terça-feira, 30 de junho de 2020

Offshores: quando o moralmente correto é superior ao legalmente incorreto




É eticamente correto que as empresas que beneficiam de esquemas, como o das offshores, não mereçam ajuda à custa de todos nós em tempos de pandemia. Agir eticamente exige que tenhamos em conta os outros. Portanto, perguntar pelo fundamento da moral é procurar saber qual é o bem último, e o que faz uma ação ser correta.

Por bem último entende-se o bem do qual os outros bens resultam. O dinheiro não é um bem último. Na procura da fundamentação moral, encontramos duas posições extremas: Kant com a sua ética deontológica e a defesa do imperativo categórico; e Stuart Mill, coma sua ética utilitarista e a felicidade para o maior número. Perante esses dois casos extremos, a melhor escolha está no meio. E assim, seguimos o conselho de Aristóteles, que dizia que no meio é que está a virtude.

Na verdade, a ética deontológica de Kant parece por vezes defender que as consequências das ações nunca contam, porque o que conta é a intenção. Kant defende que o bem último é a vontade boa. E defende que agir por dever é cumpri-lo em todas as suas circunstâncias. Ora, como na prática isto resulta numa quimera, esta doutrina acaba por ser geradora de mais hipócritas e mais cínicos.

Kant, faz do seu fundamento lei universal. Tal coisa, cai em impossibilidades práticas, que é o mesmo que dizer impossibilidades lógicas. Tudo o que demonstra é que, levada a lei à letra, a sua adoção universal seria de tal ordem que poucos a escolheriam. O utilitarismo, por outro lado, quando aponta como a boa consequência das nossas ações a felicidade para o maior número, esquece que a felicidade é um conceito muito movediço à mercê de cada um, tanto em termos qualitativos como quantitativos.

Interrogarmos, como pode a vontade como causa da ação, cuja natureza é mais mental do que corporal, ter efeito causal no mundo físico. É um exercício que faz parte da Filosofia. Vistas bem as coisas, qualquer ação tem de envolver o corpo de alguma maneira. Mas nem tudo o que o corpo faz são ações. É o caso do sonâmbulo, ou do epilético, porque é algo que acontece mais no corpo do que na mente. Para que um acontecimento, que envolve o nosso corpo, seja uma ação, a intenção tem de estar presente. Nós quando vamos na rua, e por distração damos um encontrão noutra pessoa, o que é costume é pedirmos desculpa e afirmar que foi sem querer. Portanto, todos sabemos que nem tudo o que acontece ao nosso corpo coincide com a nossa vontade. A vontade é uma propriedade mental. E embora não possa haver mente sem corpo, a vontade possui uma subjetividade que extravasa os limites físicos do corpo. E a vontade tem de certa maneira uma dependência de valores.

Nas últimas décadas tem havido um aceso debate sobre a objetividade dos valores por causa do chamado “relativismo cultural”, segundo o qual os valores morais são relativos à cultura. Mas, será que a diversidade cultural significa que todos os princípios morais são diferentes de cultura para cultura? Aquilo que cabe no conceito de bem é o que a sociedade aprova? E isto passa a ser o normal numa determinada sociedade. Uma ação normal é o que se enquadra perfeitamente no que são os limites do comportamento desejável nessa sociedade.

Quando apelamos à racionalidade no debate acerca do relativismo cultural, a dado momento começamos a verificar que algumas das suas consequências são inaceitáveis, e por isso os argumentos a favor do relativismo cultural baseado na diversidade cultural apresenta-se-nos como pouco sólido. Um exemplo chocante é a mutilação genital feminina (MGF), também conhecida por excisão feminina, a remoção ritualista de parte ou de todos os órgãos sexuais externos femininos. Geralmente um executante tradicional, utilizando uma lâmina de corte, com ou sem anestesia, faz esse trabalho em 27 países. A idade em que é realizada varia entre alguns dias após o nascimento e a puberdade. Em metade dos países com dados disponíveis, a maior parte das jovens é mutilada antes dos cinco anos de idade.

Assim, quando cruzamos os argumentos do relativismo cultural com os fundamentos da correção moral, descobrimos que não são tão plausíveis como poderia parecer à primeira vista. Não é por culturas diferentes terem códigos morais diferentes, que vamos inferir que não há verdades objetivas na moralidade. Certo e errado, moralmente, não é apenas uma questão de opinião. Certos hábitos e tradições culturais apenas resultam daquilo em que as pessoas acreditam. E esse é o erro do argumento do relativismo cultural. É claro que estamos a falar de coisas substanciais e fundamentais na vida humana. Continuará a haver muitas coisas em que haverá diferenças de opinião entre sociedades que não têm de se subordinar ao critério de certo e de errado. E também não é critério de certo o simples facto de ser o padrão da nossa sociedade. Faz sentido pensar que a nossa própria sociedade tem aspetos que justificam mudar para melhor. E faz sentido reafirmar que se na nossa sociedade existiu escravatura, isso foi um erro.

segunda-feira, 29 de junho de 2020

A técnica


A técnica, como tudo e em todos os mundos possíveis, não é possível utilizar sem interpretar, metamorfosear, bricolar. Nesta concepção, o termo tecnologia define um conhecimento técnico e científico, material e imaterial, bem como a sua aplicação através do engenho humano a partir do conhecimento. Materializada em elementos concretos ou não, resulta de procedimentos sistemáticos, visando alcançar um objectivo intencional. 
O culto moderno da “tecnologia” - um modo de nos relacionarmos com o mundo, como se fosse um amontoado de coisas e objetos neutros, que consumimos, dominamos e deitamos fora, sem um olhar crítico sobre as suas limitações e consequências - transformou-se nos últimos tempos num pesadelo. Há muito que a técnica se dissociou dos valores da technë. A nossa violenta inflexão de "vocação" para "provocação", fez com perdêssemos a matiz: technë, do grego, frequentemente traduzido por artesanato.

A pretensão da razão, de ser capaz de conhecer o mundo exaustivamente e de o pôr inteiramente à sua disposição, deu com os burros na água. Não se pretende ir tão longe, como ao tempo dos ingénuos Ludistas. É mais uma chamada de atenção para a dialética da natureza a funcionar, o chamado efeito boomerang da réplica da Terra à nossa provocação. 

A expressão - "dar com os burros na água" surgiu no Brasil no início do século XIX, quando o escoamento da produção de ouro, cacau e café era feita por transportadores com burros e mulas de carga. O facto era que muitas vezes esses burros, devido à falta de estradas adequadas, passavam por caminhos muito difíceis e regiões alagadas, onde os burros morriam afogados. Daí em diante o termo passou a ser usado para se referir a alguém que faz um grande esforço para conseguir algum feito e não consegue ter sucesso.
O Ludismo foi um movimento de trabalhadores ingleses do ramo da fiação e tecelagem, no início do século XIX, e que se notabilizou pela destruição de máquinas como forma de protesto. Os Ludistas consideravam que a maquinaria era usada "de maneira fraudulenta e enganadora", para contornar práticas laborais consolidadas pela tradição. A princípio, os ataques ludistas foram enfrentados a tiro pelos proprietários das máquinas. Afinal o movimento foi reprimido por forças militares, e o endurecimento da legislação britânica resultou em penas severas para os participantes do movimento. A verdade é que os artesãos sublevavam-se porque as máquinas lhes estavam a roubar o trabalho, colocando-os na miséria.

Em “A questão da técnica”, Heidegger interroga a essência da técnica. Nessa interrogação, a técnica ao ser tomada como questão, elimina à partida as suas possibilidades de investigação. Com efeito, a técnica se for tomada como objeto, pode eventualmente comportar uma investigação que nos leve à essência. Mas tampouco a técnica é submetida a um processo de conhecimento objetivo de modo a obter uma definição. Heidegger afasta algumas concepções habituais da técnica, para com isso libertar a sua essência. Mas não para nos apropriarmos dela, de modo a evitar o viés exclusivamente humanista. Seguindo o modelo aristotélico das quatro causas, é pelo sentido operatório - a causa eficiente - que se deve ir. Razão pela qual a ênfase recai sempre sobre a causa eficiente, que estaria mais propriamente ligada à produção de efeitos. Assim se constrói uma determinação instrumental da causalidade. Ora, a compreensão heideggeriana, a partir do significado grego de causa, caminha numa outra direção, em que a relação operacional de efetivação é substituída pela de comprometimento. As quatro causas devem ser vistas como comprometimento com a produção da coisa. Assim, a causa material corresponde à matéria de que algo é feito, uma espécie de compromisso entre uma certa matéria e a produção do objeto; na causa final, há uma espécie de compromisso entre a produção da coisa e a finalidade a que deverá servir. Na articulação das quatro causas, algo se mostra na sua matéria, na sua produção e na sua finalidade. Algo se desoculta, desvelando-se no seu modo de ser. E aquilo que tendíamos a entender como operação revela-se como um deixar acontecer. 

No funeral de Martin Heidegger, em 1976, Bernhard Welte, padre católico e professor de filosofia da religião na Universidade de Friburgo, pronunciou um breve discurso, em que descreveu o “caminho” de Heidegger como o daquele que foi “porventura o maior perscrutador deste século”. O pensamento de Heidegger, comentou também Welte, “abanou o mundo e o século”. Se a importância de um filósofo se mede pela quantidade de comentários que a sua obra recebeu e pela quantidade de traduções dos seus livros, a observação do Padre Welte é bastante exata. Escreveu-se mais livros e artigos, sobretudo de carácter devoto, acerca de Heidegger do que acerca de qualquer outro filósofo do século XX. Os seus livros foram traduzidos não só para português, francês, inglês, italiano e castelhano, mas também para árabe, chinês, croata, checo, japonês, coreano e diversas outras línguas. 

Ora, nessa altura, Rudolf Carnap, um eminente defensor do positivismo lógico, já cá não estava desde 14 de setembro de 1970, para continuar a escarnecer dessa ladainha que não podia ser nem definida nem verificada. E, portanto, Heidegger ainda teve seis anos para proferir várias conferências, pois tinha todo o caminho aberto para concluir que não podia ser derrubado pelos métodos tradicionais da verificação científica, mas podia ser sentido “imediatamente em momentos de angústia e vertigem”. 

"Sein = Nichts" podia ser escrita como uma equação, mas não era uma equação de resultado final nulo (nihil). ‘Nada’ significava uma presenteidade, um Ser-aí (Dasein). A negação do Nada é o Ser. Para Carnap, e já agora para os positivistas, uma tal frase seria a prova final da vacuidade de Heidegger. Mas para Heidegger era a sua compreensão pós-teológica da 'ontologia de Deus', para a sobrevivência do paradoxo da estranheza do mundo. Era uma forma de compreender o “Eu sou aquele que sou”, a unicidade do divino fora da teologia. Não significava a “morte de Deus” de um Nietzsche, mas sim um eclipse de Deus, dentro da esfera mística da humanidade. Em termos da integridade de um misticismo dramático, em termos da criatividade do pensamento, só, de facto, o podemos confrontar com outro grande pensador para enfrentar o mistério da existência: Wittgenstein. Não uma forma particular de existência, porque não faria sentido dizer: houve um tempo em que não existia nada. Perante o facto da existência, não pode haver nenhuma condescendência à exigência de prova, ou de testemunho. 

Richard Rorty foi um dos signatários de uma carta publicada no New York Review of Books em 2 de abril de 1981, defendendo as traduções Harper & Row das obras de Heidegger contra algumas críticas de Thomas Sheehan. A carta, que foi também assinada por Stanley Cavell, Hubert Dreyfus, Karsten Harries, John Haugeland e David Hoy, exprimia a gratidão ao editor e ao falecido Glenn Gray por tornar acessíveis aos leitores de língua inglesa as obras “deste filósofo imensamente importante e difícil”. Rorty, todavia, fez questão de sublinhar que não desculpava desta maneira a conduta de Heidegger, quanto ao seu filonazismo. Rorty não encontra palavras suficientemente fortes para condenar Heidegger, o homem. Este era uma “grandessíssima peste — um cobarde e mentiroso, do princípio ao fim”. Um “labrego megalómano anti-semita”. Heidegger tinha na verdade muito em comum com o próprio Hitler: “retórica racial, anti-semitismo, autodelusão... e o desejo de fundar um culto”. Nada disto, contudo, devia fazer a mínima diferença para o nosso ajuizamento da sua filosofia, e Rorty reitera a sua perspectiva de que Heidegger “foi o filósofo mais original que tivemos este século”. Temos simplesmente de compreender que, quer gostemos quer não, não se pode correlacionar a grandeza na filosofia com a decência e a bondade, como não o fazemos com a grandeza na matemática e na microbiologia. 

Há alguns anos, Anthony Quinton falou nas “solenes e disparatadas questões de lana caprina” de Heidegger. Até há bem pouco tempo, Heidegger não era levado a sério por filósofos no Reino Unido e nos Estados Unidos. Em 1969 a televisão alemã celebrou o octogésimo aniversário de Heidegger com uma série de palestras em louvor dos seus importantes feitos. Um dos oradores era o bem conhecido teólogo católico Karl Rahner. Dirigindo-se a Heidegger como seu “mestre”, disse aos telespectadores que embora tenha tido muitos bons “mestres-escola”, tinha apenas “um a quem podia chamar, reverentemente, professor”. Reconheceu agradecidamente que Heidegger “nos ensinou a ser capazes de procurar em cada coisa e em todas aquele segredo inefável que “nos subjuga". O “segredo inefável” que “nos subjuga [verflügt]” é o Ser de Heidegger.

Ao contrário de Rahner, Hannah Arendt não era teóloga nem sequer crente em Deus. Também não acreditava que houvesse um “segredo inefável” em cada coisa e em todas, mas deu-nos uma avaliação igualmente extática da façanha filosófica de Heidegger. “O vento que sopra através do pensamento de Heidegger, como aquele que ainda nos chega, após milhares de anos, das obras de Platão”, escreve, com uma incaracterística veia lírica, “não vem do século em que ele incidentalmente vive. Vem do primevo, e o que deixa para trás é algo perfeito, algo que, como tudo o que é perfeito (nas palavras de Rilke), regressa às suas origens”.

Há não muito tempo, era quase impossível encontrar um defensor de Heidegger entre filósofos anglo-saxónicos respeitáveis. Esta situação mudou nos últimos anos. Arroubos extáticos como os de Gadamer, Rahner ou Arendt são ainda raros, mas uma série de filósofos de algum renome aclamaram Heidegger como um dos grandes pensadores do século XX. Em destaque entre estes está indubitavelmente Richard Rorty, que tem amontoado encómios à obra de Heidegger desde o seu artigo “Overcoming the Tradition: Heidegger and Dewey”, originalmente publicado em 1974 na Review of Metaphysics e reimpresso no seu Consequences of Pragmatism (1982). No seu bem conhecido livro Philosophy and the Mirror of Nature, Rorty inclui Heidegger juntamente com Hegel, Marx, Frege, Freud e Wittgenstein, numa lista de “homens de génio que pensaram algo novo”.


domingo, 28 de junho de 2020

Politicamente Correto: o Bolo da Noiva em tempos de pandemia




Terá sido politicamente correto os italianos chamarem 'Bolo da Noiva' ao monumento em memória de Vitor Emanuel II? E será politicamente correto chamar Bolo da Noiva em vez de Bolo dos Noivos? E será politicamente correto cortar o Bolo e servi-lo a cinquenta convidados em tempos de pandemia? 

Vou começar primeiro pelos aperitivos, e brindar-nos com um excerto do “Amor nos tempos de cólera” de Gabriel Garcia Márquez. E depois vamos ao politicamente correto.

          O doutor Juvenal Urbino tinha sido aos vinte e oito anos o mais cobiçado dos solteiros. Voltava de uma longa estada em Paris, onde fez estudos superiores de medicina e cirurgia, e logo que pisou terra firme deu mostras definitivas de que não perdera um minuto do seu tempo. Voltou muito mais atilado e senhor de si, e se nenhum dos seus companheiros de geração parecia tão severo e tão sábio quanto ele em sua ciência, também nenhum havia, por outro lado, que dançasse melhor a música da moda ou improvisasse melhor ao piano. Seduzidas por suas graças pessoais e pela certeza da sua fortuna familiar, as raparigas do seu meio faziam rifas secretas no jogo de ver quem o prenderia, e ele também fazia as suas apostas em relação às moças, mas conseguiu manter-se em estado de graça, intacto e tentador, até que sucumbiu sem resistência aos encantos plebeus de Fermina Daza. Gostava de dizer que aquele amor tinha sido fruto de um equívoco clínico. Ele mesmo custava a crer que tivesse acontecido, menos ainda naquele momento da sua vida, quando todas as suas reservas passionais se concentravam na sorte da sua cidade, da qual dissera com demasiada frequência e sem pensar duas vezes que não havia outra igual no mundo. 

          Em Paris, passeando de braço dado com uma noiva casual num outono tardio, quase não conseguia conceber felicidade mais pura que a daquelas tardes douradas, com cheiro rústico das castanhas nas brasas, os acordeões sentimentais, os namorados insaciáveis que não acabavam de se beijar nunca nas esplanadas dos cafés, mas mesmo assim dizia a si mesmo com a mão no coração que não se dispunha a trocar por tudo aquilo um único instante do seu Caribe em abril. Era ainda jovem demais para saber que a memória do coração elimina as más lembranças e enaltece as boas e que graças a esse artifício conseguimos suportar o passado.
          Mas quando voltou a ver do convés do navio o promontório branco do bairro colonial, os urubus imóveis nos telhados, a roupa dos pobres estendida a secar nas sacadas, compreendeu até que ponto tinha sido uma vítima fácil das burlas caritativas da saudade. O navio abriu passagem na baía através de uma colcha flutuante de animais afogados, e em sua maioria os passageiros se abrigaram nos camarotes fugindo à pestilência. O jovem médico desceu a ponte do navio vestido de alpaca perfeita, guarda-pó sobre o fato, com uma barba de Pasteur juvenil e o cabelo repartido em risca nítida e pálida, e com bastante domínio de si para dissimular o nó na garganta que não era de tristeza e sim de terror. No molhe quase deserto, guardado por soldados descalços e sem farda, esperavam-no as irmãs e a mãe com os amigos mais queridos. Achou todos macilentos e sem futuro, apesar dos ares mundanos, e falavam da crise e da guerra civil como algo remoto e alheio, mas todos tinham um tremor evasivo na voz e uma incerteza nas pupilas que desmentiam as palavras. Quem mais o comoveu foi a mãe, uma mulher ainda jovem que se havia imposto na vida com a sua elegância e o seu ímpeto social, e que agora murchava a fogo lento na aura de cânfora dos seus crepes de viúva. Ela sem dúvida se reconheceu no constrangimento do filho, tomando a dianteira de lhe perguntar em defesa própria por que vinha ele com essa pele transparente como parafina. — É a vida, mãe — disse ele. — Fica-se verde em Paris. Pouco depois, derretendo-se de calor junto a ela na carruagem fechada, não aguentou mais a inclemência da realidade que se metia aos borbotões pelo postigo. O mar parecia de cinza, os antigos palácios de marqueses estavam a ponto de sucumbir à proliferação dos mendigos, e era impossível encontrar a fragrância ardente dos jasmins por trás das emanações mortais dos esgotos abertos. Tudo lhe pareceu mais mesquinho do que quando partira, mais indigente e lúgubre, e havia tantas ratazanas famintas na lixeira das ruas que os cavalos do carro tropeçavam assustados. Do longo caminho do porto até sua casa, no coração do bairro dos Vice-Reis, não viu nada que lhe parecesse digno de suas saudades. Derrotado, virou a cabeça para que a mãe não o visse, e se pôs a chorar em silêncio. O antigo palácio do Marquês de Casalduero, residência histórica dos Urbino de Ia Calle, não era o que se mantinha mais altivo no meio do naufrágio. O doutor Juvenal Urbino fez essa descoberta com o coração em pedaços logo que entrou no saguão tenebroso e viu o repuxo poeirento do jardim interior, e os canteiros sem flores por onde andavam lagartos, e reparou que faltavam muitas lajes de mármore, e que outras estavam partidas, na vasta escada de balaústres de cobre que levava aos aposentos principais. Seu pai, um médico mais abnegado do que eminente, tinha morrido na epidemia de cólera asiática que assolou a população seis anos antes, e com ele morrera o espírito da casa. Dona Blanca, a mãe, sufocada por um luto previsto para ser eterno, substituíra por novenas vespertinas os célebres saraus líricos e os concertos de câmara do marido morto. As duas irmãs, contra suas graças naturais e sua vocação festiva, eram carne de convento. O doutor Juvenal Urbino não dormiu nem um instante da noite da chegada, assustado pela escuridão e o silêncio, e rezou três terços ao Espírito Santo e quantas orações ainda sabia para conjurar calamidades e naufrágios.

O termo 'politicamente correto' é usado para descrever expressões, políticas ou acções que evitam ofender, excluir e ou marginalizar grupos de pessoas que são vistos como desfavorecidos ou discriminados, especialmente grupos definidos por género, orientação sexual ou raça. Actualmente, quando o termo aparece no discurso político e mediático, geralmente é usado com sentido crítico pela direita, uma vez que na sua história está conotada com a defesa das minorias pela esquerda política. Nos EUA, o termo tem sido amplamente usado em livros e revistas, mas na Grã-Bretanha, o uso se limita principalmente à imprensa popular. Segundo o autor John Wilson, as forças de esquerda do "politicamente correto" autoproclamaram-se censores de uma cultura dominante que se tornou cautelosa, higienizada e com medo da sua própria sombra. Grupos que, sendo preciso, se opõem a certas visões científicas para não ferir suscetibilidades. Eles não dizem censura, dizem "correção política" para descrever o que consideram inapropriado numa narrativa social de esquerda. Esse termo tinha um uso residual antes da década de 1990. Já havia sido amplamente usado no debate sobre o livro de 1987 de Allan Bloom, The Closing of the American Mind. E ganhou mais uso em resposta ao livro de Roger Kimball, Tenured Radicals (1990), e ao livro de 1991 do autor conservador Dinesh D'Souza's, Illiberal Education, no qual ele condenou o que viu como esforços liberais no sentido da autovitimização, acçõesa afirmativas e mudanças no conteúdo dos currículos escolares e universitários através da linguagem.


À medida que os movimentos de esquerda ganhavam poder político, a frase passou a ser associada a acusações de aplicação dogmática da doutrina em debates entre comunistas e socialistas na América. De acordo com uma versão, o politicamente correto começou como uma piada entre estudantes radicais, quando todo o grupo revolucionário tinha uma linha de conduta sobre tudo, com alguns exemplos gritantes de comportamento sexista ou racista de seus colegas, imitando o tom de voz dos Guardas Vermelhos ou do Comissário da Revolução Cultural: "Não é muito 'politicamente correto', camarada!" Um artigo de Richard Bernstein de outubro de 1990, no New York Times, é creditado como o difusor do termo. E é a partir de 1991 que os conservadores americanos o começam a usar como pejorativo, significando "polícia do pensamento" - u
ma terminologia crítica para uma série de políticas na academia em torno da vitimização, apoiando o multiculturalismo por meio de acções afirmativas, sanções sobre o discurso de ódio contra minorias, e revisão de currículos. Os líderes de opinião liberais argumentaram que os conservadores e reacionários, que usaram o termo, o fizeram para desviar a discussão política das questões substantivas da resolução da discriminação e desigualdade social. Alguns comentadores conservadores ocidentais argumentam que "o politicamente correto" e o multiculturalismo fazem parte de uma conspiração com o objetivo final de minar os valores judaico-cristãos. Sustentam que o politicamente correto tem origem na Teoria Crítica da Escola de Frankfurt.

Hoje, a politically correctness designa a 'língua de pau' descrita por George Orwell no livro "984". Induz um discurso político hipernormativo fundado na interdição moral, mediática e jurídica de todos os termos que possam contradizer, de perto ou de longe, o núcleo duro semântico de bem-pensante. Esta "polícia" da linguagem contribuiu para engendrar, por um efeito mecânico, uma verdeira "polícia do pensamento" que não necessita de se apoiar na força visto estar implantada, como um "vírus semântico", no nosso sistema psíquico, o qual irá instaurar um dispositivo de autorrepressão e autocensura.

A teoria da dissonância cognitiva explica por que motivo é tão difícil convencer através de factos incontestáveis alguém que está doutrinado ou que se rege por uma utopia. Daí a persistência suicidária. Entre um dogma enraizado no nosso psiquismo e a realaidade, quem vence é o dogma. Nós, somos os próprios agentes da nossa desinformação. O efeito da dissonância cognitiva, um fenómeno muito estudado em psicologia, e ultimamente nas neurociências cognitivas, o primeiro cúmplice do desinformador é o próprio cérebro, sempre que essa desinformação estiver em consonância com um determinado programa mental que se enraizou entretanto dentro de nós. Há um adágio popular que ilustra muito bem esta dissociação cognitiva: "O pior cego é aquele que não quer ver; ou "Não acreditamos no que vemos, mas vemos aquilo em que acreditamos"; ou "fazer como a avestruz, meter a cabeça na areia".

Conta-se a história, que é possível que seja apócrifa, de um tal Dr. Vicent de Paul D`Argent, médico e professor na Universidade de Nimes, que em 1647 fez a um aldeão, chamado Angel, um transplante de córnea. Provavelmente ele seria um cego congénito. E o que foi um sucesso para a medicina da época, não o foi para o malogrado Angel, porque assim que passou a ver, tinha horror com o que via. Disse que o mundo que ele imaginava era muito melhor. Pediu ao cirurgião que arrancasse os seus olhos. O caso foi parar ao Vaticano e acabou no tribunal de Paris. A verdade é que Angel ganhou a causa. Assim entrou para a história como o cego que não quis ver.

sábado, 27 de junho de 2020

Bactérias resistentes aos antibióticos



O renomado cirurgião americano William H. Stewart declarou em fins da década de 1960: “é hora de fecharmos o livro das doenças infecciosas e declararmos a guerra ganha”. A previsão ocorreu na era de ouro dos antibióticos. Bactérias eram arrasadas com a chegada da penicilina e sulfamidas. Depois nunca mais pararam: cloranfenicol, cefalosporinas, vancomicina, tetraciclina, eritromicina, só para mencionar uma pequena amostra do nome de antibióticos que entretanto o engenho humano inventou (entre aspas)Um paciente internado, debilitado pela febre, recebia alta hospitalar curado de infecções que, no passado, o condenariam à morte. A ciência, eufórica, abusava das novas drogas milagrosas com futuro promissor. Porém, um detalhe passou despercebido: com exceção das sulfamidas, todos os antibióticos foram descobertos e não inventados. Inúmeras bactérias e fungos produziam os antibióticos, e o homem apenas os descobriu. Essas substâncias estavam na natureza há milénios e, portanto, havia enorme possibilidade de a evolução das bactérias resistirem.

Os microrganismos surgiram há mais de três mil milhões de anos e foram os primeiros seres vivos do planeta. Essas formas de vida resistiam ao calor da Terra, à radiação solar no solo, e às condições inóspitas da nossa atmosfera primitiva. Adaptavam-se às adversidades adquirindo resistência às condições químicas e físicas agressivas. Começava a batalha pela sobrevivência entre os microrganismos, e nesse cenário primitivo de disputas microscópicas, iniciou-se uma estratégia bacteriana: a guerra química. Algumas espécies bacterianas adquiriram genes que comandavam a produção de substâncias, que, eliminadas no meio, destruíam bactérias concorrentes. Eram antibióticos naturais e, logicamente, inócuos às bactérias que os produziam. Assim, a evolução selecionava as bactérias mais aptas à sobrevivência. Porém, bactérias vulneráveis e fadadas à extinção também adquiriam mutações e contra-atacavam: criavam diferentes maneiras de resistir aos antibióticos naturais eliminados pelas concorrentes. Portanto, desde essa época que as bactérias resistiam. A evolução microbiana caminhava com o surgimento de novas substâncias antibacterianas e novos genes para resistências. 

As primeiras formas de vida microscópica evoluiriam e presenciariam as futuras formas de vida complexa. Testemunhariam o nascimento de seres multicelulares. Animais marinhos surgiam e tornavam-se suscetíveis à invasão bacteriana em um mundo inundado por microrganismos. Hoje, diferentes tipos dessas moléculas antimicrobianas são encontradas em moluscos, crustáceos e peixes. Esses animais despejavam antibióticos naturais ao seu redor, e, essa carapaça química os protegia contra bactérias e fungos que se aproximassem. Com o tempo, surgiram bactérias resistentes a essas novas drogas naturais. Já se tornava rotina na história bacteriana o surgimento de resistência para sobrevivência. Por que seríamos nós a vencer esse império microscópico?

Na contínua evolução planetária, a vegetação aquática avançou para os continentes. 
Os troncos ascendiam e se engrossavam cobrindo o planeta de vegetação. Para essa conquista, as plantas precisavam vencer os microrganismos agressores, e também passaram a produzir antibióticos naturais. Mesmo assim, eram colonizadas por microrganismos que adquiriram resistência às suas recém-criadas moléculas antibacterianas e antifúngicas. Novamente, surgem formas microscópicas adaptadas ao despejo de novos antibióticos e antifúngicos, dessa vez, vindo de plantas, sementes e frutas. Fomos os últimos a lançar mão dessas drogas e, ingenuamente, achamos que éramos insuperáveis. 

Então vieram os insetos. As moscas sobrevivem às infecções também pela produção de moléculas bactericidas. As larvas de diversos insetos assim procedem, nessa fase vulnerável da vida. Bactérias e fungos ganhavam novas mutações para resistir a essa onda de substâncias antibacterianas e antifúngicas. E assim continuou a vida na Terra, com animais cada vez mais complexos. 

Enquanto as formas de vida complexas surgem e se desenvolvem, no mundo microscópico continua a guerra química entre bactérias, fungos e não esqueçamos os vírus. Os fungos eliminam substâncias antibacterianas para combater os seus grandes concorrentes pela disputa de nutrientes: as bactérias. Muitas formas bacterianas morriam ao se aproximar dos bolores repletos de arsenal químico, porém, a mutação de poucas as tornavam resistentes. Seus genes produziam substâncias que contra-atacavam as moléculas bactericidas dos fungos. Mundo macroscópico e mundo microscópico, são assim, numa permanente corrida ao armamento. 

Surgem os primatas, e, depois, os primeiros hominídeos que evoluem em diversas espécies até ao homo sapiens. E, em nós, a história não seria diferente. Nosso corpo está repleto de campos de batalha onde bactérias se digladiam pelos nutrientes emanados do nosso organismo. Bactérias inofensivas revestem a nossa pele e se infiltram nos orifícios: forram a boca, o estômago e o intestino. Esses microrganismos, sem se intimidarem, nos envolvem. Temos dez vezes mais microrganismos do que células. Cada grama de fezes carrega biliões de bactérias.

Logo após o nascimento, ocorre uma invasão de bactérias que se espalham pela pele do recém-nascido ainda na maternidade. Carregamos esses inquilinos cutâneos para o resto da vida. As bactérias se reproduzem todo o tempo em nossa pele, nutrindo-se desse terreno fértil de células cutâneas descamadas. Utilizam água, sais minerais e gorduras jorradas dos poros da pele. Os poros, as glândulas de suor e os folículos pilosos despejam esses nutrientes para os colonizadores cutâneos. Algumas bactérias preferem áreas secas e expostas ao sol, enquanto outras, humidade e sombra. Algumas produzem moléculas voláteis que causam odor característico do local que habitam: por exemplo, os pés. Da mesma forma, bactérias nas axilas eliminam moléculas ácidas e voláteis responsáveis pelo odor característico da região. Cientistas evolucionistas acreditam que essas bactérias evoluíram com os hominídeos e contribuíram para a nossa evolução. O odor repugnante axilar repeliria outros machos que ameaçassem se aproximar do grupo. Seria uma espécie de demarcação territorial pelo macho líder. Isso, provavelmente, numa época em que o nosso olfato seria bem mais apurado, e usado com maior intensidade para relações sociais: esse órgão seria muito mais desenvolvido e sensível. Trabalhos científicos mostram que mantemos vestígios subtis dessa comunicação pelo cheiro. Recém-nascidos exalam um odor agradável ao sexo masculino, o que, no passado, os protegeu da agressão e infanticídio pelos machos. Hormonas sexuais atingem terminações nervosas do olfato, que, no passado, auxiliavam a atração sexual.

E da pele podíamos passar para outros sítios do corpo, onde inúmeras outras espécies de bactérias habitam. O nosso estômago é um deserto ácido inóspito às bactérias e, além disso, repleto dessas substâncias que funcionam como minas espalhadas com poder bactericida, e, todavia, uma bactéria em especial adquiriu capacidade para sobreviver no estômago: Helycobacter pylori. A sua estratégia consiste em utilizar compostos azotados para produção de amónio, que, englobando a bactéria e, por ter pH básico, neutraliza a acidez gástrica. A invasora permanece envolta nessa cápsula protectora de amónio e vence a acidez. O amónio agride a parede do estômago e, junto com substâncias irritantes produzidas pela bactéria, ocasiona gastrites e úlceras.

Como vemos, o nosso corpo é um campo de batalha com produção de inúmeras substâncias antibacterianas, e suas resistências. Porém, nada se compara ao que ocorre no cólon, a porção final do intestino onde bactérias e fungos disputam palmo a palmo o seu espaço nutritivo: se espalham pela superfície da mucosa intestinal constituída por vilosidades microscópicas para aumentar a área de absorção dos nutrientes da dieta. Caso esticássemos a mucosa intestinal poderíamos cobrir uma superfície de 300 m2. Esse é o campo de batalha dos microrganismos que acomodamos. São mais de trezentas espécies diferentes de bactérias que se alimentam de restos celulares descamados da mucosa, de açúcares não absorvidos da dieta, de álcool, de compostos vegetais não digeridos e muco produzido nos intestinos. As nossas bactérias produzem gorduras que acidificam o meio intestinal e auxiliam na absorção de cálcio, magnésio, ferro e vitaminas. Muitas dessas inquilinas protegem o seu território pela produção de substâncias antibacterianas que atacam bactérias intrusas. Isso também nos protege. Novamente, armas químicas lançadas na natureza forçam o surgimento de bactérias resistentes aos antibióticos naturais. Além disso, as nossas células intestinais também produzem antibióticos naturais para combater invasores. Fomos presenteados por genes da evolução que comandam a síntese desses antibióticos naturais e, mais uma vez, surgem bactérias resistentes que conseguem superá-los.

Em conclusão, bactérias e fungos evoluem há pelo menos os últimos dois terços da existência da Terra que é de 4,54 mil milhões de anos. Surgiram em ambientes constantemente inundados de antibióticos naturais que os forçaram a desenvolver resistência. Parece óbvio que seria questão de tempo para os nossos antibióticos perderem o efeito. A ciência teria que lançar novos antibióticos para repor os antigos e já inutilizados. Esta é que é a grande corrida armamentista em que estamos metidos até às orelhas desde há uns insignificantes setenta anos, se comparados com as bactérias que andam nessa guerra incomensuravelmente há muito mais tempo. E, por isso, hoje já não estamos com as bazófias dos nossos colegas dos anos 1960. Estamos, pelo contrário, algo atrapalhados com as novas provocações que os microorganismos nos estão a fazer à nossa capacidade inventiva. Para já, ainda estamos atolados neste grande imbróglio de saúde pública, à escala planetária, provocado por um insignificante coronavírus.
 

sexta-feira, 26 de junho de 2020

O tempo de penúria não tem aroma. Está privado da duração, que cria laços estáveis entre espaços temporais distantes


Estamos no Mosteiro Namjial, em Darahmsala


Um pauzinho de incenso está a arder e um aroma preenche todos os recantos da sala. Fico a saber que o incenso a arder no pauzinho tem a função de marcar o tempo como se fosse um relógio. Mede o tempo. Nunca me tinha passado pela cabeça que o tempo pudesse tomar a forma de aroma. O aroma do incenso intensifica o aroma do tempo. O aroma acalma e liberta.

Qualquer espírito que se esvazie do inútil tem acesso a um tempo bom. Quando se está em repouso, quando se recolhe em si mesmo, aparece o tempo bom. Lá fora o aroma é de cedros, enquanto uma lagartixa corre veloz por cima de um penedo. Agora estávamos num outro tempo, o dos Himalaias. Darahmsala ficava a muitos quilómetros de distância de Swann, onde Marcel Proust reencontrara o Tempo. E a outro tanto da Floresta Negra, onde Heidegger terá encontrado o Ser do Tempo.


Tédio de sobra ou a contemplação carinhosa do tempo. O romance do tempo perdido de Proust é uma história de paixão. O caminho que separa o lugar de partida da meta é um intervalo de angústia kierkegaardiana. A temporalidade narrativa de Proust pode definir-se como uma reacção a uma época de pressa. A busca do tempo perdido de Proust é uma reacção perante a progressiva destemporalização do Dasein, que o dissocia. Por essa altura,1927, aparecia nas livrarias o Sein und Zeit de Martin Heidegger.

Há muitas coincidências nisto tudo: de um lado a areia a correr na ampulheta do psiquiatra; do outro lado a água a correr no relógio D'Água. E a editora – que publicou o livro em que o escriba se inspirou - O Aroma do Tempo, um ensaio filosófico sobre a arte da demora, de Byung-Chul Han – é a Relógio D'Água.


Byung-Chul Han nasceu em Seul, em 1959, onde estudou Metalurgia. E em 1989 emigrou para a Alemanha sem saber sequer uma palavra de Alemão. Mas foi estudar filosofia para a Universidade de Friburgo, onde Heidegger aprendeu felizmente e ensinou infelizmente. Mas por teimosia Byung-Chul quis doutorar-se nada mais nada menos em Martin Heidegger. Depois foi para a Escola Superior de Desenho de Karlsruhe ensinar filosofia e teoria dos meios de comunicação. Aqui teve como colega Peter Sloterdijk com quem travou animadas polémicas. E daqui foi para Berlim ensinar filosofia na Universidade das Artes.

A crise do Tempo, mais do que relacionada com a aceleração, tem mais a ver com a sua dissincronia descontínua. Foi preciso ir para Darahmsala para revitalizar a vida contemplativa. A crise temporal, só será superada, no momento em que a contemplação carinhosa da angústia na vida activa, acolha de novo no seu regaço a vida contemplativa.


Sentemo-nos no chão. Poderia ser melhor sentarmo-nos num café de Santa Bárbara, é uma pastelaria que tem uma esplanada com mesas ao ar livre, em frente de uma lojeca que se chama Pic-Pic, e ao lado de uma sapataria onde se consertam malas e sapatos, isso é que era bom, a esta hora há sempre clientes que comem gelados e tomam café, num dia como este hoje, lindo dia, até os velhotes que moram nas águas-furtadas da praça Mouzinho de Albuquerque, mais conhecida por Campo Novo, deviam ir para a rua, se não fosse a Covid, ainda que levassem o chapéu era perigoso, eles sempre a cuspir para o chão e a jogar às cartas nos bancos do jardim de Santa Bárbara, estás mesmo a ver, sempre a resmungarem uns com os outros por causa da manilha. É a sua maneira de ser, deixa lá, se não fosse a Covid eles andariam por lá. Se lá estivéssemos descíamos pelo jardim de Santa Bárbara até à Câmara Municipal e depois dávamos uma guinada à esquerda e subíamos até à Sé, onde encontraríamos os primeiros bandos de turistas de passagem, de máquina fotográfica ao pescoço, alguns a tirar fotografias às torres da Sé, proporcionando uma perspectiva estranha, parecendo inclinarem-se prestes a desabar sobre os telhados das casas de comércio ao lado, agora bares e snack-bares, faz-me uma certa impressão, nos tempos do liceu, na direção da esplanada de um restaurante que não deixa ver, havia um colégio de freiras, vem-te sempre isso à cabeça quando passas lá em frente, vinhas esperar uma rapariga que se chamava Cristina, há já uma infinidade de tempo, mas agora não te apetece calcular quanto, eras outra pessoa, que estranho, mas a memória ficou nesta pessoa que és agora.

A época dos novos média é uma época de implosão. O espaço e o tempo fazem estalar o aqui e o agora. Tudo se des-distancia para fugir ao tédio, para ocupar o tempo. Estamos sempre ocupados. A demora contemplativa pressupõe que as coisas duram. É impossível alguém demorar-se detidamente perante uma sucessão veloz de acontecimentos em imagens.

Diálogo entre Civilizações: orgulho e utopia


Apesar de a História ser um livro aberto que está permanentemente a ser reescrito, o seu único apoio ainda devem ser os factos tanto quanto possível. Mas deve-se atender que factos e realidade não são a mesma coisa. A realidade é tudo o que há, antes de nos debruçarmos sobre ela com a nossa linguagem. Mas nem tudo o que há é captado pela linguagem. Quando um místico nos fala no inefável, é disso que ele nos está a falar. Inefável, literalmente significa que não se pode exprimir por palavras. E linguagem aqui, bem entendido, é todo um sistema mais vasto que a língua, a língua que falamos, seja ela a língua nativa, sejam outras línguas. A língua nativa é normalmente a língua dos sonhos e preferencial do pensamento. Pensamos, comunicamos, falamos, e até sentimos os sentimentos, passe a redundância. Por conseguinte: factos - é tudo aquilo que cabe dentro da linguagem de homens e mulheres. A linguagem é um campo simbólico onde circulam os factos.

Ressalvados os mal-entendidos em que a linguagem é fértil, é difícil anular os efeitos entre preconceito e suscetibilidade na análise histórica dos factos, porque se no diálogo temos de um lado o legítimo orgulho daqueles que glorificam os feitos dos seus antepassados, do outro lado temos aqueles que, não tendo um passado histórico do qual se possam orgulhar, não porque não o tenham, mas porque a linguagem não a inseriu na História, é legítima a utopia de um dia também se sentirem orgulhosos.

As sociedades europeias e a cultura que elas consomem ainda se baseiam na lei das certezas, em que a ciência progride cada vez mais no sentido da verdade absoluta, uma só verdade. Assim, a abertura a mundos possíveis nem sequer é imaginável. E essa certeza ocidental, que é a lei do mundo, constitui o pecado original da modernidade, porque quer queiramos, quer não, nós os ocidentais, temos de admitir que tanto o mundo como o pensamento não são “Aquela Máquina”. O mundo e o pensamento são instáveis, são do domínio do Caos. Um Universo sem Caos seria um Universo morto. 





A Cultura é por natureza instável, porque instável também é a natureza humana. Mas é na cultura que as pessoas reveem a sua identidade. Portanto os europeus reveem-se na sua cultura, no seu estilo de vida que tem como atributos principais a democracia, a liberdade e a justiça. E é da liberdade que emerge a Arte e a Ciência. O povo que se orgulha da sua cultura dá exemplo de unidade, mesura, entendimento e reflexão sobre todas as coisas. E não exatamente uma prova de superioridade moral ou intelectual, ou outras excentricidades mentais dos "artistas".

A utopia, que se estendeu à funcionalização da União Europeia, é uma utopia mundialista, numa deriva anti-identitária que se opõe ao patriotismo identitário das nações. É uma utopia inspirada nas teses de Habermas que consistem em separar a ideia de cidadania da de nação e de povo, ancorada numa constituição universalista. Uma Europa não baseada no seu património cultural próprio, mas no princípio abstrato de uma cidadania transnacional cosmopolita, sem limites estabelecidos e sem raízes.

Toda a sociedade minoritária vive como que ameaçada pela consciência da diferença; consciência que, ao reduzir-se ao seu argumento mítico, se envolve em conflitos de marginalidade. O mundo da Arte é dos mais sensíveis a esta redução, dado que por natureza, pela sua liturgia estética, e pelos seus rituais impregnados de contradição, estão condenados à marginalidade das minorias. E é como parte duma sociedade minoritária que a comunidade artística actua de maneira provocadora, porque sabe que toda a oposição, ao exercer um atrativo de teor afrodisíaco irresistível, é incentivadora de uma temeridade paladínica. E essa atitude tem um efeito paradoxal, porque a sua aparente atratividade contém, na verdade, uma vontade de exclusão. Em boa verdade, é da genética do “artista” não querer ser assimilado. Toda a marginalidade inclui o desejo de evitar a reconciliação. Não porque ela contenha algo de pejorativo, mas porque a reconciliação implica conceder, ceder a consensos que fragilizam a razão de ser do artista. Não seria preciso dar aqui exemplos, mas posso evocar um Gil Vicente, um Hieronymus Bosch, ou um Caravaggio.

A integração das minorias oferece um problema cruel. Seria desprezar a realidade do ser humano consentirmos que as diversas opressões produzidas na História fossem apenas obra dum obscurantismo e da dureza do coração dos homens. As épocas de maior perturbação no campo sociológico – escravatura, racismo, sexismo – corresponderam a movimentos paralelos de grande desenvolvimento cultural.

Todas as minorias conhecem um processo de marginalidade, independentemente das causas que queiramos apurar. Mas uma que podemos identificar é o conservadorismo das coletividades conformistas, pouco dadas à mudança. O afrontamento muitas vezes é evitado com slogans “palavra-divisa”, como por exemplo, a defesa da democracia. Porque uma coisa é certa, as minorias sociais funcionam como factores de inovação. E a inovação é o ingrediente principal das rupturas de status quo. E assim, o resultado é sempre imprevisível numa cadeia de tentativas e frustrações.

É claro que há momentos em que as sociedades passam por tempos de acalmia, em que os artistas beneficiam das correntes piedosas que atingem temporariamente todas as sociedades. Como dizia Agustina Bessa Luís: “a piedade é uma fé sem mística. Se pudéssemos traçar uma linha imaginária para qualificar a evolução histórica da cultura, encontraríamos um dado radical – a evolução histórica ignora o dilema. Mas para o indivíduo que actua o dilema existe. A cultura tem uma dupla existência. O dilema faz nascer a ética. Eis onde começa a linha imaginária que põe a escolha duma cultura.”

A Cultura não é apenas a emancipação do Homem face à Natureza. Relembro que a opção das maiúsculas nos termos [Homem e Natureza] tem como objetivo satisfazer o aplanamento homem/mulher; e para chamar a atenção que Natureza com maiúscula é maior que a matéria de que é feita a sua parte material. A Cultura é uma herança. E é a consciência dessa herança que determina as continuidades e as perseveranças sobre aquilo a que chamamos ética. É no diálogo entre orgulho e utopia que se coloca o dilema da escolha, numa dialética entre o bem e o mal.

Para abordar a questão da Cultura, não podia ter deixado de aflorar, pelo menos no início, a importância da língua em que as culturas comunicam. É muitas vezes ela a marca principal de uma determinada identidade cultural. A par das crenças religiosas, a língua é a principal fonte da sabedoria que muitos povos almejam alcançar como utopia das utopias. É através da língua que uma sociedade se pode aglutinar sem grandes equívocas interpretativos que são a fonte principal da desconfiança do Outro. É na língua que cada homo sapiens sapiens sacer, nos termos de Giorgio Agamben, se encontra consigo mesmo. Sacer remete para sagrado, mas numa interpretação muito própria de Giorgio Agamben. Descobrir com ela as qualidades objetivas do Universo já é outra coisa. É coisa para um outro homo sapiens sapiens, com o acrescento de ciborgue. A língua se cifra no simbolismo dos arquétipos. E é tanto mais rica e expressiva quanto as imagens colectivas do inconsciente são despertadas para os laços morais entre as pessoas. É na língua-mãe, ou língua nativa, que apertam os laços afetivos entre as pessoas, a língua como música melodiosa que a criança ouve enquanto mama do leite materno.

A língua na corrente das civilizações como veículo dos ritos que se conhecem à distância no lampejo de um vocábulo, na derivante de um significado, serve para congregar a acção conjunta de um povo na consolidação da sua identidade duradoura. Parafraseando de novo Agustina, a língua portuguesa é um mundo de artes e de funções, onde se alojam moradas que alimentam os dialetos que contam as suas lendas. Uma língua quanto mais aperfeiçoada como um ser coletivo, mais garantias oferece de desenvolver um estilo.


quinta-feira, 25 de junho de 2020

A iconoclastia e os iconoclastas 2020


Este texto foi inspirado depois de ter lido a crónica de Henrique Monteiro no Expresso do dia 24 de junho, falando dos iconoclastas simplistas históricos, a propósito da turba que nos últimos dias tem varrido o mundo a derrubar as estátuas icónicas dos "brancos", movimentada por activistas antirracistas do espectro mais extremista.
[…] A académica e especialista em racismo (que é tão especialista que acha que é impossível um branco não ser racista) Robin DiAngelo, professora de ‘Estudos de Branquitude’ (em inglês ‘Whiteness Studies’), afirma que o racismo estrutural ou sistémico está em todos os brancos, e que apenas os brancos são racistas. […] Por isso é de apoiar com todas as forças o derrube não só desse Churchill e desse Padre António Vieira (cuja estátua, por motivos estéticos, poderia levar a que se derrubasse também a do cauteleiro na mesma praça) como, sobretudo, a de Voltaire em Paris, que ficou pintada de vermelho porque ele beneficiou do tráfico negreiro. Basta, aliás, ver que ele foi amigo do peito de Benjamin Franklin, que, sendo um bandido, se tornou importante na independência americana, só para disfarçar. A História é muito simples. Há os que vão na corrente – a nossa – e depois existem os outros, que são para deitar abaixo. A história do racismo é uma estratégia de poder como todas, mas infelizmente nada democrática. Aliás, copiada dos totalitarismos. Enfim, a iconoclastia não tinha estes píncaros desde o séc. VIII, quando os bizantinos começaram a destruir símbolos religiosos. […] Henrique Monteiro

Consultando o dicionário, a doutrina bizantina dos séculos VIII e IX começou por repudiar a representação e o culto de imagens sagradas. Assim, o iconoclasmo passou a ser qualquer doutrina ou movimento que se opunha ao culto de imagens, destruindo estátuas e imagens religiosas. E metaforicamente, passou a ser a atitude de quem ataca ou rejeita valores, práticas, crenças ou instituições estabelecidas. 

O Mundo do Silêncio, realizado pelo célebre Comandante Cousteau e Louis Malle em 1956, foi um filme que ganhou um Óscar para melhor documentário e a Palma de Ouro de Cannes. O filme retrata uma expedição do navio Calypso no Mediterrâneo. Este filme vem a propósito do que vou escrever a seguir. Se o filme fosse de hoje, ou estriasse hoje, não sei o que aconteceria, mas de certeza que não receberia nenhum prémio, antes pelo contrário, seria muito criticado. A equipa de Cousteau mata acidentalmente duas baleias, e num recife uma explosão, com propósitos científicos, causa a morte de um número incontável de peixes. Além disso investem sobre os tubarões que se aproximam de um bebé-baleia, arrastando-os para bordo e batendo-lhes até à morte, com feroz prazer selvagem e repetindo que “ninguém gosta de tubarões”. Há certamente belas imagens de golfinhos e uma bela valsa com um cherne, que inspirou Alexandre O’Neill, para o poema “Sigamos o cherne!”: 

Sigamos o cherne, minha amiga!
Desçamos ao fundo do desejo
Atrás de muito mais que a fantasia
E aceitemos, até, do cherne um beijo,
Senão já com amor, com alegria…
Em cada um de nós circula o cherne,
Quase sempre mentido e olvidado.
Em água silenciosa de passado
Circula o cherne: traído
Peixe recalcado…

Sigamos, pois, o cherne, antes que venha,
Já morto, boiar ao lume de água,
Nos olhos rasos de água,
Quando mentido o cherne a vida inteira,
Não somos mais que solidão e mágoa…

A identificação de um indivíduo animal – exactamente como na arte, embora de um modo mais arcaico e espontâneo – é o modo como relacionamos entre si as formas, as cores e os movimentos e nessa relação descobrimos uma secreta harmonia. E não há como essa identificação para nos dar o sentimento da existência. Não há nenhum animal que, cuidadosamente observado, não nos dê esse sentimento. Não por intimidade, mas pelo seu exacto contrário: a distância. A distância para com um mundo que não é o nosso e nunca poderá ser. É isso que fascina. É a distância, não a proximidade, inclusive a proximidade dos animais domésticos. É como se a nossa existência, por não podermos fazer dela o que quisermos, até porque nem sequer a conseguimos compreender, nos suscitasse um mal-estar de algum modo insuportável. E é verdade que contemplar também cansa. A certa altura, alguma acção é necessária. Até um membro fundador da Liga dos Portugueses Contemplativos o reconhece sem dificuldades. Mas para isso temos a nossa querida humanidade. É o que diz o poema de Alexandre O’Neill. 

E como isto anda, de facto, tudo ligado, continuo a avançar com novos encadeamentos, na medida em que Antonio Tabucchi se inspira no poema de O’Neill “Sigamos o Cherne”, para construir a narrativa de um conto intitulado: “Noite, mar ou distância”, que faz parte da publicação “O Anjo Negro”, um conjunto de seis contos, que de algum modo retratam o lado negro da alma humana: a cobardia, a traição, a prepotência e a vaidade - e do qual deixo aqui uma pequena amostra. Este conto passa-se em Lisboa, em 1969, uma Lisboa sombria, decrépita e pidesca, da ditadura salazarenta:
[...] E foi nessa altura que apareceu o cherne. Era um cherne gordo, luzidio, oleoso, que saltava de profundezas tão escuras como a escuridão do automóvel que ameaçava as vítimas daquela noite: da janela do carro, junto com uma mão inchada de dedos grossos apareceu a cabeça de um cherne que ofegava. Que estranho, uma mão e uma cabeça de cherne à janela de um automóvel na rua D. Pedro V numa noite de outubro de mil novecentos e sessenta e nove. […] Não se faça de herói, respondeu o homem, o meu dever é dar lições de vida, e se o senhor já conhece a lição de cor, reveja-a, que só lhe faz bem. Falou assim, mas pareceu mais calmo, menos histérico, e de qualquer modo agora tratava Tadeus por senhor e nesse momento voltou a guardar a pistola no bolso e disse a Tiago que fosse buscar os documentos, porque evidentemente conhecia o carro de Tiago. Tiago voltou e disse: aqui estão. O homem examinou-os com atenção, restituiu-lhos e tudo pareceu acabado. Então boa-noite, meninos, disse Tadeus; evidentemente já não podia mais, estava exausto e achava agora inútil a sua presença: partiu a pé, de mãos nos bolsos, quase com uma certa arrogância, pelo menos assim pensou aquele que estava a imaginar como se teriam desenrolado os acontecimentos daquela noite. E quando Tadeus já ia longe, na esquina da Rodrigo da Fonseca, mesmo em frente do talho judaico, o homem tirou de novo a pistola: voltem a entrar no carro. Sentaram-se os três apertados no banco de trás e o homem, de pé, lá fora, disse: agora oiçam-me bem, porque a lição de política só agora é que vai começar. Primeira regra da lição de política: amar o seu país. E para amar o seu país sabem o que é preciso? Não sabem, porque são três comunistas piolhosos, ou democratas, tanto faz. Muito bem, eu digo-lhes o que é preciso. É preciso ódio. Ódio para defender a nossa civilização e a nossa raça. E sabem como se reconhece uma verdadeira civilização e uma verdadeira raça? Reconhece-se a saber dominar outra raça. Concludentemente, para dominar outra raça é preciso antes de mais dominá-la sexualmente, e assim fez o abaixo-assinado cidadão português para todos os efeitos, em serviço em Luanda e Lourenço Marques nos anos da graça de 1964-1968. [...]



Na sua nota introdutória, Antonio Tabucchi define assim os anjos que lhe inspiraram estes contos: «Os anjos são seres difíceis, principalmente os da espécie de que se fala neste livro. Não têm penas macias, têm um pelame ralo, que pica.» Escritor italiano [Pisa 1943 – Lisboa 2012], foi professor de Língua e Literatura Portuguesa na Universidade de Génova; e director do Instituto Italiano di Cultura em Lisboa. Dedicado ao estudo da figura de Fernando Pessoa, produziu ensaios sobre este autor e traduziu obras suas. Em 2001, um artigo que escreveu para o jornal francês Le Monde e que foi traduzido pelo jornal espanhol El País (acerca da liberdade de expressão), fez com que António Tabucchi fosse galardoado com o Prémio de Liberdade de Expressão Josep Maria Llado, na Catalunha. 

quarta-feira, 24 de junho de 2020

As sociedades tomadas pelo medo e pela autocensura


Embora insetos, como as abelhas, se reconheçam em grupo, não reconhecem os elementos do grupo a título individual. Ou seja, a este nível não existe personalidade. Mas todos os primatas reconhecem os elementos do grupo a título individual. É comum nos macacos dois ou mais indivíduos fazerem alianças e ajudarem-se mutuamente contra outros membros do grupo com quem entram em conflito, não apenas ao nível do parentesco, mas também fora dele. Os primatas guardam recordações das relações interpares anteriores.

A distância dos humanos em relação aos outros primatas, no que diz respeito à cultura, é enorme. A superioridade dos humanos em relação aos macacos na aprendizagem e criação de culturas começa desde logo pelas características dos seus genes, ainda que as diferenças dos seus genomas seja mínima. O maior contributo, para a diferença significativa que existe entre o grau de complexidade das sociedades humanas e das sociedades de chimpanzés, é dado em primeiro lugar pelos genes. E só em segundo lugar uma pequena parte se deve à aprendizagem e aos factores externos do meio ambiente.

Juízos de valor não fazem parte da neutralidade científica. Por isso também não faz parte da ciência qualquer cedência a certos princípios de correcção política, que a iniba de dizer que os cérebros humanos não são tábuas rasas, que proporcionem a todas as pessoas por igual a mesma capacidade de aprendizagem de tudo o que a experiência lhe possa dar. Einstein e Leonardo foram aquelas pessoas excepcionais que sabemos, devido mais às propriedades dos seus cérebros receitadas pelos genes, do que pela aprendizagem adquirida no seu meio ambiente, ainda que não sejam de desprezar as oportunidades dos contextos e contingências que puderam aproveitar. Uma forma de aprendizagem humana é observacional, tanto ao nível das soluções práticas, como ao nível da linguagem. Mas a aprendizagem por observação também se faz noutros animais. O que a espécie humana tem, que os outros animais não têm, é a linguagem, que por sua vez a grande fonte e meio da cultura. 

Um outro aspecto a considerar é o da informação. Ao nível da informação, há muita analogia que se pode fazer entre a informação veiculada pela linguagem, e a informação veiculada pelos genes. Os sistemas genético e linguístico são capazes de transmitir um número indefinidamente grande de mensagens recorrendo à sequência linear de um pequeno número de unidades distintas. Na genética, é a sequência de apenas quatro bases que leva à especificação de um grande número de proteínas. E estas, através das suas interacções, determinam um número indefinidamente grande de formas ao nível da filogénese. Na linguagem, é a sequência de cerca de trinta a quarenta unidades de som diferentes - os fonemas – que constroem um número infinito de palavras, frases e significados.

À semelhança do que se passa ao nível das transições na biologia, o mesmo se passa ao nível das transições entre culturas que vão emergindo ao longo do tempo e de sucessivas sociedades. As sociedades modernas só chegaram ao ponto a que chegaram, chamado mundo global ou aldeia global, porque se foram criando laços de cooperação cada vez mais alargados ao longo do tempo linear. No passado, as sociedades eram mais pequenas, constituídas no máximo por algumas centenas de indivíduos, e com pouca divisão de tarefas para além, talvez, da tarefa entre o homem e a mulher. Mas actualmente as sociedades são constituídas por muitos milhões de indivíduos dependentes uns dos outros devido à especialização e fragmentação extensa das tarefas. Portanto, o que tem de imperar hoje em dia, para o bem e para o mal, é a cooperação entre indivíduos em grande escala por extensos territórios. Mas a cooperação, para funcionar, tem de estar dependente tanto das empatias, como da formulação racional de leis e contratos que satisfaçam o interesse de todos.

O contrato social, que em resumo é do que estamos a tratar, é muito difícil de obter à escala global, uma vez que estão em causa não apenas interesses de ordem material, mas também outros interesses idiossincráticos que abrangem mitos, rituais, e outros compromissos e cumplicidades que foram gerados por longos períodos de tempo, selando de forma permanente lealdades de grupo muito fortes. E é por isso que emergem de tempos a tempos irracionalidades movidas por interesses próprios anti-sociais, que ao conduzirem a manifestações de carácter xenófobo, acabam por levar a fenómenos de inevitável destruição social.

Esta avalanche de atentados às pessoas nas sociedades ocidentais, seja aos vivos, seja através de ataques às estátuas dos mortos, está a inquietar muitas pessoas no Ocidente. A questão central coloca-se em saber em que medida as sociedades ocidentais continuam a ser capazes e a estar dispostas a preservar o tipo de civilização em que vivem construída ao longo de muitas gerações. E de continuar a educar os indivíduos necessários para manter os pilares fundamentais do seu modo de vida. Hoje, são cada vez mais os autores especializados nestas questões sociais a diagnosticar, sobretudo nas sociedades europeias, pulsões negativas de tipo depressivo que as podem arrastar para um estado social consequentemente suicida. Uma sociedade, dominada pela rejeição maciça e voluntária dos seus próprios valores fundadores, não pode sobreviver por muito tempo. Alguns investigadores apontam a globalização como um factor acelerador da desconstrução dos valores tradicionais.

O ponto central do problema, colocado aqui por tais analistas da sociologia, consiste num certo tipo de doença da identidade. E as elites e principais dirigentes políticos pouco têm feito para colmatar essas necessidades, entre as quais avulta a falta de segurança dos cidadãos e de esperança no futuro. Verifica-se uma falta de vontade e de coragem dos actuais dirigentes do centro democrático europeu para dar uma resposta consistente e satisfatória a essas necessidades. O que é muito mau porque só vai restar a esses cidadãos entregar o seu voto de confiança a demagogos populistas das franjas extremas de um lado e de outro do espectro político partidário, cujas soluções são sempre radicais e violentas. 


Concluindo, o que é mais preocupante, é o facto de o verdadeiro perigo não estar do lado dos supostos inimigos do ocidente branco, ainda que jogue a favor dos seus próprios interesses, mas do lado de dentro do próprio Ocidente. O problema está no complexo de culpabilização, que é vantajoso para os seus inimigos, uma vez que se podem alimentar dele. O que se passou nos anos de 1990 com a fragmentação da ex-Jugoslávia, tem servido de caso de estudo sociológico, e de modelo para perceberem como funciona o ódio e a crueldade das guerras tribais entre vizinhos, guerras essas que continuam a existir nos dias de hoje. Como é que o instinto humano evoluiu tão pouco, ao ponto de perpetuar esse tipo de guerras tribais? Como é que se podem transformar mitos e rituais antigos e obsoletos em mitos e rituais que em vez de gerarem ódio gerem tolerância. Que em vez de xenofobia gerem cosmopolitismo mantendo uma diversidade cultural saudável. Que rituais são esses que é preciso desenvolver para que não tenhamos de pagar um alto preço pela onda de desagregação social que estamos a ver passar à frente dos nossos olhos?

sexta-feira, 19 de junho de 2020

Origem da vida


Ainda não há certeza quanto à origem do que chamamos vida. Não há certeza se ela começou: desde o princípio, exclusivamente aqui neste planeta a que chamamos Terra, e que James Lovelock a rebatizou de Gaia; ou se foi trazida para cá por um meteorito, ou mais do que um, entre os muitos que desde a sua formação caíram na Terra. Não é que isso faça alguma diferença para desvendar o seu mistério, mas pelo menos ainda o torna mais grandioso. Portanto, em teoria, não se pode descartar a hipótese de ela ter vindo de outro lado há mais ou menos quatro mil milhões de anos. Quatro mil milhões de voltas completas que a Terra deu, entretanto, em torno do Sol. Seja como for, durante esse tempo, que à escala do tempo de vida de uma criatura humana parece uma eternidade, gerou-se uma diversidade de formas de vida imensa, um número incalculável delas já extintas.

Os múltiplos estudos científicos - dos processos que teriam permitido aos elementos químicos que compõem os organismos atingirem o grau de organização estrutural e funcional que caracteriza a vida - têm envolvido não apenas biólogos, mas cientistas de outras áreas como a física, a química e a astronomia. Os modelos propostos para a origem da vida são tentativas de recriar a história desta evolução e é importante destacar que não existe, na maioria das etapas deste processo, nenhum consenso entre os cientistas. 

A primeira questão que se coloca prende-se com o requisito fundamental, que diz respeito à disponibilidade dos elementos químicos essenciais à vida: carbono, hidrogénio, oxigénio, azoto, fósforo e enxofre. Ora, estes elementos existem em abundância por todas as galáxias. Por outro lado, a natureza das reações bioquímicas conhecidas exige que as temperaturas reinantes permitam a existência de água em estado líquido. O facto de que nos organismos actuais todas as funcionalidades presumem a existência de compartimentos individualizados – as células – demonstra que a celularidade foi certamente um facto decisivo na história primitiva dos sistemas vivos. As primeiras células emergiram da sopa primordial. Dos fósseis mais antigos que foram encontrados até 2017, que é a evidência directa da vida na Terra, deduz-se que a vida na Terra apareceu entre os 3,8 a 4,3 mil milhões de anos atrás. Para sobreviver num ambiente primordial seria necessário que estes organismos primitivos fossem capazes de sintetizar os seus próprios nutrientes. E outro requisito necessário para a continuidade da vida teria de ser a possibilidade de transmissão de informação.

A descoberta, em 1979 - na Fossa das Galápagos (Corliss, Baross, Hoffman) - de um rico ecossistema alimentado por compostos provenientes da atividade hidrotermal e portanto, independente dos processos fotossintéticos, serviu de base à hipótese de uma origem autotrófica para a vida. Há, contudo, abordagens mais abstratas acerca da origem da vida. Ao invés de partirem da natureza dos constituintes químicos dos sistemas vivos, guiam-se, sobretudo, pelas suas propriedades funcionais. Um dos modelos mais conhecidos nesta concepção é o dos hiperciclos, propostos por Manfred Eigen, como protótipos dos ciclos metabólicos primitivos. E Kauffmann, com base em modelos puramente matemáticos, defende que coleções suficientemente complexas de compostos químicos podem vir a "cristalizar" ciclos metabólicos. A ideia de que o funcionamento dos processos metabólicos atuais pode fornecer pistas importantes para a compreensão da bioquímica dos primeiros seres vivos é a base de uma visão metabólica da origem da vida, onde se destacam os estudos de Harold Morowitz e Christian de Duve

Segundo a hipótese de evolução prebiótica delineada por Morowitz, as primeiras protocélulas formaram-se há cerca de 3,9 mil milhões de anos, quando o planeta arrefeceu com oceanos baixos, quando as primeiras rochas já se tinham formado e o carbono já se combinara com os outros elementos fundamentais da vida para constituir uma grande variedade de compostos químicos. Dentre esses compostos havia substâncias oleosas, as parafinas, que são longas cadeias de hidrocarbonetos. A mistura dessas parafinas com a água, e com diversos minerais nela dissolvidos, deu origem aos lípidos; estes, por sua vez, condensaram-se numa diversidade de gotículas e constituíram também películas finas de uma ou duas camadas. Sob a influência da acção das ondas do mar, as películas fecharam-se espontaneamente em vesículas, e assim começou a transição para a vida. 

Depois os químicos descobriram que certas moléculas pequenas, que se ligam a membranas, apresentavam propriedades catalíticas. É provável que tenha sido a entrada do azoto na química das protocélulas a levar à formação desses primeiros catalisadores. Com o aparecimento dos catalisadores, a complexidade molecular aumentou rapidamente, porque os catalisadores criam redes químicas aumentando a velocidade das reacções químicas sem sofrer transformação nesse processo, tornando possível a ocorrência de certas reacções que, sem eles, não aconteceriam. As reacções de catálise são processos importantíssimos e essenciais na química da vida. 

A Acetil-S-Coenzima no metabolismo energético teria sido precedida por compostos derivados da esterificação de ácidos carboxílicos com tióis – os tioésteres. Num estudo de 2015, Sutherland e colaboradores decidiram trabalhar esses produtos químicos retroactivamente para ver se eles poderiam encontrar uma rota para o RNA a partir de matérias-primas ainda mais simples. O cianeto de hidrogénio é abundante em cometas, que choveram de forma constante durante as primeiras centenas de milhões de anos de história da Terra. Os impactos também teriam produzido energia suficiente para sintetizar cianeto de hidrogénio a partir do hidrogénio, carbono e azoto. Ainda existem muitos saltos a serem explicados.

Abiogénese significa a geração da vida a partir da matéria não viva. Actualmente o termo é usado em referência à origem química da vida a partir de reacções em compostos orgânicos originados abioticamente. O consenso científico actual é que a abiogénese ocorreu aproximadamente entre 4,4 mil milhões de anos, quando o vapor de água condensou pela primeira vez na Terra, e 2,7 mil milhões de anos atrás, quando havia uma proporção de isótopos estáveis de carbono, ferro e enxofre. Mas há outras teorias, que admitem a possibilidade ter origem externa.  
A panspermia é a hipótese de que os seres vivos não se originaram na Terra, mas sim noutro ponto do universo, tendo sido transportados pelo espaço cósmico, possivelmente sob forma de esporos. Seus defensores argumentam que o lapso de tempo necessário à evolução da vida seria maior que os 4,5 mil milhões de anos desde a formação da Terra, mas não oferecem nenhuma ideia de onde ou como a vida teria realmente surgido. Observe-se, porém, que a possibilidade de compostos orgânicos simples formados em cometas ou em outros pontos do espaço é aceite por muitos defensores do modelo clássico para a origem da vida. Em 2016, cientistas anunciaram que a nave espacial Rosetta fez várias detecções do aminoácido glicina na nuvem de gás e poeira circundando o cometa 67P. 

A proposição para uma etapa da evolução da vida na Terra chamada RNA world foi feita por Walter Gilbert em 1986. Walter Gilbert, propôs uma etapa na origem da vida que envolvia a existência de moléculas auto-replicadoras constituídas por ARN. O ARN é actualmente um mediador entre o ADN e as proteínas na maioria dos seres vivos, mas Gilbert propôs que nos primeiros estágios da vida, o ARN era o material genético principal. Além de propriedades auto-replicadoras, o ARN tem também actividade catalisadora de reacções químicas. Apenas em 2009 cientistas conseguiram criar ribonucleótidos em laboratório a partir de elementos mais básicos, sob condições provavelmente existentes na Terra jovem. A hipótese do mundo do ARN assume que o ácido ribonucleico foi a primeira forma de vida na Terra. Tendo desenvolvido a seguir uma membrana celular em seu redor, para se converter na primeira célula procariótica. Esta hipótese propõe que o mundo actual com vida baseada principalmente no ADN e proteínas foi precedido por um mundo em que a vida era baseada em ARN.  Apenas posteriormente é que o ADN e as proteínas tomaram conta da vida.

Pela descoberta das ribozimas, moléculas de ARN que possuem actividade catalítica e participam de importantes reacções nas células. Vírus ARN, como é exemplo o SARS-CoV-2, fitas simples de um número pequeno de nucleotídeos, só são capazes de se replicarem à custa da maquinaria de transcrição da célula hospedeira. Há cientistas que lhes chamam fósseis moleculares. Sob o ponto de vista químico e estrutural, no entanto, é difícil imaginar como o ARN se tenha formado de uma maneira não-enzimática. Dessa forma, aponta-se que antes do ARN, as primeiras moléculas que possuíam actividade enzimática e a capacidade de guardar informação, eram polímeros que não deixaram registos fósseis ou remanescentes nas células. Acerca do ADN, também ainda não se sabe tudo. Ele deve ter-se formado já depois de terem surgido as proteínas, uma vez que grande número de proteínas são necessárias para a sua síntese. A formação da desoxirribose é um processo bastante complexo. A desoxirribose, comparada com a ribose, forma cadeias mais estáveis, o que faz com que o ADN possa se alongar sem perigo de se romper. É um depósito mais seguro para a informação genética.

Dando agora um salto qualitativo no processo evolutivo das espécies vivas, e acompanhando os últimos aperfeiçoamentos que têm sido feitos na conceção darwinista da evolução
as mutações constituem apenas uma das explicações do processo-organizativo da vida. A troca de genes e a simbiogénese são também processos de criação de novas formas de vida, um caso de fusão de espécies.  No decorrer dos primeiros dois mil milhões de anos de evolução biológica, as bactérias e outros microrganismos foram as únicas formas de vida na Terra. Tiveram tempo para inventar todas as biotecnologias essenciais à vida: a fermentação, a fotossíntese, a fixação do azoto, a respiração e diversas técnicas de movimentação rápida. A rede planetária de bactérias foi a principal fonte de criatividade evolutiva. A hipótese de um terceiro caminho na evolução deve-se sobretudo a Lynn Margulis - a evolução pela simbiose, com implicações profundas para todos os ramos da biologia: organismos diferentes a viver em íntima associação uns com os outros e, até uns dentro de outros. Margulis, porém, foi um passo além e propôs a hipótese de que simbioses prolongadas, envolvendo bactérias e outros microrganismos, que viviam dentro de células maiores, teriam criado formas multicelulares de vida. Essa hipótese revolucionária foi proposta por Margulis em meados da década de 1960 e transformou-se já numa teoria plenamente desenvolvida, conhecida agora como "simbiogénese", que postula a criação de novas formas de vida através de arranjos simbióticos permanentes como o principal caminho pelo qual evoluíram todos os organismos superiores. Quando certas bactérias pequenas entraram em simbiose com células maiores, o resultado foi um passo evolutivo gigantesco com a ascensão do reino animal e vegetal. 

O mapeamento do genoma humano veio mostrar que alguns dos genes humanos são os mesmos das bactérias. Toas as inovações conceptuais e metodológicas que se operaram depois de Darwin, no contexto da teoria da evolução, trouxeram uma visão diferente, não no tipo de "acaso e necessidade", mas uma visão sistémica em que o princípio fundamental da vida é a auto-organização que também inclui no conceito o processo cognitivo. Viver implica ter que conhecer o mundo, ou o ambiente externo, para viver. As interacções de um organismo vivo - vegetal, animal ou humano - com o seu ambiente são interacções cognitivas. Assim, a cognição é um atributo inextricável da vida . A mente - ou melhor, a actividade mental - é algo imanente em todos os níveis da vida. Este conceito é daqueles conceitos a que se aplica aquela frase muito batida: “de início estranha-se, mas depois entranha-se”, porque é uma expansão radical do conceito de cognição e, implicitamente, do conceito de mente. De acordo com essa nova conceção, a cognição envolve todo o processo da vida - inclusive a perceção, as emoções e o comportamento, e nem sequer depende necessariamente da existência de um cérebro e de um sistema nervoso. 

Convém recordar que a cognição não é a representação pura de um mundo que existe independente e por si, mas antes a contínua produção de um mundo através do processo de relação que é a vida. As interacções de um sistema vivo com o seu ambiente são interacções cognitivas, e o próprio processo do viver é um processo de cognição. É claro que não é fácil, não se está aqui a dizer que é fácil compreender de que maneira surgem as experiências subjetivas a partir de uma rede que, no mínimo, para simplificar, agrega duas redes: a rede nervosa e a rede imunitária. Porque para o corpo se defender da invasão de uma bactéria ou de um vírus, o processo do sistema imunitário não é mais do que um processo cognitivo. Assim como para nos defendermos da agressão de um outro homem, ou grupo de homens, o sistema nervoso com o cérebro a coordenar, não faz outra coisa que não seja conhecer a verdadeira perigosidade do inimigo. Todo organismo vivo se renova constantemente, na medida em que as suas células se dividem e constroem estruturas, na medida em que os seus tecidos e órgãos substituem as suas células num ciclo contínuo. Apesar dessa mudança permanente, o organismo conserva a sua identidade global, o seu padrão de organização. Mas há um outro tipo de mudança estrutural num sistema vivo, que é aquele que cria novas estruturas - novas conexões numa rede autopoiética. Essas mudanças, que não são cíclicas, mas seguem uma linha de desenvolvimento, também ocorrem continuamente, quer por via das influências ambientais, quer como resultado da dinâmica interna do sistema. 

A premissa básica do que se vem explanando é: tudo está interligado, o sistema nervoso influencia o sistema imunitário, e o sistema imunitário influencia o sistema nervoso, os principais sistemas da nossa faculdade de conhecimento e de consciência. E apesar de esta premissa ser intuitiva e fundamental, a ciência moderna só muito tarde, e ainda em dificuldade, incorporou esta realidade, porque o seu radicalismo quanto à independência epistemológica da superespecialização tem dificultado a comunicação interdisciplinar. Ora, tal compreensão só se fará completamente fazendo investigação dos dois domínios de forma interdependente. O estudo da consciência subjetiva é feito por um grupo muito heterogéneo de especialidades, que divergem em muitos aspetos há muito tratados pelos filósofos, que pese a verdade, também foram apanhados nas malhas do paradigma científico moderno. A heterogeneidade tem a ver com os aspetos epistemológicos, metodológicos e ontológicos da investigação científica. Ora, o que aconteceu também com a modernidade foi que os filósofos também se especializaram. E por isso temos filósofos que se dedicam apenas à epistemologia e filosofia da ciência. E dentro dos filósofos da ciência, há alguns que apenas se dedicam à filosofia da biologia. E por aí fora. A ciência moderna levou tempo a aceitar que a Terra, na sua totalidade, que inclui matéria inerte, matéria viva e consciente, ou seja - matéria, energia, vida e mente, é um sistema que se regula a si próprio, comportando-se como uma rede auto-organizada e congregada. E descobriu demasiado tarde que essa auto-regulação está a falhar - em que o sistema terrestre se está a aproximar rapidamente do estado crítico que coloca em perigo todas as formas de vida - em parte devido ao tipo de vida humana, quer por excesso tecnológico, quer por excesso de população que de certo modo só foi possível graças à tecnologia.