidas. Todos esses homens receberam ordens para se reunirem em Preobrajenskoe entre dezembro e janeiro e, durante os meses de inverno, uma torrente de recrutas apareceu no local. Vinte e sete novos regimentos de infantaria se formariam nos moldes dos quatro regimentos das Guardas, com entre dois e quatro batalhões cada. Pedro sentia nesta altura quão grande fora a perda de Patrick Gordon. Com a falta da mão experiente do escocês, o czar supervisionava pessoalmente os treinos com a ajuda do general Avtemon Golovin, comandante da Guarda, e do brigadeiro Adam Weide. Enquanto isso, o príncipe Nikita Repnin era enviado para alistar e treinar homens nas cidades ao longo da parte baixa do Volga.

Embora os comandantes das três novas divisões do exército (Golovin, Weide e Repnin) fossem russos, todos os comandantes de regimentos eram estrangeiros. Alguns deles chegaram a ver as ações nas campanhas da Crimeia e de Azov, ao passo que outros haviam sido recentemente contratados no Ocidente. A maior dificuldade de Pedro residia nos antigos oficiais russos, muitos dos quais não sentiam qualquer desejo de entrar em guerra. Para substituir aqueles que foram dispensados, muitos cortesãos acabaram sendo contratados como oficiais. Eles pareciam se adaptar à vida de soldados com tanta rapidez que Pedro exclamou prematuramente: “Por que eu deveria gastar dinheiro com estrangeiros quando meus próprios súbditos podem fazer o trabalho tão bem quanto eles?”. Mais tarde, quase todos os camareiros da corte e outros oficiais palacianos entraram para o exército.

Durante as negociações, em fevereiro de 1700, os rumores de Constantinopla tornaram-se tão ameaçadores que o czar chegou à conclusão de que precisava se preparar para o reinício da guerra com o sultão. Pedro deixou seus regimentos treinando em Preobrajenskoe e seguiu para Voronej, onde trabalhou furiosamente para ajudar a preparar seus navios para a guerra. Perto do fim de abril, na presença de seu filho, de sua irmã e de vários boiardos, ele lançou um navio de 64 canhões, o Predestinação, no qual havia trabalhado com as próprias mãos. Enquanto Pedro estava em Voronej, os aliados no Báltico lançaram os ataques planeados contra a Suécia. Em fevereiro, sem qualquer declaração de guerra, 14.000 soldados saxónios subitamente invadiram a Livónia e estabeleceram um cerco na grande fortaleza de Riga. Os suecos contra-atacaram e os repeliram, matando o general Carlowitz no processo. Pedro sentiu-se enojado, em especial com Augusto; o rei, disse ele, deveria estar na Livónia, liderando pessoalmente as tropas, e não se divertindo com mulheres na Saxónia.

Em março, o segundo dos aliados do czar, Frederico IV, invadiu com 16.000 homens os territórios do duque de Holstein-Gottorp, a sul da Dinamarca, e preparou o cerco à cidade de Tonning. Agora, mais do que nunca, era hora de Pedro mostrar sua força atacando a Ingria. No entanto, as mãos do czar estavam atadas enquanto não recebia notícias de Constantinopla. Durante a primavera, os rumores de preparativos turcos para a guerra tornaram-se tão fortes e perturbadores que Pedro achou necessário reafirmar a boa relação formal com a Suécia. 

Totalmente convencido, Knipercrona, o embaixador da Suécia em Moscovo estava convencido que o czar não pensava lançar qualquer agressão contra a Suécia. A primavera passou. Depois vieram junho e julho, mas nenhuma palavra de Constantinopla chegou. Em quinze de julho, Pedro recebeu um enviado saxão, o major general barão Langen. Augusto, que finalmente se havia unido a seu exército diante de Riga, implorou a Pedro para dar início às operações milhares. Langen reportou: “O czar enviou seus ministros para fora da sala e, com lágrimas nos olhos, afirmou para mim em um holandês dificultoso que sentia muito pela demora em concluir a paz com a Turquia. Finalmente, em oito de agosto, chegaram notícias de Constantinopla. O armistício de trinta anos havia sido assinado em três de julho, e o mensageiro de Ukraintsev, viajando da forma mais rápida possível, chegou a Moscovo com a notícia 36 dias depois.

Finalmente livre para agir, Pedro movimentou-se com enorme velocidade. A paz temporária com a Turquia foi celebrada em Moscovo com uma demonstração extraordinária de fogos de artifício. Na manhã seguinte, a guerra contra a Suécia foi declarada à maneira dos antigos czares moscovitas, da varanda de seus aposentos no Kremlin. “O Grandioso Czar estabeleceu”, afirmava a proclamação, “que, pelos muitos erros do rei sueco, e especialmente porque durante a jornada por Riga ele [o czar] teve de enfrentar obstáculos e dissabores nas mãos dos habitantes da cidade, seus soldados marcharão em guerra a caminho das cidades suecas”. Os objetivos de guerra declarados eram as províncias de Ingria e Carélia, “que, pela Graça de Deus e de acordo com a lei, sempre pertenceram à Rússia e foram perdidas durante o Tempo de Dificuldades”. Naquele mesmo dia, Pedro enviou a Augusto da Polónia uma carta escrita à mão, informando-o do que havia acontecido e declarando: “Esperamos que, com a ajuda de Deus, Sua Majestade não verá nada além de conquistas”.

Assim teve início a Grande Guerra do Norte ou, como Voltaire a chamou, “A Famosa Guerra do Norte”. Durante vinte anos, dois soberanos jovens, Pedro e Carlos, brigariam pela supremacia em um conflito que decidiria o destino de ambos os impérios. Nos primeiros anos, de 1700 a 1709, o czar ficaria na defensiva, preparando a si mesmo, seu exército e seu Estado. Durante esses anos, em meio às tormentas da guerra, a Rússia daria continuidade à sua transformação. Reformas ocorreriam não como resultado de um planeamento meticuloso e de uma execução metódica, mas como uma medida desesperada e apressada ditada pela necessidade de afastar um inimigo implacável. Posteriormente, depois de Poltava, a maré viraria, mas ambos os soberanos continuariam lutando, um deles distraído por e enredado em alianças em grande parte inúteis, o outro ardendo por vingar sua derrota e restaurar seu império em desintegração.


quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

O tema da integração de minorias



O tema da integração de minorias passa por uma pergunta: Como ser muçulmano na Europa por parte dos imigrantes que depois da crise petrolífera de 1973 se recusaram a voltar para casa? A crise petrolífera de 1973 teve início em outubro de 1973 quando os membros da Organização dos Países Árabes Exportadores de Petróleo (OPAEP), que compreende os membros árabes da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP), além de Egito e Síria, proclamaram um embargo petrolífero. O embargo foi direcionado às nações que eram vistas como apoiantes de Israel durante a Guerra do Yom Kippur. O embargo causou uma crise, ou "choque" de petróleo, com muitos efeitos, de curto ou longo prazo, na política e economia global. Mais tarde, foi chamada o "primeiro choque do petróleo", seguido pela crise do petróleo de 1979, chamada o "segundo choque do petróleo."
Doravante, os muçulmanos passariam de transeuntes em diásporas mais ou menos permanentes. Colocou-se, com isto, o dilema entre a separação e a assimilação – que continua marcando até hoje, de forma cada vez mais aguda, a segunda geração de muçulmanos europeus.

Para discutir as opções e as respostas escolhidas, é útil manter em mente três factos. O primeiro é que a maior parte dos muçulmanos veio de países com maioria muçulmana: a experiência de ser uma minoria era, portanto, não só pouco familiar como também, em princípio, ilegítima; o islão diferencia o Dar al-Islam do Dar al-harb, sendo naturalmente o lugar dos muçulmanos, segundo a tradição islâmica, a “Casa do islão”. Houve discussões se muçulmanos podiam cumprir seus deveres religiosos num país não muçulmano. Tal migração de muçulmanos para áreas não muçulmanas já havia ocorrido em várias outras ocasiões, mas quase sempre para sociedades menos desenvolvidas (como a África negra e o sudeste asiático). Agora eles eram o elemento mais fraco na sociedade que historicamente lhes fora a mais hostil. Para a segunda geração, porém, a situação de diáspora era natural, sentindo-se muito mais à vontade no Ocidente do que seus pais.

O segundo facto é que não havia realmente uma comunidade muçulmana, mas sim um aglomerado muito fragmentado de indivíduos e famílias que pertenciam a uma grande variedade de etnias. Fora do islão, marroquinos, turcos e somalis tinham pouco em comum. A auto-organização, quando e onde ocorreu, concentrou-se inicialmente entre compatriotas. Na segunda geração, as divisões são mais ténues e os contactos entre muçulmanos de diferentes origens têm se intensificado – muitas vezes por meio da língua do país de acolhimento. É mais justo falar de uma comunidade muçulmana europeia hoje do que há uma geração. O terceiro elemento é a pobreza. A grande maioria dos muçulmanos europeus são marginalizados que sofrem de discriminação, estando concentrados nas camadas mais desfavorecidas – o que adiciona o antagonismo cultural à concorrência com os trabalhadores nativos. Como eles vieram de sociedades autoritárias onde não integravam a elite, não tinham a tradição de auto-organização.

Quando o líder fundamentalista paquistanês Mawdudi visitou a Inglaterra ficou, como o egípcio Sayyd Qutb nos EUA, escandalizado com a “decadência” ocidental que encontrou, vendo neste aspecto um perigo para os muçulmanos. Sua receita militante aconselhava o combate e uma máxima separação com a sociedade decadente, além da volta ao Dar-al Islam. Outros foram menos extremos: aceitavam a crítica à civilização ocidental permissiva, mas viam no enfraquecimento dos laços de família, da solidariedade social e do autocontrolo no Ocidente uma oportunidade para mostrar a superioridade do islão enquanto modelo alternativo. Afinal, propagar o islão faz parte da religião, e a sorte que jogara os fiéis num meio “ignorante” providenciava também uma chance para criticar, propagar e converter – se não abertamente, pelo menos pela prática da fé. A ordem do dia seria então a de construir dentro da Europa uma justa “sociedade alternativa” islâmica. Além disto, muitos muçulmanos, oprimidos no Médio Oriente e discriminados na Europa, buscavam no tradicionalismo algo conhecido e confortante, sem se preocupar com a teologia.

Nos anos 90, uma nova geração havia absorvido muitos modelos ocidentais. A nova geração tem que achar um meio termo entre as tradições ancestrais e as demandas da vida moderna. Os problemas são particularmente severos para as filhas, como a liberdade de escolha do parceiro matrimonial e da carreira profissional independente. Contudo, as promessas de modernidade atraem muitos. Já existe em certos lugares uma classe média muçulmana mais liberal, mas ainda é minoritária. A questão é saber se o islão na Europa arriscaria se tornar uma “religião secular”. Existem também apelos para superar o dilema e evitar os extremos da separação e assimilação. Contudo, o número de intelectuais muçulmanos que defendem a ideia de um islão tipicamente europeu, reformista e tolerante, é ainda pequeno. Tariq Ramadan, professor em Genebra, é um deles.

Para a maioria dos muçulmanos que socializa primariamente dentro do próprio grupo muçulmano, a questão de um islão liberal não se coloca. Ao contrário, a alienação está empurrando alguns a se tornarem mais islâmicos, como sinal de diferenciação. Simultaneamente alienados da comunidade original, mas não aceites pela sociedade hospedeira, cada vez mais jovens muçulmanos encontram refúgio na religião ancestral: a visita à mesquita, a volta às rezas regulares, a insistência na comida halal, o jejum no ramadão. Práticas retomadas com o objetivo de criar um “espaço puro”. A autoimposição das regras islâmicas no seio de uma sociedade mal preparada para tal implica sacrifícios visíveis e até o risco da autossegregação que os não crentes podem sentir como provocação.

Os muçulmanos improvisam suas mesquitas que nem sempre têm a forma arquitetónica reconhecível com cúpula e minaretes. Qualquer lugar pode ser adequado – ou como Maomé dizia: “O mundo inteiro é uma mesquita”. Em muitos casos, os Estados de origem ajudam no estabelecimento de mesquitas, organizações e educação religiosas, mas também tentam manter o controlo sobre seus nacionais com os amicales, clubes sociais infiltrados com a conivência europeia. Movimentos fundamentalistas tais como a Irmandade Muçulmana egípcia e a Jama’at-i Islami paquistanesa também estabeleceram ramos na Europa convertendo uma certa porção dos imigrantes à sua concepção. A Arábia Saudita tem apoiado instituições islâmicas de cunho conservador na Europa e em outras regiões como a Turquia. 

Tem sido justamente o comportamento dos jovens muçulmanos, e a sua convivência com os outros alunos, que têm levado a conflitos. Em certos países, escolas públicas providenciam aulas religiosas onde jovens muçulmanos têm oportunidade, apesar de nem sempre haver professores aptos a ensinar o islão na língua do país. Coloca-se então o problema da formação de professores qualificados, e do conteúdo e da metodologia do ensino religioso. Professores formados na Arábia Saudita, por exemplo, voltam para a Europa doutrinados por uma visão fundamentalista, pregando um islão em total oposição ao Ocidente e à cultura onde seus alunos moram. O currículo de professores formados na Turquia ou Marrocos pode esconder mensagens tanto nacionalistas quanto fundamentalistas, que não necessariamente agradam ao Estado ocidental onde eles lecionam. As precondições para formar professores nos próprios países ocidentais, por outro lado, ainda não estão maduras, e os formados ali arriscam-se à reprovação pelos países maioritariamente muçulmanos.

Os problemas nas escolas exemplificam os desafios que os muçulmanos enfrentam, que vão desde a liberdade para preparar a comida halal (ritualmente purificada), à reivindicação de tal comida nas cantinas para funcionários públicos muçulmanos, passando ainda pelos problemas dos enterros muçulmanos (com mortalha). Tais disputas ocorrem frequentemente em âmbito local e nos levam à questão mais ampla das relações entre maioria e minoria. Os estatutos jurídicos variam, naturalmente, de país a país.

Paralelamente à reação dentro das comunidades muçulmanas, que varia entre assimilação e autossegregação, pode-se distinguir na sociedade anfitriã um espectro que se estende entre dois extremos: a integração e a rejeição. A integração preconiza de certa forma a “europeização” dos muçulmanos. O ponto de partida é a compatibilidade – mediante certas acomodações mútuas. Do lado europeu, ele tem sua origem em três grupos: (1) a academia e a maioria dos intelectuais da esquerda que, imbuídos de valores universalistas, de simpatias pelo terceiro mundo e de sentimentos de culpa pela exploração colonial, quer “compensar” os pecados passados; (2) as Igrejas cristãs, inspiradas por motivos semelhantes, além do ecumenismo que caminha para o diálogo cristão-judaico-islâmico; (3) as burocracias vinculadas aos aparelhos estatais de educação e assistência social, que promovem a integração por motivos de eficiência governamental e para prevenir problemas futuros.

Igrejas que se esvaziam cedem espaço para mesquitas; o Estado subvenciona organismos muçulmanos. As políticas de integração diferem em cada país, mas caminham rumo à auto-organização dos muçulmanos – a ideia é de que instituições representativas da comunidade muçulmana possam servir às autoridades como interlocutores com esta. Por isso, os proponentes da integração buscam (e obtêm) a cooperação de elementos “esclarecidos” dentro do islão europeu, em geral muçulmanos instruídos e parcialmente secularizados da segunda geração, que sabem articular as queixas e reivindicações da sua comunidade – como direitos religiosos, deportações, luta contra o racismo, entre outras – e que se candidatam a ser a sua nova elite. Observa-se, portanto, a institucionalização “oficial” das comunidades muçulmanas, processo que se acompanha da entrada de muçulmanos na vida pública e política: ali eles constituem um lobby em prol dos interesses de sua comunidade, mas também enriquecem a sociedade em geral com sua contribuição específica.

A questão não é apenas como a imigração moldará o islão da minoria muçulmana, mas também como a civilização ocidental mudará sob a influência da implantação muçulmana em seu seio. É aí que predominam as resistências. O elemento da rejeição, na verdade, tem sido mais forte que o da integração. 
O francês Alain Gresh cunhou o termo “islamofobia” para definir o conjunto de atitudes negativas frente ao islão. Tais atitudes, certamente são anteriores ao atual encontro com o islão, e mesmo à época imperialista, remontam pelo menos ao tempo das Cruzadas e Reconquista. Na Europa se desenvolve mais a xenofobia demográfica – fomentada ainda pela crise económica. A rejeição começou com as objeções mal articuladas das classes nativas pobres em contacto direto com os recém-chegados – os muçulmanos “se vestem diferente”, “oprimem suas mulheres”, têm costumes religiosos “primitivos”. Mais do que o islão, são os muçulmanos que são vistos como ameaça; a rejeição se mistura a preconceitos étnicos e racistas e à competição pelo emprego. Posteriormente, desde o final dos anos 80, a islamofobia é utilizada por políticos populistas da extrema direita e se expressa antes como choque civilizacional. Doravante, a impossibilidade da coexistência se “comprova” pela “explosão demográfica” dos muçulmanos.

À suposta incompatibilidade cultural surge a preocupação com a segurança e a crescente lista de violência perpetrada por (ou atribuídas a) fundamentalistas muçulmanos e, por associação, a seus correligionários na Europa. Reforça-se o discurso da “hostilidade histórica”. Citações de Qutb ou Osama bin Laden que afirmam serem os muçulmanos o novo desafio ao Ocidente facilmente comprovam o choque inevitável: abre-se um ciclo vicioso de reforço recíproco entre a propaganda islamista e a anti-islâmica. A insistência no hijab nas escolas públicas francesas, a luta em prol da proibição do livro de Salman Rushdie, foram contributos negativos. Em seguida, o provável envolvimento em atos de terror de pequenos grupos islamistas dentro do islão europeu completou a imagem negativa, ainda muito mais ameaçadora.


quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

Modernidade



O termo "Modernidade" está ligado a dois termos que se tivéssemos que os considerar como mitificados diríamos ciência e democracia. E partir daí podemos derivar outras expressões respetivamente razão e liberdade. A modernidade se acompanha comumente da vida urbana, do individualismo, da emancipação da mulher e da extensão da educação a todos. Uma sociedade moderna tem, em geral, a forma política do Estado soberano, limitado por fronteiras com outros Estados, e estes pertencem a uma “sociedade internacional”, que obedece a certos valores, normas e regras consensuais.

Tudo isso descreve as linhas matrizes que têm regido o desenvolvimento do chamado Mundo Ocidental. A sociedade moderna se desenvolveu baseada em, e contra, formas de convivência social anteriores, “tradicionais”, eliminando-as depois. Essa “modernização”, que se inventou historicamente na Europa ocidental e América do Norte, é mais eficiente do que todas as outras (justamente por causa desses ideais, dizem seus defensores) e, portanto, teve mais invenções, maior produtividade económica e supremacia militar. Em consequência, a modernização se expandiu nos séculos passados a partir de sua base ocidental pelo mundo inteiro, conquistando política, económica e culturalmente as demais sociedades: é o processo da colonização, que levou à exploração das sociedades não ocidentais.

Pela descolonização, então, as sociedades colonizadas adotaram os princípios que subjaziam àquela modernidade, tão bem-sucedida no Ocidente (aparentemente): ideias como autodeterminação, nação, desenvolvimento. Eles reconquistaram a independência, constituíram-se em Estados nacionais que integraram a sociedade internacional enquanto novas unidades e começaram o seu próprio desenvolvimento socioeconómico com base nos moldes copiados do Ocidente - seja na versão liberal, seja na forma revolucionária do socialismo, mas ainda assim ocidental.

Além de pressupostos ideológicos, que hoje faz parte da Teoria Crítica vigente ,o processo da modernização foi um facto. O debate sobre a modernidade, prós e contras, e o seu tempo e modo, ainda não está encerrado. O que é inegável, no entanto, é que algo como a modernidade existe, que ela tem penetrado as sociedades e que ela provoca hoje – após tentativas de imitação ou adaptação – reações de rejeição. 

A problemática das identidades coletivas conflituosas do melting-pot forjou uma espécie de religião a que hoje se dá pelo nome de Wokismo - uma onda de loucura e intolerância que está a varrer o mundo. O seu objetivo é desconstruir todo o património cultural e científico construído pela Modernidade. Woke é uma espécie de sigla do politicamente correto. É uma vaga de irracionalidade e de absurdo que começou nos campus universitários dos Estados Unidos da América, e que ainda está em curso. Não estando ainda no ponto de desaparecer tão cedo, tal facto se deve ao combustível das atuais redes sociais que ainda está para durar. 

A ideologia woke, que inicialmente estava contida nas cercanias do campus, hoje está propagada como se de uma epidemia se tratasse, que infeta a mente de pessoas sobretudo sem experiência de vida, ou seja, com os pés pouco assentes na terra. Como todas as ideologias extravagantes, as hostes de militantes ferozes tem engrossado as fileiras das redes sociais, que depois se mobilizam com as convocatórias para as respetivas manifestações de rua. Hoje em dia, não há uma cidade europeia ou americana onde aos fins-de-semana pontue nas ruas uma manifestação desses movimentos radicalistas inacessíveis à razão.

O debate faz parte do “choque de civilizações”. Pode-se dizer que ambas as visões são exageradas, a começar pelo facto de que o mundo muçulmano inclui uma miríade de contextos dispersos por três continentes; contudo, o interesse que o debate desperta indica a relevância atual do tema para uma avaliação do islão. Nos Bálcãs, no Médio Oriente e na África do Norte, cristãos e judeus se educaram e passaram pelo processo de modernização muito mais rapidamente do que os muçulmanos que foram seus senhores. Quebrou-se a relação de superioridade/inferioridade que permeara por doze séculos o seu relacionamento. Num mundo muçulmano que estava se enfraquecendo, as minorias tinham demandas mutuamente incompatíveis: por um lado, queriam continuar beneficiando do contrato de proteção e das vantagens clientelistas que isto implicava; por outro, começaram a militar em prol da igualdade civil completa. Os mais radicais pediam a autonomia comunal ou até a independência, reivindicações que não eram compatíveis.

A situação atual de muitos Estados muçulmanos a qualidade da coexistência é nitidamente pior do que em épocas anteriores. A intromissão da modernidade se reflete em tentativas, apoiadas pelos recursos do Estado e imensamente maiores do que na época tradicional, de impor uma uniformidade cultural. Na Arábia Saudita, só o wahhabismo é aceite; nem cristãos nem muçulmanos de outras tendências (como os xiitas) têm liberdade de culto. No Irão, o sunismo é discriminado. No Paquistão, aumentaram nos últimos anos os atentados contra xiitas; nas Molucas, na Nigéria há crises frente aos cristãos. Na tolerância para com o “outro”, o islão, que uma vez esteve na vanguarda, tem sido nos últimos séculos ultrapassado pelo Ocidente modernizador.

O desequilíbrio que pôs fim à coexistência foi provocado, em primeiro lugar, pela crescente influência ocidental. É inegável, contudo, que a posição das minorias no Médio Oriente, por tolerável que fosse, era baseada numa desigualdade que não condiz com a sociedade moderna e que hoje só os mais extremos islamistas preconizariam restaurar. Em geral o islão, com exceção de poucos pensadores, ainda não aceitou o princípio do pluralismo.

Os judeus eram bem integrados no mundo muçulmano pré-moderno, ainda que seu tratamento variasse (como o dos cristãos) em função do tempo e do espaço. As épocas e lugares de maior tolerância foram a abássida, a Espanha medieval e o Egito fatímida mas, mesmo nestes contextos, tal tolerância foi pontuada por episódios de perseguição. A situação se deteriorou no fim da Idade Média, mas voltou a melhorar no Império Otomano. Às vésperas da época contemporânea, ela foi melhor na Turquia, no Iraque e no Egito, e pior no Marrocos, Iémen e Irão. No século XIX, as comunidades judaicas no mundo muçulmano aproveitaram o mesmo processo de modernização e emancipação que os cristãos. Contudo, essas comunidades judaicas não existem mais, tendo sido transplantadas nos anos 1940-1960 para Israel, onde os “judeus orientais” constituem atualmente a metade da população.

Um antissemitismo mais fanático só se introduziu no século XX, justamente no contexto da luta pela Palestina. Ideologias antissemitas europeias exerceram maior influência – primeiro levadas por cristãos árabes e propagadas depois pelos nazis, que adicionaram o elemento racista, antes ausente. Essas sementes germinaram, e teorias conspirativas para “explicar” as vitórias de Israel pela essência “malvada” dos judeus são atualmente bastante populares no mundo árabe e em outras sociedades muçulmanas. Suas raízes, todavia, se encontram na Europa cristã e não no islão. Exacerbação discursiva que, por sua vez, realimenta um conflito que parece ilustrar, por excelência, a problemática coexistência na modernidade do islão com o “outro”.


sábado, 23 de dezembro de 2023

Os judeus do Império Cazar




Delimitação máxima do Império Cazar cerca de 800

Os cazares eram um povo turco, nómada, que habitava a região que hoje é a Ucrânia e partes da Rússia entre os séculos VII e XI. Há uma teoria histórica que sugere que, por volta do século VIII, o (líder) dos cazares e muitos de seus seguidores converteram-se ao judaísmo, tornando-se assim a única tribo turca a adotar essa religião. A conversão dos cazares ao judaísmo é um tema histórico complexo e debatido. Não há consenso entre os historiadores sobre a extensão da conversão e suas implicações. Alguns argumentam que foi uma conversão em massa, enquanto outros sugerem que foi uma adoção mais limitada da religião judaica pela elite cazar.

Independentemente disso, é importante notar que a influência judaica entre os cazares não durou muito tempo. No final do século X, o Império Cazar entrou em declínio e foi eventualmente conquistado pelos russos e outros povos vizinhos. O destino exato dos cazares após a queda do império é incerto, e não há uma continuidade clara da comunidade cazar na história subsequente. A história dos judeus no Império Cazar está envolta em alguma controvérsia e falta de detalhes precisos, mas há evidências históricas que sugerem que uma parte da população cazar pode ter adotado o judaísmo em algum momento de sua história.

Dunash ibn Tamim - foi um estudioso judeu do século X, e um pioneiro do estudo científico entre os judeus de língua árabe. Seu nome árabe era أبو سهل Abu Sahl; seu sobrenome, de acordo com uma declaração isolada de Moisés ibn Ezra, era "Al-Shafalgi", talvez após seu (desconhecido) local de nascimento. Outro nome que se refere a ele é Adonim. Seu primeiro nome parece ter sido nativo do norte de África, era comum entre os berberes medievais. O contemporâneo mais jovem de Ibn Tamim, Dunash ben Labrat, por exemplo, nasceu em Fez. Detalhes sobre a vida e as atividades de Ibn Tamim foram coletados principalmente de seu comentário Sefer Yetzirah. Neste comentário, que foi escrito em 955-956 d.C., Saadia Gaon é mencionada como não vivendo mais. O autor refere-se, no entanto, à correspondência que foi levada adiante quando ele tinha cerca de vinte anos de idade entre seu professor, Isaac Israel ben Salomão, e Saadia, antes da chegada deste último à Babilónia, consequentemente antes de 928; daí que Tamim tenha nascido por volta do início do século X.

Como seu professor, ele era médico ordinário na corte dos califas fatímidas de Kairouan, e a um deles, Isma'il ibn al-Ḳa'im al-Manṣur, Tamim dedicou uma obra astronómica, na segunda parte da qual ele revelou os pontos fracos nos princípios da astrologia. Outra de suas obras astronómicas, preparada para Hasdai ben Isaac ibn Shaprut, o estadista judeu de Córdoba, consistia em três partes: (1) a natureza das esferas; (2) cálculos astronómicos; (3) os cursos das estrelas. O autor árabe Ibn Baitar, em seu livro sobre medicamentos simples, cita a seguinte observação interessante sobre a rosa, feita por Ibn Tamim em uma de suas obras medicinais: "Há rosas amarelas, e no Iraque, como estou informado, também rosas negras. A melhor rosa é a persa, que se diz que nunca abre."

Em face de acusações de ser um arabizador, Dunash podia responder que, muito pelo contrário, ele estava tentando substituir o ideal de arabiyya por uma coisa que ninguém, além de Saadia, já apreendera — a yahudiyya, uma língua adequada não só para a entonação de salmos e para a liturgia como também para a filosofia, a poesia e sabe-se lá o que mais. E ele faria isso injetando um sopro de vida nova ao verdadeiro hebraico bíblico, que se tornara árido e mecânico. Arrogante em sua percepção da superioridade intelectual da ciência de Saadia, babilónica, Dunash não tardou a menosprezar os estudos linguísticos de Menahem e, em especial, seu dicionário do hebraico, o Mahberet, com sua ênfase obsessiva em radicais de três letras para absolutamente todas as palavras da Bíblia, o que Dunash tachou de miopia de intelectual.

Hasdai encantou-se com tudo isso e com seu porta-voz jovem e competente. O homem que passara a vida perto da alta cultura árabe e muçulmana deve ter sentido que agora podia aceitar plenamente a elegância de pensamento e de expressão dessa cultura sem de forma alguma comprometer seu judaísmo. Dunash revigorava um hebraico que correra o perigo de se calcificar. Na defensiva, lutando por sua vida profissional, Menahem retorquiu de público que era bem isso que o trabalho de Dunash, de repente na moda, fazia: trair a tradição antiga por um mal disfarçado namoro com o islã. Entretanto, por ser o discípulo predileto de Saadia — um discípulo cujos versos foram descritos pelo mestre como “muito superiores a tudo que já se viu em Israel”, ainda que, ao mesmo tempo, profundamente ortodoxos —, o letrado mais jovem era invulnerável às vergastadas críticas de Menahem.

Ninguém podia, nem remotamente, acusar Saadia, homem muitíssimo religioso e culto, de se abastardar com culturas estrangeiras (embora Dunash viesse a ser acusado exatamente disso), mas sua grande obra, Crenças e opiniões, foi a primeira tentativa, desde Filo de Alexandria, quase um milénio antes, de justificar os princípios essenciais do judaísmo mediante uma análise racional — na realidade, de transformar o método lógico em um sinal da bênção especial de Deus. Cabe destacar que, embora o próprio Saadia fosse um mestre inatacável do Talmude e até o definidor de seu cânone, seu livro retorna à Torá e à Bíblia, talvez como uma resposta direta à nova seita dos caraítas, que, mais ou menos a partir do século IX, rejeitaram por inteiro os comentários e as leis rabínicas. 

A guerra cultural cresceu e se tornou mortífera. Menahem não iria segurar a língua, pois sabia que o inimigo estava decidido a destruí-lo, tal como se o atacasse com um punhal. Hasdai a tudo assistia, apreciando o combate dos gladiadores, depois do qual fez o gesto senhorial de erguer os polegares para Dunash. Diante da recusa de Menahem (e de seus alunos leais) a silenciar, Hasdai mostrou-se pessoalmente ofendido. A guerra em torno do hebraico não era um jogo académico. O velho secretário transgressor foi agredido com violência em sua casa no Shabat, teve os cabelos arrancados pela raiz e foi conduzido ao cárcere — um ponto final selvagem e vingativo para uma carreira longa e leal. Era evidente que não valia a pena pressionar demais o grande Hasdai ibn Shaprut.

Abu Yussuf ibn Shaprut nascido por volta de 915 em Jaén, morreu por volta de 970 em Córdoba. Foi um estudioso judeu, médico, diplomata e patrono da ciência.



Monumento a Hasday ibn Shaprut, situado en la plaza del Rastro de Jaén. Obra del escultor Santiago Cano León, con motivo del XI centenario del nacimiento de ibn Shaprut (2016). Su inscripción reza lo siguiente: La ciudad de Jaén a Hasday ibn Shaprut en el 1100 aniversario de su nacimiento 915-2015.

Foram encontradas umas cartas que deixam claro que houve de facto um contacto epistolar entre judeus de Córdoba e a Cazaria. Escritas em hebraico (o que em si é já algo interessante), o autor identifica-se como judeu cazar, mas, em vez de uma súbita conversão após uma epifania, ele narra uma história mais longa de um “retorno” ao judaísmo. Foi em meados do século VII, quando os bizantinos derrotaram os persas e a política de conversão à força havia sido determinada pelo imperador Heráclio. Judeus de língua grega fugiram de localidades nos Bálcãs e do Reino do Bósforo, sobretudo da cidade de Panticapeia, onde tinham prosperado durante séculos, transpondo o Cáucaso e chegando à segurança da Cazaria, ainda pagã.

 Ali foram bem acolhidos e permaneceram durante muitas gerações, casando-se com pessoas do lugar e, nas palavras de um dos fragmentos, “tornando-se um só povo”. A maioria deles, como tantas vezes acontece, deixou de cumprir à risca os ditames da religião, que se reduziram a pouco mais do que a circuncisão e o Shabat. Entretanto, depois que esses judeus se tornaram plenamente cazares, um deles veio a ser um bek de seus exércitos e, depois de uma vitória particularmente espetacular, tornou-se rei. 

bek, que se tornou conhecido pela palavra melekh, que em hebraico significa “rei”, era talvez o Bulan a que a “resposta” faz referência, e ainda que afastado da religião foi incentivado por sua mulher, Serakh, também de origem judaica, porém mais praticante, a organizar o famoso debate, que pode ter sido um evento histórico de facto. Rolos da Torá descobertos numa caverna semelhante à de Qumran, mas na planície de Tiyul, tornaram-se o meio de instrução. 

Bulan assumiu o nome teofórico de rei Sabriel, fez com que ele próprio e seus nobres fossem circuncidados, importou “sábios” de Bagdade e da Pérsia, construiu sinagogas e um grandioso santuário, além de observar os jejuns e as festas. Chanuká e Pessach, em especial, cercavam-se de tal importância que o bek viajava das planícies a Atil para participar das comemorações. Fica claro pelos fragmentos da Guenizá que as reformas judaizantes alcançaram toda a população (que, de qualquer forma, tinha um núcleo de judeus provenientes da Arménia), e que cerca de seis reis se seguiram a Bulan/ Sabriel, adotando também nomes hebraicos: Obadias, Ezequias, Manassés, Benjamim, Arão e, por fim, José. Todavia, o século que durou a Cazaria judaica talvez não tenha sido bastante longo para criar raízes fortes, capazes de resistir às invasões do Principado de Kiev. Quando isso ocorreu, apenas duas décadas depois da aproximação entre Córdoba e Atil, é impossível dizer que proporção de judeus cazares foi embora e quantos ficaram, adotando as novas religiões.

Se os cazares se achavam à beira do desastre no exato momento em que se tornavam conhecidos pelos judeus do al-Andalus, o mesmo acontecia ao homem cujo conhecimento do hebraico permitira a ligação. Pouco tempo depois da correspondência com os cazares, Hasdai importou de Bagdade um novo e mais jovem luminar do hebraico, Dunash ben Labrat, e logo se viu que não havia espaço, ao mesmo tempo, para Menahem e Dunash no círculo de Hasdai. Seu primeiro nome leva a crer numa origem berbere, e ele nascera em Fez, mas Dunash chegara à maioridade como redator na cidade babilónia de Sura, onde estudara com o famoso letrado Saadia, o Gaon.

quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

Fundamentalismos



O eterno problema da falta de entendimento entre as três religiões monoteístas com origem no Médio Oriente, e onde ainda aí se mantém uma forte tensão militar por via da sua importância geopolítica, volta novamente a prender a atenção dos líderes mundiais. Neste momento o problema é mais de cariz político do que religioso, embora nunca se possa adormecer esse lado da questão, em que o mundo islâmico ainda não se livrou dos seus fundamentalismos.

Para entender a crise, duas escolas interpretativas se opõem no Ocidente. M
uito mais do que simples opiniões, são paradigmas que refletem duas cosmovisões opostas. Também é claro que ambas as correntes dispõem de fortes argumentos e têm razão parcial. Na realidade, “a luta pela reação ao islã” exemplifica num microcosmo as grandes batalhas ideológicas travadas no mundo ocidental desde que a colonização impôs ao colonizador um esforço para um melhor entendimento do colonizado.

1) a versão internalista, ou reacionária - em que o próprio islã é o problema; a longa história de intervenções ocidentais no mundo muçulmano não foi apenas negativa, pois houve também oportunidades positivas que foram desperdiçadas. O mundo islâmico permanece preso num círculo vicioso de rancor, autopiedade, teorias da conspiração e violência. A raiz do problema seria o próprio islão, o mais importante fator da falta de desenvolvimento do mundo muçulmano. O islão, após sua época de glória na Idade Média, não conseguiu mais se renovar e não providencia soluções para uma modernização das sociedades muçulmanas. E ainda impede que os muçulmanos adotem plenamente os princípios da modernidade.

2) a versãoo externalista rejeita tal visão do islão. Minimiza a responsabilidade das próprias sociedades muçulmanas por sua miséria e aponta, ao contrário, para fatores externos. Assim, tanto a desunião do mundo muçulmano como a existência de estruturas autoritárias seria resultado de intromissões ocidentais. A turbulência é a reação à integração do mundo muçulmano numa estrutura global injusta e desequilibrada em termos de poder e riqueza. A posição geoestratégica crucial do Médio Oriente e da Ásia meridional atrai a permanente atenção ocidental para garantir o controlo dessas regiões. E a necessidade de o Ocidente administrar o petróleo – acesso, preço, lucros – leva-o a intervenções militares contra quaisquer regimes que possam desafiá-lo.

Maxime Rodinson, Edward Said e John Esposito estão entre os principais representantes mais progressistas que defendem que o islão constitui apenas um fator, e não necessariamente o maior, que molda os reflexos e as escolhas dos países muçulmanos, que diferem enormemente entre si em sua história, estrutura socioeconómica, composição étnica, tipo de religiosidade, opções económicas. O verdadeiro problema está na rejeição do islão pelo Ocidente, estrutura ocidental de conhecimento como poder, que criou uma imagem artificial, inverosímil e hostil do mundo muçulmano – um imaginário que sustenta o projeto de dominação que permanece após as independências meramente formais dos Estados muçulmanos. O Ocidente projeta sobre um Oriente (não existente) seus próprios aspectos não reconhecidos e rejeitados. Seria isto que manteria a desigualdade. 
Mesmo que as manifestações do islamismo nem sempre agradem ao olhar eurocentrista, elas são apenas uma reapropriação de sua autenticidade cultural na busca de um mundo mais equitativo. O desenvolvimento e a democratização do mundo muçulmano acontecerão naturalmente (embora não necessariamente seguindo o modelo ocidental), quando o capitalismo global, e os EUA em particular, deixarem de intervir no mundo muçulmano. O Ocidente deveria concentrar-se em seu próprio racismo. Em última rácio, o próprio fundamentalismo muçulmano acaba por  representar uma reação saudável contra a “colonização epistemológica” ocidental. 

 Nos anos 50 e 60, o paradigma predominante ainda partiu da superioridade do modelo ocidental (democracia parlamentar pluralista, secularismo, liberdades individuais, burocracias impessoais, capitalismo industrial) mas acreditava-se que tal êxito estava ao alcance de quaisquer povos “subdesenvolvidos”, inclusive dos muçulmanos, mediante a adoção da “modernização”. Visões que contestavam esta visão – marxistas em particular – eram nitidamente minoritárias. Várias influências causaram uma mudança neste quadro como a descolonização africana e as frustrações do desenvolvimento. Com a Guerra do Vietname, e a crescente aceitação do discurso marxista contra o imperialismo, veio a crítica à intervenção norte-americana contra movimentos progressistas no terceiro mundo. 

Depois do esvaziamento do modelo alternativo marxista, deu-se no mundo académico ocidental a dita viragem subjetivista e relativista na filosofia e ciências sociais. Houve um florescimento de novos movimentos sociais: feministas, ecologistas, homossexuais, negros nos EUA, e de uma multidão de outras causas minoritárias, étnicas e religiosas. Cada qual reivindica o direito à alteridade, dando como incorreta a visão anterior. Ainda que muitos dos movimentos tivessem objetivos próprios bastante radicais (e frequentemente separatistas), todos convergiram na ideologia multiculturalista, ou seja, a coexistência das diferenças numa tolerância generalizada que rejeita em princípio qualquer hierarquia de valores. Todos estes movimentos ideológicos se alimentaram do debate académico, repercutindo por sua vez numa mudança da atmosfera intelectual.

A nova hegemonia do pós-modernismo e do relativismo cultural dos estudos pós-coloniais resultou em parte destes fatores políticos e intelectuais, mas também, da luta entre gerações, e, por fim, do influxo demográfico (em particular nas universidades norte-americanas) de intelectuais do terceiro mundo. Os de origem muçulmana traziam em sua bagagem uma maior sensibilidade à subjetividade do mundo muçulmano – e um maior distanciamento intelectual do modo de pensar ocidental anteriormente predominantes. Assim, com um certo atraso, as correntes que percorreram as ciências sociais acabaram influenciando também a discussão académica e política sobre o islão. 

A relevância dessas discussões transcendeu amplamente os limites da academia até ao 11 de setembro de 2001. Muitas transformações se deram causadas pelos ataques de Osama bin Laden. À luz destes acontecimentos (reforçados pelas declarações posteriores de certos meios islamistas em favor de Osama), a visão de um multiculturalismo global, tal como a de um islã benevolente que só os preconceitos e a islamofobia, feneceu. Vozes denunciaram os islamófilos por ter ideologicamente preparado e, portanto, justificado o terrorismo fundamentalista. Esta acusação é obviamente muito exagerada. Contudo, é verdade que a tendência de sempre buscar as causas do mal fora do próprio mundo muçulmano impede o entendimento do islamismo como uma reação deturpada contra a modernidade, que vem de dentro do islão. O relativismo cultural e moral impossibilita qualquer avaliação do fenómeno, assim como a ideia de que todas as opiniões têm igual valor também impede um diálogo sério.


quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

Painéis do rei Senaqueribe em Nínive






Em 700 a.C., os governantes assírios estabelecidos no norte do Iraque, onde hoje é Mossul, haviam construído um império que se estendia do Irão ao Egito, abrangendo a maior parte do que hoje conhecemos como Médio Oriente. Foi um grande império em extensão territorial, tal como o Persa, produto da prodigiosa máquina de guerra assíria. O coração do império assírio situava-se nas férteis terras próximas do rio Tigre. A localização era perfeita para atividades agrícolas e comerciais, mas não possuía defesas ou fronteiras naturais. Daí que os assírios precisassem de investir em enormes recursos militares, como um exército numeroso para guardar as fronteiras e expandir o território, de forma a manter os possíveis inimigos distantes.

Os Painéis de Nínive, do tempo do rei Senaqueribe, que se encontram hoje no Museu Britânico, narram em pedra um episódio, provavelmente ditado pelo próprio Senaqueribe, das suas conquistas ao rei de Judá - «
Uma vez que Ezequias, rei de Judá, não se rendeu ao meu domínio, voltei-me contra ele e, pela força das armas e pela grandeza de meu poder, tomei 46 de suas cidades fortemente cercadas; das cidades menores espalhadas pela região, tomei e saqueei inúmeras. Desses lugares, capturei 200.156 pessoas, velhos e jovens, homens e mulheres, com cavalos e mulas, burros e camelos, bois e ovelhas, uma multidão incontável.»

Laquis, hoje conhecida como Tell ed-Duweir, a mais de 800 Km a sudoeste do centro do império assírio, mas apenas 40 Km a sudoeste de Jerusalém, localizava-se num ponto estratégico vital para as rotas de comércio que ligavam a Mesopotâmia ao Mediterrâneo e à imensa riqueza do Egito. Em 700 a.C., era uma cidade de colina bastante fortificada; depois de Jerusalém, fora a segunda do reino de Judá a se manter independente dos assírios. Contudo, alguns anos antes de 700 a.C., Ezequias [726-697 a.C.], rei de Judá, rebelou-se contra os assírios. Então o rei Senaqueribe mobilizou o exército imperial assírio, e numa campanha extraordinária, sitiou a cidade de Laquis, liquidou os combatentes e deportou os restantes habitantes. Laquis foi apenas uma entre muitas de uma longa série de guerras assírias. Sua história é particularmente fascinante porque também conhecemos o outro lado, narrado na Bíblia hebraica. O Livro dos Reis nos diz que Ezequias, rei de Judá, recusou-se a pagar o tributo exigido por Senaqueribe: «Assim o Senhor era com ele; para onde quer que saísse prosperava. Rebelou-se contra o rei da Assíria, e recusou servi-lo.» A Bíblia, compreensivelmente, evita mencionar o desagradável facto de que Senaqueribe reagiu tomando de maneira brutal as cidades de Judá até Ezequias ser esmagado, render-se e pagar o tributo exigido.

O retumbante sucesso da campanha assíria está registado nestes entalhes em pedra em relevo superficial, de mais ou menos 2,5 metros de altura. Originalmente estariam num friso contínuo que ia quase do chão ao teto numa sala do palácio de Senaqueribe em Nínive, perto da moderna Mossul, no Iraque. É provável que fossem pintados com cores vivas, porém, mesmo sem cor nos dias atuais, continuam sendo documentos históricos impressionantes. Um elenco composto por milhares de pessoas. A primeira cena mostra a invasão do exército; em seguida, a sangrenta batalha na cidade sitiada, para, mais adiante, passarmos aos mortos, feridos e às colunas de refugiados passivos. Por fim vemos o rei vitorioso, triunfante: Senaqueribe, governante do grande império assírio.

O escultor mostra a campanha de Laquis como uma prática militar executada à perfeição. Ambienta a cidade entre árvores e vinhedos enquanto, abaixo dos soldados assírios, marcham arqueiros e lanceiros. Conforme avançamos pelo friso, ondas de assírios escalam os muros da cidade e acabam dominando seus habitantes. A cena seguinte mostra o resultado da batalha. Os sobreviventes fogem da cidade em chamas, carregando o que podem. Essas filas de pessoas com seus bens terrenos rumo à deportação devem ser uma das primeiras representações de refugiados existentes. Observando-os com mais atenção, é impossível não pensar nos milhões de refugiados e desalojados que essa mesma região tem testemunhado ao longo dos séculos.

As pessoas que vemos no relevo são as vítimas da guerra que pagam o preço pela rebelião de seu governante. Famílias com carroças lotadas de pertences são levadas ao exílio enquanto os soldados assírios carregam seus espólios para o glorificado rei Senaqueribe. Uma inscrição credita a vitória ao próprio rei: «Senaqueribe, rei do mundo, rei da Assíria, sentou-se no trono e assistiu à pilhagem de Laquis, que acontecia diante dele.» Ele governa a cidade saqueada e seus habitantes derrotados como um suserano quase divino, assistindo à deportação dos cidadãos para outra parte do império assírio. Essa prática de deportação em massa era um padrão dos assírios. Eles removiam numerosos grupos de pessoas importunas de sua terra natal e os reassentavam em outras partes do império, até na própria Assíria. A deportação nessa escala devia ser um desafio do ponto de vista logístico, mas o exército assírio passou por tantas campanhas que o deslocamento de pessoas deve ter sido aperfeiçoado ao ponto da eficiência em grande escala.

segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

A paz nem sempre é fácil de alcançar



Na Palestina, tanto muçulmanos como judeus possuem reivindicações históricas inquestionáveis. Judeus habitaram e reverenciam esta cidade há mais de 3 mil anos. Por isso, muçulmanos e judeus têm o mesmo direito de ali viver e se estabelecer. Todavia, há momentos em que mesmo a mais inofensiva restauração judaica de uma sinagoga é contestada como ilegítima. Em 2010, a restauração da sinagoga da Hurva, no Bairro Judeu, que havia sido demolida pelos jordanos em 1948, provocou críticas difundidas pelos órgãos de comunicação europeia, e pequenos tumultos ocorreram em Jerusalém oriental.

Bem diferente é o que se passa agora com os habitantes palestinos de origem árabe, quando se veem removidos, coagidos e intimidados, na sua propriedade expropriada com base em direitos duvidosos 
daqueles que se julgam em missão divina. A construção agressiva de assentamentos, planeados para colonizar as regiões árabes e sabotar qualquer acordo de paz para dividir, e a sistemática negligência em prover serviços e novas habitações nessas localidades, têm dado má reputação até mesmo aos projetos judeus mais inocentes.

Israel se depara com dois caminhos: o Estado hierosolimita, de cunho religioso e nacionalista, versus uma Telavive liberal e ocidentalizada, que é apelidada de “a Bolha”. Há perigo de que o projeto nacionalista em Jerusalém e a obsessiva construção de assentamentos na Cisjordânia possam distorcer tanto os próprios interesses de Israel a ponto de trazer mais prejuízos ao país do que eventuais benefícios.

Com certeza é a primeira vez que os judeus têm liberdade de culto ali desde o ano 70 da Era Cristã. Sob domínio cristão, os judeus foram proibidos até mesmo de se aproximar de Jerusalém. Durante os séculos islâmicos, cristãos e judeus foram tolerados como dhimmi, embora fossem reprimidos com frequência. Os judeus, que careciam da proteção dos Estados europeus, eram geralmente maltratados. Quando não estão em conflito, judeus, muçulmanos e cristãos retornam à antiga tradição hierosolimita, e fingir que os outros não existem. 

A intensidade escatológica não deixa de colocar Jerusalém, ainda no século XXI, como a cidade escolhida das três religiões, numa encruzilhada de visões conflituantes e incompatíveis, ainda que se reclamem herdeiras do mesmo patriarca - Abraão. 
Jerusalém sempre foi a cidade dos profetas, mas também do martírio. É campo de atentados suicidas como arma predileta, quando não alvo de roquetes. Em algum momento das negociações, o Hamas terá de renunciar à violência e reconhecer o Estado judeu. 

O monte do Templo é difícil de dividir. O Haram e o Kotel, o Domo, al-Aqsa e o Muro são parte da mesma estrutura. Ninguém pode monopolizar a santidade. Não se pode chegar a nenhum acordo, e tampouco ele será duradouro, sem soberania política. Pode ser desenhada num mapa, expressa em acordos legais, posta em vigor, mas será fútil e inexpressiva sem o aspecto histórico, místico e emocional sanado na memória política.

domingo, 17 de dezembro de 2023

Civilizações e Edward Said





Civilizações não são entidades tangíveis, mas construções mentais abrangentes e fluidas, que ligam sociedades entre si por meio de modos de organização social e/ou normas, valores, epistemologias, sensibilidades estéticas comuns. Edward Said tem sem dúvida razão quando desmascara a polarização Ocidente/Oriente como uma construção ideológica e interesseira; mas isto não implica que algo como civilizações diferentes não exista. Ao contrário de Estados territoriais, civilizações não têm fronteiras claras, mas elas se justapõem e se influenciam reciprocamente.

Devido aos processos de modernização e globalização, civilizações antes relativamente isoladas estão hoje em comunicação mais intensa, e sua coexistência pode gerar tensões. Todavia civilizações estão longe de ser o único fator que determina as relações entre grupos humanos – interesses económicos, cálculos políticos, pressões do sistema internacional como um todo, entre outros, também moldam as inter-relações. O mundo contemporâneo constitui, justamente, uma combinação de crescentes interdependências económicas, políticas e até culturais – e as reações defensivas a isto por parte de grupos religiosos, étnicos e outros que se sentem ameaçados pela caótica mas aparentemente irresistível interpenetração de economias, governos e civilizações. 

O problema da Palestina deve ser abordado dentro desta perspectiva. Ou seja, nunca foi uma entidade fechada, com fronteiras bem definidas, mas um local da Terra por onde circularam e se entrecruzaram civilizações. Portanto, um local de encontro e interação, marcado ora por conflito, ora por cooperação. Historicamente, as relações entre as civilizações oscilam entre os polos de diálogo e conflito. Elas se chocam quando não há comunicação aberta. 

As potências ocidentais deixaram independentes apenas algumas zonas consideradas primitivas demais para justificar a sua incorporação. Estas zonas incluíam a Península Arábica com as cidades sagradas e berço do islão. O momento chegou oficialmente ao seu fim com a descolonização, essencialmente completada nos anos 70 – mas continua de forma mais insidiosa pela influência informal que o Ocidente mantém no mundo muçulmano. Essas trocas territoriais refletem uma inimizade que se resume nas palavras jihad e cruzada. Tal hostilidade se expressava também no campo teológico: para o islão, o cristianismo era uma versão ultrapassada e, portanto, desprezível, da verdadeira fé; para o cristianismo, o islão era visto de forma ainda muito mais negativa, como a falsa alternativa por excelência. Dante Alighieri, em sua Divina Comédia, coloca um Maomé condenado e torturado como herege no nono abismo do inferno. Todavia, esta hostilidade constitui o pano de fundo que dissimula períodos extensos de interação mais positiva: comércio, diálogo, trocas culturais, coexistência. Tais encontros ocorreram com maior facilidade no território do islão, mais pluralista, do que no cristão.

A participação de muçulmanos, judeus e cristãos numa economia e cultura comum tem o seu apogeu nos casos da Sicília e Espanha medievais. Ali, a interação filosófica e científica entre as três religiões e o contacto com as fontes gregas por ela facilitado se comprovariam vitais para o futuro desenvolvimento do próprio Ocidente. Interesses económicos sempre contrabalançaram a incompatibilidade ideológica. Apesar de Veneza se enriquecer fazendo a travessia de cruzados para a Terra Santa, a cidade também comerciava com o inimigo – como na ligação mercantil, mutuamente lucrativa, entre mamelucos egípcios, provedores de artigos de luxo orientais, e as galés italianas que forneciam escravos aos sultões do Cairo.

Desde o século XVI, as potências europeias fizeram acomodações políticas frequentes com o Império Otomano e, durante toda a Idade Moderna, o comércio mediterrâneo ultrapassou as barreiras religiosas. Uma Realpolitik destituída de princípios levou o rei da França, Francisco I de Valois, a pactuar com Solimão, o Magnífico, para abrir uma segunda frente contra o imperador Carlos V de Habsburgo, e depois provocou os ingleses a explorar uma ação comum com os persas safávidas contra o império marítimo dos portugueses. Os turcos integraram o incipiente sistema internacional, ainda que não da mesma maneira íntima que as demais potências cristãs. Na Primeira Guerra Mundial, os ingleses derrotaram os alemães em seu próprio jogo, com o célebre episódio de Lawrence da Arábia. E, num período mais recente, o apoio incondicional norte-americano e ocidental ao regime fundamentalista da Arábia Saudita exemplifica novamente que incompatibilidade ideológica e coexistência prática baseadas em interesses comuns não se excluem necessariamente.

O século XX se transformou estruturalmente pela descristianização, pela secularização do Ocidente e pelos avanços científicos e tecnológicos, industriais e militares ligados ao processo de modernização. Esta tríplice revolução retirou a base comum a ambas as civilizações, a europeia e a muçulmana, distanciando definitivamente a primeira da ordem de Deus. A Revolução tornou o Ocidente imensamente mais poderoso do que o mundo muçulmano, o que causou neste último a implosão das estruturas antiquadas, as perdas políticas, a exploração económica e o declínio de seus padrões religiosos e culturais tradicionais. A Revolução levou diretamente à contínua influência ocidental que tanto humilha as populações muçulmanas – influência unidirecional, que expressa a assimetria do poder. Doravante a pergunta não deve ser se o islão constitui uma ameaça, mas se o próprio islão é capaz de sobreviver ao Ocidente. Toda a problemática atual das relações entre Ocidente e Oriente resulta das várias tentativas para fazer frente ao “perigo ocidental” e para contrabalançar a assimetria.

Os islamistas constituem um grupo inassimilável à civilização da modernidade. O verdadeiro “choque de civilizações” que ameaça se estender sobre a Terra, portanto, não é entre a “cristã” e “o islã”, mas entre uma modernidade universalizada por um lado (e que poderia acomodar um islã reformado), e uma versão radical do islão político, que usa as armas da modernidade contra o próprio mundo moderno. Pode-se imaginar, aliás, choques paralelos com outros fundamentalismos: o protestante nos EUA, o judaico em Israel, o hinduísta na Índia. Os islamistas da mais recente onda travam esta guerra em nome de uma transformação não apenas da estrutura interna das sociedades muçulmanas como também de todo o sistema internacional. Este sistema, ainda essencialmente westfaliano, baseia-se em Estados soberanos que mantêm entre si um mínimo de ordem por meio de instituições e procedimentos consensuais (de origem europeia mas atualmente desnacionalizados). Ou seja, o islão dos islamistas não é apenas uma religião, mas um sistema ideológico abrangente e – como os islamistas são os primeiros a admitir – absolutamente incompatível com o Ocidente.

sábado, 16 de dezembro de 2023

Tempos excecionais de Ibn Rushd (Averróis) e Ibn Khaldun






Houve no islão pensadores progressistas racionalistas e proto/iluministas tais como Ibn Rushd (Averróis) e Ibn Khaldun. Porém, a “esquerda aristotélica” foi logo derrotada: a liquidação política dos mutazilitas ocorreu já antes de 850 – em plena glória abássida. A fragmentação do islão em três califados inimigos datou de 950. O
 fechamento do ijtihad ocorreu antes de 1050 – todos antes das calamidades dos séculos XII-XIV, comumente responsabilizadas pelo declínio do islão. 

O islã foi concebido originalmente como religião universal, mas desde o início foi infiltrado por motivos particulares – desde a luta pela sucessão entre vários ramos da família do Profeta. No histórico confronto entre o islão e as lealdades tribais, as últimas nunca foram definitivamente derrotadas; em consequência, o islão nunca produziu um Estado homogéneo, mas uma cadeia de estruturas políticas sempre frágeis e dependentes de lealdades pessoais e familiares, em vez de regidas por princípios abstratos. Em seguida, a expansão do islã exportou inadvertidamente os moldes da sociedade árabe tribal; os reinos muçulmanos sucessivos permitiram a sobrevivência e reprodução de particularismos. Até o Império Otomano, exemplar mais acabado e duradouro, sofreu de uma falta de coerência interna bem maior do que a de seus concorrentes ocidentais.

Há mil anos, o islã estava integrado no progresso científico, trabalhando os clássicos gregos perdidos na cristandade e avançando na matemática, astronomia, química, ótica, medicina, geografia e outras ciências. Novas invenções ajudaram a tornar o império muçulmano o mais poderoso do mundo. Esses avanços, porém, dependeram de um ambiente de livre exame, que foi gradualmente abafado pela ortodoxia do sunismo. Há muito, estudos científicos antes bem-vindos no Cairo, Bagdade e Shiraz se transferiram para Paris, Londres e Nova York – e, recentemente, também para Tóquio, Bangalore e Telavive. Ainda não voltaram para Bagdade, Teerão ou Islamabad.




A ciência, que está na base das tecnologias que permitiram ao Ocidente conquistar o resto do mundo e, posteriormente, a universalização da modernidade tem sido vista com suspeita no mundo muçulmano, pois o pensamento científico não se baseia numa revelação imutável mas sim na institucionalização da dúvida e na aceitação da incerteza dos resultados da pesquisa. Ora, a ortodoxia islâmica mantém uma atitude hostil para com a ciência. Em termos de educação, quantidade e qualidade de trabalhos científicos produzidos, descobertas e invenções feitas, o mundo muçulmano está hoje claramente atrasado não só em relação ao Ocidente, mas a quase todas as outras civilizações. O critério de aprovação para alunos universitários de ciências exatas e de engenharia, bem como a seleção de professores de ciência, passa pelo crivo religioso. A situação é ainda pior no Afeganistão. Este quadro, em lugar de fortalecer os muçulmanos frente ao Ocidente, os mantém vulneráveis.

As tradições democráticas estão quase ausentes ou reprimidas. O islão e a democracia é um debate das últimas décadas sobre o futuro do islão. A questão de direitos individuais ocupa um lugar muito menor no islão do que no pensamento jurídico ocidental. A mais importante garantia consagrada no direito natural ocidental, a autodeterminação, é explicitamente negada pelo islão. Não é o homem que é soberano, mas sim Deus. As criaturas pertencem ao Criador, que tem um direito de propriedade sobre elas. Para os islamistas, a soberania de Deus é incompatível com a democracia, expressão de uma soberania do povo ilusória e ilegitimamente autoatribuída.

Os islamistas se encontram em muitos países. 
A posição em relação às regras democráticas é apenas instrumental. No olhar fundamentalista, o homem tem apenas o direito (que é também seu dever) de se prostrar e aceitar o poder incomensurável e arbitrário de Deus. Na prática, contudo, os movimentos fundamentalistas em geral não aceitam a autoridade dos ulemás, considerados como corruptos pelo poder existente, mas se autoproclamam os novos intérpretes – em outras palavras, optam por uma liderança carismática, autonomeada, que após a revolução islâmica se tornará a nova elite clerical e burocrática. Ao lado deste modelo, porém, também há de facto tendências democráticas. Nem no Irão foi estabelecido um autêntico regime teocrático, mas um híbrido de teocracia e democracia.

As mais severas interpretações antidemocráticas dos mais conservadores fundamentalistas se chocam com a vontade democrática das massas muçulmanas. O líder da comunidade é obrigado a consultar os representantes dos fiéis antes de tomar uma decisão. Ora, esta exigência, religiosamente sancionada, pode ser aplicada de formas diversas: de maneira tradicional, como quando o sultão ouve as ideias de seus ulemás supremos; ou de modo mais progressista, pelo estabelecimento de regras na prática muito semelhantes às da democracia parlamentar.

A rejeição do racionalismo é, portanto, uma deficiência com grandes consequências. Novos desafios militares do Sul global contra o Norte continuarão ocorrendo enquanto não houver uma redistribuição mais justa em escala planetária. Mas eles surgirão novamente do mundo muçulmano? A emergência de um Estado muçulmano foi (numa forma mais ou menos secularizada) o projeto de Nasser no Egito nos anos 50 e 60, e de Saddam Hussein do Iraque nos anos 80 e 90. Ambos fracassaram. Atualmente, uma nova tentativa deste género  – com ou sem restauração do califado – está extremamente distante. Criar uma base territorial, depois unificar uma região suficientemente extensa, centralizar, armar, islamizar populações diversas constituiria uma tarefa dificílima.

Qualquer unificação no Médio Oriente, atualmente muito desunido, mesmo que houvesse um novo candidato para liderá-la, necessitaria de um longo período de aplicação de violência para reprimir resistências internas e externas, e depois um outro, provavelmente ainda mais longo, para mobilizar as energias populares e preparar a economia e o exército para uma tentativa hegemónica mundial.

Ataques terroristas no sei da União Europeia, tanto isolados como em conjugação em rede, podem, contudo, enfraquecer os fluxos comerciais e causar uma crise económica mundial. Na realidade, porém, é mais provável que eles provocassem movimentos de reação emergindo no centro do mundo capitalista desenvolvido. É pouco provável que isto conduzisse a uma vitória fundamentalista (o que não significa que fundamentalistas não possam chegar ao poder numa série de países muçulmanos). 

Por exemplo, uma população muçulmana empobrecida, pouco identificada com os valores do país de residência, como está a acontecer na França, está a preocupar muito as elites governantes. Fica claro que, muito do alarmismo populista dos partidos de extrema-direita, com ou sem razão, estão a afundar muitas das conquistas democráticas a seguir à Segunda Guerra Mundial. 
A questão é se os esforços multiculturalistas podem contrabalançar forças opostas de não integração.

Há diversas correntes xenófobas nas sociedades ocidentais. As dificuldades socioeconómicas tendem a excluir grupos vulneráveis da periferia da sociedade, dentre os quais se destacam minorias muçulmanas. O risco de alienação de massas de jovens muçulmanos, que tendem a se radicalizar, é bem real. Movimentos islamistas revolucionários operando na subclasse muçulmana explorada e radicalizada nos países europeus está a criar uma conjuntura bem mais incontrolável do que nas conjunturas anteriores.


Taça de laca encontrada perto de Pyongyang




Taça de laca no British Museum 

Esta peça extremamente bela e delicada, é provável que tenha sido oferecida pelo imperador Han a um dos seus comandantes militares na Coreia, mais precisamente em Pyongyang por volta do início do primeiro século desta era.

A maneira mais fácil de estabelecer vínculos com alguém, desde sempre, tem sido dar-lhe um presente especial. Um presente que só nós podemos dar e só aquela pessoa é digna de receber. Na China da dinastia Han, dois mil anos atrás, dar presentes imperiais era uma atividade essencial para consolidar influência. Era assim em todo o lado, que líderes de vastos reinos e impérios construíam e mantinham a sua supremacia.

Esta taça vem de um período turbulento da dinastia Han. O imperador enfrentava severa ameaça no centro do poder. Mas, ao mesmo tempo, lutava para manter o controlo na periferia. Os Han, que governavam desde 202 a.C., estenderam o poder da China até ao Vietname, ao sul, até às estepes da Ásia Central, a oeste, e até à Coreia, que naquela altura não fazia diferença a sua extensão até ao Norte. À medida que o comércio e os assentamentos da dinastia lançavam raízes nesses postos avançados, seus governantes adquiriam poder, e havia sempre o risco de que esse poder resultasse em feudos independentes. 

Para os Han era vital a coesão de todo o vasto território. Daí que a lealdade dos governantes ao imperador precisava de ser assegurada. E uma das formas de que o imperador se utilizava para mantê-los na linha era dar-lhes presentes que contivessem imenso prestígio imperial. 

É uma taça muito leve e mais parece uma pequena tigela de servir do que uma taça de vinho — uma tigela que comportasse o equivalente a uma taça de vinho muito grande. A tigela é oval, rasa, de dezessete centímetros de largura, mais ou menos do tamanho e da forma de uma manga. Em cada um dos lados mais longos há asas douradas que dão à taça o nome pelo qual é conhecida: taça de orelha. O núcleo da taça é de madeira, e através dos poucos pontos de desgaste é possível vê-la; mas a maior parte é coberta de camadas de laca de um marrom avermelhado. O interior é desprovido de enfeites, mas o exterior foi decorado com incrustações de ouro e bronze: casais de pássaros, um de frente para o outro, cada qual exibindo garras exageradas, sobre um fundo de formas geométricas e espirais decorativas. O efeito geral é de um objeto caro e cuidadosamente lavrado — dotado de elegância, estilo, confiança. Tudo nela demonstra gosto seguro e opulência controlada.

Fazer um objeto coberto de laca consome uma enorme quantidade de tempo. É um processo muito laborioso e entediante, porque a extração da seiva da árvore da laca é seguida de uma série de procedimentos: misturar pigmentos, deixar curar, aplicar camadas sucessivas numa superfície de madeira até por fim produzir uma peça bonita. Devia envolver vários grupos de artesãos.

A laca de alta qualidade era lisa, brilhante e quase indestrutível. Peças finas como esta requeriam pelo menos trinta camadas, com longos intervalos para secar e endurecer. E a fabricação devia levar mais ou menos um mês. Não é de surpreender, portanto, que fossem desmesuradamente caras; podia-se comprar mais de dez taças de bronze pelo preço de uma de laca. Assim, as taças de laca eram reservadas apenas para a alta administração — os governadores imperiais que controlavam as fronteiras do império.

Naquela época havia o outro império a ocidente, o Império Romano, ambos muito extensos em território. Mas o Império Chinês era muito maior em população. 
Um recenseamento realizado na China, por altura do fabrico desta taça, dá conta de um número admirável e preciso: 57.671.400. O alcance da dinastia Han estendia-se desde o Norte da Coreia até ao Vietname. A circulação de mercadorias, objetos e textos tinham de ser autorizados pelo imperador. Era essa a afirmação simbólica do que significava ser um império. Pode-se não encontrar pessoas que fazem parte do mesmo império, mas pode-se, de facto, diante dos bens produzidos em todo o império, ter a sensação de pertencer em muitos sentidos a essa grande comunidade imaginada.

O imperador gastava uma grande fatia da renda estatal a cada ano para fornecer presentes luxuosos aos Estados aliados e vassalos, incluindo milhares de rolos de seda e centenas de taças de laca. Portanto, esta taça pode ter sido dada como presente imperial ou como salário indireto a um oficial de alta patente das guarnições militares de Han perto da atual Pyongyang na Coreia do Norte. Além do puro valor monetário, destinava-se a conferir prestígio e a sugerir uma ligação pessoal entre o comandante e o imperador. Nessa altura a
 dinastia Han tinha à frente uma imperatriz, já viúva - Grande Imperatriz Viúva Wang, que governou o Estado de facto durante trinta anos.

Na época dos Han, o governo desempenhava papel preponderante na indústria, em parte por causa dos gastos militares para financiar as expedições necessárias contra os agressivos povos do norte e do oeste. O governo nacionalizou algumas das principais indústrias e as regulou por muito tempo, de modo que elas costumavam ser dirigidas por empresários privados, mas sob controlo estatal. Há paralelos modernos aqui, porque o que vimos nas últimas décadas foi a emergência de um sistema híbrido na China, indo de uma economia completamente estatal a um modelo mais orientado para o mercado, e ainda assim firmemente sob direção do governo. Se olharmos onde o capital é investido e qual é a estrutura da propriedade na indústria chinesa, veremos que ainda é em grande parte controlada pelo Estado.