domingo, 31 de janeiro de 2021

A condição humana


A sabedoria introduz-nos no mistério mais impenetrável que é o da condição humana. O que hoje podemos saber com a simples ligação de um televisor, outrora era imaginado pelo ouvir dizer, que se exprimia por mitos e lendas. Assim, a sabedoria deste tempo é posta à prova nesta experiência de viver os acontecimentos do sofrimento e da morte coletiva, como se estivéssemos a ver Auschwitz em direto.

É a revelação dos limites da natureza humana, em que o amor é mais forte do que a morte. É o mistério da Humanidade feita à imagem de um Deus Big Brother que persiste em não mostrar a sua imagem. É o  mistério da Humanidade que se destrói a si própria na ânsia de experimentar o poder que tem. 



Numa conferência de imprensa, o médico responsável do INEM explicou ter tomado aquela decisão para evitar o desperdício iminente de vacinas que, de outro modo, iriam para o lixo. No dia 8 de janeiro, uma sexta-feira, e o último dia de administração da primeira dose da vacina foi informado, já depois do almoço, de que havia 11 vacinas, já preparadas em seringas, que não tinham destinatário, já que todos os profissionais identificados como prioritários pela delegação já tinham sido vacinados. Então, depois de ponderação, acabaram por ser vacinadas 11 profissionais de uma pastelaria ao lado das instalações do INEM. Porquê essas pessoas? “Foi apenas circunstancial. Por motivos de proximidade e de segurança, já que estando aqui ao lado isso facilitava a monitorização de eventuais efeitos secundários” 
A norma da Direcção-Geral da Saúde que determina como se deve proceder à descongelação, diluição e administração da vacina da Pfizer/BioNTech, prevê que a vacina só pode ser administrada “até seis horas após o momento da diluição”, devendo depois ser para “descartar”. As 11 pessoas externas ao INEM receberam igualmente a segunda dose da vacina, administrada na sexta-feira passada. 

Quando um jornalista na TV, perguntou ao Coordenador da Task Force das Vacinas, se pessoas que tinham recebido a primeira dose indevidamente, teriam direito a receber a segunda dose, Francisco Ramos teve o cuidado de chamar a atenção que seria agora infame termos uma atitude de vingança ou castigo para com essas pessoas. Claro que foi cometido um erro, mas depois de o erro cometido não faria sentido uma atitude tão pouco cristã.

Os mitos são férteis em peripécias humanas, que nos ensinam como devemos viver sem Queda. Como diria Aristóteles, há um equilíbrio a atingir. Ideais e interesses podem-nos levar para lugares em que não deveríamos estar. É claro que encontrar a mistura certa não é fácil. Autenticidade, Sinceridade e Integridade: é bom de dizer, mas difícil de fazer Ser.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Você merece. Merece?


Voltando ao slogan da L’Oréal do post anterior, o que a L'Oréal quer dizer é: “Você poderá merecer se comprar esta coisa”. O slogan original começou por ser: “Porque eu mereço”. Mas valeu a pena, para a empresa, é claro, ter mudado para: “Porque Você merece”. A questão é muito diferente, quando somos nós a merecer. As nossas vaidades estão sempre prontas ao estímulo. Subliminarmente o que sucede é a pessoa ficar desesperada porque na verdade ela não é nenhuma beldade de passadeira vermelha. Mas a L'Oréal vai levá-la aos píncaros da perfeição: "olhe para o que eu lhe digo, se comprar este creme, ou a tinta para o cabelo desta cor, estará a comprar um pouco da mesma magia, o lugar onde também poderá estar". Os seres humanos sempre se deram ao esforço de cuidarem da aparência pessoal. Nas Sepulturas da Idade do Bronze encontra-se um pouco de tudo, desde espelhos, pentes, e adornos como colares e brincos. 
A ambição de se possuir algo com tal estatuto rende à L'Oréal os seus milhares de milhões.» 

As pessoas que aparecem nos anúncios estão simplesmente para além desta linguagem de trapos. Não se importam com o que pensemos delas. A personagem no anúncio é uma ficção, uma criatura da nossa própria imaginação dirigida e manipulada. Tal como Narciso, a audiência do anúncio aproxima-se de um fantasma, que desaparecerá logo que tenha caído na esparrela de possuí-lo, com a compra de uma promessa, que não passa de uma ilusão breve, de também fazer parte de um olimpo de deuses. É uma desgraça, esta crença arrogante de que nós somos o centro das preocupações dos outros, a crença de que só temos direitos, em que os deveres são para o Estado e os governantes. E o panorama que se vê agora com as redes sociais, é que não vamos para melhor, mas para pior. Todo o tipo de egocêntricos aduladores e manipuladores com opiniões erradas.

É claro que não nos devemos desfocar do essencial. Os cirurgiões plásticos têm uma razão de ser, que tem a ver com a deformidade, com a mutilação, que arruínam a aparência das pessoas atraiçoadas pela sorte que lhes roubou a dignidade e o sentido do Si. As desfigurações são terríveis. Mas o que é absurdo é aquelas pessoas, ao mexerem no que está quieto, ao alterarem o que
 tinha sido moldado pela evolução natural da ordem da vida com aquele tipo de operações plásticas, se desfiguram. Estes casos de cosmética não têm nada a ver com o acidente ou o infortúnio da doença que desfigurou, e que precisa do auxílio da cirurgia plástica reconstrutiva. Ao fim de contas não dá boa reputação acabarmos sob o bisturi do cirurgião, em que a demanda do corpo perfeito foi inflacionada pela indústria da cirurgia estética, numa ímpia aliança com o mundo da moda e do Photoshop. Por conseguinte, o que você está a merecer é ser vítima dessas manipulações indignas. Infelizmente, no mercado do recrutamento de pessoas para um emprego, é melhor ser-se mediano e ter boa aparência, do que ser-se brilhante e pouco atraente. Não admira que o mundo do trabalho e do emprego tenha chegado onde chegou. Uma grande confusão de valores. 

Não são só mulheres a caírem neste engodo, tenha calma. Os homens também andam amedrontados, e desesperados com a sua aparência por efeito da idade, da poluição, dos vícios, dos desleixos, da gulodice. Todo esse medo escraviza-os num mundo de dor, desespero e miséria. Milhões de pessoas em todo o mundo se submetem voluntariamente ao bisturi do cirurgião plástico por vaidade. Ainda tenho memória do que aconteceu em França há já uma década quando foi dado o alarme das próteses de silicone mamárias defeituosas em cerca de 30 mil mulheres. E elas apavoradas com a possibilidade de o implante rebentar-lhes no corpo a todo o momento: "Os antidepressivos que algumas tinham deixado de tomar, com o efeito curativo dos implantes mamárias, agora voltaram a ter de tomar, porque vivem com uma bomba relógio dentro do corpo. Nem conseguem dormir." 

Narciso era afinal uma figura ridícula vítima do seu amor próprio. E ao mesmo tempo o engodo e o alvo de tal vaidade. Ninguém deveria aceitar a futilidade da vaidade e da arrogância, a falta de decoro ao ir meter-se nas mãos de um cirurgião plástico por triviais razões cosméticas. Poderia dizer-se que é como se o corpo não fizesse parte do Ser, mas parte do Ter, como um anel, um broche ou um Porsche. Um terrível exemplo de cobiça e inveja. É que a vaidade precisa da lisonja, do elogio. Mas as outras pessoas têm outros interesses, que são os seus. A lisonja continua a ser um bem escasso. Na mitologia grega Narciso foi deixado por sua conta. E essa também era uma moral a retirar do mito.

A questão de fundo é que a cobiça desonra o melhor "sentimento de Si", a melhor ideia que temos de nós mesmos. Depois de termos sido tolhidos pelo aperto da serpente, é quase impossível sair do carrocel da ganância, da vaidade nunca satisfeita, que obviamente acaba na ganância do dinheiro. A magia não funciona, e o consumismo tomba inevitavelmente num fracasso estrondoso. Mas a imaginação é persistente, teimosa, e tenta de novo. E assim se abre um sombrio processo de pessoas que se tornam clientes desesperançadas, suplicantes, desfiguradas caçadoras de ilusões de um belo infinito, cujo favor reverte para os cofres do fabricante.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

Eutrapelia


Hoje já pouca gente sabe o que é eutrapelia, uma palavra antiga de origem grega. Era uma das verdadeiras virtudes, para Aristóteles: alguém que sabe ter uma conversa bem equilibrada entre o bom senso e o chocarreiro; alguém que para ser agradável é hiperbólico, mas a seguir diz com um sorriso: “estava a brincar”. É como Cristina Ferreira dizer naquele anúncio, a sorrir: “Porque Você Merece”



Ou então uma amiga de Cinha Jardim, como Castelo Branco, que já não a via desde as últimas operações plásticas ao pescoço e diz: “Você agora parecia-me uma daquelas criaturas do Frankenstein”. Mas a seguir diz em tom de gracejo: "Estava a brincar minha querida".



Por um tempo, a eutrapelia passou a significar piadas obscenas e grosseiras. A palavra aparece apenas uma vez no Novo Testamento em Efésios 5:4, onde é traduzida como "gracejo grosseiro".

O influente filósofo medieval Tomás de Aquino viu a eutrapelia sob uma luz positiva, novamente, favorecendo a antiga noção aristotélica de que ela é uma boa atitude para relaxamento mental, e constitui uma diversão honrosa. Em Summa Theologica, Tomás de Aquino considera a eutrapelia como um gracejo virtuoso e moderado. Na segunda metade do século XIII, o conceito foi considerado um estado de prazer judicioso - isto é, lícito e bom - e voltou a ser considerado uma virtude.

Alberto Magno, mestre de São Tomás de Aquino, que morreu em 1280, e que com efeito havia lido a Ética a Nicómaco de Aristóteles, tratou de explicar ao seu pupilo que a eutrapelia, termo que não quis traduzir para não retirar o seu sentido próprio, mas que se podia resumir a atividade lúdica, se podia incluir no elenco das virtudes cristãs. Filha da temperança, necessária ao pleno exercício da vida humana, o brincar traz boa disposição, e como tal constitui uma forma de recreação, ou seja, de reparação do espírito.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

A situação pede urgência

 

Em Portugal

Nos rodapés da TV lê-se: 

Fique em casa, estamos aqui por si

Hospital Xis fechou urgências / Em Y 20 ambulâncias na Urgência em fila de espera
Hospitais em L sem vagas / Hospital Z em taxa de esforço de 300%
Enfermarias em contentores / Um monte de botijas de oxigénio
Morgues ampliadas / Ambulâncias noutro hospital paradas em filas de espera
Contentores frigoríficos / Médicos mercenários / Médicos infetados
Açambarcamento de vacinas /Surto num hospital infetou 199 pessoas
Doentes para o estrangeiro / Mas em Badajoz a situação é alarmante
Hospital de campanha / Luxemburgo disponível para ajudar
Estruturas de retaguarda espalham-se pelo país
Hoje houve recorde de mortos por Covid-19 e doentes internados
Por milhão de habitantes Portugal  é o pior do mundo
Um hospital esgota a sua capacidade de oxigénio e transfere doentes para outros hospitais
O sistema não aguenta tanto doente a ser oxigenado

Dominamos a matéria, manipulamos as leis da física, o dinheiro circula à volta do globo à velocidade da luz, e, todavia, parece que estamos a ir diretamente pelo caminho do Caos. A racionalidade esgotou-se e a sabedoria é escassa. E os responsáveis dizem que nada há a fazer perante a catástrofe, mas que entre mortos e feridos, alguém há de escapar: os poetas.

A nossa conceção das mutações milenares não inclui a recompensa dos bons e o castigo dos maus, mas a multiplicação da injustiça. No fim, seja de um terramoto, seja de um tsunami, quem se lixa? Não é preciso dizer, toda a gente sabe. As convicções morais são impotentes para combater os interesses das empresas destruidoras que entre o tempo da recolha do maior bem da Natureza, e o tempo da devolução na forma de resíduos tóxicos, algo de mau acontece porque ninguém quer renunciar ao conforto e ao consumo.

Nenhuma empresa quer limitar os seus lucros. Nenhum governo se atreve: a impedir a produção; o tráfico de armas e de droga; o tráfico financeiro e branqueamento de capitais. O apelo à cidadania substituiu o apelo à moralidade. É no processo inexorável das mutações em que o pecado dá lugar ao crime. No mundo tudo muda, constantemente, em todos os níveis. E nunca sabemos de onde vem e para onde vai: a mudança.

É melhor viver com pouca coisa, e não ter medo. Muitas vezes confunde-se utopia com ideal. Se utopia quer dizer que é tudo aquilo que não existe em nenhum lugar, que só serve para nos evadirmos da realidade; ideal quer dizer ilusão alimentada pelas utopias. O aparente otimismo das utopias baseia-se na ilusão de que o imaginário se torna possível.

terça-feira, 26 de janeiro de 2021

Sophia



Ao nosso lado os mortos em surdina /Bebem a exalação da nossa vida. /
São a sombra seguindo os nossos gestos, /
Sinto-os passar quando leves vêm / Alta noite buscar os nossos restos.

Sophia de Mello Breyner Andressen – do poema: “Os mortos de Hécate”

Hécate
, deusa grega dos mortos, fere à distância, agindo segundo a sua vontade, é a qualidade em que se baseia especialmente Hesíodo da Teogonia, 425-435. Na imagem, Hécate está representada num friso do Altar de Pérgamo, que se encontra no Museu Pergamon, em Berlim. 

Estava associada a encruzilhadas, entradas, fogo, luz, a lua, magia, bruxaria, o conhecimento de ervas e plantas venenosas, fantasmas, necromancia e feitiçaria. Ela reinara sobre a terra, mar e céu, bem como possuía um papel universal de salvadora. Ela era uma das principais deidades adoradas nos lares atenienses como deusa protetora e como a que conferia prosperidade e bênçãos diárias à família.




Sophia perde-se nos caminhos. Adora viagens. Diz que nunca conseguiu encontrar um nome numa lista telefónica. Assim como se irrita quando ouve a campainha da porta ou do telefone. Por outro lado, é uma pessoa que mergulha nos poemas como gosta de mergulhar no mar. E esta qualidade já lhe tem feito muito mal à memória de trabalho, a chamada memória de curto prazo, aquela que se apaga com facilidade. Um dia esqueceu-se de um filho ainda pequeno, embora traquinas, numa loja onde entrou para comprar alguma coisa. E o miúdo escapuliu-se para explorar todo aquele bricabraque. Já estava na rua quando se lembrou que se tinha esquecido do filho na loja. Obviamente que o foi buscar a correr. Mas quando chegou à loja, a criança estava amuada, o que custou embaraços a Sophia para provar que era a mãe da criança. 



Sophia bebe muito chá e fuma cigarros atrás de cigarros, como se vê nesta sua bela fotografia. 

Os versos de Sophia não têm palavras a mais. Qualquer poema perde por uma palavra a mais que se torna desnecessária. Os poemas de Sophia são de uma avidez de luz e de mar: Quando eu morrer voltarei para buscar / Os instantes que não vivi junto ao mar. Sophia tomou como epígrafe de vida a frase do bisavô dinamarquês: “A minha casa é o caminho do mar”. Quanto ao avô, Sophia ouvia-o a entoar Camões, e "Camões parecia-me um palácio de vidro, transparente, luminoso, atravessado por uma luz doirada.”

Miguel Sousa Tavares, um filho, lembra-se dela sempre a recitar poesia em voz alta e a dançar pela casa enquanto lia. Nunca eram poemas dela. Esses escrevia-os a altas horas, quando os meninos supostamente deviam estar a sonhar com as histórias que ela lhes lia até adormecerem. O marido, Francisco Sousa Tavares, por vezes vinha a Pide e levava-o preso. Nessas ocasiões, Sophia pegava no seu pequenino Miguel e deitava-o na sua cama. Tinha medo, sobretudo medo de fantasmas.

Sophia de Mello Breyner Andersen nasceu a 6 de novembro de 1919 no Porto. Tem origem dinamarquesa pelo lado paterno. O seu avô, Jan Andresen, desembarcou um dia no Porto e nunca mais abandonou esta região, tendo o seu filho João Henrique, em 1895, comprado a Quinta do Campo Alegre, hoje Jardim Botânico do Porto. Como afirmou em entrevista, em 1993, essa quinta "foi um território fabuloso com uma grande e rica família servida por uma criadagem numerosa". A mãe, Maria Amélia de Mello Breyner, é filha de Tomás de Mello Breyner, conde de Mafra, médico e amigo do rei D. Carlos. Maria Amélia é também neta do capitalista Henrique Burnay, de uma família belga radicada em Portugal, e futuro conde de Burnay.

Sophia de Mello Breyner Andresen faleceu, aos 84 anos, no dia 2 de julho de 2004, em Lisboa, no Hospital Pulido Valente. O seu corpo foi sepultado no Cemitério de Carnide. Em 20 de fevereiro de 2014, a Assembleia da República decidiu homenagear por unanimidade Sophia com as honras de ficar no Panteão Nacional. A cerimónia de trasladação teve lugar a 2 de julho de 2014.

Desde 2005, no Oceanário de Lisboa, os seus poemas com ligação forte ao Mar foram colocados para leitura permanente nas zonas de descanso da exposição, permitindo aos visitantes absorverem a força da sua escrita enquanto estão imersos numa visão de fundo do mar.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

Marcelo – o Homem só


Ao volante do carro que gostaria de trocar em breve, Marcelo Rebelo de Sousa, sem máquina e sem partidos, como há cinco anos, mas agora também sem selfies e sem afetos, um só tema: a pandemia e a morte. Vemo-lo a votar em Celorico de Basto, e voltamos a vê-lo à hora do fecho das votações, a chegar a sua casa, em Cascais. Os jornalistas já lá estão à sua espera. Mas é como se não estivessem, com toda a calma, retira um fato do banco de trás, e várias pastas da mala do carro, e num vai vem entre o carro e a casa, vai arrumando as coisas com toda a parcimónia. E os jornalistas limitam-se a dar-nos a ver o Presidente, o estadista. Finalmente, fecha a porta. Mas voltamos a vê-lo meia hora depois na rua, a pé, com uma saca de plástico, e lá dentro traz o seu jantar que foi buscar a um restaurante ali perto, em take away: um bife, arroz e salada de tomate. E só o voltamos a ver entre as 23 e 24 horas, para o seu discurso de vitória na Faculdade de Direito de Lisboa, sem mais ninguém, um homem absoluto, qual eremita, qual Homem de Vitrúvio.




Marcelo, mas não há marcelistas. Com o número de mortos Covid-19 a galopar, não há espaço para outra coisa senão tratar da pandemia. É um presidente popular, mas não é nenhum cara de pau, nem nenhum populista, e com essas premissas leu o seu discurso: 
«Os portugueses querem sair deste quase ano de vida dilacerada, para um horizonte de esperança e sonho. É inconcebível que, no 50º aniversário de Abril, não se possa dizer que não somos mais livres, justos, solidários, do que no início da caminhada. […] A principal lição destas eleições é uma: se a pandemia durar e for mais profunda, tudo o resto correrá pior, durará mais, será mais difícil de recuperar. O mais urgente do urgente chama-se combate à pandemia. Temos de fazer mesmo tudo para travar e inverter um processo que está a pressionar as nossas estruturas de saúde. Temos de garantir aos nossos heróis que não há dois Portugais, o deles sempre no limite - e o nosso a viver de longe ou a tratar distraidamente demais o drama de tantos milhares de portugueses.» 

Sozinho, o indivíduo só se tem a si mesmo, desesperadamente preso a si mesmo, surgindo a angústia que, como Kierkgaard, se torna metáfora da noção de responsabilidade como culpabilidade. O conceito de angústia revela a indecisão do homem, o "pathos" em que o indivíduo chega à consciência de si mesmo e se declara face ao Nada (Deus?), reconhecendo o seu destino inexorável de mortal e, precisamente porque esta pandemia simboliza a "rutura do mundo", ou seja, a morte. É que o isolamento, em que estamos obrigados pelo “Confinamento” atrai a obsessão da morte. E a obsessão da morte traz o isolamento. 

Marcelo reza, é um católico praticante, devoto. Mas também é um Homem da Renascença, um Vitruviano de Leonardo da Vinci, símbolo do universo como um todo, porque apesar de tudo rege-se pela razão. Colocado no centro do mundo, o Homem tem perante si o caminho livre para chegar a si mesmo e, ou, a qualquer lugar. O lugar do Homem não está circunscrito; o seu lugar é o próprio universo, o Ser Universal. Procura salvar os portugueses, não pelo reconhecimento e submissão a Deus, mas pelo conhecimento e pela ciência. É por isso um Humanista da Renascença, que projeta a sua ilimitada confiança no futuro, para o qual tende o progresso da Humanidade. Está convencido de que se iniciou um novo ciclo, encontrado o caminho que conduz à verdade, sem "a venturas". O Homem é autossuficiente e pode aperfeiçoar-se através das suas próprias forças.

O Humanismo exalta a razão humana, a lógica e a experiência no plano do conhecimento e a vontade no plano da ação, isto é, o poder para dominar, controlar e governar os apetites e as paixões. O Homem é, pois, capaz de guiar-se a si mesmo, desde que, por meio da razão e da vontade, estabeleça normas de conduta e códigos para todos os aspetos da vida prática. 

O avanço dos conhecimentos e da técnica trouxe novas vacinas, e as pesquisas em todos os campos do saber permitem que tenhamos fé que vamos continuar a retardar a morte do velho envelhecido. Curar doenças tidas como incuráveis, aumentar a capacidade cerebral, alargar o espírito, aumentar os prazeres dos sentidos.  

domingo, 24 de janeiro de 2021

Milhares de migrantes hondurenhos


Há uma semana milhares de hondurenhos atravessaram a fronteira da Guatemala com o objetivo de chegar aos Estados Unidos. Eles partiram a pé de San Pedro Sula, uma cidade no norte das Honduras, levando o pouco que podiam, e começaram uma longa viagem a pé. Abandonam um país saturado pelo desemprego, pela violência, pela pandemia e pelos graves danos causados pelos dois furacões que atingiram a América Central. Inicialmente a polícia guatemalteca recebeu ordens para deixar passar os migrantes, devido à presença de famílias com crianças, mas há oito dias no departamento de Chiquimula, a 200 Km da Cidade da Guatemala, agentes tentaram bloquear o fluxo de cerca de 6.000 pessoas. Muitos migrantes acabaram por voltar para trás, enquanto outros fugiram para as montanhas e tencionam forçar a passagem noutra altura. De acordo com a Reuters, mais de duas mil pessoas passaram a noite de domingo para segunda-feira na estrada, ao relento. 




“Não temos trabalho, nem comida, por isso decidi ir para os Estados Unidos”. O Presidente eleito dos EUA, Joe Biden, já anunciou que vai reverter muitas das políticas de Trump, nomeadamente a imigração. No entanto, membros da Administração Biden aconselharam os migrantes da América Central a não fazerem a viagem rumo aos Estados Unidos, alertando que a sua entrada no país não será imediata e que as alterações na política de imigração levam tempo.

“Os migrantes e requerentes de asilo não devem acreditar nas pessoas da região que vendem a ideia de que a fronteira será aberta de repente para todos no primeiro dia. Não será”, disse Susan Rice, nomeada como conselheira de política interna de Biden.

Honduras é o segundo país mais pobre da América central e um dos mais pobres do Ocidente, e sofre de uma elevada taxa de desemprego. A agricultura é o mais importante na sua economia, empregando quase dois terços de sua mão de obra. Os principais produtos das suas exportações são o café, banana e camarão. É um país fortemente dependente dos Estados Unidos, para onde vão 70% das suas exportações e de onde se originam mais de 50% das suas importações.

O presidente, Juan Orlando Hernández Alvarado, cujo mandato começou em 27 de janeiro de 2014 e terminou em 27 de janeiro de 2018, foi reeleito para um novo mandato até 27 de janeiro de 2022, após uma votação considerada fraudulenta pela oposição e pelos observadores internacionais. O governo declarou o estado de emergência. Cerca de 30 manifestantes foram mortos e mais de 800 presos. Segundo as Nações Unidas e a Comissão Interamericana dos Direitos Humanos, "muitos deles foram transferidos para instalações militares, onde foram brutalmente torturados”.

Há muitos anos que os hondurenhos não têm tido sossego, apesar ou por causa, de serem o amigo mais fiel dos Estados Unidos na região. No início da década de 80 do século XX, o país estava bem guarnecido de militares e equipamentos americanos que lhe chamavam USS Honduras. Foi o tempo dos Contras apoiados pelos americanos contra os Sandinistas. Pelas mãos da CIA e do general Alvarez, pelo menos 10.000 pessoas foram assassinadas ou desapareceram. Falava-se, na altura, de um “esquadrão da morte”, criado pelos americanos para a Nicarágua e Honduras, o Batalhão 316.

Quando a CIA e o governo dos Estados Unidos começaram a treinar torturadores nas Honduras e a sabotar a vontade democrática do povo da Nicarágua, em nome da luta contra o comunismo, não era de admirar, dado os precedentes que já havia da intervenção dos Estados Unidos na América Latina. A primeira vítima tinha sido a Guatemala, onde o presidente democraticamente eleito, Jacobo Arbenz, concedeu, em 1952, estatuto legal ao Partido do Trabalho, comunista. Comunistas ocuparam cargos importantes no seu governo, pondo as grandes empresas americanas furiosas. Assim, prepararam Anastasio Somoza, no sentido de derrubar Arbenz e instalar uma ditadura de direita, de modo a favorecer amigavelmente os interesses das empresas americanas no seu próprio país.

sábado, 23 de janeiro de 2021

"O bípede de polegar oponível"

 

«. . . o bípede de polegar oponível nesse temível estado de dependente absoluto, . . .; e a mão hábil das invenções e do artesanato, essa mão da motricidade fina, capaz de colocar um fio de lã no mínimo buraco de uma agulha, . . . a mão que pede ajuda, a mão que dá ajuda. Tudo o resto talvez sejam ocupações eticamente intermédias dos ágeis dedos de um cidadão. No dia limite, no último instante, a tua mão será convocada: para salvar ou para pedir a salvação.»  GONÇALO M. TAVARES


Eu sou ambidestro, mas podia ter sido esquerdino; para uns, canhoto, para outros, sinistro. O nosso Presidente é esquerdino; Paul McCartney idem; Jimi Hendrix aspas. Há teorias para tudo, e existe claramente uma correlação entre ser canhoto e ter um pendor para artista. Ou seja, ser criativo. Talvez porque os canhotos são obrigados desde novos a adaptar-se e a encontrar soluções num mundo desenhado ao contrário para eles, ou porque já pensam numa direção diferente da maioria. O que a Ciência diz sobre essa suposta vantagem não tem tanto a ver com a mão que é predominante, mas com a destreza inconsistente das duas mãos, o que leva a que experimentem mais e, em certos instrumentos como o piano, sejam obrigados a rever a sua coordenação motora, a aplicar elevados níveis de concentração, a adaptar-se a um ensino musical pensado para destros, o que aumenta a sua plasticidade cerebral. Pelos vistos pensam mais depressa, têm uma organização mental melhor, lutam melhor, têm melhor memória. Por exemplo, Mark Knopfler é canhoto, mas toca guitarra com a direita. Se calhar o estilo de fingerpicking do guitarrista dos Dire Straits é um reflexo do que venho expondo. Seja como for, o tempo de ensinar esquerdinos a serem destros já acabou, e existem imensos instrumentos para quem não toca direito. 

Este artigo, que à partida parecia nada ter a ver com política, se calhar também tem a ver com política. Conceções essencialistas e tipológicas em humanos são hoje insustentáveis​. Uma pessoa, um voto, uma pessoa, um cidadão, uma pessoa, uma identidade cívica. Numa sociedade democrática todos são iguais, e essa igualdade deriva da pessoa humana, do indivíduo, e só depois é que tudo o resto, todos os fatores de identidade contam: género, cor da pele, orientação sexual, religião. Para os procedimentos da democracia, devem ser invisíveis. Na verdade, a nossa tradição democrática assenta na condição de cidadão, e não deve ser subqualificada. 

A democracia é uma escolha cultural e política, não parte de uma descrição sociológica nem antropológica da sociedade. O sistema de quotas, que está a crescer, assumidas na lei ou implicitamente funcionando como exclusão ou vantagem, torna, em nome da igualdade, as pessoas desiguais e perverte a cidadania. E não permite combater os males que estão por trás da desigualdade. Há qualquer coisa de errado quando, para combater o racismo, se estabelecem quotas que na maioria dos casos redunda no género e na cor da pele. E isto é que é, ao contrário do que o “politicamente correto” pensa, qualquer coisa de retrocesso civilizacional. O discurso cada vez mais hegemónico sobre o género, a preferência sexual, a cor da pele, a etnia ou a religião tem o resultado não resolver o problema de fundo: a pobreza, a exclusão, a desigualdade de oportunidades. Enquanto se viver numa sociedade desigual, ela tenderá a potenciar todos os fatores de exclusão. E esses fatores incluem o género, a orientação sexual, a cor da pele, a etnia e a religião. Se se quer combater o racismo e a discriminação, é na luta social que está a chave para combater as injustiças, e não nas boas intenções.

O uso do termo "raça" para significar algo como subespécie entre os seres humanos está errado; o homo sapiens sapiens não se subdivide em raças, como consta na declaração da UNESCO. Em ciência, o termo não se aplica a uma espécie tão geneticamente homogénea como um ser humano. Os estudos genéticos têm fundamentado a ausência de claras fronteiras biológicas. Assim sendo, o termo "raça" não é usado na terminologia científica, tanto em antropologia como em genética humana. O que no passado tinha sido definido como "raças" é agora definido como "grupos étnicos" ou "populações".

Depois da 2ª Guerra Mundial, as associações do conceito de raça com ideologias e teorias que se tinham desenvolvido desde os finais do século XIX, foram proscritas, dado que o uso da palavra "raça" passou a ser muito problemático. A palavra raça foi substituída por outras palavras que são menos ambíguas e emocionalmente menos carregadas, como populações, povos, grupos étnicos ou comunidades. 
Segundo Claude Lévi-Strauss, se os grupos humanos se distinguem, e se para tanto precisarem de ser distinguidos, então devem sê-lo unicamente em termos culturais. De facto, é unicamente pela cultura que os grupos humanos ou sociedades se distinguem e se diferenciam; e não segundo a sua natureza biológica. Quer dizer que, se é necessário a manutenção das distinções, o fenómeno não é de forma alguma natural. Não deriva da biologia, mas da antropologia cultural no sentido amplo. O racismo consiste precisamente no contrário, em fazer de um fenómeno cultural um fenómeno pretensamente físico, natural e biológico. Claude Lévi-Strauss explica ainda em Raça e História (que foi também publicado pela UNESCO) que a imensa diversidade cultural, correspondendo a modos de vida extraordinariamente diversificados, não é em nada imputável à biologia: ela se desenvolve paralelamente à diversidade biológica, seja da cor da pele, ou qualquer outro aspeto filogenético. Os etnólogos estimam que, postas de lado as supostas diferenças genéticas e fenotípicas, as populações humanas são principalmente diferenciadas pelos seus usos e costumes, que são transmitidos de geração em geração. A espécie humana caracteriza então pela sua grande diversidade cultural. 

A diversidade cultural sobrepõe-se à biodiversidade
diversidade cultural está para a espécie humana, assim como a biodiversidade está para as outras espécies, seja natural ou manipulada pela espécie humana. A diversidade humana fenotípica foi consequentemente absorvida pela cultura. E é importante distinguir bem os dois domínios para não recriar, mesmo involuntariamente, os discursos racistas e não científicos. Nessa ótica, as diferenças culturais aparecem como mais importantes. 

O homo sapiens sapiens conheceu curtos períodos de isolamento que deu origem a diversos grupos étnicos. Mas o processo de globalização mais antigo processado pelas grandes migrações do passado, levou à mestiçagem que, apesar de tudo, acabou por ser mais nítida ao nível da cultua do que ao nível fenotípico. Por outro lado, até as culturas sociais isoladas, muito poucas sobreviveram isoladas tempo suficiente para gerar diferenças genéticas muito substanciais. Para que as características fenotípicas (anatómicas) se evidenciassem, seria necessário uma cultura manter-se isolada por mais tempo do que aquele que precedeu a época dos grandes fenómenos migratórios. Isto não significa que as forças da seleção natural não continuem a operar em populações humanas, só que essas forças precisam de muitos milhares de anos para que os seus resultados sejam visíveis. Existe a evidência de que determinadas regiões do genoma sofreram seleção direcional nos últimos 15 mil anos. Mas também há dados científicos para dizer que antes do início do Paleolítico Superior, há cerca de 50 mil anos, já existiam como expressão cultural universal, a língua falada, a música e o desenho.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

Mortes sem despedida


«16 de janeiro – Imagens dos hospitais. As doenças, e esta em particular, colocam o bípede de polegar oponível nesse temível estado de dependente absoluto, deitado e entubado, num ippon, sério e trágico, de horas infinitas, inteiramente caído sobre as costas ou sobre o peito. Somos, afinal, seres deitados; e a mão hábil das invenções e do artesanato, essa mão da motricidade fina, capaz de colocar um fio de lã no mínimo buraco de uma agulha, está agora inteira e compacta no gesto de pedir socorro ou, pelo menos, ajuda.
18 de janeiro – Volto à entrada de 16 de janeiro. Talvez a histórica evolução da mão humana tenha, afinal, dois destinos essenciais: a mão que pede ajuda, a mão que dá ajuda. Tudo o resto talvez sejam ocupações eticamente intermédias dos ágeis dedos de um cidadão. No dia limite, no último instante, a tua mão será convocada: para salvar ou para pedir a salvação. »
OS CADERNOS E OS DIAS
HISTÓRIA FRAGMENTADA DO MUNDO
POR GONÇALO M. TAVARES

Até 20 de janeiro de 2021 das 11.765 pessoas que morreram (todas as causas e todas as idades), 2.493 foi por causa da covid-19. No mesmo período do ano passado tinham morrido 7651 pessoas, menos 4.114 do que este ano. As últimas duas semanas bateram todos os recordes, com mais de 500 mortes por dia, algo que nunca aconteceu nos últimos 40 anos, desde que há registos de mortalidade diária no Instituto Nacional de Estatística. Portanto, dos 4.114 óbitos a mais, em relação ao ano anterior, só metade se deve à covid-19.

Os corpos permanecem, em alguns casos, entre quatro a seis dias no hospital, quando antes estavam prontos para as exéquias entre 24 a 48 horas. Deve-se ao atraso, por parte das funerárias, da recolha dos corpos que se vão amontoando nas morgues dos hospitais, à espera de serem retirados.

A covid-19 tem levado a ciência aos seus limites e, em alguns casos, traçou de forma acentuada as suas fronteiras. A primeira pandemia deste século encontra a Humanidade, com os seus centros de transporte e cadeias de abastecimento, mais vulnerável a um novo agente patogénico. Mas a virologia, a imunologia, a medicina dos cuidados intensivos e a epidemiologia, para citar algumas, têm progredido incomensuravelmente desde 1918. Infelizmente, numa emergência de saúde pública, a melhor ciência deve ser utilizada para informar as melhores políticas. No espírito sazonal da caridade, digamos que nem sempre foi esse o caso no nosso ano pandémico.

«No estudo da anamnese, percebeu-se que a criança já tinha tido muitos acidentes e quedas, e partido vários ossos. Adorava desportos radicais, como arborismo e escalada, e punha-se em situação de perigo. Os pais eram cuidadosos, mas um ano após o divórcio já estavam a coabitar com novos companheiros e os seus respetivos filhos. E a menina sentia-se a mais; sentia que, se morresse, não faria diferença. As quedas eram formas inconscientes de dizer: ‘Não tenho vontade de morrer, mas não me apetece viver.’»

A morte é um dos temas mais difíceis de tratar, dada a sua complexidade e a ambivalência dos nossos sentimentos acerca dela. Qualquer tipo de discurso sobre a morte é cheio de ambivalência, de fugas, de condicionamentos e de contradições.

O desaparecimento de um indivíduo neste mundo "implica" a sua entrada num outro. Daí que o ser humano tenha procurado nos mitos e na religião alguma resposta ou forma de explicar a morte e, se possível, o seu sentido, num confronto da razão com uma experiência-limite. Seja qual for a nossa origem sócio-geográfico-cultural, não podemos suportar a ideia de que, depois de morrer, não existe nada. Assim, como forma de luta contra o nada, a humanidade socorreu-se de mitologias, ritos e outros processos mágicos e pragmáticos para transfigurar e ocultar a mudança na natureza do corpo, evitando confrontar-se com a sua decomposição, destruição irreversível que lhe revela a sua finitude.

Platão defendia a ideia de que a morte era a passagem da alma para outra "vida"; talvez um sono sem sonhos, uma transição catártica ou libertação. A Igreja Católica assenta o seu poder na ideia da vida eterna e no temor do julgamento divino, Juízo Final que se abate sobre a alma quando ela abandona o corpo na hora da morte. O dilema da finitude humana sempre fez parte do âmbito religioso, pelo que as religiões chamaram para si a questão da Morte e do Além, procurando, de alguma forma, a ligação ao Transcendente. Segundo a ótica religiosa, morre-se no momento escolhido por Deus, detentor único do conhecimento dessa hora. Mas – questionemos – o suicida: morre na sua hora determinada? A morte é dada por si próprio e não por qualquer intervenção divina, crendo-se, até, que se atenta contra as suas determinações.

A eutanásia está no centro de um intenso debate público com diversas considerações de ordem religiosa, ética e prática. Estas considerações têm origem em diferentes perspetivas sobre o significado e valor da vida humana. Entre os argumentos a favor da prática da eutanásia estão a alegação de que as pessoas têm o direito a tomar decisões sobre o seu corpo e escolher como e quando querem morrer, que o direito à morte está implícito nos restantes Direitos Humanos, que a lei não deve interferir em assuntos da esfera privada que não prejudiquem outras pessoas, que a eutanásia continua a ser praticada mesmo que ilegal e que a morte não é necessariamente má. Entre os argumentos contra a prática de eutanásia estão a alegação que a eutanásia é contra a vontade de Deus, que não respeita a inviolabilidade da vida, que desvaloriza o valor da vida, de que a permissão da eutanásia voluntária levaria a casos de eutanásia involuntária e de que cuidados paliativos de qualidade retiram a necessidade de praticar eutanásia. Algumas pessoas alegam que, ainda que moralmente justificável, a eutanásia pode ser abusada para encobrir um homicídio.


Memento mori é uma expressão latina que significa algo como lembra-te de que és mortal. Platão no Fédon, onde a morte de Sócrates é recontada, introduz a ideia de que filosofar nada mais é do que pensar que somos mortais. Memento mori é também um conceito fundamental do estoicismo, que trata a morte como algo natural e certo que não deve ser temido, mas sim, elaborado. Os estoicos da antiguidade clássica eram particularmente conspícuos pelo uso desta disciplina. As cartas de Séneca estão repletas de injunções à meditação sobre a morte.

O caminho do samurai é, manhã após manhã, a prática da morte, considerando se estará aqui ou além, imaginando a mais levemente forma de morrer, e entregando a mente firmemente à morte. Ainda que isto possa ser uma coisa muito difícil, se alguém o fizer, pode ser feito.

A sabedoria estoica e o ceticismo desiludido desembocam no nada da morte. O estoicismo afirmou-se como uma propedêutica da morte. Defendendo que é necessário viver sem desejos que nos escravizem, traduz uma atitude de disponibilidade para a morte, aceitando-a. Assim, ela não nos privará de nada. A sabedoria estoica é, portanto, um exercício permanente de preparação para a morte. Desprezando-a ao desprezar a vida, cria-se um método de indiferença para com o acontecimento e o acaso. O estoico pratica esta indiferença e renúncia para não ser perturbado ou magoado pela possível e frequente carência dos bens terrenos e para não perder a serenidade, a paz, o sossego, que são o verdadeiro, supremo e único bem da alma. O estoicismo separa o espírito do corpo, para que a miséria deste e a sua putrefação não afetem aquele; esvazia a morte, para que, nessa desolação imensa, o espírito se eleve, o que constitui uma prática virtuosa.

Ao pedir ao indivíduo que se desprenda de tudo o que não depende da sua consciência, o estoicismo afirma a consciência individual como realidade suprema – nada acontece que não seja por ele desejado. Trata-se, pois, de um momento de afirmação do indivíduo, que se afirma duplamente: por um lado, como consciência soberana, senhora absoluta do corpo; por outro lado, como consciência lúcida que conhece o seu limite e a sua fraqueza. O indivíduo assume, portanto, por si mesmo, a função inevitável da morte: anula as paixões e os seus desejos. Assim, a virtude estoica é absolutamente negativa: quando o homem se torna indiferente a tudo e a tudo renuncia, não lhe resta, efetivamente, mais nada.

Já o epicurismo não permite nenhuma esperança de sobrevivência, nenhuma dúvida quanto ao aniquilamento da morte. Contra qualquer hipótese de uma "outra vida" após a morte, procura libertar o homem do temor de além-túmulo, que é fonte de tormentos que "adoecem" a alma, impedindo-a de alcançar o equilíbrio necessário a uma vida feliz. Tudo cessa com o fim da vida. Não tendo sentido o temor da morte, ela não constitui um problema. O epicurismo corrói o conceito de morte, até desfazê-lo. Desagrega-o – o nada da morte é reduzido a simples nada. 

quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

O Grande Declínio


Pensemos no microbioma humano, mais dois quilos no peso do nosso corpo de biliões de bactérias cooperantes a contribuir para que cada vida humana mantenha aquele equilíbrio homeostático a que chamamos saúde, sem o qual não sobreviveríamos. Assim podemos dizer sem receio que a inteligência na Terra começou com as bactérias, seres vivos aos quais lhes faltam, todavia, aquilo que tanto presamos em nós: uma mente consciente.

Um ensaio com bactérias serve para exemplificar a Grande Aceleração que se desencadeou a partir da década de 50 do século passado após a 2º Guerra Mundial. A Terra é comparável a uma placa de Petri - 
um recipiente cilíndrico, achatado, de vidro ou plástico que os profissionais de laboratório utilizam para a cultura de microorganismos, um sistema fechado e finito. Então vejamos. Uma placa de Petri é um meio nutritivo fechado onde são colocadas algumas bactérias. As bactérias demoram algum tempo a adaptar-se ao meio, um período chamado fase de latência que demora algumas horas ou dois dias no máximo até as bactérias descobrirem como tirar proveito do novo meio. E subitamente, começam a reproduzir-se numa cadência de duplicação que em princípio é de 20 em 20 minutos. Um crescimento exponencial que se espalha por toda a superfície da placa. Esta é a fase de competição, cada bactéria por si, que os cientistas sabem que não vai acabar bem quando o alimento se esgotar e as bactérias começarem a agir umas contra as outras. A partir daqui o ambiente começa a envenenar as bactérias, com um aumento crescente de gases, calor e lixo. E então começa a desenrolar-se o princípio do fim, com as bactérias a morrerem numa escala também exponencial. 

O mesmo se passa com a Grande Aceleração do pós-guerra, o período sem igual de paz no Ocidente que deve estar a chegar ao fim, com o último grito da Inteligência Artificial trazida pela Grande Aceleração. Um progresso notável. Os cientistas dos ecossistemas e da sustentabilidade ambiental encontraram já os pontos por onde o sistema está a romper. Poluição do ar, terra e água: efeito estufa dos combustíveis fósseis por via do aumento do dióxido de carbono; poluição das águas com excesso de fertilizantes pesticidas e plásticos; diminuição drástica da taxa de biodiversidade nos trópicos e nos oceanos. Com o aquecimento global já estamos a viver para lá das possibilidades da vida segura na Terra.

As alterações climáticas e o aquecimento global, para muitos cientistas, constitui uma crise muito mais grave do que a pandemia do SARS-CoV-2. A Covid-19 vai passar. Vista daqui a poucos anos, será um acontecimento que se limitou a fazer uma pequena correção do desvio demográfico. Ao passo que as alterações climáticas e o aquecimento global vão perdurar por muitos anos, porque se vai autoalimentar. O declínio autoalimenta-se. Quanto mais a Amasónia se degrada, e quanto mais nos Polos o gelo derrete, mais a degradação aumenta. Este estado de acontecimentos vai manter-se por mais alguns anos, e a manter-se o mesmo padrão de normalidade civilizacional, é muito provável que entremos irreversivelmente no Grande Declínio já em curso nesta terceira década do século XXI.

Ainda não nos livramos desta pandemia, e há cientistas a prognosticar que outra pandemia poderá surgir a todo o momento, piorando ainda mais a situação. Entre aves e mamíferos escondem-se milhões de vírus que constituem uma ameaça para os humanos à medida que vamos fraturando a biodiversidade. A biodiversidade e a estabilidade do planeta estão ligadas. E já muita biodiversidade foi destruída. E não se sabe se somos capazes de recuperar uma boa parte da vida selvagem já perdida. E muito menos se continuar a perder-se. O bisonte-europeu, que existiu até ao século XX, foi caçado até à extinção. Entretanto muitos países voltaram a introduzí-lo na natureza a partir de cativeiro, com enorme sucesso.

Para podermos construir máquinas inteligentes tivemos de passar primeiro, evolutivamente falando, pela aquisição de toda a panóplia de competências arrumadas categorialmente no universo dos afetos. O universo dos afetos foi tanto uma fonte como um instrumento no desenvolvimento da autonomia gradual que os seres humanos conquistaram. E, felizmente ou infelizmente, foi o que os construtores dos novos robôs já perceberam e começaram a tentar fazer isso com a colocação de sensores para a atribuição de um proprietário robótico desse corpo. É a chamada soft robotics. Esta novidade tem despertado nas pessoas uma dupla reação antagónica, ora de júbilo, ora de susto.

O dispositivo fundamental da inteligência é o da vida propriamente dita. As bactérias são os seres vivos mais antigos da Terra, e que perduram há cerca de quatro mil milhões de anos devido a algum tipo de inteligência que é a sua. As bactérias para conseguirem isso usaram um conjunto de processos químicos que constituem a homeostasia, um plano fundamental de que nós também dependemos. E, todavia, o principal causador do desaparecimento, ou tendencialmente em vias de desaparecimento, dos melhores ecossistemas vivos da Terra, é o ser humano, a caminhar como sonâmbulo rumo à catástrofe.

terça-feira, 19 de janeiro de 2021

O choque é muito grande: 218 mortes hoje


O boletim de hoje anuncia mais 218 mortes por Covid-19, o maior número de mortes desde o início da pandemia. Por estes dias tenho recebido notícias de várias pessoas conhecidas que se finaram, umas de Covid-19, outras sem saber se sim ou se não. Outras ainda que foram internadas, umas já em casa pós alta hospitalar, outras ainda internadas por pneumonia. O choque foi muito grande, disse, mas o que a preocupa agora é a mãe, que ficou muito abalada. É preferível não festejar a liberdade, a ter que chorar a orfandade.

Acordo com a precisão de um galo, todos os dias às sete da manhã. Afasto os lençóis e rodo todo o corpo com as pernas levantadas para o lado direito, fincando o cotovelo e depois a mão espalmada no colchão, e sento-me na cama. Puxo para mim a cadeira de rodas e deslizo para ela à custa do braço esquerdo, tipo grua, num esforço isométrico.
A energia acumulada ao longo da noite tem de ser debitada em registo de Gasómetro de carboneto. Eu também nunca fui aficcionado de palmilhar cem quilómetros para me ir empanzinar com uma lampreiada ou um leitão assado. Se pensar bem, até se passa aqui uma reclusão de luxo, sem pulseira eletrónica, entre vagares de tartaruga e trinados de melros. O rumorejar da copa das árvores lá fora e os ruídos amortecidos da vida doméstica do andar de cima.

Afundo-me na poltrona, um livro aberto no colo, mas uma excitação fina desencaminha-me a concentração. O comportamento coletivo não é igual à soma dos comporatamentos individuais, diz este cientista social, estou a ler. O meu olhar foge para o écran onde correm os rodapés das notícias sem som: "Ventura arregimenta tropas para exército popular português ". Lamento . . .

Lamento profundamente a decepção que as próximas linhas vão causar nos corações sensíveis, nas mentes bem intencionadas, mas é forçoso que o diga. O pior da doença não é o hospital. Não são as dores nem são os médicos. Não são os tratamentos, nem é mesmo a comida requentada que chega ao colo do doente após uma longa viagem da cave. O pior são as visitas. Digo as visitas. As visitas têm que se lhes diga. A atitude e a consequente rejeição de visitas para alguns é encarado como uma violação dos Direitos Humanos. 

Não o fiz de propósito. Parece que perdi a ligação com o resto do mundo. E o que é mais grave, emocionalmente isso não me afeta nada. Depois de os levar à porta, esvaí-me. O que provocara aquilo chama-se noblesse oblige. Era dificil acreditar, mas eu estava mesmo assim, demasiado fraco para aguentar emoções. E por causa de quê? Por causa do: "O gajo está maluco - não quer ver ninguém". Por um lado o gajo queria estar em paz; passar o que tinha de passar no modo como o tinha de passar - sozinho, que ainda há vivências não delegáveis. "É pá, afinal o gajo esteve mesmo para bater a bota". E é como se tivéssemos de reatar tudo do zero, de um reset.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

Medos hipócritas são vulgaridades destes tempos covid

 



Há pessoas que continuam a dizer que têm medo de apanhar o vírus, o maldito vírus. Mas ao invés do que fizeram no primeiro confinamento, que se fecharam em casa porque o medo era mesmo genuíno, agora concedem sair de casa para ir beber um café ao postigo, sem máscara. E ainda reclamam por encontrarem outras pessoas em fila e sem máscara, para se habilitarem a tomar um café ao postigo.

Encontro-me no Hospital na fase de convalescença. Há quinze dias que não tomo um duche. Farto de me lavar à gato, lambuzando-me nas bacias do costume, deitei o barro à parede, como quem não quer a coisa. Mas a enfermeira veio logo dizer-me que era melhor não. Que ainda estava muito fraco, e com o vapor quente ainda podia desmaiar de hipotensão.

Não me apetece ver ninguém, não me perguntem porquê, mas as melhoras que as pessoas me enviam nada me dizem. Algo se passa de diferente. Houve um elo com o mundo que se quebrou com este ataque aéreo de um inimigo invisível chamado SARS-CoV-2. Telefonemas uns atrás dos outros. De tudo isto me salvou a enfermeira-chefe. É claro que houve amuos no meio do embargo, e delicados incidentes diplomáticos. Mas com isso podia eu bem.

Fora a minha voz ao telefone que assustara a minha mulher. Estava a meio do banho quando ela telefonou. O esforço de me lavar, pôs-me a língua de fora. Nada melhor do que o lavar de um gato. Um discurso entrecortado e arfante, um fio de voz, sumido, quase afónico, numa respiração estertorosa de moribundo. Parecia que me tinham dado uma facada nas corda vocais. A minha voz grave transformava-se num falsete ao fim de dois dedos de conversa. Falar arrasa-me, como se tivesse transportado pedregulhos. Comer um pão ou beber um chá era como subir dez andares pelas escadas. Ninguém imagina a quantidade de ar e de esforço muscular que se gasta para manter uma conversa.


Quando me dirigi ao lavatório do quarto para tentar fazer a barba, durante uns instantes fiquei parado a olhar para o espelho que me devolveu uma imagem que já não via há uma dúzia de dias. "Então este sou eu, aquele que andou lá e cá". Reconheço-me, mas sem espessura, sem profundidade no reconhecimento de um reflexo escorregadio de gelo fino. Estou mais magro, mais pálido, o pijama é largo demais, verde alface lixiviado. Paro, cansado, mirando a figura que arfa no espelho.

Dos dias que passei na Unidade de Cuidados Intensivos, recém expelido de um coma artificial, uma verdade posso arriscar, vivi submerso numa neblina de sono. Por isso compreender-se-á porque é que não respondo por mim. Muitos doentes não aguentam a pressão e desenvolvem psicoses. Pessoalmente tive sorte. Passei-me um pouco, mas foi explosão fugaz. Não afirmo, sequer, que foi um pesadelo. Não posso dizer que tenha apreciado. Mas posso testemunhar que foi a prova mais dura a que alguma vez fui submetido, e a experiência psicológica mais intensa e bizarra de toda a minha vida.
Posso confirmar que António Damásio tem razão quando afirma que a melhor designação para falar dos aspetos qualitativos da fenomenologia mental é: imagens mentais. E como ele diz, mais apropriadamente, imagens cinematográficas: trilhas sonoras; fotogramas em movimento. É a analogia mais próxima para ilustrar com similitude aquela atmosfera por onde vagueámos. Nada semelhante à realidade, mas algo parecido com as odisseias de ficção, numa estranheza de espaço sem tempo.


Os paradoxos da inteligência humana



Em vez de ter escrito o rascunho deste texto com um lápis de pau num caderno, escrevi-o num bloco de notas do telemóvel. E até ouve passagens, as mais simples, que experimentei ditar, e o telemóvel escreveu-as na perfeição. Pelo menos desde há 70.000 anos, que o sapiens passou a considerar-se sapiens sapiens, sabendo muito mais do que sabia. Mas parece que a inteligência de hoje não é melhor do que era quando começou a ser sapiens sapiens. Então como foi possível chegar onde chegou? A resposta está no facto de o homo sapiens ser uma criatura gregária que facilita a aprendizagem de uns com os outros. A agricultura foi inventada em sete sítios de forma independente, isto é, sem que em nenhum deles tenha sido por cópia de algum dos outras. Tudo se passou em diferentes partes do globo há mais ou menos 10.000 anos. E a escrita foi inventada há 5.000 anos, também de raiz em pelo menos quatro sítios diferentes, de forma independente. Mas já a máquina a vapor só foi inventada uma vez, e espalhou-se rapidamente por todo o mundo.
A primeira máquina a vapor relatada, foi a bola de vento criada por Heron de Alexandria há 2.000 anos. Em 1698, Thomas Savery, engenheiro militar inglês, criou um motor que poderia ser utilizado dentro das fábricas, sendo considerado uma das evoluções iniciais da revolução industrial. Em 1712, Thomas Newcomen projetou uma nova máquina que poderia ser utilizada dentro de minas de carvão, a qual, apesar de mais lenta que as anteriores, podia tanto elevar água quanto cargas mais pesadas, com a vantagem de dispensar os cavalos, animal que até aí era utilizado com custos elevados. Em 1769, Joseph Cugnot inventou um triciclo movido a vapor. Todavia, foi no ano de 1777 que o motor a vapor mais importante foi inventado por James Watt. 

Hoje ninguém seria capaz de fazer um telemóvel sozinho. A especialização significa que no geral os avanços já não têm muito a ver com a vida de cada um separadamente. Individualmente quase não temos controlo algum sobre nada. Estes telemóveis são, sem dúvida, o bom exemplo de máquinas acessíveis a qualquer pessoa, como eu, que pode despender de 180 euros para comprar uma máquina inteligente. Claro, artificialmente inteligente. Artificial quer dizer que não é natural. Artefacto é tudo aquilo que tem mão humana. Não há nada de natural na inteligência dos aparelhos que tornam a nossa vida tão eficiente e confortável. Nem há nada de natural na sua construção. Contudo, a Inteligência Artificial (IA) está ainda muito longe de emular a inteligência humana. É que não há inteligência humana sem o ser e o sentir, que tem a ver com aquilo que costumamos definir por sensações, sentimentos e afetos.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

Estar ou não preso no tempo



Enquanto sonhamos a dormir, todas as noites, perdemos a noção que temos do tempo. Aquele tempo quando fazemos as nossas atividades rotineiras do dia-a-dia. Como quando dizemos: "Agora não tenho tempo"; "Ainda bem que chegaste a tempo do programa"; Despacha-te, que já estou atrasada". Mas não é apenas no nosso cérebro que acontece quando perdemos a noção do tempo na fase do sonho. A fuga à ordem do tempo também pode acontecer fora do nosso cérebro, seja em determinadas situações da vida humana, seja na natureza com outros animais.

No relato que se segue, no contexto de seis paraquedistas a saltarem em queda livre para formarem uma estrela antes de abrirem os paraquedas, não se percebe como foi possível o último paraquedista evitar o choque com outro paraquedista que o precedeu no salto. Não chocar com o seu colega quando ainda descia em queda livre. Há um procedimento fundamental depois de saírem do avião num mergulho vertical de cabeça para baixo, e de agarrarem as mãos uns dos outros para formar a figura de uma estrela: aos 3500 pés de altitude todos os saltadores devem separar-se, afastar-se o máximo possível da formação, e depois disso, cada um deve agitar os braços para dizer que vai abrir o paraquedas, ao mesmo tempo que olha para cima para se certificar de que não tem ninguém acima de si, e então puxa o cordão. 
Naquele dia, que podia ter sido fatal, as coisas não correram como de costume, quando o 6º paraquedista, em queda rápida em direção à formação dos primeiros quatro que saltaram, viu que o quinto saltador se estava a  aproximar dessa formação depressa demais. O sexto seria o último a juntar-se ao grupo para formarem a estrela de seis pontas. Portanto, o quinto saltador, aproximou-se de forma brusca e precipitada do limite exterior da formação, o que obrigou todos os outros a largarem-se inesperadamente caindo de modo descontrolado. 
Então o que se viu foi o 6º paraquedista inclinar o corpo para se afastar do grupo, e tratar de abrir o paraquedas para uma descida previamente calculada em dois minutos. Mas, para sua surpresa, o 5º saltador estava a vir na sua direção com o colorido paraquedas a sair da sua mochila. Esse paraquedas a abrir-se numa brisa de 190 km/h formada em volta do 5º paraquedista a descer, obviamente iria fazê-lo subir num esticão brusco em direção do 6º paraquedista. Ora, àquela velocidade, o 6º paraquedista não teria mais do que uma  mínima fração de segundo para reagir e não colidir com o 5º companheiro. Escusado será dizer o que aconteceria: braços e pernas arrancados, enfim, uma literal explosão. 
O mais impressionante é que, a uma velocidade daquelas em queda livre, o 6º paraquedista faz o relato de um instante de milésimos de segundo, como se os estivesse a ver em cama lenta. E então ele descreve que quando viu o paraquedas piloto do seu companheiro a abrir-se, ele instantaneamente e de forma instintiva estendeu os braços junto ao seu tronco, esticou o corpo, e mergulhou todo fletido de cabeça para baixo. Esses movimentos fizeram com que ele ganhasse velocidade e passasse à frente do seu companheiro a grande velocidade, mais de 220 pés por segundo. Tudo se passando em milésimos de segundo, dá para perceber que ele não podia ter feito aquilo com uma qualquer decisão pensada, pois não teria havido tempo para isso. Um salto de seis, cujo desfecho podia ter sido um desastre para dois paraquedistas, mas ambos acabaram por conseguir aterrar em segurança. 


Num cardume de peixes, que por exemplo no caso dos arenques pode agregar milhões de indivíduos a ocupar mais de 1 km de extensão, os biólogos especialistas em ictiologia, dizem que é uma forma de inteligência da Natureza a funcionar. Neste caso, é uma inteligência contra predadores. Os peixes, além de contarem com o sentido da visão e audição possuem um sentido extra que permite que eles nadem sincronizados em cardume sem chocarem uns nos outros. Este sentido extra consiste num sistema de canais sob as escamas que se estende da cabeça até à cauda de ambos os lados. Esses canais, com dezenas de pequenos orifícios, por onde a água entra e percorre todo o canal antes de sair, permitem a sinalização de células nervosas que captam a variação da pressão da água, que depois chega ao cérebro por fibras nervosas. Por um sistema de algoritmos naturais, suspeita-se, o cérebro do peixe processa toda essa informação e manda de retorno um estímulo que faz com que o peixe vire, suba, desça e por aí, tudo isso em milésimos de segundo. 

Por outro lado, os peixes segregam um líquido viscoso que reduz o atrito da água no seu corpo, que em grupo o efeito é potencializado de modo a que os que estão no centro do cardume se movam com menor esforço. A forma e disposição lateral dos olhos dos peixes, e sabe-se lá que mais, também deve contribuir para completar esse prodígio dos peixes navegarem em grandes cardumes sem se atropelarem uns aos outros. Sem que haja um líder a comandar as tropas, qual maestro invisível, é o efeito em cadeia que começa nas margens do cardume. Tudo indica que o grupo também gera uma espécie de algoritmo de gestão de energia, de modo a que os peixes do lado de fora do cardume se revezem com os peixes do miolo, de uma forma automática, para que os peixes do exterior, cujo esforço é maior, possam descansar.


Nesta imagem veem-se, numa dança encantatória, que nos hipnotiza, milhares de estorninhos em pleno voo. Uma dança sincronizada que mostra como é a natureza no seu estado puro. Para realizarem estes voos sincronizados, cada estorninho imita a velocidade e movimentos dos sete pássaros mais próximos e reage dez vezes mais rápido do que o milésimo do segundo. Veem-se principalmente no inverno, e pouco antes de anoitecer, quando os pássaros procuram um lugar para dormir. Aqui de novo a mesma teoria científica dos cardumes: esta dança serve também para proteger os estorninhos de outras aves predadoras. 

Há alguns anos, ao estudarem em conjunto os bandos de milhares de estorninhos que sobrevoavam os céus de Roma, um grupo de investigadores de diferentes países chegou a uma explicação surpreendente. Com a ajuda de máquinas de filmar, descobriram que, quando um estorninho muda de direção, os sete estorninhos mais próximos copiam o seu movimento; cada um desses sete afeta mais sete e assim sucessivamente. Como os pássaros vão assumindo a posição do pássaro anterior, nasce uma espécie de onda. A mensagem é propagada a uma velocidade tão constante e rápida (aproximadamente 20 a 40 metros por segundo) que o bando nunca se desfaz.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

Uma obstrução de 90% no tronco comum da 'corona' (segunda parte)

 

É muito interessante ver como se dá o nome às coisas da medicina. Por exemplo, este recente vírus da pandemia Covid-19 é um coronavírus por ter uma estrutura em forma de coroa. E por isso lhe chamamos "o Corona". Ora, o nome das artérias coronárias, as artérias que irrigam e alimentam o músculo cardíaco, seguiu o mesmo critério, porque a coronária esquerda e coronária direita subdividem-se depois em várias artérias envolvendo o coração, cobrindo toda a superfície do músculo cardíaco como uma coroa, Corona na etimologia latina. E o tronco comum é uma pequena extensão da artéria coronária esquerda junto à bifurcação, responsável pela irrigação de toda a metade esquerda do coração. Uma obstrução significativa no tronco comum leva a que todas as artérias a jusante do obstáculo deixem de receber sangue e, como consequência, a metade esquerda do coração entra em falência imediata. 

Já me encontro no Hospital de Santa Marta deitado numa maca encostada à parede, a aguardar ser chamado para fazer a tal coronariografia, quando ao meu lado surge um homem novo que me cumprimenta afavelmente. Diz o nome, que não percebo, mas percebo que é o médico que me vai fazer o exame às coronárias. Tem um ar achinesado, uma poupa de cabelo sal e pimenta avarandado na testa, que bem o podíamos ver numa fita do James Bond. Ele tem o tipo de quem está atento, de quem entende o que é andar perdido nos corredores da doença. De quem não se esqueceu que um doente é, no mínimo, constituído por cabeça, tronco e membros. Chegado à sala sem janelas, ampla, cheia de gente mascarada de verde, passar-me para uma cama iluminada como um palco, em tudo semelhante a uma mesa de operações.

O médico depois de lhe anestesiar a virilha, pega numa vareta, semelhante a um esticador de cortinas, que vai introduzir pela artéria ilíaca acima e viajar até ao coração, e o médico avisa que vai sentir uma sensação de calor.

Sinto uma ardência pelo corpo, como se nos despejassem um whisky duplo diretamente no interior das veias. Sentimo-lo dar a volta ao corpo  num ápice de montanha russa, com dois locais sublinhados na passagem: o céu da boca, que fica quente como se lhe tivessem aplicado um sinapismo e, vá-se lá saber porquê, a zona púbica.

Concluído o exame, o médico não tem boas notícias para lhe dar. Tem que ficar internado de imediato para ser operado. Tem que ser feito um by-pass, porque tem uma obstrução de 90% no tronco comum.

Tenho fome e sinto-me desanimado, a equilibrar um pedregulho de chumbo na virilha, outro a tolher-me a alma. É uma novidade explosiva para assimilar ou engolir (o problema é meu): amanhã, ou depois, vou ser operado ao coração.    Ao ❤️. Uma obstrução de 90%! Quer dizer: não passa pinga de sangue pelo tronco comum. Por isso caí redondo, como um tordo. Tem finalmente explicação a brutalidade do que me aconteceu.


 

O veneno: demagogia + hipocrisia



Concordo com a opinião de João Miguel Tavares quando diz: 
Vamos lá explicar o óbvio ululante: não é o cidadão Marcelo Rebelo de Sousa quem se vacina – é o Presidente da República. Não é o cidadão António Costa – é o primeiro-ministro de Portugal. Se Marcelo ou Costa acham que não devem usufruir de privilégios que são vedados ao comum dos mortais, então ofereçam as chaves do Palácio de Belém ou do Palacete de São Bento ao primeiro cidadão que se atravessar nos seus caminhos, para ele poder ir lá passar um fim-de-semana com a família. E, já agora, coloquem também à sua disposição os Mercedes, os Falcon, os guarda-costas e as dezenas de funcionários que os servem – tudo privilégios de que eles usufruem, e o povo não.
Confesso que fiquei triste sexta-feira passada por Francisco Louçã no seu Tabu ter feito uma nota dizendo que o médico do São João não devia ter sido o escolhido pela simbologia, disse “Ora, escolher o Chefe do Serviço foi um erro. Devia-se começar por baixo e não por cima… criar uma espécie de enunciação de hierarquia é pouco inteligente”.

Olha, ali está um que não é hipócrita, disse alguém que pensa com a sabedoria popular. Uma frase dita por quem estava a ver o debate de todos ao molho, exceto um. É verdade, por muito que nos possa envergonhar, quanto mais educado se é com as boas maneiras civilizadas, mais inevitável se torna a pessoa ser obrigada a tornar-se num hipócrita. O indivíduo diz com toda a simplicidade o que o coração lhe dita. E a juíza diz: “o senhor é um mal-educado”. O indivíduo diz a verdade verdadinha, tal qual. E o juiz diz “a senhora sabe bem o que está a dizer ? Não se diz indivídua; não se diz sujeita; muito menos sujeitinha. 


Demagogia é um termo de origem grega que significa "arte ou poder de conduzir o povo". É uma forma de atuação política na qual existe um claro interesse em manipular ou agradar a massa popular, incluindo dizer que somos todos iguais, nem o presidente nem o primeiro-ministro devem estar acima de alguém. Exemplos que muito provavelmente quem o diz nunca realizaria. É uma estratégia político-ideológica que se vale da utilização de argumentos apelativos, emocionais ou irracionais para outros proveitos oportunísticos. Aparentes argumentos de senso comum para ficar bem na fotografia. 

Hipocrisia é o ato de fingir ter crenças, virtudes, ideias e sentimentos que a pessoa na verdade não possui, frequentemente exigindo que os outros se comportem dentro de certos parâmetros de conduta moral que a própria pessoa extrapola ou deixa de adotar. A palavra deriva do latim hypocrisis e do grego hupokrisis - ambos significando a representação de um ator, atuação, fingimento (no sentido artístico). Essa palavra passou mais tarde a ter uma conotação moral, visando os fingidores, aquelas pessoas que fazem da vida um palco de representação. Um exemplo clássico de ato hipócrita é uma pessoa denunciar alguém por uma conduta que essa pessoa se tem fartado de a praticar.

A hipocrisia não passa despercebida à sabedoria popular. E está retratada na literatura de todos tempos, desde o início da história humana. Por exemplo, os Evangelhos referem-se especificamente aos hipócritas em várias passagens, nomeadamente quando se referem à seita dos fariseus. Em Mateus, capítulo 23, versículos 13 a 15:
Mas ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! Pois que fechais aos homens o reino dos céus; e nem vós entrais nem deixais entrar aos que estão entrando. Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! Pois que devorais as casas das viúvas, sob pretexto de prolongadas orações; por isso sofrereis mais rigoroso juízo. Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! Pois que percorreis o mar e a terra para fazer um prosélito; e, depois de o terdes feito, o fazeis filho do inferno duas vezes mais do que vós.”


O perfil bailarino do tal homem


Alguns homens políticos de hoje são um tanto ou quanto bailarinos. E o perfil de um político bailarino é um perfil perverso e imoral. Mas não haja confusões. Começam por desejar apenas a glória e acabam ocupando o palco para fazer refulgir o seu eu. E como fazem? Bem, usam certas técnicas de combate para vencer os adversários. Uma espécie de caraté moral: "Quem é capaz de se mostrar mais honesto e corajoso, para denunciar os corruptos, do que eu?"

Anda por aí um tal, cujo nome não interessa, que chega a insinuar que é um eleito divino. E para isso maneja todos os recursos que lhe permitam colocar o outro numa situação moralmente inferior. Mas ser eleito pela divindade, vendo bem, é ser eleito sem mérito algum, porque é através de um veredicto sobrenatural, de uma vontade caprichosa. Enfim, uma paródia autojustificativa, com trivialidades das conversas de café. Baixezas inomináveis de mentes predestinadas para a idolatria.

Ora, a idolatria leva ao amor de um amado sem merecimento. E isso é perversamente justificado com aquela máxima maxista que ser-se amado sem mérito é justamente a prova de um amor verdadeiro, porque não incorpora nada de interesseiro.

É preciso ter cuidado quando se está em tempos de extremos. E não nos iludamos: um extremo não se consegue combater com outro extremo. Antes pelo contrário, os extremos alimentam-se mutuamente. É o que se passa com o clima, quanto mais as temperaturas altas atingem recordes no verão, ao mesmo tempo os dias frios de inverno se tornam mais frios. É uma lei, a simetria dos opostos, seja nas ciências duras, seja nas ciências moles.

Por falar em cousa mole, quando as democracias estão a ser minadas pelos extremos, o centro para salvar a democracia não pode ser mole ou branda. A democracia para ser saudável tem de acolher tanto as direitas como as esquerdas virtuosas. A democracia é um equilíbrio instável, já sabemos. Mas o que deita abaixo a democracia são os defeitos de ambos os lados que a minam por dentro. Por isso, quando a democracia está em perigo há que fazer correcções dos dois lados, correcções essas que só resultam se forem no sentido da moderação das utopias. E isso só se pode fazer com a convergência para o centro dos mais moderados.

Ai se . . .

Donaldo tivesse lido Heródoto como José terá lido, ainda que a primeira edição das 'Histórias' de Heródoto em russo só tenha aparecido nas livrarias da União Soviética em 1955, quando o ambiente se estava a tornar mais calmo, e as pessoas começavam a sentir alívio. Acabava também de sair 'Degelo' - o último romance de Ilia Ehremburg (Kiev 1891-1967 Moscovo), um dos autores mais produtivos e prolíficos da União Soviética. 

Quando o avião começou a descida para aterrar em Moscovo, ele estremeceu, agarrando-se ao assento e fechando os olhos. Era um homem de cara cinzenta, gasta, e prematuramente envelhecida, vestia um fato muito velho, que parecia estar pendurado num cabide. As lágrimas escorriam-lhe pelo rosto. Ele já não acreditava que ia voltar. Era dezembro de 1956, e as pessoas estavam a voltar, vindas dos gulags.

Heródoto, apesar de ser considerado o patrono dos historiadores de parceria com Tucídides, tinha a mesma mania dos segundos sentidos, tão típico dos escritores e jornalistas obcecados com a censura, com a espionagem e as perseguições. Por exemplo, abrimos na parte do Livro V e lemos que: 

". . . em Corinto, depois de trinta anos de governo sanguinário, morreu o tirano chamado Cípselos. Sucedeu-lhe o filho - Periandros, um ainda jovem e inexperiente na arte de ditador. De modo que decidiu aconselhar-se. Então enviou um mensageiro a Trasíbulos, o grande ditador de Mileto. Trasíbulos levou o arauto de Periandros para fora da cidade, e meteu-se com ele no interior de um campo cultivado. E à medida que ia fazendo perguntas ao arauto, ao mesmo tempo ia cortando as espigas que aos seus olhos ultrapassavam as demais em altura, e atirava-as para o chão. E assim, quando haviam percorrido todo o campo, as mais belas espigas jaziam espalhadas pelo chão. E de conselhos, nem uma  palavra tinha saído da boca de Trasíbulos. Isto feito, Trasíbulos disse ao arauto que podia ir embora. E ele foi. Quando regressou e chegou ao pé de Periandros, este estava morto por ouvir o seu mensageiro. Então o arauto, muito constrangido, limitou-se a narrar o sucedido, e dizer que afinal Trasíbulus não lhe transmitiu qualquer conselho. Uma coisa completamente maluca, disse ele a Periandros. Mas Periandros ficou satisfeito com o relato, e mandou o arauto embora. Tinha compreendido perfeitamente o que tinha de fazer: eliminar todos aqueles que eram mais expeditos e que lhe poderiam dificultar a governança. Todos os que sobressaíssem entre os demais, era urgente livrar-se deles. "

A democracia está a morrer de cansaço. Anda às voltas a tentar corrigir a sua história, remodelando, retocando, acrescentando. A primeira coisa a fazer: é deixar-se de eufemismos e voltar às palavras originais; é substituir a hipocrisia pela frontalidade; é refrescar os formalismos com a eficácia científica; é, como ouvi dizer a alguém com piada, transformar o coito simulado em coito verdadeiro. Combater com firmeza as orgias obscenas da economia à Aston Martin. Ainda que se tenha de enfiar as calças e a camisa no corpo molhado, quando não se conseguiu encontrar as cuecas. Diz o agente: este carro só leva quatro segundos para ir dos zero aos cem. Destas equações se podem deduzir alguns corolários: temos de fugir do demónio da velocidade; temos de examinar com a língua o dente que abana; não podemos ir ao concerto vestidos de fraque e calçados com uns tamancos quaisquer.

A queda foi tão rápida que o mecânico pensou tê-lo matado. Após um instante de pasmo, verificou que ele tinha apenas perdido os sentidos. Então desatou a esbofeteá-lo.  O homem abriu os olhos, viu tudo disforme, e desatou a correr ao encontro da mulher. O seu ódio tinha sido apenas um ódio passageiro. O cientista já não podia hesitar por muito mais tempo. O homem estava de pijama; e a mulher que já não o via há séculos, estava fascinada pela estatura de um outro homem desconhecido, alto, forte, estranhamente disforme. Era o drama do homem de pijama.


quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

O sentir - do sintoma ao sentimento


Sentir fome ou sede é um sintoma de algo de anormal no nosso corpo, que em termos fenomenológicos é uma experiência, e quando dizemos experiência significa que é do âmbito da consciência, mas que em termos fisiológicos não é mais do que um aviso valioso ao nível do sistema nervoso, em áreas especificas do cérebro, cuja finalidade tem a ver com a sobrevivência. Mas sem essa consciência, que nos faz agir, nada aconteceria. Se estivermos inconscientes não sentimos fome nem sede, mas fisiologicamente o equivalente estado do corpo pode estar a acontecer, e nós não podemos fazer nada, a não ser terceiras pessoas.

A sede pode ser dada por um sinal como a boca seca, que tem a ver com um desequilíbrio da homeostasia por défice de água. A fome provoca vários sintomas, os quais provocam reações não conscientes que se processam no hipotálamo. O hipotálamo segrega uma gama diversa de hormonas: opioides, serotonina, dopamina . . . As suas consequências últimas são traduzidas no sistema nervoso central por uma cadeia de experiências mentais de conhecimento de um mal-estar fenomenologicamente variado, mas que pode ir até à dor, em que a substância P é um elemento crucial nesse processo. Assim também o cortisol é libertado para combater a agressão subjacente à dor. Os sintomas homeostáticos traduzem tanto mensagens de mal-estar como de bem-estar. Os sintomas de bem-estar são processados nos córtices cerebrais das regiões insular e cingulada.

O sentir não se fica apenas pelos circuitos labirínticos do corpo que os arrumamos com a designação de sintoma. O sentir também se estende à vida social cujo nível de existência o imputamos à esfera do mental. Mas também utiliza alguns dos circuitos corporais que identificamos acima com os sintomas. A natureza serve-se exatamente dos mesmos circuitos e mecanismos para aquilo que designamos por sentimentos. Não negligenciemos, por exemplo, o que acontece no nosso corpo com a vergonha ou com o orgulho pela admiração social.

Por conseguinte, os sentimentos sociais não são puramente mentais. O amor ou a paixão, por exemplo, não se limitam a existir apenas no mundo a que chamamos mental, mas também implicam, e de que maneira, o corpo carnal, passe a redundância. E qualquer pessoa com experiência de vida quanto baste sabe muito bem que é assim. Não é preciso recorrer à chamada sabedoria popular, para saber que os sentimentos não são puramente mentais. E, claro, não são puramente físicos. Os sentimentos fazem parte de uma mente híbrida ou mente corpórea. Ou usando uma imagem corriqueira, os sentimentos são uma espécie de sanduíche: o que está no meio é o sentimento fenomenal ensanduichado por uma parte mental e uma parte corpórea.

Corpo e mente constituem um só ser e uma única existência. Sendo a mente uma essência representacional. E a partir daqui poderemos extrair a ideia do que é inteligência. Se a mente é um tipo de atividade representacional, que não existe sem um cérebro sustentado num corpo, então uma bactéria, ou até mesmo um vírus, não representam nada, porque não possuem uma mente. Todavia, segundo esta ideia, uma bactéria ou um vírus possuem atividade inteligente. Logo, a inteligência não implica necessariamente a existência de uma mente.

Os vírus são um fragmento de matéria, mas um tipo de matéria especial, organizada em código de ARN ou ADN (ácidos nucleicos), que em determinadas condições funcionam como instruções para replicação. Ou seja, a capacidade de reproduzir cópias de si mesmo à custa de uma célula de um hospedeiro vivo, servindo-se de matéria, energia, e informação incorporada no genoma da célula hospedeira. Célula que se serve de matéria, energia e de outras instruções incorporadas no genoma da célula, ácidos nucleicos (ADN e ARN). Ora, esta atividade dos vírus, se não é uma atividade inteligente, o que será?

E é a partir daqui que entramos em disrupção com certos conceitos de vida e de inteligência artificial. Um computador tem atividade inteligente, mas é uma inteligência derivada da inteligência humana. É uma espécie de inteligência por procuração. Ao passo que a inteligência dos vírus quando muito é uma procuração da natureza, tal como a humana. Para esse efeito quem legitima tanto a inteligência dos vírus como a inteligência humana é a mesma Natureza. Para nossa humilhação, só pode ser a Natureza a conferir essa inteligência, e não a espécie humana, que para a Natureza é uma espécie como outra qualquer. Logo, a inteligência é um fenómeno incorporado na matéria viva que nos antecedeu há quatro mil milhões de anos.