segunda-feira, 31 de agosto de 2020

De Atalaia – por figuras de linguagem sincréticas


As figuras de linguagem são recursos linguísticos para tornar as mensagens que emitimos mais expressivas e significativas. Tais recursos podem ampliar o significado de uma expressão, assim como suprir lacunas de uma frase com novos significados. Aqui poderemos encontrar: alusões; ironia; metáforas e metonímias; paradoxos, apóstrofes e catacreses.


O sincrético em psicologia, tem a ver com a forma primitiva dos primeiros estádios da mentalidade infantil, em que o mundo é percecionado e apreendido globalmente de forma indiferenciada.

Neste mapa, o pionés encarnado assinala a Quinta da Atalaia, onde se realiza a Festa do Avante

O Grande Irmão, enquanto folheava no seu atlas os mapas das ameaçadoras quintas que surgem nos pesadelos e nas maldições: Enoch, Babilónia, Yahoo, Berenice, Brave New World, disse: "É tudo inútil, se o último porto só pode ser o local infernal, que está lá no fundo e que nos suga num vórtice cada vez mais estreito, o melhor é irmos à procura da Possibilidade de uma Ilha".

Michel Houellebecq, neste romance: "A Possibilidade de uma Ilha" - faz uma profunda reflexão sobre o sentido da vida, uma elegia da humanidade e do amor, uma celebração de tudo o que temos e que corremos o risco de perder. Cria um mundo que se prece perigosamente ao que se prenuncia nas entrelinhas do nosso tempo. 


O inferno dos vivos não é algo que será, Meu Irmão. Se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até ao ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço.

O atlas do Grande Irmão também contém os mapas de terras prometidas visitadas na imaginação, mas ainda não descobertas ou fundadas: a Nova Atlântida, Utopia, a Cidade do Sol, Oceana, Harmonia, Icária. O Grande Irmão pergunta ao Pequeno Irmão: Tu que exploras em profundidade, és capaz de interpretar os símbolos? Saberias me dizer em direção a qual desses futuros nos levam os ventos propícios?"

O Pequeno Irmão responde: "Por esses portos eu não saberia traçar a rota nos mapas nem fixar a data da atracação. Às vezes, basta-me uma partícula que se abre no meio de uma paisagem incongruente, um aflorar de luzes na neblina, o diálogo de dois passantes que se encontram no vaivém, para pensar que partindo dali construirei pedaço por pedaço a ilha perfeita, feita de fragmentos misturados com o resto, de instantes separados por intervalos, de sinais que alguém envia e não sabe quem capta. Se digo que a ilha, que é mais uma ínsua, para a qual tende a minha viagem, é descontínua no espaço e no tempo, ora mais rala, ora mais densa. Mas escusas de procurá-la. Pode ser que enquanto falamos ela esteja aflorando dispersa dentro dos confins da herdade; é possível encontrá-la, mas da maneira que eu disse.

Michel Houellebecq, neste romance: "O Mapa e o Território" o personagem fala dos solitários Natais passados com o Pai, um arquiteto famoso que sonha construir cidades fantásticas mas ganha a vida a projetar resorts de férias. Talvez não falasse do suicídio da mãe quando tinha apenas sete anos, porque são muito ténues as recordações que dela guarda. Mas mencionaria certamente Olga, uma lindíssima russa, que conheceu por ocasião da primeira exposição do seu trabalho fotográfico baseado nos mapas de estradas Michelin. Apesar de indiferente à fama e à fortuna, o protagonista poderia mencionar o êxito estrondoso que alcançou com uma série de quadros de célebres personalidades de todos os meios, retratadas no exercício da sua profissão. Um dos retratados é precisamente Michel Houellebecq (sim, o autor), num trabalho conjunto que mudará a vida de ambos: fonte de vida para um e razão de morte para outro. Confrontado com o homicídio de uma pessoa próxima de si, o protagonista não poderia deixar de incluir no seu relato, como ajudou o comissário a esclarecer esse crime hediondo, cujo cenário aterrador deixou marcas profundas nas Equipas da Polícia de Segurança.


O Pequeno Irmão – Em vez de falar de Katalpeque, onde pontuam tríglifos coroados de ábacos, fala de engrenagens e de máquinas de triturar bilhetes. E de funcionários responsáveis pela limpeza das escadarias levantando a cabeça para inspecionar os átrios mais parecidos com pronaus, onde só cabem basbaques de baixa estatura. Mas do que ele devia falar era de Bisuanguer, cidade invisível, mas de gente justa, atarefada com a montagem dos balaústres para que os mirones se possam assomar bem alinhados junto às redes presas a estacas submersas por onde trepam buganvílias travadas por rodas dentadas num surdo tique-taque de mecanismos precisos a cronometrar os operários. 

E assim se vão tecendo intrigas através da Extensão do Domínio da Luta com redonda eloquência a observar o olhar dominador das odaliscas a banharem-se em 
piscinas perfumadas cujas bordas se estendem até às Comportas, onde gente prudente, protegida por armadilhas, se dedica a decifrar vírgulas e parênteses soprados por sicofantas através das manilhas dos esgotos.


Dito isto, se o leitor não deseja que o seu olhar colha uma imagem deformada, então deve dirigir a sua atenção para uma qualidade intrínseca dessa cidade onde germina em segredo uma secreta geringonça. Trata-se de reabrir janelas a um amor latente ainda não submetido a regras, mas capaz de ser ainda mais justo do que era antes, mesmo que ainda exista uma manchinha, oxalá não se dilate para a metrópole. 

O Grande Irmão, como de costumeaos costumes disse nada. Costumes que parecem austeros eludindo os estados de ânimo complicados e sombrios de inocentes, uns a tirar finos e outras a fazer sandes de chouriço e pataniscas, a evocar uma antiga idade de ouro em que se serviam gaspachos, sopas de cação e abobrinha frita. 

A partir destes dados é impossível inferir uma imagem da futura Atalaia, mais próxima do conhecimento da verdade do que qualquer notícia sobre o atual estado da pandemia. Contanto que se tenha em mente que a tabela dos preços justos está escondida, para que não seja conspurcada por calúnias malignas antidemocráticas. É a convicção e o orgulho de serem justos. E de sê-lo mais do que tantos outros que dizem ser mais justos do que os justos, fermentando rancores, rivalidades, teimosias, e o natural desejo de represálias. 

Queria dizer ainda outra coisa: que todas as futuras geringonças, contidas dentro umas das outras como matrioskas, se tornem para sempre inseparáveis.

Nas brumas do Tempo Desengonçado

  

“O mundo está fora dos gonzos. Ó maldita sorte! Porque eu nasci para colocá-lo em ordem!” 
Hamlet IV

Naquele tempo, e naquela terra, era assim, um dia tinha de se partir com uma manta, um cantil de água e pão. Havia chegado o dia em que o pai de José, já doente e muito cansado, o chamou ao quarto para lhe dizer: "está na hora de eu partir para a montanha, tens de me levar". José ainda tentou balbuciar uma interjeição, mas o pai tapou-lhe a boca com a mão. O filho foi então buscar a mochila da caça e carregou-a com a tal manta, e alguns mantimentos para o velho se alimentar durante uns dias. Ia para as Brandas, na Serra, para o abrigo do tempo da transumância dos rebanhos, e da caça às perdizes, onde havia lobos e raposas. E também havia frio. Ia matar as saudades dos tempos da caça às perdizes, como se fosse de férias. Era assim o fim de todos os velhos. Mas não das velhas. As velhas guardavam a casa, logo morriam em casa. 
Pela frescura da manhã, cada qual com o seu pau na mão, nada de cajados numa altura destas, toca a subir à Serra, três horas e meia de caminho a pé. Chegaram ao abrigo ainda antes do meio dia, a tempo dos rituais. Ao meio dia partilharam a última refeição juntos. Chegada a hora da despedida, realizaram então os últimos rituais do rasga a manta, antes do derradeiro abraço.
O pai do José disse: “espera aí” – e foi buscar a manta – “chega daí a tua navalha" Depois de ter dividido a manta em duas partes iguais, deu uma parte ao José, e disse: "guarda, um dia, se chegares a velho, claro está, podes vir a precisar". Meditando nas palavras do velho pai, velho e quebrantado, ainda estendeu o seu braço para agarrar o do pai, de certo para o levar de volta. Mas o pai afastou o braço e recuou – Vai, vai com Deus que eu te abençoo. 
Ainda não tinha sido daquela vez que alguém daquela terra quebrava a tradição. Quando o ancião pressentisse que já não tinha forças para se autossustentar de pé como um carvalho, era porque a hora da morte não tardaria a chegar. E então o ancião pegava numa manta e algumas vitualhas, e pedia ao filho mais velho, se o tinha, que o acompanhasse na sua última viajem até ao cimo da montanha. E assim se cumpria uma tradição ancestral de séculos e séculos, que um dia se esfumou nas brumas do Tempo.
Em Hamlet o pai aparece como um fantasma. O fantasma revela-lhe que a sua morte não fora acidental, mas criminosa. E por isso, exige reparação. Sentindo-se no dever de fazer justiça, o príncipe Hamlet vê-se obrigado a vingar a morte do pai. Esse é o início de uma das mais complexas peças de Shakespeare.

Devemos olhar mais ao "ser" do que ao "parecer". Isto é tanto mais verdadeiro quanto mais nos apercebemos da hipocrisia, da mentira, da falsidade e da mesquinhez que grassa à nossa volta e nos afeta, e nos contamina, e nos impele a querer parecer mais do que a querer ser. A essência é ofuscada pela aparência, porque na realidade somos insignificantes na transparência, no pó a que ficamos reduzidos, nada mais que isso. Mas a consciência do ser adquire-se através da educação. E se esta for desenvolvida num meio de aparência e de superficialidade não restam dúvidas de que a caminhada final será, necessariamente, em direção ao monte. O monte, metáfora dos dias de hoje, são aqueles Lares de que tanto se tem falado em tempos de Covid-19, pelas piores razões.

Em Kant: fenómeno e aparição é o mesmo. Desde Platão que se pensava a 'Coisa-em-si' (essência) por trás (subjacente) da aparência. Mas Kant não pensava assim, em essências por trás de aparências. Para Kant havia aparição e o seu 'sentido'. Neste caso, aparição e aparência não têm o mesmo significado. E Husserl pegou nesta ideia e desenvolveu-a numa outra direção, a da Fenomenologia. A Fenomenologia indaga sobre as condições para uma aparição. Kant tinha trazido para o terreiro da filosofia o 'transcendental', que não é a mesma coisa que a ideia de transcendente, ideia que muito boa gente ainda tem, usando a expressão‘ transcendental’ para referir o transcendente.

‘Transcendental’ é o princípio da submissão em representações a priori da nossa experiência vivida. Para Husserl, na perceção do objeto há o sentido percetivo. Este sentido é mente pura, impossível de ser reificado. Reificação significa materialização. E ‘aparição’ significa o mesmo: fenómeno despido de qualquer tipo de materialização. Husserl chamou a isto: ‘noema’, que é apresentação, nada de confundir com representação. E também não tem nada a ver com os dados dos sentidos ('sense-data' em língua inglesa).

E agora fazemos entrar em cena o “Tempo”. O “Tempo” como fenómeno, ou noema. Não conseguimos materializar o 'Tempo-em-si', por mais voltas que queiramos dar. O Tempo também não se submete à reificação. A existência do Tempo é também uma existência desmaterializada. E Kant foi dos primeiros a fazer do Tempo uma forma pura do 'sentido'. Isso foi seguido por Heidegger: o Tempo como condição de possibilidade infinita do aparecer dos entes na experiência finita. Heidegger procurou mostrar que a própria filosofia encobriu e apagou a audácia kantiana, pois havia um radicalismo inovador na compreensão do "Tempo como pura afecção de si" (Selbtaffektion). Como é possível materializar o passado vivido? E o futuro por vir? É impossível. Para materializar o Tempo teríamos de o estatizar, ou seja, concebê-lo como algo estático. Ora, o Tempo para ser Tempo não pode ser estático. É dinâmico. Temos de localizar as aparições no ciclo do Tempo. Embora o termo 'localizar' seja um termo inapropriado, não me ocorre outro para falar do presente (no sentido de aqui e agora). Não faria sentido falar de presente sem passado futuro. E é assim que faz sentido a metáfora shakespeariana do "Tempo fora dos gonzos". Também se podia dizer "fora dos eixos". Mas, poeticamente, desengonçado rima melhor que desencaixado. É assim que o Príncipe da Dinamarca expressa a disjunção do tempo: "The times is out of joint". 

Hamlet amaldiçoa o destino, o que lhe foi destinado: endireitar a história, a época, o tempo do lado do direito, no reto caminho, a fim de que, em conformidade com a regra de seu justo funcionamento, avance direito – e segundo o direito. Hamlet não amaldiçoa propriamente a conceção do tempo, mas a sua sorte de estar destinado a endireitar o mundo desconjuntado, a fazer justiça segundo as regras do direito. Hamlet está "out of joint" porque amaldiçoa a sua missão: dever castigar, vingar, exercer a justiça na forma de represália. O erro trágico de Hamlet é inato. É uma perversão na ordem do seu destino que o faz ser Hamlet. O trágico pressupõe um crime grave cujo acontecimento se furta à presença, só se pode deixar reconstruir como um fantasma. O espectro é trágico porque encena o acontecimento ausente. É nessa situação que Hamlet amaldiçoa ser um homem do direito, o reparador de erros que só pode vir como direito após o crime; ele é o herdeiro, deve punir, matar, "a maldição estaria inscrita no próprio direito. Em sua missão assassina".

A análise introspetiva pode ser incómoda. Mandela chegou a dizer: "Eu tinha medo de ser quem sou". Também o Papa Francisco disse: "Seja quem é". E Sérgio Godinho disse: "Pode alguém ser quem não é?; pode alguém ser livre se outro alguém não é?; a corda dum outro serve-me no pé nos dois pulsos, nas mãos no pescoço, diz-me pode alguém ser quem não é?" Dá trabalho olhar para o nosso interior e redigir sobre isso. Até pode parecer esotérico para quem está mais habituado a ler e a escrever sobre ciência e filosofia.

Foi à procura deste “Eu” que Descartes, David Hume, Goethe, e muitos mais, desde poetas, filósofos e cientistas, deram com os burros na água. Por exemplo, alguém disse: "Quem escreveu este poema; quem compôs esta música; quem escreveu esta equação - não fui eu, foi o meu cérebro". Frases como estas incorrem num erro tradicional, que consiste em separar: “Eu”; cérebro; e o resto do corpo a que chamamos nosso. É um facto que a maior parte daquilo que fazemos o fazemos de forma inconsciente: desde que nos levantamos - depois de um sono, umas vezes de sonhos leves, outras vezes de sonhos pesados - e o momento em que adormecemos para outra noite de sonhos. Isto é, não o fazemos com a atenção introspetiva da consciência. Mas é claro que tudo o que fazemos somos nós próprios a fazê-lo, seja consciente ou inconscientemente. A expressão “nós próprios” refere cada um de nós em toda a sua plenitude, de corpo inteiro. Portanto, o que o poeta quis dizer, quando disse que não foi ele que escreveu o poema, foi que tinha sido sem o completo escrutínio da vontade e da consciência, a que ele chamou “Eu”. Digamos que foi inconscientemente, ou como outros dizem: "uma emanação do subconsciente". Todas estas expressões são “maneiras de falar”, que nunca vão ao cerne da questão. O que é afinal o “Eu”? Sabemos que tudo o que é mental passa pelo cérebro. Por exemplo, um neurocientista diz: 

“Nos doentes com manifestações de doença bipolar secundária, verificou-se que a maioria das lesões foram encontradas em locais do cérebro com ligações a um grupo específico de regiões do córtex cerebral relacionadas com a regulação do humor e das emoções. Descobrimos que as localizações das lesões associadas à ocorrência de episódios de mania se caracterizam por uma forte conectividade com três áreas do córtex cerebral do lado direito: o córtex orbitofrontal, o córtex temporal inferior e o polo frontal, que têm sido descritas como integrantes do circuito límbico, que é uma rede neuronal que tem sido associada à regulação do humor e ao processamento das emoções”. 
Este exemplo, é para chamar a atenção para o facto de que não é a engrenagem do cérebro subjacente ao comportamento, e a todas aquelas manifestações a que chamamos mental, que está e causa quando fazemos a crítica, mas a estrutura conceptual que temos de utilizar para compreendermos o que é a mente, e como ela se correlaciona com o cérebro, incorporando também um conjunto de ideias e uma atitude sobre o homem e sobre o mundo tidas como evidentes. Isso implica distinguir o que é vivo e não vivo, e dentro do vivo o que é considerado animado e inanimado. Por exemplo, o cérebro é um órgão vivo, mas no que respeita ao domínio "animado/inanimado", é inanimado. Existe o Homem. E o Homem é um ser animado. à propriedade animada chamamos mente. E a mente para se manifestar precisa do cérebro. Mas o cérebro é um órgão tão inanimado como é o fígado ou o pâncreas. Em termos de ambiguidade, é mais ambíguo o coração do que o cérebro, porque o coração é sentido pelo homem, e o cérebro não. Não foi por acaso que Aristóteles identificou a alma do homem no coração. 

Todo este relambório serviu para dizer que é um engano dizer-se: "a mente é o cérebro", como alguns dizem; ou "está no cérebro", como dizem outros. O cérebro é a parte inanimada da mente do Homem. E a mente propriamente dita é que é a parte animada do HomemEsta introspeção antropológica não é uma espécie de zoologia aplicada ao Homem. O Homem (homo sapiens) tem mais mundo, não se confinando apenas ao mundo circundante como os outros animais. Tem: uma língua; símbolos, instrumentos e artefactos; mitos; normas e valores. Este Mundo e esta Natureza não se podem deduzir de uma causalidade pura e simples do cérebro, ou do chamado “corpo material”. 

É claro que simplificamos as coisas para nos entendermos melhor. Reservamos o conceito de mente à parte animada, a que os antigos chamavam alma, apenas para distinguir o Homem dos outros animais. Porque, bem vistas as coisas, em termos puramente conceptuais, e não em termos da especificidade científica, não é o cérebro como órgão biológico que nos distingue, por exemplo, dos macacos, mas sim a mente, a que alguns podem chamar espírito, e outros podem chamar alma.

O Homem é o único animal que se questiona, perguntando: “quem sou eu, ou o que sou? E duvidando se existe um verdadeiro “Eu”, ou se será ilusório. É da tradição do pensamento ocidental, que remonta a Aristóteles e ao judaico-cristianismo, dizer-se – no que respeita à diferença entre o homem e o macaco – que há algo mais de diferente do que apenas a quantidade (tamanho do cérebro) e a qualidade de inteligência, reduzida apenas a coisas como a matemática, o desenho, ou a música. E a epopeia de Ulisses na Odisseia de Homero? E a distinção entre o bem e o mal? Os antigos resumiam isto da seguinte maneira: "É a capacidade da razão humana em perceber a ordem cósmica, transcendendo épocas e indivíduos, que o faz ocupar o lugar que ocupa nessa ordem cósmica." 

domingo, 30 de agosto de 2020

Uma multidão


O caráter de uma multidão é mais do que a soma dos indivíduos que a formam. Ou seja, não é pelo comportamento individual dos membros que a formam que podemos avaliar os efeitos da multidão como entidade única.


Às Portas de Brandemburgo 20.000 pessoas num mar de cartazes, exibindo slogans para vários gostos, desde teóricos da conspiração a acusar Bill Gates, símbolos de grupos conotados com a extrema direita, e até com Ramakrishna, sem máscara nem distanciamento, desafiam as autoridades que não tinham autorizado a manifestação. Mas o tribunal solicitado a intervir, deferiu a autorização da manifestação, com a ladainha do cumprimento das regras emanadas pela autoridade de saúde pública. O tribunal determinou que o uso de máscara no protesto não é obrigatório, mas que os participantes devem manter uma distância de 1,5 metros entre si.

O protesto, intitulado “Festa da liberdade e da paz”, reúne “pensadores livres”, ativistas anti-vacinas, adeptos das teorias da conspiração, militantes da extrema-direita ou até comerciantes que prejudicados pelas restrições. Uma multidão muito heterogénea, com pessoas de todas as idades, famílias com crianças, enquadrada por um forte dispositivo policial de cerca de 3.000 agentes. “Não sou simpatizante da extrema-direita, estou aqui para defender as liberdades fundamentais”, afirmou um manifestante, Stefan, um berlinense de 43 anos, com uma t-shirt com a inscrição “Pensar ajuda!”, ouvido pela agência France-Presse (AFP). “Estamos aqui para dizer que é preciso ter atenção. Com ou sem crise do coronavírus, temos de defender as nossas liberdades”, disse Christina Holz, uma estudante de 22 anos, que usava uma t-shirt pedindo a libertação de Julien Assange, fundador da Wikileaks detido no Reino Unido

As pessoas, a começar pelos comentadores e pivôs dos telejornais, manifestam-se estupefactas com este tipo de manifestações de protesto em maça não apenas em Berlim, mas também em Paris e Londres, contra a obrigatoriedade do uso da máscara na rua, numa altura em que os casos de infectados com o SARS-CoV-2 está de novo a subir em flecha nessas cidades. 

Ora, isto é caso para dedicarmos um tempinho a estudar o assunto, pedindo ao Ramalho que vire a página e volte a ler de novo. Esta é a ciência da convivência social em contexto, analisando o comportamento das pessoas a fim de seguirmos a exploração da natureza humana agrupada numa multidão. O enigma do fenómeno humano formatado em multidão. As influências situacionais das manifestações nas ruas são variadas na sua natureza, mas esta não tem aparentemente ligação direta com o tipo de crises que mobiliza as pessoas para a rua a fim de protestar. Agora, há um padrão que é constante: no meio de uma multidão as pessoas modificam-se. A conformidade é a cola que ajuda a manter a sociedade coesa. Ela mantém as ruas lotadas da cidade em sincronia durante um determinado tempo.

Seguir o grupo pode-nos conduzir através de situações desafiadoras, mas não garante o acerto, nem mesmo um resultado positivo. Em alguns casos, as consequências de conformidade podem ser totalmente destrutivas. A conformidade pode contribuir para o funcionamento eficiente da sociedade. Mas as pessoas estão a conformar-se demais, entrando num processo de automatismo. E isso não é bom porque retira o sentido crítico necessário à eficácia da ação. O rumo dos acontecimentos pode ser diferente se várias pessoas, ou até apenas uma, acabar por liderar o rebanho ousando questionar com mais vigor o rumo dos acontecimentos.

Nós, humanos, temos por hábito nos debater com perguntas sobre o eu. A questão de quem realmente somos nos impulsiona a fazer viagens inspiradoras de autoexploração, mas também nos conduz a revelações preocupantes de deficiências pessoais. E é aqui que surge o momento do eu cultural. Os processos de autopercepção dependem do contexto. E a introspecção gera informações diferentes em momentos diferentes. O sentido do “Eu” varia, dependendo de com quem se está. A identidade é maleável e as preferências pessoais são construídas na hora. Mas nada disso é mau. Então você não é a pessoa que pensou que fosse, pelo menos não o tempo todo. Nenhum de nós é um produto acabado. Quando acreditamos que há um “Eu” verdadeiro esperando para ser descoberto, é quando damos com os burros na água. O nosso potencial parece que se estreita, e o mundo à nossa volta parece estar cheio de ameaças que carecem de explicação.

Tal como acontece com grande parte da vida diária, esse processo de introspeção está sujeito ao poder do contexto. Ou seja, a conclusão de que as situações importam não se limita ao comportamento público ou ao que pensamos sobre os outros. Mesmo a mais particular das perceções - o nosso próprio sentido de eu - é influenciada por onde estamos e com quem estamos, embora possamos resistir quando são outros que nos dizem diretamente o que somos ou deveríamos ser. Em outros casos, usamos o desempenho dos outros como ponto de comparação mental. Esta influência de outras pessoas sobre a forma como pensamos o “Eu” prende-se com o carácter social que o “Eu” comporta. Contextos sociais mais amplos influenciam a nossa percepção do “Eu” de forma significativa. É a cultura em que crescemos que nos ensina a pensar sobre nós mesmos, tanto através do ensino explícito como por sinais subliminares. Na cultura ocidental, enfatizamos o que nos distingue das outras pessoas. Cada pessoa é incentivada a explorar o seu potencial. E assim, a frase muito em voga nos últimos dias “Black Lives Matter” é um exemplo disso. Todos somos especiais. É preciso elevar a nossa autoestima, como quem diz “quem chora mama”. Ao passo que nas culturas asiáticas, como a China e Japão, o “Eu” é enquadrado numa visão mais interdependente, assim como em muitas culturas africanas e latino-americanos. Nessas sociedades, a identidade é tipicamente um conceito mais coletivista que enfatiza a ligação entre o indivíduo e aqueles ao seu redor. Ou seja, o “Eu” é pensado mais significativamente em termos de relações com os outros e como alguém se encaixa na trama da sociedade como um todo.

Claro que, como ocorre com qualquer generalização, essa divergência de mentalidade cultural é uma tendência, e não uma regra. A excelência individual e a realização pessoal não são ignoradas nas sociedades asiáticas, nem a coesão interpessoal é um conceito estranho para os americanos. Ora a psicologia das multidões tem recebido ultimamente grande atenção por parte dos cientistas sociais devido ao novo paradigma mediático resultante do efeito da Internet. Seres humanos conectados por redes sociais vulneráveis à manipulação por meio de mecanismos automatizados de difusão de desinformação.

A teoria do contágio, formulada por Gustave Le Bom, afirma que uma multidão exerce uma influência hipnótica sobre os seus membros. Protegidos por anonimidade, as pessoas abandonam a sua responsabilidade individual e cedem às emoções contagiosas da massa. Assim, a multidão assume vida própria, agitando emoções e conduzindo as pessoas para irracionalidade, que muitas vezes termina em violência. No entanto, o paradigma que tem norteado a opinião dos sociólogos até agora não tem demonstrado que exista uma tal "mente coletiva".

Entretanto a teoria de Gustave Le Bom tem sido reformulada com o contributo de autores de variadas tendências epistemológicas. Segundo Robert Park, as interações sociais se fortalecem quando as pessoas sob pressão partilham o mesmo tipo de emoção, de maneira que os indivíduos tendem a refletir o comportamento coletivamente. Qualquer pessoa pode agir como líder do grupo por meio de ações autoritárias, e esta posição pode variar de acordo com a situação. Membros da multidão tendem a seguir o líder instintivamente. Freud também teorizou o fenómeno das multidões, segundo ele, quando uma pessoa se torna membro de uma multidão, a sua mente inconsciente é liberta. A multidão fornece uma libertação momentânea de desejos reprimidos. Apesar de a sua teoria ser útil para explicar o comportamento de massas, argumenta-se que ela não é fundada em observação factual. Em alguns casos, massas podem ser a manifestação de desejos reprimidos, mas isso não é verdade para todas as multidões.

A tradição da identidade social assume que as massas são formadas por múltiplas identidades, e constituem sistemas complexos, ao invés de um sistema unitário, uniforme. Esta teoria destaca a distinção entre identidade pessoal, que se refere a características únicas de um indivíduo, e a identidade social, que se refere ao próprio reconhecimento do indivíduo como membro de uma determinada categoria social. Embora tais termos possam ser ambíguos, é importante salientar que todas as identidades são sociais no sentido de definir uma pessoa em termos de relações sociais. E que a identidade social é o que conecta e aproxima os membros de uma multidão.

sábado, 29 de agosto de 2020

Pós-pós-modernismo e instalações


O pós-pós-modernismo é um conjunto abrangente de desenvolvimentos críticos ao pós-modernismo na cultura ocidental, desde a filosofia e sociologia, passando pela arquitetura e arte, bem como a literatura. O pós-modernismo começou pela 
arte pós-moderna, propriamente dita, num conjunto de movimentos artísticos que buscavam contradizer alguns aspetos da era moderna liderada pelo iluminismo europeu. Durante a primeira fase da Revolução Russa, este novo projeto de arte foi apropriado pelo poder político co a retórica da criação de uma sociedade de vanguarda. E tal objetivo dependia de uma cultura de vanguarda. Este projeto também pode ter ido de encontro às necessidades de rápida industrialização. O trabalho de Brancusi, envolvendo a busca de uma pureza da forma, abria caminho para as várias abstrações que estariam por vir.

Uma dessas abstrações foi o minimalismominimalismo artístico, e até científico, percorreu diversos momentos do século XX, com a preocupação de usar o mínimo de elementos fundamentais como base de expressão. Os movimentos minimalistas tiveram grande influência nas artes visuais, no design, na música, e na própria tecnologia. minimalismo nas artes plásticas surge após o apogeu do expressionismo abstrato, movimento que marcou a mudança do eixo artístico mundial da Europa para os Estados Unidos. Correspondia, pela redução formal, a uma perceção fenomenológica nova, capaz de transferir para o espectador a qualificação da obra de arte. Era o caso das obras de Dan Flavin, que com tubos luminosos, o objetivo era modificar o ambiente da instalação. É a partir daqui que começa a emergir o conceito de instalação na exposição das obras de arte. Os objetos geométricos com a sua pureza formal, tinha por si só uma forte influência construtivista. Os construtivistas, através da experimentação formal, procuravam uma linguagem universal da arte, passível de ser absorvida por toda a gente. minimalismo propriamente dito surgiu de artistas como Sol LeWitt, Frank Stella, Donald Judd e Robert Smithson.



É a arte de instalação, como arte conceptual, como produção cultural, que se manifesta como construção e desconstrução, que se torna inter/média. Uma arte que se tornou multimédia, um "Design" a utilizar vídeo, um grafismo que se tornou retro, techno, punk, grunge, praia, beach e pastiche, tudo tendências a dar nas vistas. Cada um tinha seus próprios locais para instalar as instalações, passe a redundância, nem sempre bem recebidas, umas vezes com tomates, outras vezes com ovos podres.

A produção destes artistas, em geral, tendia a ultrapassar o problema tradicional do suporte. O suporte passou também a fazer parte da obra, da instalação. O chamado "não-objeto" da instalação, numa amálgama de escultura e pintura, que não era nem escultura nem pintura.


Donald Judd [1928-1994] de Excelsior Springs (Missouri), nos Estados Unidos da América, frequentou a escola de arte Art Students League e a Columbia University, ambas em Nova Iorque. Donald Judd procurou superar o carácter representativo, ilusório e simbólico da pintura. Por isso considerava-se um escultor. Interessava-lhe a tridimensionalidade e a relação que os objetos estabeleciam com o espaço e com o solo. Nos seus trabalhos, que resultam de uma radical simplificação das formas, dos materiais e das cores, pretendia acentuar as qualidades físicas e plásticas, sem imitar ou expressar nada para além da realidade física e sensível das formas. Uma redução, portanto ao ferro, madeira, alumínio, e por aí fora. Por exemplo, caixas de madeira empilhadas até ao teto. Séries de quadrados ao loongo de uma parede, etc. Interesse pela serialidade, a combinatória e a variação de figuras simples. 

Algumas produções que evidenciaram superação e diferenciação do pós-modernismo foram desenvolvidas por volta das décadas de 80 e 90 do século XX. E isto levou alguns a tentar fazer aqui uma demarcação com o pós-modernismo arriscando chamar pós-pós-modernismo
pós-modernismo surgiu após a Segunda Guerra Mundial como uma reação às falhas percebidas do modernismo, cujos projetos artísticos radicais chegaram a ser associados ao totalitarismo. As características básicas do chamado pós-modernismo podem ser encontradas já na década de 1940, principalmente na escrita de Jorge Luís Borges. No entanto, o pós-modernismo começou a competir com o modernismo no final da década de 1950. E ganhou ascendência sobre ele na década de 1960. Desde então, o pós-modernismo tem sido uma força dominante, embora não incontestável, na arte, na literatura, no cinema, na música, no teatro, na arquitetura, na história e na filosofia continental. Em suma. muitos veem o pós-modernismo apenas como uma rotura. 




Os traços salientes do pós-modernismo são carregados de ironia, com estilos que denotam um profundo ceticismo em relação à natureza humana, um desprezo pela metafísica através de uma narrativa niilista,  ironicamente autoafirmando-se como grande narrativa de citações e transliterações. Passou a representar o declínio dos afetos por parte do sujeito a migrar com toda a força para o mundo virtual. Nos anos finais do século XX gerou-se um sentimento, tanto na cultura popular como na academia, que o pós-modernismo estava a colocar o mundo fora dos eixos. No entanto, não houve nenhuma preocupação em arranjar um nome, e empurrando a questão com a barriga, como agora se costuma dizer, toca de lhe acrescentar mais um "pós". Ainda nenhuma designação se tornou formalmente parte do uso convencional. No entanto, um tema comum das tentativas atuais de definir o pós-pós-modernismo está a emergir como aquele em que fé, confiança, diálogo, desempenho e sinceridade andam pelas ruas da amargura. 

Tom Turner, 74 anos, arquiteto paisagista, critica o credo pós-moderno de “tudo vale”, sugerindo que as profissões do ambiente construído estão a testemunhar o amanhecer gradual de um pós-pós-modernismo em busca de uma fé que tempere a razão. 
Em particular, Turner defende o uso de padrões orgânicos e geométricos intemporais em planeamento urbano. Como fontes de tais padrões, ele cita, entre outros, a obra influenciada pelo taoísmo do arquiteto americano Christopher Alexander, a psicologia da gestalt e o conceito de arquétipos de Carl Jung. Em relação à terminologia, Turner nos exorta a “abraçar o pós-pós-modernismo – e rezar por um nome melhor”.

Mikhail Naumovich Epstein, 70 anos, um estudioso e ensaísta literário russo-americano que é Samuel Candler Dobbs Professor de Teoria Cultural e Literatura Russa na Emory University, Atlanta, EUA, diz a certa altura no
seu livro de 1999 sobre o pós-modernismo:“faz parte de uma formação histórica muito maior - a pós-modernidade. Epstein acredita que a estética pós-modernista acabará por se tornar inteiramente convencional e fornecer as bases para uma nova narrativa não irónica, que ele descreve usando o prefixo “trans":  “trans-subjetividade”, “trans-idealismo”, “trans-utopismo”, “trans-originalidade”, “trans-líricismo”, “trans-sentimentalismo”, etc. Como exemplo, Epstein cita o trabalho do poeta russo contemporâneo Timur Kibirov com 65 anos de idade.



Hans Ronald Mueck

Hans Ronald Mueck, mais conhecido como Ron Mueck, é um escultor autraliano hiperrealista a trabalhar em Inglaterra. 
Cresceu vendo os seus pais construírem brinquedos, pois sua mãe fazia bonecos de pano e o seu pai brinquedos de barro. Segundo relatos, Mueck adquiriu esse perfeccionismo por causa de seu pai, que sempre exigia que fizesse tudo perfeito. No início da sua carreira foi fabricante de marionetas e modelos para a televisão e filmes infantis. As obras são incrivelmente realistas. Se não fosse o tamanho de suas esculturas, elas seriam facilmente confundidas com pessoas. Ou são muito grandes ou muito pequenas, jamais do tamanho humano. Utiliza materiais como resina, fibra de vidro, silicone e acrílico.

O Hiper-Realismo, que teve início na década de 1970, é um estilo de arte que se expõe através de pintura e escultura, em que predomina a minúcia dos detalhes ao ponto de se confundir com a realidade. No caso da pintura, os quadros parecem fotografias, principalmente fotos ampliadas para destacar a ilusão de óptica.

O pós-milenismo foi introduzido em 2000 pelo teórico cultural americano Eric Gans para descrever a era depois do pós-modernismo em termos éticos e sociopolíticos. Gans responsabiliza o pós-modernismo pelo discurso vitimista. Na visão de Gans, a ética do pós-modernismo é derivada da identificação com a vítima periférica, que desdenha o centro utópico ocupado pelo perpetrador. O pós-modernismo neste sentido é marcado por uma hiperprodução para se opor à hegemonia patriarcal do modernismo iluminista. O ressentimento em relação ao capitalismo e à democracia liberal, não passa de um efeito colateral. 
Eric Lawrence Gans, 79 anos,  é um estudioso da literatura americana, filósofo da linguagem e antropólogo cultural. Desde 1969 que ensina e publica literatura do século XIX, teoria crítica e cinema no Departamento de Estudos Franceses e Francófonos da UCLA. Em contraste com o pós-modernismo, o pós-milenismo rejeita que o foco se centre apenas na vítima, de modo a diminuir o excesso de ressentimento que existe no mundo, fomentada desde os primeiros pós-modernistas. Gans desenvolveu a noção de pós-milenismo em muitas das suas Crónicas de Amor e Ressentimento. A desgraça destes tempos é fruto de uma ignorância fanática que é visível nos ativistas participantes em manifestações num verdadeiro estado de transe, que se traduz apenas em atos de violência e vandalismo. Que, diga-se em abono da verdade, fomentado ou facilitado pela sua ampliação nos média e redes sociais.

Em 2010, os teóricos da cultura Timotheus Vermeulen e Robin van den Akker introduziram o termo metamodernismo como uma intervenção no debate do pós-pós-modernismo. Num artigo - “Notas sobre o metamodernismo” - afirmaram que os anos 2000 são caracterizados pelo surgimento de uma sensibilidade que ultrapassou tudo o que estava para trás, e que tem a ver com a ecologia, as modificações do clima, as crises financeiras, e a instabilidade geopolítica da globalização. Apesar de ser uma sensibilidade mais informada, diriam hiperinformada, não evita a ingenuidade mais idealista, e mais fanática. Aqui, o prefixo ‘meta’ não tem nada a ver com postura reflexiva, tendo a ver mais com a metaxi de Platão, que coloca em confronto os extremos em polos opostos. Raoul Eshelman com a sua performática, 64 anos, Munique; e Gilles Lipovetsky com a sua hipermodernidade, 75 anos, França, são contribuintes líquidos com os seus trabalhos teóricos para a compreensão do que está em causa nesta crise de valores: as alegadas consequências do pós-modernismo.

Os antiestetas preocuparam-se em desconstruir imagens mediáticas e para isso utilizaram especialmente a fotografia, considerada o meio por excelência dos média. Contudo, o uso da fotografia guardava outro interesse, que era provocar o mercado da arte. A fotografia seria a ferramenta ideal para questionar a aura do objeto de arte porque, como havia argumentado Walter Benjamin, ela não possui original. Para confrontar ainda mais a dependência do mercado de objetos marcados pela aura da originalidade, alguns artistas propuseram o uso da imagem de obras de outros artistas em práticas que desafiavam a fronteira ideológica entre plágio e apropriação. Alguns produziram trabalhos fazendo montagem de narrativas com imagens de obras de outros artistas e recusaram-se a definir um significado para as suas obras. Para eles, os significados poderiam ser múltiplos porque a arte está no recetor, ou espectador. E cada um pode interpretar a arte a seu bel prazer. 

quinta-feira, 27 de agosto de 2020

A propósito de fake news de declarações de Joacine Katar Moreira acerca do QI dos afrodescendentes



Esta notícia foi avaliada pelo Polígrafo da SIC, em 24 de agosto de 2020, com o carimbo de falso.

A propósito desta notícia veio-me à memória o processo de avaliação do QI dos imigrantes por parte de cientistas americanos na viragem do século XIX para o século XX. Nesta história entra um tal Henry Herbert Goddard [1866-1957], um proeminente psicólogo e eugenista norte-americano do início do século XX. Ele é especialmente conhecido pelo seu trabalho de 1912 The Kallikak Famili: A Study in the Heredity of Feeble-Mindedness, que ele mesmo mais tarde passou a considerar um disparate. Foi ele que cunhou o termo “idiota” (QI 51-70) para rotular os débeis mentais, um termo que com o passar do tempo passou a ser usado como injúria. De 1906 a 1918, Goddard foi diretor de pesquisa na Vineland Training School for Feeble-Minded Girls and Boys, em Vineland, Nova Jersey. Foi o primeiro laboratório para o estudo do atraso mental. Atualmente os termos idiota e imbecil estão arraigados na linguagem injuriosa, mas naquela altura faziam parte de uma taxonomia bem precisa: os idiotas não dominavam com suficiência a linguagem falada acima dos três anos de idade. E os imbecis não conseguiam adquirir a capacidade de escrita acima dos sete anos de idade. E a seguir vinham as pessoas com idades mentais entre os oito e os doze designados por débeis metais. Estes trabalhos inseriam-se num programa mais vasto que pretendia evitar a entrada de imigrantes atrasados mentais na América do Norte.


Mas antes de prosseguir com a saga da imigração dos europeus para a América do Norte no dealbar dos anos 1900, e o QI, façamos o enquadramento do caso Joacine Katar Moreira, por um lado, e as narrativas eufóricas dos psicólogos eugenistas da viragem século XIX/século XX.


A introdução de quotas étnico-raciais foi uma das “bandeiras” da campanha de Joacine Katar Moreira para as eleições legislativas de 6 de outubro de 2019. A agora deputada não inscrita era a cabeça de lista do Livre por Lisboa e defendia que o sistema servia para reduzir assimetrias estruturais que só com dezenas de anos é que iam ser resolvidas. E não para valorizar uns e desvalorizar outros. “O ideal era que não fossem necessárias quotas para as pessoas que não estão em Portugal continental, o ideal era que não fossem precisas quotas para pessoas com deficiência, o ideal era que também não fossem necessárias quotas para mulheres. Isto no mundo ideal, só que infelizmente não vivemos no mundo ideal”, disse Katar Moreira numa entrevista à Agência Lusa em 14 de setembro de 2019. “Se existem essas quotas, é natural que também seja necessário a existência de quotas étnico-raciais”, defendeu na mesma altura. No entanto, a agora deputada nunca falou na criação de quotas étnico-raciais na educação pelo facto de os alunos afrodescendentes serem menos inteligentes, assim como nunca abordou o tema das prisões nessa perspetiva. Tal como Katar Moreira, o Livre também não fala de quotas nas prisões ou na educação, nem de um QI inferior nos afrodescendentes em comparação com os caucasianos. Portanto, a avaliação do Polígrafo é: Falso.


Uma vez que alegadamente Goddard tinha identificado o gene causador da deficiência mental, o remédio parecia ser bastante fácil: proibir a reprodução dos débeis mentais nativos, e impedir a entrada de elementos estrangeiros desse tipo no país. Assim, em 1912, Goddard e seus colaboradores visitaram a Ilha Ellis a fim de ver a melhor solução para identificar os deficientes mentais. A Ilha Ellis é uma ilha na foz do Rio Hudson que, ao longo do século XIX e começo do século XX, foi a principal entrada de imigrantes nos Estados Unidos. A ilha, situada no porto de Nova Iorque, é um símbolo da imigração para os Estados Unidos. Lê-se numa transcrição de declarações de Goddard:
[...] Naquele dia, pairava uma bruma sobre o porto de Nova Iorque e nenhum imigrante podia chegar a terra. Mas uma centena deles estava a ponto de sair do controlo. Por isso, pegou num rapaz que lhe pareceu um atrasado mental, e com a ajuda de um intérprete, já radicado, submeteu-o ao teste. Goddard, usando a escala de Binet, obteve o resultado: 8. Goddard disse que ele era um deficiente. Mas o intérprete reagiu dizendo: isso parece-me injusto, pois eu, quando vim para cá, se tivesse feito o teste nem isso atingiria.[...]
Mas Goddard, entusiasmado com as experiências, por ser o primeiro a introduzir a escala do célebre Binet na América, angariou fundos para realizar um estudo como devia ser. E então, na Primavera de 1913, enviou duas colaboradoras à Ilha Ellis para trabalharem durante dois meses e meio. Tinham instruções para selecionar os débeis mentais com um simples olhar, tarefa que Goddard preferia confiar a mulheres, a quem atribuía uma intuição inaptamente superior. 

Mais do lado americano do que do lado europeu, diga-se de passagem, foram adotados testes de inteligência para avaliar o grande contingente de imigrantes europeus que assolava o porto de Nova Iorque no início do século XX. O estado de pobreza e de fome era tal nesses imigrantes, que os americanos meteram na cabeça a ideia, que se tornou paranoica, que se tratavam de débeis mentais, e passaram a recear que, se não tomassem medidas, tal debilidade mental iria propagar-se por via genética a toda a América do Norte.

A Família Kallikak foi o grande objeto de estudo de Goddard - um estudo sobre a hereditariedade da debilidade mental, 1912. Goddard concluiu que várias características mentais eram hereditárias e que a sociedade deveria limitar a reprodução de pessoas que possuíssem essas características. O nome Kallikak é um pseudónimo usado como nome de família ao longo do livro. Goddard cunhou o nome das palavras gregas καλός / kallos que significa bom; e κακός / kakos, que significa mau.

Concluiu no estudo que todos eram descendentes de um soldado que entrou na Guerra dos Estados Unidos. Martin Kallikak casou-se com uma nobre mulher Quaker, todos os seus filhos eram crianças saudáveis sem sinais de atraso mental. Mais tarde foi descoberto que Kallikak tinha tido um relacionamento com uma jovem atiradiça. Como resultado dessa união, várias gerações de criminosos nasceram, a que Goddard chamou: "uma raça de degenerados defeituosos". No início o livro teve imenso sucesso. Mas não tardaram as críticas aos métodos utilizados. E o que é de assinalar é o facto de passados dez anos Goddard passou a concordar cos os seus críticos.

O uso incorreto dos testes de inteligência tiveram efeitos muito perniciosos. Por um lado reforçou a tese hereditária; segundo induziu a falácia da inteligência como um bloco, uma única entidade, uma grandeza escalonada situada na cabeça das pessoas. É uma falácia monstruosa pensar que a inteligência é algo herdável de forma irreversível, em vez de ser um conjunto de aptidões modificáveis pela educação. A falácia habitual consiste em supor que, se a herança explica determinada percentagem de variação entre os indivíduos pertencentes a um mesmo grupo, o mesmo deve explicar entre grupos distintos, por exemplo, entre brancos e de cor. 

Alfred Binet evitou estas falácias, mas os psicólogos americanos deturparam as intenções de Binet, achando que estavam a medir uma entidade chamada inteligência. Essa suposta objetividade esteve na base da Lei de Restrição da Imigração promulgada em 1924, através da qual se restringia o acesso aos Estados Unidos de pessoas provenientes de regiões "geneticamente" desfavorecidas. A teoria da hereditariedade do QI foi uma invenção americana. Quando Alfred Binet (1857-1911) decidiu estudar o QI, não podia pôr em causa o estado da ciência que vigorava na altura, como aliás nenhum cientista em qualquer época consegue fazer um trabalho de investigação desrespeitando as regras estabelecidas. E o que vigorava era a medição dos crânios. Assim, Binet escreveu em 1898: "A relação entre a inteligência dos indivíduos e o volume da sua cabeça foi confirmada por todos os investigadores metódicos sem exceção em várias centenas de sujeitos. É incontestável". 

Binet era incapaz de contestar Broca, que era vaca sagrada. Mas, cinco anos mais tarde, Binet já não tinha tantas certezas depois de ter estudado crianças nas escolas, comparando a medida dos seus crânios com a classificação dos professores acerca dos mais inteligentes e dos mais estúpidos. Não batia a cara com a careta. A dada altura, como Binet era um eminente psicólogo da Sorbonne, começou a temer a sua vulnerabilidade: por um lado à sugestão, que consistia na tenacidade dos preconceitos inconscientes; e depois era surpreendente como a maleabilidade dos dados quantitativos e objetivos se moldavam a uma ideia pré-concebida. Binet tinha visto o perigo quando a certa altura começou a aperceber-se da tentação inconsciente que tinha de arredondar para cima o volume da cabeça de uma criança inteligente, e de arredondar para baixo a de uma não inteligente. Binet e o seu discípulo Simon tinham medido as mesmas cabeças de indivíduos classificados de idiotas e imbecis no hospital onde Simon fazia estágio. E então Binet verificou que os valores de Simon eram claramente inferiores aos seus. E atirou o defeito às medições dele e não às de Simon. Mas da segunda vez, com as mesmas cabeças, fez questão de se preocupar com isso. E a verdade é que, como estava à espera, as diferenças foram menores. De facto, todas as cabeças haviam encolhido de uma experiência para a outra.

Binet já nessa altura temia aquilo que viria a ser chamado de "profecia que induz a sua própria realização". Corresponde àquela frase que os antigos professores, e já na sua idade, se dirigiam a um aluno, filho de um seu ex-aluno, com a seguinte frase: "tu és burro, que o teu pai já era burro".

É realmente muito fácil descobrir sinais de atraso num indivíduo quando se foi previamente advertido que ele é atrasado. Binet era contrário à posição dos hereditaristas, que consideravam uma criança atrasada para sempre. Como podíamos ajudar uma criança se lhe empigirmos um rótulo de incapacidade biologicamente determinada? Todas as suas advertências foram mais tarde ignoradas, e as suas instruções distorcidas pelos hireditaristas americanos.

quarta-feira, 26 de agosto de 2020

A Revolta Árabe no tempo de Lawrence


Lawrence, em Sete Pilares da Sabedoria: “os beduínos eram pessoas estranhas” 
Abdullah

Quanto à situação tática, Abdullah pouco se interessou, com o pretexto, impertinente, que era assunto de Faiçal. 

Para um inglês, viver com beduínos era pouco satisfatório, a menos que tivesse uma paciência tão vasta e profunda como o mar. Eram absolutamente escravos do seu apetite, sem energia mental, viciados em café, glutões por carne estufada, inveterados cravas de tabaco. Passavam os dias intermediando os seus raros exercícios sexuais, a deleitar-se com histórias depravadas.

Se as circunstâncias das suas vidas lho tivessem permitido, seriam puros sensualistas. A sua força era a força dos homens geograficamente afastados da tentação: a pobreza da Arábia tornava-os simples, castos e resistentes. Se fossem forçados a levar uma vida civilizada, teriam sucumbido, como qualquer raça selvagem, às suas doenças, mesquinhez, luxo, crueldade, vigarice, artifício; e, como selvagens, teriam sofrido todos esses males exageradamente, por falta de imunização.

Nós estávamos imensamente fatigados, e não comíamos desde o pequeno almoço do dia anterior. Mas Mohammed era ainda um moço, e desafiou-nos para uma corrida de camelos até uma elevação onde havia um grupo de árvores espinhosas. E nós feitos burros aceitamos. É claro, foi ele que ganhou, embora por centímetros. Mas depois desmaiou, a sangrar pelo nariz e pela boca. Receamos o pior, mas com uma chávena de café arrebitou. Prosseguimos então viagem, e ele continuou a fazer as piadas do costume, e as partidas cruéis. A excitar as camelas picando-lhes o rabo, e elas a desatarem a correr desabridas surpreendendo o cameleiro. Depois lançou um camelo a galope contra outro que o empurrou contra uma árvore próxima. E o cameleiro ficou todo arranhado e ferido por um ramo espinhoso. E eram estas brincadeiras que os outros achavam muita piada, exceto ele.


O porto de Aqaba era naturalmente tão forte que apenas poderia ser tomado de surpresa, a partir do interior. Mas a oportuna adesão a Faiçal de Abu Tati deu-nos esperanças de juntarmos à nossa causa tribos suficientes no deserto oriental para essa descida sobre a costa. Vira Alepo, Bassorá, Wejhe, e tinha o cuidado de manter a inimizade com quase todas as tribos do deserto, para ter um bom ânimo para os seus ataques. No seu estilo de assaltante era tão realista quão impetuoso, e mesmo nos seus feitos mais loucos havia sempre um rol de possibilidades que o conduzia. Quando se enfurecia, o seu rosto movia-se desgovernadamente, e sofria um paroxismo de paixão, que só conseguia aliviar depois de ter matado. Nessas alturas era um animal selvagem, e os homens fugiam da sua presença. Via a vida como uma saga. 

Lawrence

A ascensão do nacionalismo turco ainda Império Otomano, culminou na Revolução dos Jovens Turcos em 1908. Tal facto,  desagradando aos Hachemitas, resultou numa cisão entre eles e os revolucionários otomanos. Durante a Primeira Guerra Mundial, no início, Hussein esteve do lado dos turcos. Mas depois encetou negociações secretas com os britânicos a conselho de seu filho Abdullah.

A Revolta Árabe foi oficialmente iniciada em Meca - 10 de junho de 1916. O objetivo da revolta era criar um único Estado Árabe unificado e independente que se estendia de Alepo a Aden, no Iémen. E os britânicos comprometeram-se a reconhecer. Os Hachemitas e o seu exército liderado por Hussein, com o apoio da Força Expedicionária Britânica no Egito, lutou com sucesso e forçou a retirada dos otomanos de grande parte de Hejaz e Transjordânia. Em Damasco chegou a ser estabelecida uma monarquia liderada por Faiçal, filho de Hussein, mas de curta duração. O Estado Árabe Unificado gurou-se após o Acordo Sykes-Picot, em que os ingleses voltando com a promessa atrás, acordaram com os franceses partilhar o território sob o seu mandato.

Estima-se que as forças árabes envolvidas na revolta contassem com cerca de 5.000 soldados. Este número, provavelmente diz respeito aos regulares árabes que lutaram durante a campanha do Sinai e da Palestina com a Força Expedicionária Egípcia de Edmund Allenby, e não às forças irregulares sob a direção de Lawrence e Faiçal. Em algumas ocasiões, principalmente durante a campanha final na Síria, esse número aumentaria significativamente. Muitos árabes juntaram-se à revolta esporadicamente, geralmente durante uma campanha ou apenas quando a luta entrou em sua região natal. Durante a Batalha de Aqaba, por exemplo, enquanto a força árabe inicial somava apenas algumas centenas, mais de mil outras tribos locais juntaram-se a eles para o ataque final a Aqaba. As estimativas das forças efetivas de Faiçal variam, mas durante a maior parte de 1918, pelo menos, elas podem ter chegado a 30.000 homens.

Nos primeiros dias da revolta, as forças de Faiçal eram em grande parte compostas por beduínos e outras tribos nómadas do deserto, que eram apenas aliados vagamente, leais mais às suas respetivas tribos do que à causa geral. O beduíno não lutaria a menos que fosse pago antecipadamente com moedas de ouro, e até ao fim de 1916, os franceses gastaram 1,25 milhões de francos ouro para subsidiar a revolta. Em setembro de 1918, os britânicos estavam a gastar 220.000 libras por mês para subsidiar a revolta. Faiçal esperava poder convencer as tropas árabes que serviam no Exército Otomano a se amotinarem e se juntarem à sua causa, mas o governo otomano enviou a maioria de suas tropas árabes para a linha da frente ocidental da guerra e, portanto, apenas um punhado de desertores realmente aderiram as forças árabes até ao fim da campanha.

Faiçal

As tropas otomanas no Hejaz somavam 20.000 homens em 1917. Com a eclosão da revolta em junho de 1916, o VII Corpo do Quarto Exército foi estacionado no Hejaz para se juntar à 58ª Divisão de Infantaria comandada pelo Tenente-Coronel Ali Necib Pasha, o 1º Kuvvie-Mürettebe (Força Provisória) liderado pelo General Mehmed Cemal Pasha, que tinha a responsabilidade de salvaguardar a ferrovia de Hejaz. Diante dos crescentes ataques à ferrovia de Hejaz, em 1917, foi criado o 2º Kuvvie-Mürettebe. A força otomana incluía várias unidades árabes que permaneceram leais ao sultão-califa e lutaram bem contra os aliados.

As tropas otomanas desfrutaram de uma vantagem sobre as tropas hachemitas no início, pois estavam bem fornecidas com armas alemãs modernas. Além disso, as forças otomanas tiveram o apoio dos esquadrões da aviação otomana  e esquadrões aéreos da Alemanha.

A grande fraqueza das forças otomanas era que estavam no fim de uma longa e ténue linha de abastecimento na ferrovia de Hejaz e, por causa das deficiências logísticas, muitas vezes eram forçadas a lutar na defensiva. A principal contribuição da Revolta Árabe para a guerra foi prender dezenas de milhar de soldados otomanos que de outra forma poderiam ter sido usados ​​para atacar o Canal de Suez, o que permitiu aos britânicos realizar operações ofensivas com menor risco de contra-ataque. Esta foi de facto a justificação britânica para iniciar a revolta, um exemplo clássico de guerra assimétrica que tem sido estudado repetidamente por líderes militares e historiadores. 

Em junho de 1916, os britânicos enviaram vários oficiais para ajudar a revolta no Hejaz. Um deles é o  coronel Stewart Francis Newcombe. E em outubro de 1916 juntou-se T.E. Lawrence com a patente de capitão. 
O historiador britânico David Murphy escreveu que, embora Lawrence fosse apenas um entre muitos oficiais britânicos e franceses servindo na Arábia, os historiadores costumam escrever como se fosse apenas Lawrence quem representasse a causa Aliada na Arábia.

Lawrence obteve ajuda da Marinha Real para recuar um ataque otomano a Yenbu em dezembro de 1916. A principal contribuição de Lawrence para a revolta foi convencer os líderes árabes - Faiçal e Abdullah - a coordenar as suas ações em apoio à estratégia britânica. Lawrence desenvolveu um relacionamento próximo com Faiçal, cujo Exército Árabe do Norte se tornaria o principal beneficiário da ajuda britânica. Em contraste, as relações de Lawrence com Abdullah não eram boas, pelo que o Exército Árabe Oriental de Abdullah recebeu consideravelmente menos ajuda britânica. Lawrence persuadiu os árabes a não expulsar os otomanos de Medina, e em vez disso atacarem a ferrovia de Hejaz persistentemente. Isso amarrou mais tropas otomanas, que foram forçadas a proteger a ferrovia e reparar os danos constantes. A cidade costeira de Weijh seria a base dos ataques à ferrovia de Hejaz, rota de 
peregrinação Damasco-Meca, construída com grande custo pelo Império Otomano no início do século XX, que rapidamente caiu em ruínas após a Revolta Árabe. 

terça-feira, 25 de agosto de 2020

Da presença portuguesa no Oriente


E se vós, emigrantes, tendes de vos fazer ao mar, aquilo que vos impedirá, também a vós, será ainda uma crença. 

Friedrich Nietzsche. 

Se não queres pagar hotel, apanha um autocarro noturno, e poupas o preço de um quarto. Dormes em andamento que fica mais barato. De manhã chegas a Malaca para veres os restos da Famosa. Se fores novo as dores nas costas passam num instante. Faz de conta que és Francisco Serrão, o capitão da expedição que Afonso de Albuquerque enviou pela Indonésia abaixo no maior dos secretismos em 1511. A razão? Obviamente os produtos locais, o sabor exaltante a especiarias dos pratos locais.




Malaca durante 130 anos (1511-1641) foi uma colónia Portuguesa. Afonso de Albuquerque procurou erguer fortificações permanentes, antecipando os contra-ataques do Sultão Mahmud. Uma fortaleza foi construída no sítio do palácio do Sultão, destruído durante a luta pela cidade. Para defender a cidade, os portugueses ergueram um forte, cuja porta, chamada Famosa, ainda existe, como se vê na fotografia acima. 
Fazendo parte da Fortaleza de Malaca, foi em tempos a Porta de Santiago. Esta era uma das antigas portas que se rasgavam na muralha da cidade, defendida pelo baluarte do mesmo nome, voltado para o mar, que ali chegava à época. 

Em 1521 o Capitão Duarte Coelho Pereira construiu a igreja de Nossa Senhora do Monte. Em 1526, uma grande força de navios portugueses comandada por Pedro Mascarenhas (c.1484-1555) foi enviada para destruir Bintan, onde estava Mahmud. O sultão fugiu com a família para Sumatra, do outro lado do estreito, onde veio a falecer dois anos depois.

O controlo português de Malaca não significava o controlo do comércio asiático que por ali passava. O domínio sobre o local sofria com dificuldades administrativas e económicas. Em vez de concretizar a sua ambição de controlar o comércio asiático, o que os portugueses lograram foi desorganizar a rede mercantil da região. Desaparecera o porto centralizador do comércio e, com ele, o Estado que policiava o Estreito de Malaca. O comércio espalhou-se por diversos portos a expensas de embates militares no estreito. Em 1641, já depois de Francisco Xavier, jesuíta, ter passado em Malaca de 1545 a 1550, os portugueses perderam o controlo de Malaca para as mãos dos holandeses - Companhia Neerlandesa das Índias Orientais. 




Em sua origem, "A Famosa" era o epíteto da primitiva torre, erguida por Afonso de Albuquerque aquando da conquista da cidade em 1511, mas que foi severamente danificada quando do cerco de 1640/41, e que culminou com a conquista da cidade pelos holandeses. 

Entre o final da década de 1560 até cerca de 1590, várias foram as alterações introduzidas na defesa. Na parte da cerca da cidade voltada ao mar, construiu-se o baluarte de São Pedro, também denominado como "Couraçada". A extremidade norte da cerca passou a terminar no baluarte de São Domingos e a extremidade sul no de Santiago, ligados por uma paliçada. No centro da paliçada pelo lado sul foi erguido o baluarte das Onze Mil Virgens. O perímetro murado da cidade totalizava então 1310 braças. Quatro portas davam acesso ao recinto fortificado, uma de cada lado. As mais usadas eram a Porta da Alfândega, que dava acesso à ponte sobre o rio de Malaca, e a Porta de Santo António, a leste do baluarte das Onze Mil Virgens. Nos últimos anos de domínio português, Malaca foi transformada numa Praça-forte quase inexpugnável, convicção que era partilhada pelos neerlandeses. 

A praça mudou de mãos uma vez mais em 1795, desta vez entregue de bandeja para as mãos dos ingleses. Era preferível ficar nas mãos dos ingleses do que dos franceses, que se encontravam num ímpeto expansionista imparável sob a batuta de Napoleão. Em 1807 o Governador inglês, William Farquar, ordenou a demolição da fortificação, a pretexto das elevadas despesas de manutenção e, afirma-se, para prevenir que ela fosse utilizada contra os interesses britânicos na região. Nesse momento as defesas foram mais uma vez testadas, uma vez que centenas de trabalhadores não conseguiriam partir nem remover as antigas pedras, tendo sido necessário recorrer a explosões consecutivas que, uma testemunha ocular, descreve deste modo: "...pedaços do forte tão grandes como elefantes, foram pelos ares e caíram ao mar". 



A missão de Francisco Serrão foi de uma importância fulcral para o futuro da presença portuguesa no Oriente era localizar a origem de duas das mais ambicionadas especiarias daquela época: o cravinho-da-índia e a noz-moscada. Naquela época a economia eram as especiarias. Na época que está para findar tem sido o petróleo. Naquele tempo as caravelas, hoje os petroleiros. Como chegar às míticas “Ilhas das Especiarias” era o ômega do início da Idade Moderna. Francisco Serão resolveu-o. Depois de localizar as Molucas, a armada de António de Abreu regressa a Malaca com as excelentes notícias. Mas o navio de Serrão naufragara. O português salva-se e consegue alcançar Ternate. Já não regressa, morre em Ternate em 1521.

Francisco Serrão, amigo de Fernão de Magalhães, na sua viagem de 1512, foi o primeiro europeu de que se tem notícia a navegar para o leste, além de Malaca, através da Indonésia, alcançando as lucrativas "Ilhas das Especiairias”, no arquipélago das Molucas. Aliou-se ao sultão Bayan Sirrullah, que governava Ternate, onde se fixou, tornando-se seu conselheiro pessoal. O navio de Serrão naufragou, mas conseguiu chegar à ilha de Luco-Pino. Com uma tripulação de nove portugueses e de nove indonésios, o navio foi arremessado por uma tempestade de encontro a um recife ao largo de uma pequena ilha. A sua tentativa de reunir-se a Abreu foi impedida pela tempestade e ele desembarcou na ilha de Ternate.

Quando os habitantes da ilha, conhecidos saqueadores de naufrágios, tomaram conhecimento do naufrágio do barco de Serrão, dirigiram-se para o local. A tripulação de Serrão encontrava-se desarmada, pelo que necessitava de auxílio. Quando os saqueadores se aproximaram os portugueses não estiveram com meias medidas, atacaram e capturaram tanto as embarcações como os seus tripulantes. Os seus salvadores involuntários foram então obrigados a conduzi-los a Amboino, onde desembarcaram em Hitu. A armada de Serrão, o mosquete, e a sua experiência náutica impressionaram os poderosos chefes de Hitu que se encontravam em guerra contra Luhu, o principal assentamento na península Hoamal na ilha de Ceram perto de Hitu. Os portugueses também foram bem recebidos na região como compradores de alimentos e de especiarias num momento de baixa naquele comércio, causado pela interrupção temporária das navegações Javanesas e Malaias para a região desde os conflitos de 1511 em Malaca. Os visitantes foram recrutados como aliados militares e as suas subsequentes explorações foram notadas pelos vizinhos rivais de Ternate e Tidore, tendo ambos enviado emissários para induzir os visitantes a ajudá-los.

Ao aliar-se de forma pessoal a Ternate, o poder mais forte na região, Serrão passou a servir como chefe de um bando de mercenários portugueses ao serviço do sultão Bayan Sirrullah, um dos dois senhores mais poderosos que controlavam o comércio de especiarias. Tendo-se tornado amigos íntimos, o Sultão nomeou Serrão como seu conselheiro pessoal para todas as questões, incluindo as militares. 
Tendo sido bem recebido pelo Sultão, Francisco Serrão decidiu permanecer ali, sem fazer qualquer esforço para retornar a Malaca.

As cartas de Serrão a Magalhães, levadas para Portugal via Malaca, e descrevendo as "Ilhas das Especiarias", ajudaram Magalhães a persuadir a Coroa Espanhola a financiar a sua viagem de circum-navegação. Ambos tinham feito planos para se encontrarem nas Molucas, o que não veio a acontecer. Serrão morreu em circunstâncias misteriosas na ilha de Ternate, e Magalhães morreria também mais ou menos na mesma altura, na ilha Mactán, nas Filipinas. António Pigafetta, 
o cronista da expedição de Magalhães, registrou, a  8 de novembro de 1521, que quando os sobreviventes da expedição aportaram a Tidore, foram informados que: 
[...] Ainda não havia oito meses tinha morrido em Ternate um Francisco Serrão, capitão general do rei de Ternate contra o rei de Tadore… depois, feita a paz entre eles, tendo ido um dia Francisco Serrão a Tadore contratar cravo, este rei mandou envenená-lo e não viveu mais que quatro dias,… o qual deixou um filho e uma filha pequenos de uma mulher que trouxe de Java Maior.

A herança deixada por Serrão foi uma diminuta quantidade de cravo avaliada em 200 bahares. Pigafetta, neste ponto da narrativa regista que Magalhães teria empreendido a viagem de circum-navegação baseado nas informações de Serrão e que este estaria a par das vicissitudes do seu amigo na Península. 

Veio a falecer na vizinha ilha de Tidore, em circunstâncias pouco esclarecidas, no mesmo momento em que Magalhães também falecia na ilha Mactán, em Cebu, nas Filipinas [...]

segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Os Uigures




Os Uigures são um grupo étnico minoritário de língua turca culturalmente afiliada à região geral da Ásia Central e Oriental. São reconhecidos como nativos da Região Autónoma Uigur de Xingiang, no noroeste da China, uma das 55 minorias étnicas reconhecidas na China.

Desde 2015, estima-se que mais de um milhão de uigures foram detidos nos campos de reeducação de Xinjiang. Os campos foram estabelecidos sob a administração Xi Jinping com o objetivo principal de garantir a adesão à ideologia nacional. Os críticos do tratamento dado pela China aos uigures acusaram o governo chinês de propagar uma política de sinicização, termo que significa que todas as religiões devem refletir a cultura e tradições chinesas, conforme definido pelo governo. 




Kashgar é uma cidade oásis com aproximadamente 350.000 habitantes situada na parte ocidental da Região Autónoma Uigur de Sinquião, cuja capital é Urumqi. Situada a oeste do deserto Taklamakan, no sopé das montanhas Tian Shan, a cidade está a uma altitude de 1.290 m. Kashgar situa-se no cruzamento entre as rotas que provêm do vale do Amu Daria, de Khokand e Samarcanda, Almaty, Aksu e Kotan. Daí a sua importância política e comercial. A cerca de 200 km a oeste da atual cidade, mesmo na fronteira com o Quirguistão, passava a antiga Rota da Seda. A autoestrada do Karakorum liga Islamabad, capital do Paquistão, a Kashgar, atravessando o passo Khunjerab. Os Uigures professam maioritariamente a religião muçulmana, e Kashgar tem uma importante comunidade muçulmana.

Em 31 de outubro de 1981, ocorreu um incidente na cidade devido a uma disputa entre Uigures e chineses Han, na qual três foram mortos. O incidente foi reprimido por uma unidade do exército. Em 1986, o governo chinês designou Kashgar como "cidade de importância histórica e cultural". Kashgar e as regiões vizinhas têm sido o local da agitação uigur desde a década de 1990. Em 2008, dois homens uigures atacaram polícias. Em 2009, o desenvolvimento da cidade velha de Kashgar acelerou após as revelações do papel mortal da arquitetura defeituosa durante o terramoto de Sichuan em 2008. Muitas das casas antigas na cidade velha foram construídas sem regulamentação e, como resultado, as autoridades descobriram que elas estavam superlotadas e não cumpriam os códigos de incêndio e terramoto. Kashgar foi incorporada à República Popular da China em 1949. Durante a Revolução cultural, uma das maiores estátuas de Mao na China foi construída em Kashgar, perto da Praça do Povo.




A história do povo uigur, assim como a sua origem étnica, é uma questão de discórdia entre os nacionalistas uigures e a autoridade chinesa. Os historiadores uigures viam os uigures como os habitantes originais de Xinjiang com uma longa história. O político e historiador uigur Muhammad Amin Bughra escreveu em seu livro A History of East Turkestan, enfatizando os aspetos turcos de seu povo, que os turcos têm uma história de 9.000 anos, enquanto o historiador Turghun Almas incorporou descobertas de múmias Tarim para concluir que os uigures fizeram 6.400 anos de história, e o Congresso Mundial Uigur reivindicou uma história de 4.000 anos no Turquestão Oriental. No entanto, a visão oficial chinesa afirma que os uigures em Xinjiang se originaram das tribos Tiele e só se tornaram a principal força social e política em Xinjiang durante o século IX quando migraram para Xinjiang vindos da Mongólia após o colapso do Uyghur Khaganate, substituindo os Han. Os chineses estavam lá desde a dinastia Han. Muitos estudiosos ocidentais contemporâneos, no entanto, não consideram os Uigures modernos como descendentes lineares do antigo Khaganato uigur da Mongólia. Em vez disso, eles os consideram descendentes de vários povos, um deles os antigos uigures. 

As análises de ADN indicam que os povos da Ásia central, como os Uigures, são todos caucasianos e asiáticos do leste. Ativistas uigures identificam-se com a múmias de Tarin, vestígios de um povo antigo que habitava a região, mas a pesquisa sobre a genética das múmias antigas de Tarim e suas ligações com os uigures modernos continua problemática, tanto para funcionários do governo chinês preocupados com separatismo étnico quanto para os uigures ativistas preocupados com a possibilidade de a pesquisa afetar sua reivindicação indígena. 

Os antigos Uigures acreditavam em muitas divindades locais. Essas práticas deram origem ao xamanismo e ao tengrismo. Também praticavam aspetos do zoroastrismo. A forte dicotomia entre o bem e o mal era frequentemente representada simbolicamente pelo fogo e pelas trevas. Os uigures tinham altares de fogo como os que existiam no Irão. A data exata em que o povo Uigur adaptou o maniqueísmo como religião oficial foi contestada por muitos académicos. A transição foi relativamente suave porque o maniqueísmo emprestou muitos conceitos religiosos de outras religiões durante a época. A influência de muitos sistemas religiosos diferentes fomentou um ambiente onde o povo uigur poderia fazer um sincretismo de diferentes religiões. Alguns antigos uigures também acreditavam no budismo. Na região da Bacia Ocidental do Tarim, a conversão ao Islã data do início do período Kara-Khanid Khanate. As práticas pré-islâmicas continuaram a prosperar sob o domínio muçulmano. Isso resultou num novo amálgama onde as regras islâmicas se mesclaram com as religiões pré-islâmicas da região para criar novas leis. 




Os Uigures modernos são principalmente muçulmanos e são a segunda maior etnia predominantemente muçulmana na China, depois dos Hui. A maioria dos uigures modernos são sunitas, embora existam conflitos adicionais com as ordens religiosas sufis. Enquanto os uigures modernos consideram o Islão como parte de sua identidade, a observância religiosa varia entre as diferentes regiões. Em geral, os muçulmanos da região sul, Kashgar em particular, são mais conservadores. 

Mulheres usando um lenço, cobrindo a cabeça completamente, são mais comuns em Kashgar do que em outras cidades. O véu, no entanto, foi proibido em algumas cidades desde 2014, depois da moda do véu se ter propagado um pouco por todo o mundo islâmico. Há também uma divisão geral entre os muçulmanos em relação ao muçulmanos Hui. Em Xinjiang as mesquitas são diferentes. No entanto, o governo chinês tem desencorajado o culto religioso entre os Uigures. 

A descoberta das múmias Tarim bem preservadas de um povo de aparência europeia indica a migração de um povo indo-europeu para a área de Tarim no início da Idade do Bronze por volta de 1800 a.C. Essas pessoas podem ter sido de origem tocariana. Alguns ativistas uigures afirmaram que essas múmias eram de origem uigur em parte devido a uma palavra, que eles argumentaram ser uigur, encontrada em escritas associadas a essas múmias, embora outros linguistas sugiram que seja uma palavra sogdiana mais tarde absorvido pelo uigur. Migrações posteriores trouxeram povos do oeste e noroeste para a região de Xinjiang, provavelmente falantes de várias línguas iranianas, como as tribos Saka que dominavam os reinos de Khotan e Shule. Outras pessoas da região mencionadas em textos chineses antigos incluem os Dingling e também os Xiongnu que lutaram pela supremacia na região contra os chineses por várias centenas de anos. Alguns nacionalistas uigures também alegaram descendência dos Xiongnu (de acordo com o texto histórico chinês, o Livro de Wei, o fundador dos Uigures descendia de um governante Xiongnu, mas a opinião é contestada pelos modernos estudiosos chineses.


Os uigures do Khaganato Uigur faziam parte de uma confederação turca chamada Tiele, que vivia nos vales ao sul do Lago Baikal e ao redor do rio Yenisei. Eles derrubaram o Primeiro Khaganato Turco e estabeleceram o Khaganato Uigur, que se estendeu do Mar Cáspio até à Manchúria, de 744 a 840. 
Em 1912, a Dinastia Qing foi substituída pela República da ChinaOs uigures encenaram várias revoltas contra o domínio chinês. Duas vezes, em 1933 e 1944, os uigures conquistaram a independência com sucesso, apoiados por Estaline. Mao declarou a fundação da República Popular da China em 1 de outubro de 1949, e transformou a Segunda República do Turquestão Oriental na Prefeitura Autónoma do Cazaquistão de Ili e nomeou Saifuddin Azizi como o primeiro governador do Partido Comunista na região. 

Muitos legalistas republicanos fugiram para o exílio na Turquia e em países ocidentais. O nome Xinjiang foi mudado para Região Autónoma de Xinjiang Uigur, onde os uigures são a maior etnia, principalmente concentrada no sudoeste de Xinjiang. O conflito de Xinjiang é um conflito separatista em andamento na província de Xinjiang, em que região norte é conhecida como Dzungaria, e a região sul (a Bacia do Tarim) é conhecida como Turquestão Oriental. Os separatistas uigures e os movimentos de independência afirmam que a Segunda República do Turquestão Oriental foi ilegalmente incorporada pela China em 1949 e, desde então, está sob ocupação chinesa.