quarta-feira, 28 de setembro de 2022

Schopenhauer




Schopenhauer foi talvez o primeiro e principal filósofo moderno a colocar no centro da sua obra a categoria abstrata da 'vontade em si', independente desta ou daquela vontade particular. É esta poderosa abstração que a psicanálise utilizaria mais tarde, embora seja provável que Freud, que dizia considerar Schopenhauer um dos seis maiores homens que já viveram, não tenha conhecido a sua obra antes de ter desenvolvido as suas principais teorias. Assim como a sociedade capitalista está se desenvolvendo nesta época ao ponto em que será possível a Marx extrair dela o conceito-chave do trabalho abstrato, uma operação conceptual só possível com base em condições materiais determinadas, assim o papel determinante e a repetição regular do desejo na sociedade burguesa permite agora uma dramática mudança teórica: a construção do desejo como uma coisa em si mesma. Trata-se de um acontecimento metafísico especial, ou uma força com identidade própria, comparando-se com ordens sociais anteriores em que o desejo ainda é fortemente particularizado, muito intimamente ligado às obrigações tradicionais ou locais para que possa ser reificado desta maneira precisa. 

Com Schopenhauer o desejo torna-se o protagonista do teatro humano, e os sujeitos humanos simplesmente seus portadores obedientes ou seus servos. É resultado da perceção de um infinito de desejo numa ordem social em que o único fim da acumulação é acumular mais. A Vontade de Schopenhauer, como uma espécie de propósito sem propósito, é, neste sentido, um travesti selvagem da estética kantiana, um artefacto falso e inferior. Poderíamos perfeitamente passar sem a sua existência.

O intenso pessimismo de Schopenhauer, é, em certa medida, o destino da grande maioria dos homens e mulheres que tem sido de sofrimento e trabalho insensato. Schopenhauer pode não estar com toda a verdade, mas possui uma parcela maior dela do que os humanistas românticos que ele pretende criticar. Qualquer visão da humanidade mais esperançosa que não encare esta face particular tende a se enfraquecer. O relato dominante da história até hoje tem sido certamente este de massacres, miséria e opressão. A virtude moral nunca floresceu como força decisiva em qualquer cultura política. Em qualquer lugar em que esses valores tiveram alguma força precária, eles sempre estiveram confinados a uma dimensão de privacidade. As monótonas forças dirigentes da história têm sido o ódio, o desejo e o domínio; e o que há de mais escandaloso nesta herança sórdida é que é possível perguntar às vidas de inúmeros indivíduos se eles não estariam melhor mortos. 

Qualquer parcela de liberdade, dignidade e conforto sempre ficou restrita a uma pequena minoria, enquanto a indigência, a infelicidade e o trabalho árduo foi sempre o quinhão da grande maioria. Entrar para uma fábrica de tecidos ou qualquer outra aos cinco anos de idade e sentar lá todos os dias, primeiro dez, depois doze e finalmente catorze horas por dia, a fazer sempre o mesmo trabalho mecânico, é pagar muito caro pelo prazer de respirar. As mutações dramáticas da história humana, suas periódicas ruturas e revoluções, têm sido, num sentido, meras variações no tema consistente da exploração e da opressão. Nem poderia qualquer transformação futura, apesar de radical, afetar o passado desse destino de modo substancial. 

Não podemos chamar de volta o campesinato medieval esmagado ou os escravos assalariados do capitalismo industrial incipiente, as crianças que morreram amedrontadas e desamadas nos barracos miseráveis da sociedade de classes, as mulheres que vergaram as costas sob regimes que as trataram com arrogância e desprezo, as nações colonizadas que ruíram sob um opressor que as via ao mesmo tempo como sinistras e adoráveis. Não há nenhuma forma literal pela qual as sombras desses mortos possam ser chamadas para exigir justiça daqueles que os oprimiram. O caráter passado do passado é a simples verdade: reescrita ou recuperada como quisermos, os condenados da história passaram e não vão compartilhar de nenhuma ordem social mais compassiva que possamos ainda criar. 

Como Schopenhauer, podemos reter todo o aparato totalizante do humanismo burguês na sua forma mais afirmativa — o princípio singular central informando toda a realidade, o todo cósmico integrado, as relações estáveis entre fenómeno e essência — ao mesmo tempo que traiçoeiramente esvazia suas formas de seu conteúdo idealizado. A noção de Vontade em Schopenhauer consegue, funcionando estruturalmente da mesma maneira que a Ideia hegeliana ou a Força Vital romântica, mas agora reduzida à rapacidade grosseira do burguês médio elevada ao nível cósmico e transformada no princípio metafísico que move todo o universo. O sistema de Schopenhauer aparece no auge do destino histórico burguês, ainda confiante em suas formas essencialistas de unificar, universalizar, mas precisamente nestes gestos, inflando até proporções intoleráveis o conteúdo mesquinho da vida social. Este conteúdo é assim desacreditado pelo próprio movimento que lhe dá um estatuto metafísico. As formas do sistema hegeliano viram-se contra ele com uma vingança; a totalização é possível, mas agora só numa forma puramente negativa.

Para Hegel, o sujeito livre articula uma dimensão universal de consciência (Geist), que está, no entanto, no cerne mesmo da sua identidade como aquilo que faz dela o que ela é. E este princípio transcendental, para ser ele mesmo, tem necessidade da individuação. Schopenhauer preserva esta estrutura conceptual, mas lhe empresta uma torção malévola. O que me faz aquilo que eu sou, a vontade da qual eu sou uma simples materialização, é completamente indiferente à minha identidade individual, que ela usa apenas para a sua autorreprodução sem finalidade. 

Onde então poderemos nos dirigir para conseguir algum descanso nesta busca insaciável que é a própria substância de nosso sangue, de nossas vísceras? A resposta de Schopenhauer aponta para a estética, no sentido menos de uma preocupação com a arte que de uma atitude transfiguradora da realidade. O que é intolerável na existência é que não podemos nunca explodir para fora de nossa pele, nunca despir a camisa de força de nossos interesses mesquinhos. Arrastamos nosso ego connosco em tudo o que fazemos.  A estética, nesse sentido, é uma espécie de mecanismo de defesa psíquica, pelo qual a mente, ameaçada por uma sobrecarga de dor, converte a causa de sua agonia em ilusão inócua. O sublime é assim o mais típico dos géneros estéticos, permitindo-nos contemplar objetos hostis com absoluta equanimidade, serenamente sabendo que eles não vão nos fazer mal. No sublime, o ego paranoide fantasia um estado de invulnerabilidade triunfal, realizando uma vingança olímpica sobre as forças sinistras que o levariam à morte. 

A estética em Schopenhauer é o impulso de morte em ação, embora esta morte seja, secretamente, uma espécie de vida, Eros disfarçado de Tanatos: o sujeito não pode ser inteiramente negado enquanto ele tem ainda prazer, mesmo quando o prazer que sente é o do processo de sua própria dissolução. A condição estética apresenta assim um paradoxo insuperável, como Keats sabia ao contemplar um rouxinol: não há nenhuma maneira em que se possa saborear a sua própria extinção. Assim como todo verdadeiro conhecimento nasce da morte do sujeito, também surgem dela os valores morais; agir moralmente não é agir a partir de um ponto de vista positivo, mas agir a partir de nenhum ponto de vista. O único bom sujeito é o sujeito morto, ou, pelo menos, aquele que pode projetar-se por indiferença empática no lugar do outro. Não se trata de um indivíduo comportar-se com consideração em relação ao outro, mas de explodir para fora de toda a miserável ilusão da “individualidade”, num lampejo daquilo que Walter Benjamin chamou de “iluminação profana”, até a algum não lugar inteiramente para além dele. 

Toda a prática, para Schopenhauer, está no domínio da ilusão: prosseguir em minha piedade por você é ao mesmo tempo diluí-la, encontrar-me, de novo, na confusão do interesse próprio. Só transcendendo inteiramente a categoria doentia da subjetividade, poderia um individuo sentir no lugar do outro, mas essa proposição se autodestrói. Como colocava William Blake, a piedade e a pena são sinais de que a catástrofe já aconteceu e seriam desnecessárias se não fosse assim. Numa sociedade dirigida pelo desejo, onde toda a ação está, de saída, contaminada, a compaixão tem que ser banida para a dimensão da “contemplação estética”. 

Há um valor positivo na sociedade burguesa, mas suas origens são profundamente misteriosas. Como no primeiro Wittgenstein, ele mesmo um devotado discípulo de Schopenhauer, o valor não pode ser encontrado de modo algum no mundo, mas deve ser transcendental. Não há, ao que parece, nenhum modo de se saltar diretamente do facto ao valor, e Schopenhauer é levado assim a uma dualidade indissolúvel entre a câmara de tortura da História, por um lado, e uma noção vagamente a de Hume, de intuição afetiva do outro. Na compaixão pelos outros, escreve ele, reconhecemos nosso “ser mais verdadeiro e profundo”; no entanto, somos advertidos continuamente que nosso ser mais profundo não passa de uma esfomeada vontade.

Schopenhauer é inflexível quanto à incapacidade da filosofia em alterar a conduta humana, e desabona qualquer intenção prescritiva em seus escritos. Não há possibilidade de troca entre o cognitivo e o ético, mantendo-se a eterna inimizade entre a representação e a vontade. No entanto, sua filosofia inteira pode ser lida como uma desaprovação implícita desta afirmação, sugerindo, contra suas intenções conscientes, os modos como facto e valor, descrição e prescrição podem ser mutuamente articulados. Na verdade, a sua dívida com o pensamento oriental aponta para como é etnocêntrica esta dicotomia facto/valor — como ela é consequência de uma história tecnológica da qual é evidentemente impossível derivar valor, pois seus factos foram constituídos, desde o início, como exatamente a negação do valor. 

A crítica budista do princípio de individuação, ao contrário, é ao mesmo tempo descritiva e prescritiva — um relato sobre o modo como o mundo é, e, ao mesmo tempo, indissociavelmente, a recomendação de um certo estilo de comportamento moral. É difícil não ver como a sua convicção genuína sobre a insignificância das distinções entre os indivíduos não afetaria a conduta prática. Schopenhauer parece concordar que o reconhecimento da natureza ficcional da identidade do "eu" (self) aparecerá em nossas ações, embora se recuse a reconhecer que o seu próprio discurso, que fala dessas coisas, possa produzir efeitos éticos.

A razão não passa de um instrumento desajeitadamente calculista, empenhado na satisfação de desejos que são, eles mesmos, bastante distantes do debate racional. A linhagem de Schopenhauer e Nietzsche até ao pragmatismo contemporâneo, neste sentido, repete o modelo burguês do homem apetitivo de Hobbes, Hume e Bentham. A razão é um mero instrumento do interesse e uma escrava do desejo — interesses e desejos em torno dos quais pode haver luta, mas não discussão argumentativa. No entanto, se o que Schopenhauer afirma a esse respeito fosse verdadeiro, a sua própria filosofia seria, pensando de forma estrita, impossível. Se realmente acreditasse nas suas próprias doutrinas, Schopenhauer seria incapaz de escrever. Se a sua teoria é capaz de dissecar o trabalho insidioso da Vontade, então a Razão deve ser, nesta proporção, capaz de curvar-se sobre si mesma, de investigar os impulsos aos quais ela se proclama uma serva obediente. 

quinta-feira, 22 de setembro de 2022

O novo historicismo



O novo historicismo é uma corrente que é atribuída aos estudos culturais e literários dos departamentos de humanidades das universidades dos Estados Unidos baseada na premissa de que uma obra literária deve ser considerada como o produto de uma época, de um lugar e das circunstâncias políticas, geográficas, sociais e económicas aquando da sua composição. Desenvolveu-se a partir da década de 1980 depois da 'Crítica' que propunha a separação do texto de seu autor e rejeitava a análise da obra a partir de contextos sociais ou culturais. Nesta crítica o texto devia ser analisado como objeto em si mesmo. O novo historicismo provocou transformações específicas sobre a prática da história literária tais como a modificação no conceito de Arte.

O novo historicismo rejeita o caráter inalterável dos processos históricos, acreditando na agência do indivíduo sobre eles, e se detém sobre os limites dessa atuação individual. Para o novo historicismo, interferências que parecem ser únicas podem ser múltiplas a partir do poder de associação das ações individuais sobre a energia coletiva e social. Em segundo lugar, o novo historicismo é contrário à ideia de que o historiador deve negar todos os juízos de valor ao analisar outras épocas. Em sua perspetiva, a análise histórica, seja por analogia ou causalidade, não está isenta de juízos de valor, assim como a neutralidade também assume um caráter político. Por fim, os críticos ligados ao novo historicismo mostram-se mais interessados em conflitos e contradições geralmente associadas às margens da história, e que hoje em dia ocupam grande parte da programação de entretenimento mediático. Desta forma, é sobre as fronteiras da compreensão histórica e a ressonância do objeto histórico que o novo historicismo se atém, procurando, assim, entender a rede de circunstâncias que o envolvem.

O novo historicismo desenvolveu-se a partir da década de 1980, nos Estados Unidos a partir do trabalho de Stephen Greenblatt e da escola da Califórnia em Berkeley, tendo expandido a sua influência na década seguinte. Na sua obra Renaissance Self-Fashioning: From More to Shakespeare (1980), Greenblatt concentra e aplica a sua visão ao Renascimento Isabelino contemporâneo às obras de Shakespeare como espelho efetivo da realidade histórica seiscentista. A História e todos os eventos relevantes, do ponto de vista literário, que decorreram no seu curso, apenas podem ser totalmente compreendidos tendo em consideração a cultura e o contexto social dessa época e lugar, das estruturas ideológicas e de poder vigentes. H. Aram Vesser, na sua obra The New Historicism (1989), sintetizou alguns conceitos nos quais se baseia o discurso do novo historicismo: 1) Cada ação humana é, na verdade, o efeito de uma rede de práticas materiais; 2) Cada ato de crítica, oposição e desmistificação utiliza as ferramentas que ele mesmo condena, arriscando tornar-se presa do mesmo problema que expõe; 3) Textos literários e "não-literários" têm, ambos, valor; 4) Nenhum discurso, seja científico ou não, permite aceder a verdades incontestáveis, nem exprime algo inalterável na natureza humana; 5) O método crítico e uma linguagem adequada para descrever a cultura capitalista participam na economia que eles mesmos descrevem.

As ideias do novo historicismo foram adaptadas e reestruturadas por filósofos como Michel Foucault, que concebia a História como uma circulação dinâmica de "epistemes" (o a priori histórico que baseia o conhecimento e o discurso) adjacentes ao texto; e pelo antropólogo Clifford Geertz, que criou o conceito de "descrição densa", que explica não só o comportamento humano, mas também o seu contexto e relevância face aos outros. Para Geertz, a única forma de estudar a conduta humana dentro do seu contexto sociocultural, é através da experiência e da observação, sendo efetuada "camada por camada", desde o mais claro ao menos óbvio. Os novos historicistas compartilham com as correntes neomarxistas a rutura com os princípios formalistas, que definem os textos como um artefacto autónomo ao qual se nega a sua historicidade, bem como as suas circunstâncias e condicionantes, como por exemplo a classe social. No entanto, o novo historicismo, apesar de relacionado com as teorias de Karl Marx e sucessores, não é uma corrente dependente de uma visão puramente neomarxista. Os críticos ao novo historicismo, sendo os mais relevantes Camille Paglia e Harold Bloom, apontam a falta de historiografia e posições excessivamente relativistas. 

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Historicismo é uma forma de abordagem dos fenómenos culturais que se centra na importância da história para a compreensão destes. Constitui a base de uma visão de mundo fundamentada na noção de que as configurações do mundo humano, num dado momento, sempre são resultado de processos históricos de formação passíveis de serem mentalmente reconstruídos e, portanto, compreendidos. Assim, contraria a ideia de existência de leis gerais para a compreensão dos fenómenos políticos, sociais e culturais.

A perspetiva historicista surgiu na Europa ocidental na segunda metade do século XVIII, sendo decisiva para a configuração da História como ciência. Ao longo do século XIX e até às primeiras décadas do século XX, o historicismo teve forte impacto social, sobretudo na Alemanha, cujos pensadores iluministas são suas principais influências, embora também se valha das ideias de pensadores britânicos e franceses. Pode ser entendido como uma reação à crise das sociedades europeias frente aos impactos da Revolução Francesa. A partir do século XX, diferentes contestações sobre a visão de mundo historicista se destacaram e compuseram aquilo que foi denominado como crise do historicismo. Um viés relativista de acreditar na objetividade do conhecimento histórico livre de interferências de valores pré-concebidos.

Wilhelm Dilthey colocou em relevo o primado da razão histórica em oposição à razão científica. Os historicistas, em sua maioria, acreditam existir uma razão ainda mais profunda para explicar porque os métodos da ciência física não podem ser aplicados às Ciências Sociais. Afirmam que a Sociologia não deve proceder de maneira atomística, mas segundo o prisma que é, agora, denominado “holístico”. Os objetos da Sociologia, os grupos sociais, nunca hão de ser encarados como simples agregados de pessoas. O grupo social é mais que a mera soma de seus elementos e é também mais do que a simples soma das relações puramente pessoais que, em dado momento, existem entre quaisquer de seus elementos. Isso ilustra o que se pretende dizer ao afirmar que um grupo tem história própria e que sua estrutura depende, em grande margem, de sua história. É o caso de certas organizações que preservam a sua característica fundamental num outro tempo em que os seus elementos já são outros que não os iniciais. As personalidades dos membros exercem funda influência sobre a história e a estrutura do grupo, mas esse facto não impede o grupo de ter história e estrutura próprias, nem impede o grupo de influenciar poderosamente as personalidades de seus membros. Todos os grupos sociais têm tradições, instituições e ritos próprios.

O historicismo aconselha-nos a estudar a história, as tradições e as instituições do grupo, caso desejemos compreendê-lo e explicá-lo tal como agora se apresenta e se quisermos compreender e talvez antecipar o seu futuro desenvolvimento. O caráter holístico dos grupos sociais, o facto de esses grupos nunca se verem inteiramente explicados em termos de mera junção de seus elementos lança luz sobre a distinção que os historicistas fazem entre novos conhecimentos em física e novos conhecimentos em relação à vida social. A Física busca explicação causal; a Sociologia, a compreensão do propósito e do significado. Em Física, os eventos são explicados rigorosa e quantitativamente com o auxílio de fórmulas matemáticas; a Sociologia tenta compreender os desenvolvimentos históricos em termos preferentemente qualitativos, como, por exemplo, em termos de tendências e objetivos que conflituam, ou em termos de “caráter nacional” ou de “espírito da época”. Daí por que a Física opera com generalizações indutivas, ao passo que a Sociologia só pode operar com o auxílio da imaginação simpática. Daí também por que a Física pode alcançar uniformidades universalmente válidas e explicar os eventos particulares como instâncias dessas uniformidades, ao passo que a Sociologia há de contentar-se com a compreensão intuitiva de eventos únicos e do papel por eles desempenhados em situações particulares que se dão no seio de específicos conflitos de interesses, de tendências e de orientações.

Vemos, pois, que um método capaz de permitir compreensão do sentido dos eventos sociais há de penetrar muito para além da explicação causal. Deve ser de caráter holístico; ter por objetivo a determinação do papel desempenhado pelo evento no seio de uma estrutura complexa – no seio de um todo que abrange não apenas elementos contemporâneos, mas também estágios sucessivos de um desenvolvimento temporal. O método da compreensão intuitiva não se acomoda apenas às ideias de holismo. Põe-se em concordância, ainda, com a ênfase que os historicistas emprestam à novidade, pois a novidade não pode ser causalmente ou racionalmente explicada, mas há de ser intuitivamente apreendida.

Nas primeiras décadas do século XX, principalmente após a publicação do O historicismo e seus problemas, em 1922, por Ernst Troeltsch, e de Historicismo, em 1924, por Karl Mannheim, houve um resgate da avaliação positiva em relação ao historicismo fundamentada no reconhecimento da importância do pensamento historicista para a compreensão da historicidade da vida humana, que libertava a ciência histórica das conceções matemáticas e naturalistas da época. Troeltsch tratava o historicismo como uma das grandes heranças do século XIX, não deixando de expressar a perceção da relatividade dos valores históricos, proposta anteriormente por Nietzsche, como ligada ao olhar historicista. Em meados de 1940, Walter Benjamin vai em direção contrária ao historicismo enfatizando a validade do materialismo histórico e da filosofia nietzschiana. Alguns autores afirmam que a conceção histórica de Benjamin estaria mais para uma história universal messiânica que, pela sua proximidade com a noção do divino e de um mundo de realidade una e integral, teria certa afinidade com o historicismo, entendido, então, como materialismo historicista. 

Alguns anos depois, Karl Popper no seu livro "A Miséria do Historicismo", tratou o historicismo como mero materialismo dialético. Ele identificou o termo com as tentativas de Hegel e Marx de formular leis de desenvolvimento histórico, que foram posteriormente usadas para legitimar o marxismo. Ele entendeu o historicismo como uma abordagem das ciências sociais que induz à descoberta de padrões, sequências e normas, em que o principal objetivo é prever o futuro dentro da análise histórica. Para ele, a história da humanidade está diretamente ligada ao crescimento do conhecimento humano e este não pode ser previsto em sua evolução, consequentemente, a história humana também não pode ter seu curso desvendado. Nesse sentido, Popper argumentava que os objetivos do historicismo estão equivocados, pois não pode existir uma teoria científica do desenvolvimento histórico que seja o alicerce para a previsão histórica de um futuro que não pode ser elucidado. O uso idiossincrático do termo "historicismo" por Popper foi bastante criticado, porém é preciso salientar que ele empregou, em sua obra, o termo alemão 'Historizismus' para indicar aquilo que se traduz como "historicismo". A palavra 'Historismus' foi traduzida para "historismo", como era costume na época.


sexta-feira, 16 de setembro de 2022

O Mal Absoluto



Há coisas que têm nome, mas estão para além da compreensão humana. O Mal absoluto é uma dessas coisas. Kant concebeu a existência de dois mundos: o mundo fenomenal, que é o mundo captado pelos sentidos e a que chamamos realidade; e o mundo numenal. Numenal, que vem de númeno - númeno é o que o espírito, ou mente, concebe para além do fenómeno, que não pode abranger por meio dos sentidos. Aquilo que Kant chama "a coisa em si", corresponde ao mundo numenal, ou seja, realidade absoluta, de que não temos conhecimento nem pela experiência, nem pelo entendimento; é o incognoscível. Só podemos conhecer o fenómeno.

Para os nossos ancestrais, a presença do Mal – manifestava-se de várias maneiras: dilúvios, pragas, terramotos, e as infelicidades individualmente sofridas. Mas era por culpa dos homens. A religião foi a primeira forma de resolver o problema. A religião era a tarefa de enfrentá-lo e forçá-lo a desaparecer. O pecado e a punição eram os principais instrumentos da caixa de ferramentas da religião. Contrição e expiação constituíam as rotinas naturais e seguras na busca de imunidade em relação ao Mal. Os sábios de outrora – sabedores de que todo mal era uma punição merecida e aplicada com imparcialidade aos pecados que acreditavam terem sido cometidos pelos sofredores. E continuariam a pressionar os fiéis a confessá-los e admiti-los se os negassem. 

Lisboa no terramoto de 1755 revelou o quanto o mundo estava distante dos seres humanos; Auschwitz revelou a que distância os seres humanos estavam em relação a si mesmos. E a distância entre Lisboa e Auschwitz mostra como é inútil qualquer empreendimento humano na persecução de separar o Mal dos homens. Se Lisboa assinalou o momento do reconhecimento de que a teodiceia tradicional era inútil, Auschwitz marcou o reconhecimento de que o homem não merecia salvação. A rápida sucessão de terremoto, incêndio e maremoto que destruiu Lisboa em 1755 foi o acontecimento que despertou os filósofos da era moderna para o problema do Mal. Susan Neiman e Jean-Pierre Dupuy debruçaram-se sobre o problema do Mal em Lisboa. Rousseau, Voltaire e Kant já o haviam feito.   

 Os filósofos modernos, pela primeira vez, separaram definitivamente os desastres naturais dos males morais. Os primeiros eram cegos do ponto de vista moral. Os segundos eram revestidos de uma intencionalidade ou premeditação humana.  Susan Neiman aponta que “desde Lisboa que os males naturais foram desligados dos males morais. E assim, se retirou do mal natural qualquer significado escatológico. Husserl sugeriu que meinung (significado) vem de meinen (pretensão); mais tarde, gerações de filósofos depois de Husserl dariam como certo que não há significado sem intenção. Lisboa foi como uma encenação teatral da história de Jó, montada na costa do Atlântico com todo o brilho da publicidade e vista por toda a Europa – embora dessa vez Deus estivesse amplamente ausente da disputa que se seguiu ao evento.

Como é do caráter de toda disputa, os pontos de vista divergiram. Segundo Dupuy, foi paradoxalmente Jean-Jacques Rousseau quem fez soar o acorde mais moderno – ele que, devido à sua celebração da prístina sabedoria de tudo que é “natural”, tem sido tomado com muita frequência como um pensador pré e anti moderno. Em sua carta aberta a Voltaire, Rousseau insistiu que, se não o desastre de Lisboa em si, mas certamente suas consequências catastróficas, e sua escala horripilante, resultaram de falhas humanas, não da natureza (observem: falhas, não pecados – diferentemente de Deus, a natureza não tinha a faculdade de julgar a qualidade moral dos feitos humanos): produtos da miopia humana, não da cegueira da natureza; e da ambição terrena do homem, não da indiferença altiva da natureza. Se “os moradores daquela grande cidade se tivessem distribuído de modo mais equilibrado, e construído casas mais leves, os danos teriam sido muito menores, talvez até não ocorressem. E quantos infelizes perderam suas vidas na catástrofe porque quiseram recolher seus pertences – alguns seus documentos, outros seus dinheiros?”

Ao menos no longo prazo, argumentos na linha de Rousseau subiram ao topo. A filosofia moderna seguiu o padrão estabelecido por Marquês de Pombal, primeiro-ministro português à época da catástrofe de Lisboa, cujas ações e preocupações “se concentraram na erradicação dos males que podiam ser alcançados por mãos humanas”.

É perante os quadros de Caravaggio que podemos desdenhar a máxima moral que determina o comportamento humano e os mandamentos religiosos: ‘Não matarás’. As “sociedades como um todo” podem sucumbir, “de uma forma ou de outra”. A
 civilização ocidental desenvolveu os meios para uma inimaginável destruição total e em massa. A razão humana apenas produziu uma sociedade puramente tecnocrática e burocrática impotente perante mais uma vala comum com mais de quatrocentos corpos em Izium, na Ucrânia




sábado, 10 de setembro de 2022

Walther Rathenau



Walther Rathenau [1867-1922] – Figura emblemática da República de Weimar (que substituiu o Império alemão depois da derrota na Primeira Guerra Mundial), apesar de anticomunista e antissemita, era adepto de uma aproximação com a recém-criada União Soviética – foi assassinado em junho de 1922, tinha 55 anos, por dois ex-oficiais do Exército, fanáticos da extrema-direita (o Partido Nacional-Socialista fundado em 1920 ainda era inexpressivo). Dois dos assassinos suicidaram-se, o terceiro – o motorista – foi condenado a quinze anos de prisão. Quando Hitler tomou o poder declarou feriado o dia do atentado, 24 de junho. A morte de Rathenau acionou a inflação, levou-a a níveis jamais igualados e marcou a política europeia empurrando-a decisivamente para a radicalização. A brutalidade de seu assassinato tocou todos os intelectuais de língua alemã: Albert Einstein, Joseph Roth, Emil Ludwig e Stefan Zweig deixaram depoimentos comovidos.

Durante a Primeira Grande Guerra - Rathenau havia sido encarregue de chefiar o esforço industrial germânico. Depois do Armistício, em 1921, foi nomeado ministro da Reconstrução e, em seguida, recebeu a pasta de Relações Exteriores. Nesta condição, começou a negociar um abrandamento das reparações impostas pelos vitoriosos em Versalhes, enquanto concluía com as lideranças soviéticas o tratado de Rapallo, que permitiria à Alemanha fabricar aviões em território russo e assim contornar as exigências do tratado de paz.

Em Berlim, durante muito tempo, ele era conhecido apenas como filho de Emil Rathenau, o magnata da eletricidade. Em Berlim, o setor industrial, no entanto, já o conhecia há muito tempo como membro do Conselho de Administração de quase cem empresas; os banqueiros o conheciam como diretor da Sociedade Comercial; os sociólogos, como autor de livros ousados e modernos; os cortesãos, como homem de confiança do imperador; as colónias, como acompanhante de Dernburg; o exército, como coordenador da campanha por matérias-primas; a Agência de Patentes, como dono de várias invenções químicas; os escritores, como um deles.




Alto e esguio, aparecia em todo lugar onde houvesse figuras intelectuais em ação. Era visto nas estreias de Reinhardt, cujo teatro ajudou a fundar, no círculo de Gerhart Hauptmann, bem como no mundo das finanças. Saía de uma reunião de Conselho Administrativo para a estreia da Sezession - Paixão segundo são Mateus. Ele falava as três línguas europeias – o francês, o inglês e o italiano – da mesma forma que falava o alemão. 
O intelecto de Walther Rathenau era de uma acuidade e concentração únicas. Para esse cérebro de precisão prodigiosa não havia nada vago ou indefinido. Seu modo de raciocinar era tão completo em termos funcionais que, para ele, não era preciso usar papeis escritos.

À hora que fosse, tinha tempo para o amigo mais casual de dia e de noite; no tumulto de suas atividades não existiam para ele promessas não cumpridas, cartas não respondidas, ensejos esquecidos. Era uma hora da manhã, todos foram dormir, e quando acordaram no dia seguinte os jornais já informavam que Walther Rathenau viajara para as negociações em Londres no primeiro trem da madrugada. O cérebro de Rathenau era tão coeso, tão funcional e sempre vigilante que, quatro horas antes de partir para participar de decisões históricas de alcance universal e que definiriam o destino de milhões de pessoas, exigindo toda a sua concentração, aparentemente conseguiu descansar durante a conversa amena, consciente de seu dever, mas sem trair qualquer nervosismo, cansaço ou fadiga. Sua superioridade era tão grande que ele nunca precisava se preparar para nada. Estava sempre pronto.

Essa organização, essa subordinação do pensamento à vontade, essa completude do intelecto analítico marcou a sua genialidade. E o que era trágico nesse homem era que ele não gostava dessa forma de seu génio, assim como não gostava da ideia de organização. Em seus livros, repetiu diversas vezes que considerava toda a forma de organização intelectual e material extremamente infrutífera e secundária enquanto não estivesse ao serviço de um sentido mais elevado, altruísta, psíquico. E durante muito tempo ele não encontrou esse sentido. Escrevia muito em seus livros sobre a alma e a fé enquanto postulado, mas era difícil acreditar nesse hino à contemplação partindo de um homem tão ativo, e menos ainda nesse elogio da vida espiritual no caso de um milionário. Mesmo assim, havia nele uma profunda solidão e grande insatisfação. Para esse espírito superior, o mero acúmulo, amealhar cargos em conselhos, o furor de construir um império de empresas de um Stinnes ou Castiglione como fim em si mesmo não constituíam nenhum atrativo. 

Era um rei Midas do intelecto: transformava em coisa cristalina tudo para onde olhasse. Tudo ficava transparente e claro, arrumado numa ordem espiritual; nem um grãozinho de loucura ou fé lhe dava calma e consolo. Ele não conseguia esquecer ou perder o fio à meada. Talvez tivesse dado a sua fortuna em troca por algo criado num solene embotamento do ser. Mas estava condenado a ter sempre a mente clara, desperta, sentindo o seu cérebro prodigioso rodar e faiscar em milhares de posições do espelho. Por isso também exalava uma misteriosa frieza, uma atmosfera de pura intelectualidade, de uma clareza cristalina, mas, por assim dizer, um vácuo. Era impossível aproximar-se muito dele, por mais cordial, solícito, solidário que fosse, e a sua conversa, que fluía abrindo cada vez mais horizontes, como cenários de um teatro cósmico, mais entusiasmava o interlocutor do que o inflamava. 

A Guerra foi para ele – como para tantos outros que padeciam da solidão interna – uma espécie de libertação. Pela primeira vez conferia-se a essa incomensurável energia um objetivo que ia além dela própria, pela primeira vez essa mente de gigante tinha uma tarefa digna dela, pela primeira vez essa energia, que normalmente se espraiava por todas as direções do intelecto, podia ser descarregada em bloco em uma só direção. E com aquele inaudito olhar de águia que na situação mais intrincada logo detetava o nó, Rathenau interferiu então no enorme emaranhado da Guerra. Nas ruas, o povo alegrava-se, os rapazes marchavam cantando rumo à morte. Para Rathenau, tragicamente clarividente, já na primeira hora estava mais do que certo: uma guerra em que a Inglaterra, a nação mais racional se enredara, seria uma batalha de meses, anos, e seu olhar de águia desde o primeiro segundo detetou o ponto fraco no armamento da Alemanha: a falta de matérias-primas, que, no caso de um bloqueio por parte da Inglaterra, necessariamente ocorreria, em curtíssimo espaço de tempo. Uma hora depois ele estava no Ministério da Guerra, mais uma hora e iniciou a contingência de todas as matérias-primas no Reich de setenta milhões de pessoas, ampliando o esquema de resistência económica, sem o qual a Alemanha provavelmente já teria sucumbido meses antes.

Deve ter sido o primeiro momento de sua vida em que viu sentido em sua atuação, e não apenas obrigação, mas mesmo aqueles anos logo seriam sombreados pela sua própria clarividência. Seu espírito superior, que nenhuma esperança animava levianamente, que nenhuma loucura sobrepujava por um segundo sequer, que era demasiado orgulhoso para mentir a si mesmo, depois dos primeiros golpes anteviu o trágico destino da guerra como inevitável e precisou suportar os que falavam e gritavam mais alto, os tristes heróis da vitória. Seu livro Von kommenden Dingen, mostrou à Europa o que aconteceria caso a loucura seguisse adiante. Foi um apelo que só a estultice poderia ignorar. Mas a loucura é sempre mais forte do que a verdade, e assim ele foi obrigado a enterrar seus pensamentos mais secretos.

Foi da mesma forma trágica, clarividente, com plena consciência de que era em vão, totalmente sem esperanças e apenas por dever, que poucos meses após a derrocada esse mesmo Walther Rathenau assumiu o cargo pouco desejado de ministro de um império destruído. Não foi a vaidade, como muitos pensaram, que o seduziu, e sim uma sombria determinação contra si mesmo, contra o dever, a fim de medir as suas próprias forças nunca totalmente experimentadas na grandeza de uma tarefa que até então ninguém ousara enfrentar. Ele sabia o que o esperava: os assassinos de Erzberger estavam bem protegidos pelos seus comparsas de Munique, incitando assim silenciosamente qualquer sucessor; ele sabia que, sendo judeu, não teria reconhecimento na Alemanha atual por nenhuma vitória política, nem mesmo pela maior, mas que qualquer deslize aparente seria carimbado como crime. Conhecia bem a histérica resistência da França e o mentiroso agitamento dos grupos pangermânicos que se forneciam armas mutuamente, sabia tudo e também sabia como tudo acabaria – não foi por dar ênfase aos sentimentos, como os outros, e sim como alguém que tragicamente sabia, que ele assumiu o lugar que o destino lhe indicou.

Vários dos que estiveram presentes na Conferência de Génova contaram com admiração quão heroico foi o seu desempenho lá, o quanto ele, o representante do país menos amado, obrigou todos os estadistas da Europa a admirá-lo. Tendo viajado da Alemanha via Paris, 58 horas num vagão, recebia os telegramas, mudou de roupa, fez duas visitas, foi – sem o menor sinal de cansaço – até à sala de negociações e proferiu o seu discurso durante duas ou três horas. Em seguida, iniciou-se um debate, um fogo cruzado de perguntas técnicas que exigiu tudo de sua concentração e força de vontade. Os delegados ingleses, franceses e italianos, que se haviam preparado, fizeram dezenas de perguntas cada um em sua língua. Sem se ter preparado, ele respondeu em italiano aos italianos, em francês aos franceses, em inglês aos ingleses, não ficou devendo nenhuma informação e lutou durante horas, respondendo a todos. Quando a sessão foi encerrada, todos o olharam com respeito pelo espírito que lhe é superior. Pela primeira vez em décadas, o estrangeiro voltara a ter respeito por um estadista alemão, pela primeira vez, desde Bismarck, um diplomata alemão impunha respeito por sua atuação pessoal. 

quarta-feira, 7 de setembro de 2022

Um ser humano pós-moderno



Se quisermos conhecer as profundezas inefáveis que se escondem sob o verniz de um homem envernizado pela civilização, então encostemos uma gaiola com ratos esfaimados no rosto de um homem, como acontece no “1984 de George Orwell”. E depois é só esperar e ver o que acontece. Ou então imaginemos um cenário semelhante ao da fábula: “O Senhor das Moscas” de William Golding - uma história altamente reacionária, em que um bando de estudantes, em condições materiais altamente degradantes, em menos de uma semana, regressam a uma vida de grande crueldade, altamente selvagem.

O pós-modernismo teve grande interesse por situações como essas, “extremas”. O pós-modernismo, tal como um filho bastardo do modernismo, que quis matar o pai. A História pode não ter nada a ver com determinismo e progresso, mas não é verdadeira a afirmação de que não faça parte do processo histórico algo de evolutivo numa determinada direção que acompanha a flecha do Tempo. Não precisamos de acreditar numa Idade de Ouro pregressa 
para sustentar que o passado em certos aspetos foi melhor que o presente. 

Parte do pós-modernismo radical tende a mostrar-se pluralista na sua oposição política, mas monista em relação ao sistema que confronta. E o sistema que confronta é nada mais nada menos que o capitalismo e a cultura de matriz eurocêntrica que é opressora. Nesse sentido, é o mesmo que dizer: "se não és por mim, és contra mim". É uma visão simplista do poder dominante. Poder, sistema, lei, consenso, normatividade - são por si sós inequivocamente negativos. A classe social tende a aflorar na teoria pós-moderna como um item da tríade classe, raça e género. Para o teórico comunista a classe trabalhadora é algo sagrado, visto que sem ela nenhum capitalista a poderia usurpar. Para o teórico pós-moderno é tudo reduzido a uma questão de raça ou género. 

Superficialmente, a tríade classe-raça-género parece bastante convincente. Algumas pessoas sofrem opressão por causa do género a que pertencem. Outras por causa da raça. E outras em virtude da classe. Mas essa formulação engana profundamente. Porque a opressão não resulta do facto de alguns indivíduos apresentarem certas características conhecidas como “da classe”. Ao contrário, os marxistas consideravam que pertencer a uma classe social significa ser: ou oprimido ou opressor. Classe significa nesse sentido categoria totalmente social, o que não acontece com o facto de ser mulher ou de ter um certo tipo de pigmentação da pele. Isso é natural, é da biologia, não depende do tipo de cultura a que pertencemos. Seria escusado falar em coisa tão evidente não fosse o caso de o culturalismo ter colocado tudo de pernas para o ar. Não haverá burguesia nem proletariado numa sociedade emancipada. Certamente continuará a haver mulheres de origem africana e homens cujos antepassados eram celtas, ou magrebinos. Outra coisa é a teoria marxista. É o conflito histórico entre as classes sociais num processo muito mais amplo de mudança histórica, que não pode ser confundida com o racismo e o sexismo. Só uma desatenção pós-modernista em relação ao caráter multifacetado da história poderia permitir uma manobra dessas.

A tríade raça-classe-género favorece outro equívoco. Esses grupos sociais têm em comum o facto de nas atuais condições lhes ser negada a humanidade plena. No que tange à miséria, existe um sem-número de candidatos mais sensíveis para a ação política: vagabundos, camponeses necessitados, presidiários, pensionistas e mesmo estudantes empobrecidos. Se se equivocam alguns marxistas, ao imaginarem que existe um único agente da transformação social: a classe trabalhadora; também se equivocam os pós-modernistas burgueses de mentalidade relativista ao imaginarem que esse agente ficou ultrapassado diante dos “novos movimentos políticos”. Pois isso significaria tanto negar que a exploração económica existe, ou imaginar com presunção “elitista” que as mulheres ou os gays ou os grupos étnicos, que não fazem parte da classe trabalhadora, poderiam assumir o lugar dela no desafio ao poder do capital.

segunda-feira, 5 de setembro de 2022

Gabriel Marcel





Gabriel Marcel [7 de dezembro de 1889 – 8 de outubro de 1973] foi um dramaturgo francês, filósofo e existencialista cristão. Cunhou o termo “existencialismo” em meados da década de 1940, mas se distanciou dele depois que Jean-Paul Sartre o utilizou em sua determinante palestra: O existencialismo é um humanismo (1946). Sartre dividia os existencialistas em dois campos: cristãos, como Gabriel Marcel e Karl Jaspers; e ateus, como ele próprio, Simone de Beauvoir e Albert Camus (1913-60). Depois de 1946, Marcel passou a rejeitar o termo “existencialismo” em seu trabalho. Ele preferia o termo “filosofia da existência” e frequentemente se referia a si mesmo como um neo-socrático.

Crítico feroz da influência do cartesianismo, ele afirmava que o homem sofre dos efeitos redutores e desumanizadores da ciência e tecnologia, que, antecipando Hannah Arendt, via como ameaças à subjetividade humana. Ele evitou o jargão filosófico em favor da linguagem comum e desenvolveu uma fenomenologia independente da de Edmund Husserl para descrever o que denominava “o mistério ontológico”. Dos trabalhos mais conhecidos são conhecidos: Ser e ter (1935); e O mistério do ser (1951).

De uma perspetiva do século XXI, Marcel é considerado principalmente um filósofo; a maior parte dos seus contemporâneos, entretanto, o conhecia sobretudo como dramaturgo, crítico de música e compositor. Marcel via o palco como o local mais eficaz para a propagação de suas ideias filosóficas. Ele escreveu quase trinta peças, a mais bem-sucedida foi O mundo partido (1932), na qual ele traçou uma visão crítica da Modernidade. Mais tarde ele dirigiria a sua atenção para o trabalho filosófico de suas peças. Marcel achava que o mundo estava “partido” porque o homem transformara-se num funcionário, como uma crítica à hegemonia da filosofia analítica funcionalista, em que predomina a visão mecanicista do mundo negando a transcendência do homem.

Gabriel Marcel utiliza a imagem da bilheteira para ilustrar a pessoa funcionalizada, alguém cuja vida é reduzida a uma função repetitiva, como a de uma máquina. Seu anseio natural pela transcendência – o que Marcel chama de sua exigência ontológica – se perde na repetição diária de uma existência maquinal. Com o tempo, o poder do mundo mecanizado torna-se tão grande que destrói a sensação natural da pessoa funcionalizada de que algo está errado – de que, realmente, o mundo está partido. O sentimento de deslocamento, a preocupante sensação do rompimento do mundo, é, com o tempo, corroída pela repetição da funcionalidade, e a pessoa funcionalizada perde seu desejo de transcendência, criando a base para o desespero.

Gabriel Marcel chegou a organizar tertúlias filosóficas em Paris frequentadas pela fina flor filosófica da época, como Jean Wahl, Paul Ricoeur, Emmanuel Levinas e Sartre. Reuniam para discutir ideias, como ele dizia, de interesse mútuo. Marcel era tido como agnóstico, até se converter ao catolicismo romano, aos 39 anos de idade. Pouco depois acabou por se incompatibilizar com Sartre, tendo rompido com ele. Entretanto Marcel aprofunda a sua vertente filosófica de matriz fenomenológica, embora por caminhos não necessariamente filiados na fenomenologia de Husserl. Queria oferecer uma descrição fenomenológica da subjetividade do homem e da possibilidade de intersubjetividade – temas que eram centrais também para Martin Buber e Karl Jaspers. 

Marcel delineou sua versão do método fenomenológico em "O mistério do ser", onde submete os sujeitos a uma investigação subordinada a uma de duas categorias: ou problemas; ou mistérios. Marcel pergunta: que tipo de pensamento específico podemos arranjar para cada tipo de problema? É que cada problema exige uma abordagem técnica específica, individual. Mistérios, por outro lado, devem ser explorados de um modo que envolva todo o ser do sujeito. Marcel identifica essas duas abordagens radicalmente distintas como reflexão primária e reflexão secundária. Usando o vocabulário kantiano, a reflexão primária é analítica; a secundária é sintética. A reflexão primária desmembra o objeto investigado em suas partes constituintes. É a abordagem cartesiana prosseguida pelos positivistas e filósofos analíticos. Este tipo de abordagem é a abordagem do mundo partido. É a negação da visão de um mundo hegeliano, holístico. É o rompimento do mundo na sua vertente tempo, onde está inscrito o sentido escatológico humano, o da angústia existencial que nos projeta numa essência transcendental. Daí Marcel se considerar um existencialista fenomenologista. 

Marcel estava mais preocupado com o método do que com o sistema. Ele poderia ser descrito como um filósofo temático, em oposição a um filósofo sistemático. Ele não fez uma tentativa de apresentar um relato completo do mundo, mas sim de introduzir ferramentas metodológicas com as quais se pudesse dar sentido ao mundo. Sua análise levou a temas-chave, que incluíam a distinção entre ser e ter, a ideia de disponibilidade/indisponibilidade em relação ao Outro, e as possibilidades de intersubjetividade por meio da reciprocidade. Em "Ser e Ter", Marcel traçou uma importante distinção ontológica: eu posso ter uma bicicleta, mas não tenho raiva, ou amor ou fé – eu sou raiva ou amor ou fé; eu estou sendo essas coisas. O uso mais desafiador da distinção entre Ser e Ter é como nos situamos e relacionamos com o nosso corpo. Nós mesmos, como sujeitos corpóreos, de mente corpórea ou incarnada. Nós somos, em termos ontológicos, simultaneamente nossos corpos e sujeitos dos nossos corpos. Somos a experiência dos nossos corpos. Somos mente corpórea. Em suma, uma síntese hegeliana de Ser e Ter.

A distinção entre disponibilidade e indisponibilidade é fundamental para o seu tema da intersubjetividade. Para criar um mundo compartilhado com outros, é preciso estar disponível para eles. A falha ou ausência de disponibilidade é um obstáculo a relações intersubjetivas. Orgulho – a suposição incorreta de que se é autossuficiente, por exemplo – é uma obstrução à intersubjetividade. Estar em um estado de indisponibilidade significa estar alienado dos outros, considerá-los objetos, e não sujeitos. Gabriel Marcel trata este tema de uma forma semelhante à de Martin Buber, o que se evidencia inclusive pela sua definição de intersubjetividade, baseada numa relação [Eu-Tu], e não numa relação [Eu-Isso]. Para que o sujeito disponível alcance intersubjetividade com um outro, é preciso atender à condição de reciprocidade.

Ao invés de Sartre, Marcel, no final, é um otimista, ao focar-se na intersubjetividade. Durante a sua vida, Marcel foi eclipsado por Sartre, tanto como filósofo como dramaturgo, mas o seu trabalho acabou por ser muito explorado, não apenas por teólogos, mas também por outros filósofos. Há uma ordem cósmica em que o sujeito se encontra na presença de algo completamente fora do seu alcance. Se a palavra “transcendente” tem algum significado, ela se aplica aqui. É o Absoluto, intransponível abismo que se abre entre o sujeito e o ser, na medida em que o ser escapa a toda a tentativa de fixá-lo.


quinta-feira, 1 de setembro de 2022

A história genética dos povos ibéricos


Um estudo genético - envolvendo uma colaboração de 111 investigadores internacionais, analisou: os genomas de 403 antigos ibéricos que viveram entre 6.000 a.C. e 1.600 d.C.; 975 pessoas de fora da Península Ibérica; e cerca de 2.900 habitantes atuais da Península Ibérica - concluiu que um grande número de homens do Cáucaso e das estepes limítrofes do Mar Negro migrou até à Península Ibérica e se juntou a mulheres locais, substituindo a população masculina existente. O padrão destes migrantes representava na altura cerca de 40% do perfil genético da Península Ibérica e praticamente 100% das linhagens masculinas do território. Tais dados sugerem que aqueles migrantes eram sobretudo do sexo masculino e, que de algum modo, substituíram os homens locais. 



No período do Paleolítico Superior, entre 40 mil e 10 mil anos antes do presente, o território noroeste da Península Ibérica, incluindo o Norte de Portugal, esteve debaixo da Última Glaciação de Würm. Esta última idade do gelo foi intercalada por pequenos períodos mais amenos. Aqui o habitante humano é já um homo sapiens igual ao atual que ocupou o Sul da Europa de uma migração vinda de África há 40 mil anos. Nessa altura os humanos sobreviveram alimentando-se de caça e pesca suplementada por alguns frutos e vegetais. 

Em Montemor-o-Novo existe a Gruta do Escoural, onde se encontram vestígios principalmente da Arte Parietal em Gruta típica deste período em toda a Europa e que se terá iniciado há 32 mil anos com o Aurinhacense e terminado há 10 mil anos com o Magdalenense. Nesta gruta, a primeira fase da intervenção artística terá decorrido no período Solutrense antigo e médio. Depreende-se que neste período gelado o homo sapiens terá levado uma vida mais de cavernas e nomadismo. As deslocações destinavam-se não só para caçar, mas também para procurar o sílex, preferencial, mas não exclusivo, para as ferramentas. E a Estremadura portuguesa é rica em sílex! Há 40 mil anos começa a extinguir-se o homem de Neandertal, tendo imperado na Europa desde há pelo menos 300 mil anos.

Há 18 mil anos a Europa ainda se encontrava no ponto máximo do último período glacial, em que a espessura do gelo na zona dos Alpes ainda atingia 2 Km. A orla marítima encontrava-se 125 metros mais abaixo do que está hoje. O Sudoeste da Provença, assim como o Sul de Itália, Balcãs e Cáucaso estavam menos geladas. Entretanto, a viragem para o degelo começou há 12 mil anos. O seu efeito fez-se sentir noutros pontos do planeta, como por exemplo no Sudeste Asiático, onde a subida do nível do mar teve como efeito o aumento do número de ilhas que pertencem hoje à Indonésia. A Europa passou a ser repovoada com migrações de homo sapiens a partir da Ibéria e dos Balcãs. Esses humanos tinham vindo do Próximo Oriente para a Europa há cerca de 40 mil anos. O gelo tinha-os mantido acantonados no Sudoeste da Península Ibérica. Como é sabido, o Próximo e Médio Oriente entraram na era do Neolítico há 12 mil anos. Assim, a pastorícia e o desenvolvimento da agricultura proporcionou o aparecimento da cultura conhecida por Cultura Natufiense.

O que intriga os cientistas é o facto de os marcadores genéticos dos Povos Ibéricos do Paleolítico, que até aí tinham sido bem-sucedidos a defenderem-se do frio, terem desaparecido depois de uma nova vaga migratória vinda do Próximo Oriente ocorrida há 8 mil anos. Não há acordo entre os cientistas quanto à data de entrada no Neolítico por parte dos Povos Ibéricos, e particularmente no que diz respeito ao Alentejo. Adotaram o Neolítico por si próprios, ou terá sido uma civilização importada de fora?

Acredita-se que as comunidades do Mesolítico - caçadores/coletores do ocidente ibérico, nomeadamente os concheiros do estuário do Tejo e Sado - começaram a contactar com o modo de vida Neolítico vindo de fora por via marítima. No Alentejo Central, só começam a aparecer vestígios dos primeiros pastores e agricultores da cultura do Neolítico por volta de 5.500 a.C. É difícil de dizer se eram imigrantes vindos do Leste, ou se eram genuinamente autóctones. O que é certo é que o legado genético dos caçadores/coletores do Paleolítico da Ibéria foi apagado por migrações posteriores vindas do Próximo Oriente.

Seja como for, foi pela rota do Mediterrâneo que agricultores entraram na Península Ibérica pelo Sul. Outra expansão neolítica originária do Médio Oriente parece ter difundido em todo o norte da África, quando o clima era mais húmido e mais verde do que hoje. Essas tribos neolíticas podem ter sido essencialmente pastoras de cabras do Crescente Fértil que migraram para o sul até à Península Arábica, através do Mar Vermelho até o Corno de África (Etiópia, Somália), Sudão, Egito, depois para o oeste do Magrebe, chegando eventualmente à Andaluzia cerca de 7.000 anos atrás, onde estabeleceram a cultura da cerâmica La Almagra.

As linhagens maternas trazidas pelos agricultores neolíticos dos Balcãs e da Anatólia podem ser determinadas com segurança. Há evidências esmagadoras de que os agricultores neolíticos se misturaram com alguns dos forrageiros mesolíticos que encontraram. Foram encontradas no sul de França perto da fronteira espanhola (Languedoc) as mesmas linhagens dos primeiros agricultores neolíticos da Sérvia. A presença de certas linhagens do Próximo Oriente entre os bascos e os sardos confirmam a origem mesolítica e neolítica mista de ambas as populações e corrobora ainda a hipótese de uma assimilação precoce de europeus indígenas por agricultores e pastores do Próximo Oriente.

Nos últimos anos a história das migrações na Europa tem sofrido uma reconstituição por via dos estudos de genética populacional. O contributo da genética no estudo das migrações tem sido revolucionário. Dentro dos haplogrupos do ADN mitocondrial, várias linhagens femininas, denominadas H, U, T, X, K e I, espalharam-se por toda a Europa vindas do Próximo Oriente há cerca de 40.000 anos. Em todo o caso, o seu efetivo populacional durante o máximo da última glaciação teria sido pequeno. Dentro daqueles grupos o haplogrupo H, é o marcador genético mais frequente da população europeia. Nos nossos dias estas linhagens perduram, sendo ainda mais frequentes na Ibéria. Por exemplo, em 499 amostras colhidas em Portugal, 25,5% são H1. Usando o relógio molecular, as suas idades apontam para 15.000 anos. À medida que o gelo ia recuando para Norte estes grupos também iam subindo pela Europa refazendo rapidamente o seu povoamento. Portanto, o atual património genético feminino europeu sinaliza esse repovoamento europeu a partir da Península Ibérica.

ADN mitocondrial e o cromossoma Y são duas porções do genoma humano que permitem rastrear respetivamente as linhagens materna e paterna de um indivíduo. As mulheres transmitem o ADN mitocondrial aos descendentes dos dois sexos. Ao passo que os homens, apesar de também possuírem obviamente mitocôndrias, não transmitem ADN mitocondrial. Em contrapartida transmitem o cromossoma Y, e obviamente apenas ao sexo masculino. O ADN mitocondrial e o cromossoma Y são haploides, isto é, são exemplares de transmissão uniparental. E às diversas formas polimórficas destes marcadores presentes na população dá-se o nome de haplótipos. E um grupo grande de haplótipos, que são séries de alelos em lugares específicos de um cromossoma constitui um haplogrupo. Em genética populacional humana os haplogrupos mais estudados que podem ser usados para definir populações genéticas são os haplogrupos do cromossoma Y e os haplogrupos do ADN mitocondrial. Assim, dentro dos haplogrupos do cromossoma Y, temos o haplogrupo I2, que pode ser o haplogrupo de referência para o Homem de Cro-Magnon, remontando a 13.000-15.000 anos e tendo atingido a sua máxima frequência nos Alpes Dináricos dos Balcãs Ocidentais. Por sua vez o haplogrupo I2a1 é de longe o maior ramo de I2 e o mais frequentemente ligado às culturas do Neolítico europeu. 

Espanha e Portugal é onde se encontram de uma forma contínua as linhagens desde os genes mais antigos até aos genes migratórios das estepes russas e ucranianas que no início da Idade do Bronze chegaram até à Península Ibérica. E foi a partir dessa altura que a Ibéria começou também a ser frequentada por outros povos migrantes: fenícios, celtas, gregos, judeus, romanos, godos, francos, árabes e berberes. Não se pode excluir que os caçadores/coletores do Norte de África tenham entrado na Península Ibérica pelo estreito de Gibraltar em barcos. Todos deixaram a sua impressão genética sobre as populações das regiões onde se estabeleceram.

O período Neolítico tardio e a Idade do Cobre (dois períodos que se sobrepõem, dependendo da região) foram muito propícios para a Ibéria. Cerca de 2.800 a.C., surgiu uma nova cultura arqueológica no estuário do Tejo, o fenómeno do Vaso Campaniforme. Muitas vezes referido como uma cultura, quase não era uma entidade unificada, seja politicamente, linguisticamente ou etnicamente, mas sim uma vasta rede de comércio multicultural que depois se estendeu à Bretanha e Ilhas Britânicas, Países Baixos, Jutlândia, sul da Alemanha, vale do Ródano, os Alpes, norte da Itália, Sardenha e extremo leste da Boémia. A maioria dessas regiões (exceto a Europa central) já estavam ligadas entre si como membros da cultura megalítica, que evoluiu a partir das culturas do Neolítico precoce. O fenómeno cultural do Vaso Campaniforme não substituiu de facto a cultura megalítica na Europa Ocidental, mas coincidiu com ela. As pessoas do Vaso Campaniforme continuaram a usar enterros megalíticos comuns (por exemplo, túmulos de passagem) como seus ancestrais neolíticos. Na Europa central, onde não existia cultura megalítica, os artefactos de campanhas aparecem, no entanto, devido à presença de comerciantes da Europa Ocidental.

Os falantes 
indo-europeus da Europa Central, através da rede do Vaso Campaniforme, devem ter sido atraídos pela riqueza da Cultura Megalítica. Equipados com armas de bronze, e cavalos, esses indo-europeus não eram fazendeiros de cereais, mas fazendeiros de gado da estepe ao norte do Mar Negro, que já haviam conquistado os Balcãs, os Cárpatos, a Polónia, a Alemanha, a Escandinávia e os países bálticos entre 4.000 e 2.800 a.C., causando o colapso de todas as culturas do calcolítico nessas áreas. O ramo do sul avançou da planície húngara para a Boémia e Alemanha até 2.500 a.C. e continuou sua migração até à costa atlântica, chegando à Grã-Bretanha e oeste da França por volta de 2.200 a.C. e a Irlanda por volta de 2.000 a.C. Esses eram proto celtas cujo ADN-Y agora é encontrado em mais da metade dos homens espanhóis e portugueses. Os Pirenéus desaceleraram a progressão dos proto celtas em direção à Ibéria, mas, finalmente, por volta de 1.800 a.C., as primeiras culturas estrangeiras da Era do Bronze aparecem em El Argar e Los Millares no sudeste da Espanha, com locais esporádicos aparecendo em Castela até 1.700 a.C. E na Extremadura e no sul de Portugal até 1.500 a.C.

Estes locais da Idade do Bronze Precoce normalmente não tinham mais do que alguns punhais ou machados de bronze e não podem ser considerados sociedades da Idade do Bronze adequadas, mas sim as sociedades da Idade do Cobre com artefactos de bronze ocasionais (talvez importados). Essas culturas poderiam ter sido fundadas por pequenos grupos à procura de conquistas fáceis em partes da Europa que ainda não possuíam armas de bronze. Eles se tornariam uma pequena elite governante, teriam filhos com mulheres locais e, dentro de algumas gerações, a sua língua indo-europeia teria sido perdida, absorvida pelas línguas indígenas, como terá sido o caso dos bascos.




Os Iberos não se tornaram numa sociedade da Idade do Bronze até ao século XIII a.C., quando a cultura Urnfield (1300-1200 a.C.) se expandiu da Alemanha para a Catalunha através do sul da França. E depois a cultura Hallstatt (1200-750 a.C.) espalhou-se pela maior parte da Península Ibérica (especialmente a metade ocidental). Este período é o da Idade do Bronze Atlântico (1300-700 a.C.), quando a Ibéria estava ligada ao resto da Europa Ocidental através de uma rede comercial complexa. É durante este período da Idade do Bronze que o principal ramo ibérico se estabelece. Há estudos que traçam um percurso de fazendeiros neolíticos do sudoeste da Ásia, chegando à Ibéria pelo norte de África. Genes do sudoeste da Ásia misturam-se com genes do sudoeste da Península Ibérica. E depois, entre 1.000 a.C. e 500 d.C. terá sido o período de ascensão para o Norte da Península (Galiza, Astúrias e Cantábria). De facto, a explicação mais provável é que a maior parte do DNA do noroeste da Ibéria tenha vindo do sudoeste da Ásia.

A Ibéria ocidental, da Galiza e das Astúrias até ao sul de Portugal e ao oeste da Andaluzia, tem percentagens relativamente altas de haplogrupos cromossómicos Y do Sudoeste da Ásia. Sua origem histórica é diversificada, sendo as contribuições cumulativas dos pastores neolíticos levantinos, fenícios, judeus e árabes, embora a proporção exata permaneça difícil de avaliar, podendo variar muito entre as regiões. O que se pode verificar é que as regiões do Norte, como Cantábria, Astúrias e até a Galiza, têm ascendência árabe medieval, judaica e fenícia negligenciável e, portanto, a presença de haplogrupos do sudoeste da Ásia deve ser atribuída a genes mais antigos. No País Basco é zero. O nordeste da Espanha, do País Basco até à Catalunha, foi colonizado por fazendeiros neolíticos da Itália e da França e, consequentemente, tem a menor incidência de DNA do sudoeste da Ásia. 

As migrações e os assentamentos nos tempos históricos tiveram um impacto menor na estrutura genética ibérica do que o Neolítico e a Idade do Bronze. Somente o ADN-Y pode ser usado hoje para medir as contribuições de outras populações europeias na Ibéria, e mesmo o ADN-Y não pode produzir estimativas precisas sem grandes quantidades de dados de alta resolução.

Os Iberos deviam ter alguma relação com o Cáucaso, na medida em que ainda hoje há uma província na Geórgia com o mesmo nome: Ibéria.Apiano (95-165), historiador da Roma Antiga, faz referência aos Iberos de Espanha terem como antepassados os Iberos da Ásia. E na verdade é que houve o Reino da Ibéria no território que é hoje da Geórgia, cuja história aparece aquando da sua queda em 526, na sequência das contínuas rivalidades entre o Império Bizantino e o Império Sassânida. Ibéria era o nome que antigos gregos e romanos tinham dado a esse reino que já existia no século IV a.C. A similaridade do nome Ibéria, com o da Península Ibérica, sempre suscitou a ideia de alguma relação de parentesco entre os povos ditos "iberos" do Oeste e do Leste. Vários autores da Antiguidade levantaram essa hipótese de uma origem comum, mas não souberam explicar isso diante da grande distância geográfica entre os dois grupos, nem definiram de onde se teriam originado ambas as etnias.

A área era habitada por várias tribos relacionadas entre si, conhecidas como "iberos" por antigos autores. O reino local, Cártila, deve o seu nome a um mítico chefe de nome Cartlos. Os Sasper, citados por Heródoto, teriam sido os responsáveis pela consolidação das diversas tribos nessa região. A provável origem etimológica de Ibéria derivaria de Sasper via Sasper >Speri >Hberi >Iberi. Os Moschi teriam deslocado para o nordeste em migração, sendo que a sua principal tribo, os Mtsqueta, originaram o nome da capital.

A obra medieval Moktsevai Kartlisai («Conversão da Ibéria») fala de um certo Azo e seu povo, os quais se assentaram na futura capital Mtsqueta, fica perto de Tbilisi. Outras antigas crónicas, as Kartlis Tskhovreba ("História da Ibéria"), informam que Azo seria um oficial de Alexandre Magno, que derrotou uma dinastia local e conquistou o território, tendo sido depois expulso por Parnabazo I da Ibéria. 

A contínua rivalidade entre o Império Bizantino e o Império Sassânida pela supremacia no Cáucaso e a fracassada insurreição dos georgianos em 526, liderada por Gurgenes, foi de consequências danosas para o país. Desde então, o rei da Ibéria teve um poder apenas simbólico, pois o país estava sob domínio persa. A Ibéria passou a ser uma província persa administrada por um governador.

Em 582, nobres georgianos solicitaram ajuda ao imperador Maurício I que reinou Constantinopla entre 582 e 602, para fazer renascer o Reino da Ibéria. Mas, em 591, os bizantinos e os persas preferiram fazer um acordo para dividir a região, ficando Tbilisi com os persas, e Mtsqueta com os bizantinos. O historiador Giorgi Mthatzmindeli (1009-1065) escreveu que alguns nobres georgianos teriam pretendido viajar até ao extremo sudoeste da Europa para visitar os Georgianos do Oeste. 

As tribos proto-georgianas apareceram pela primeira vez na história escrita no século XII a.C. Os primeiros indícios de vinho foram encontrados aqui, onde foram encontrados jarros de vinho com 8.000 anos. Achados arqueológicos e referências em fontes antigas revelam elementos de formações políticas e estaduais, caracterizados por uma avançada metalurgia e técnicas de ourivesaria que remontam ao século VII a.C. Na verdade, a prática da metalurgia na Geórgia iniciou-se durante o sexto milénio a.C., como uma forma de associação com a Cultura de Shulaveri-Shomu. E a Cólquida, ao lado da Ibéria, Apolónio de Rodes descreve que era o local, na mitologia grega, do Velo de Ouro procurado por Jasão e os Argonautas. Tal mito pode ter derivado da prática local de utilização de lã para peneirar pó de ouro dos rios.

Por outro lado, há paralelos entre os Iberos e os Urartuanos nas esculturas e nas vestes dos guerreiros, nos mantos sobre a cabeça das mulheres, uso de peitorais, torques, braceletes e arrecadas. Os arreios dos cavalos evidenciam igualmente grande proximidade entre os usados em Urartu e entre os IberosUrartu corresponde ao Ararate, ou Reino de Van, um reino da Idade do Ferro centrado ao redor do lago Van, no planalto Arménio. O lago Van fica no leste da Turquia, no Curdistão, e antigamente estava dentro do Reino da Arménia quando atingiu a sua maior extensão. Especificamente, Urartu é um termo assírio para uma região geográfica, enquanto Reino de Urartu ou as terras de Biainili designam o estado da Idade do Ferro que surgiu naquela região. A região corresponde ao planalto montanhoso entre a Anatólia, a Mesopotâmia e o Cáucaso, conhecida atualmente como planalto Arménio. Não há textos urartuanos que tenham chegado aos nossos dias para uma comparação aprofundada do ponto de vista linguístico, mas mesmo assim apuram-se algumas semelhanças: nenhuma das línguas é indo-europeia nem semita, ambas são aglutinantes.