sábado, 31 de julho de 2021

Voltando ao tema das quotas


«O Plano Nacional de Combate ao Racismo e à Discriminação, publicado esta quarta-feira em Diário da República, não se limita a reconhecer o que todos reconhecemos: existem grupos que são alvo de discriminação muito precisa, em cujos meios é importante intervir. A medida mais prática e simbólica deste plano é a criação de mais de 500 vagas extra no ensino superior, e nos cursos técnicos superiores profissionais, para alunos oriundos de escolas situadas em zonas desfavorecidas que, sem elas, não acederiam a estes níveis de escolaridade.

O oposto de não combater o racismo é incentivá-lo. Este plano impede-nos de fingir que não há racismo em Portugal e é um passo para remediar as consequências que sofre quem já nasceu discriminado. Afinal, as quotas não fazem mal a ninguém.»

Esta questão das quotas é apenas uma das medidas que o Governo quer desenvolver nos próximos quatros anos no âmbito do Plano nacional de combate ao racismo e à discriminação 2021-2025. É o primeiro plano nacional deste género, do qual se destaca ainda o objetivo de desenhar medidas que promovam uma maior diversidade entre os trabalhadores da administração pública: de professores a forças de segurança, de oficiais de justiça a magistrados, de profissionais da cultura aos media. O Governo quer também que o sector público lhe siga o exemplo e por isso pretende incentivar práticas de contratação que promovam a diversidade. Trata-se de uma resposta do Governo ao primeiro Plano de ação da União Europeia contra o racismo 2020-2025. O documento sublinha que o objetivo é “concretizar o direito à igualdade e à não-discriminação através de uma estratégia de atuação nacional que vá para além da proibição e da punição da discriminação”. Quer-se reforçar os meios para a prevenção e combate ao racismo, mas também aplicar “medidas transversais e direcionadas aos vários sectores” para promover “a diversidade de uma sociedade plural”.

Há muito que o tema das quotas é debatido, e tem estado na agenda de movimentos sociais que combatem o fenómeno multifacetado e com várias expressões cuja raiz é a fobia: negro; judeu; cigano; islamofobia; homofobia; etc. Alguns críticos contra as quotas argumentam que as quotas resultam num efeito contrário ao pretendido. Porque uma ideia bem-intencionada - de boa vontade (voluntarista), de apelo aos direitos humanos para defender as minorias - acaba por ser vista como um privilégio concedido às minorias. Quem se opõe às leis e às políticas destinadas a promover direitos de grupos especiais, que acabam por conceder privilégios, causam novas injustiças. Com o argumento de que são nefastas aos direitos gerais que devem ser promovidos de modo igual para todos. Os direitos são dos cidadãos, dos seres humanos, não de minorias ou de grupos, de velhos, de mulheres, de crianças, de doentes, de LGBTQ, de imigrantes, de negros ou ciganos. 

Nesta fase do campeonato não faz sentido pensar que promover a igualdade é criar situações em que as minorias - os grupos vulneráveis, os segmentos mais fracos da população e os grupos mais frágeis - são privilegiadas relativamente à maioria da sociedade que vive do seu trabalho, dos seus rendimentos e dos seus esforços. 
Incluir não é fomentar a criação de novos grupos. A inclusão deve aumentar a integração e não a construção de sociedades fragmentadas. Desta forma as leis não devem ser sectárias, mas sim destinadas a proteger direitos gerais nos quais estão incluídos grupos especiais.

Para o Governo, embora tenham sido dados passos importantes em termos de políticas públicas, continuam a verificar-se “fenómenos de racismo e de discriminação que violam direitos fundamentais”. Como diz o ditado atribuído aos chineses: “Tens fome? Vou dar-te agora um peixe para comeres e saciares a fome; mas também te dou uma cana de pesca para a seguir seres tu a arranjares os peixes que hás de comer”. Ou seja, ao mesmo tempo que se dá a possibilidade de agarrar a oportunidade de chegar onde não podia chegar de outra maneira, também se tem de dar as ferramentas que todos têm de ter para deixar de pedir esmola. E essas ferramentas são dadas na escola, na instrução pública.

domingo, 25 de julho de 2021

Portugal e o mito de Ourique




Recebi a notícia da morte de Otelo Saraiva de Carvalho, no preciso momento em que acabava de escrever esta nota histórico/mítica acerca de um evento supostamente ocorrido na zona de Ourique em 1139, que simboliza a fundação mítica de um Reino, a Batalha de Ourique, em que as tropas lideradas por Afonso Henriques infligiram aos mouros uma derrota que tornou irreversível o rumo da história em direção à criação de um país que em 1974, no dia 25 de abril, seria libertado, de uma ditadura que havia durado uns longos 48 anos, por um grupo de capitães de entre os quais se salientou Otelo Saraiva de Carvalho como o principal estratega da que viria a ser conhecida por Revolução dos Cravos.

Feita esta evocação à memória de Otelo, prossigo então com a ligação da data de hoje a um acontecimento que ocorreu há 882 anos, e que para alguns historiadores assinala o nascimento de Portugal, não de jure, mas de facto. É pelo Tratado de Zamora, assinado a 5 de outubro de 1143, por Afonso Henriques e Afonso VII de Leão, dia que os monárquicos em Portugal costumam comemorar o nascimento de Portugal.

Quem eram os Portugueses? De onde vinham? O que queriam? Porque escolheram e elegeram o Príncipe Afonso Henriques rei de Portugal? O Condado Portucalense era a terra da Cale, do Porto na foz do Douro. E as terras do Condado Portucalense eram não só terras galegas, como constituíam a principal região da Galiza: Braga e a Foz do Douro, que juntava o ativo cristão e o ativo comercial e económico, os principais ativos geoestratégicos da Galiza, o centro nevrálgico das rotas de cabotagem entre os Mares do Norte e o Mar Mediterrâneo.

O dia 25 de julho é o dia de Santiago, o patrono da Galiza. Portugal não pode, no entanto, deixar de ser galego. Galiza e Portugal são duas palavras que querem dizer o mesmo: a terra da Cale e o porto da Cale, nome de origem celta, que significa baía, ancoradouro, e de onde derivaram, aliás, diversos vocábulos marítimos.

Afonso Henriques com 18 anos era o principal rosto da nobreza de Entre Douro e Minho, mas ainda assim estava longe de ser reconhecido como o rei dos Portugueses. Só o foi 11 anos depois, em Ourique. Até lá assinaria como Príncipe de Portugal. Em Ourique, Afonso Henriques foi eleito rei pelos seus pares, ao abrigo do Código Visigótico. A sua eleição como rei dos Portugueses não significou, muito longe disso, que não pretendesse o trono da Galiza e não desejasse que o seu reino fosse da Corunha ao Algarve. A Galiza do Norte, sempre condicionada pela Casa de Trastâmara, acabou por não acompanhar a aventura independentista do Entre Douro e Minho e acabou refém de Castela. E enquanto a língua galega se enriquecia a Sul do Minho, já sob o nome de português, a Norte do Minho acabou corrompida pelo castelhano num continuado, e por vezes violento, processo de desagregação linguístico-cultural do território que hoje é conhecido por Galiza.

A história de Portugal regista a batalha de Ourique em 25 de julho de 1139, dia de Santiago, um dos apóstolos que teria difundido a fé cristã na Península Ibérica. As vitórias de D. Afonso Henriques contra os mouros e as suas ambições políticas em formar um reino independente, carecia de fundamento e do respetivo reconhecimento. Nesse sentido haveria de mistificar a fundação do reino na criação divina. Havia que glorificar e engrandecer as escaramuças, contra o infiel, pela conquista territorial e a expansão da fé. Os mitos fundacionais são na maioria dos casos, senão em todos, uma espécie de mitologia em que o historiador adapta a verdade histórica de forma a inculcar uma determinada visão do passado, ficcionando-a e modelando-a ao serviço dos interesses ideológico-políticos tanto do passado como do presente. 

Segundo uma tradição lendária, no século IX, na Galiza, 
vivia no lugar de Solovio, no bosque Libredón, um eremita chamado Pelágio que observou durante várias noites consecutivas uns resplandeceres misteriosos sobre um montículo do bosque, como se fossem chuvas de estrelas. Muito impressionado pelas luzes, Pelágio decidiu apresentar-se a Teodomiro, então bispo da Iria Flávia, para lhe comunicar o que tinha visto. O bispo reuniu um pequeno séquito e dirigiu-se ao lugar onde também ele contemplou o fenómeno. Foi ali, entre a densa vegetação do bosque, que encontraram um sepulcro de pedra no qual repousavam três corpos, que seriam identificados como sendo de Santiago Maior e dos seus dois discípulos Teodoro e Atanásio. Foram de imediato veneradas sobre o qual viria a ser erguida a Catedral de Santiago de Compostela. Os árabes invadiram a Península em 711 e deixaram, aos ibéricos as Astúrias, onde mantiveram uma resistência à dominação árabe. Nesse período, fazia falta aos hispânicos uma figura que unificasse a luta contra o inimigo comum. As dificuldades no acesso aos tradicionais destinos de peregrinação cristã, Roma e Jerusalém, acabam por conduzir muitos peregrinos a Compostela.

A lenda do “Santiago-mata-mouros”, surgiu relacionado com a lendária batalha de Clavijo em 25 de julho de 844, dia de Santiago, onde um rei cristão, em grande desvantagem numérica, desbaratou e derrotou vários reis mouros. A documentação histórica referente a Clavijo é contestada, e tudo leva a crer que foi o Arcebispo de Toledo, Rodrigo Jiménez de Rada que terá forjado uma narrativa de traços míticos. A lenda conta que Ramiro I teve um sonho no qual o apóstolo Tiago teria garantido a sua presença no campo de batalha e assegurado a vitória. De acordo com essa lenda, no dia seguinte os exércitos de Ramiro I, encorajados pela presença do Apóstolo montado num cavalo branco, a lutar contra os seus adversários, decapitando os mouros e ajudando a vitória dos cristãos do rei Ramiro, onde em grande desvantagem numérica enfrentava as tropas muçulmanas.

É o mesmo da Batalha de Ourique, em 25 de julho de 1139, D. Afonso Henriques, em inferioridade numérica derrota vários reis muçulmanos, precisamente no dia de Santiago. Apesar de existirem vários documentos desde o século XII, que falam sobre a batalha, a menção ao aparecimento de cristo a D. Afonso Henriques só aparece no século XV, cerca de 300 anos depois da suposta batalha, possivelmente redigida por Fernão Lopes, cronista do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, em 1419, numa altura de guerras com Castela. Quando a fronteira do reino de Portugal em 1139 se situava no rio Mondego, era pouco plausível deslocar um exército desta natureza a cerca de quinhentos quilómetros em pleno território inimigo.

Seja como for, o escudo português, com as cinco quinas e as cinco chagas, e que está na bandeira, é uma alusão à Batalha de Ourique. Nestes casos, o brasão tem por missão captar o “valor simbólico” de um acontecimento histórico marcante. Por outro lado, nem sempre o facto histórico é tão evidente. Daí que os símbolos possam ter segundas e terceiras leituras que exprimem uma mensagem esotérica.

D. João III desconfiava da simbologia de Ourique, das lendas e dos Templários. Também não sentia a força ideológica do Culto do Espírito Santo desde D. Dinis. O corte das elites dirigentes - 
que vinha acontecendo paulatinamente desde D. Manuel I com o caso dos judeus - com as tradições, ritos, símbolos, enfim, com a mundivisão do Portugal Mítico, culminou na Inquisição e no golpe de 1580, que colocou Portugal durante 60 anos sob o manto dos Filipes de Castela. Em suma, os mitos foram recalcados para o inconsciente coletivo.

quinta-feira, 22 de julho de 2021

Metanarrativas e Figuras de linguagem





Em tempo de Peste e de Metanarrativas, ontem, no Debate da Nação, foi um fartote em figuras de linguagem no hemiciclo de São Bento, saídas da boca dos senhores deputados. A palavra “narrativa”, foi a que se ouviu mais vezes. Vimos aviões apeados em terra pela força da gravidade; e vimos um palhaço, dos verdadeiros, numa reflexão misantrópica encabeçada pela máxima de Vico: “nada do que é humano me atrapalha”. Por mais que as cruentas e inglórias batalhas do quotidiano o tornem cada vez mais cínico, não “basta” para ele permanecer indiferente às desgraças ou alegrias da humanidade. Haverá sempre no seu coração, por minúsculo que seja, um recanto suave onde ele guarda ecos dos sons do amor no tempo da Peste.

Metanarrativa – é um termo literário e filosófico que significa simplificadamente a narrativa contida dentro ou além da própria narrativa. Jean-François Lyotard [1924-1998] era apologista do fim das grandes narrativas – Iluminismo; Marxismo. Em que uma metanarrativa assume o sentido de uma grande narrativa, um “Paradigma” no sentido de Thomas Kuhn, uma narrativa de nível superior capaz de explicar todo o conhecimento existente ou capaz de representar uma verdade absoluta sobre o universo. Por outro lado, a Bíblia e o Alcorão também seriam metanarrativas com o mesmo valor. Isto levou Jean-François Lyotard à proposição da condição pós-moderna, como uma reação à confiança em relação a estas metanarrativas.

No entender de Lyotard, o declínio das ideologias iluministas e marxistas na sociedade pós-industrial advém do conjunto de fragmentos de histórias variadas e muitas vezes contraditórias sobre um mesmo assunto. Lyotard inventa uma teoria cínica contra a filosofia iluminista. Esta acredita na razão e no progresso científico, que leva o homem à felicidade, emancipando a humanidade dos dogmas, mitos e superstições dos povos primitivos. O marxismo é outro exemplo de metanarrativa. Para os marxistas, a História era impulsionada pelo confronto entre duas classes contraditórias, a burguesia e o proletariado, que resultaria, ao fim da revolução do proletariado, numa sociedade sem classes, de plena liberdade e igualdade.

Em suma, na prática textual, uma metanarrativa é todo o discurso que se vira para si mesmo, questionando a forma da produção da narrativa. A técnica de construção de uma metanarrativa obriga o autor a uma preocupação particular com os mecanismos da linguagem e da gramática do texto.

Não confundamos com ironia. A ironia é uma figura de retórica que consiste em dizer o contrário daquilo que se está a pensar. A ironia é a arte de zombar de alguém ou de alguma coisa, com um ponto de vista a obter uma reação do leitor, ouvinte ou interlocutor. A pessoa está, por exemplo, a elogiar outra, e afinal o que ela quer fazer é desvalorizá-la. O que fazia Sócrates nos diálogos platónicos não era bem ironia. O que ele se armava era em ignorante, e armadilhava o discurso do adversário, até que este chegasse a uma contradição e percebesse assim os erros do próprio raciocínio. A ironia é também um estilo de linguagem caracterizado por subverter o símbolo que, a princípio, representa. A ironia utiliza-se de uma forma de linguagem preestabelecida para, a partir e de dentro dela, contestá-la.

"A vida é breve, a arte é longa, a ocasião fugidia, a experiência enganosa, o julgamento difícil" – é um dos aforismos de Hipócrates, uma longa série de proposições tratando de sintomas e diagnósticos de doenças (semiologia) e a arte da cura em medicina (tratamento). Atualmente o aforismo é compreendido como uma forma concisa e eloquente de declarar a verdade.

Nietzsche foi muito pródigo em aforismos. Assim como Wittgenstein. Nietzsche visava atacar um dos principais pilares da sociedade, a religião: "Deus está morto. Viva perigosamente. Qual o melhor remédio? – Vitória!" E assim, desconstruíamos a visão de vida após a morte, para que possamos viver melhor a verdadeira vida. Para o filósofo 
Nietzsche, o cristianismo era algo decadente, pois um dos seus pontos principais era essa farsa de outra vida pós-morte. 
  • Cada pessoa tem que escolher quanta verdade consegue suportar.
  • A moralidade é o instinto de rebanho do indivíduo. O desespero é o preço pago pela autoconsciência.

Platão, na alegoria da caverna, usa o sol como uma metáfora para a fonte da "iluminação", presumivelmente da iluminação intelectual. A metáfora é sobre a natureza da realidade última e sobre como o conhecimento é adquirido. Sócrates é o narrador de A República, mas é geralmente aceite que o verdadeiro autor é Platão. O olho, diz Platão, é pouco usual entre os sentidos, visto que necessita de um meio, a luz, para conseguir funcionar. A melhor e mais forte fonte de luz é o sol; com a sua luz, os objetos podem ser apreendidos de maneira clara. Raciocínio análogo pode ser dito dos objetos inteligíveis, isto é, das formas eternas e fixas que são os objetos últimos do estudo científico e filosófico: as Ideias.

Na filosofia de Zenão de Eleia, por exemplo, podemos falar de aporias nos juízos sobre a impossibilidade do movimento. Mais tarde, designaram-se alguns diálogos platónicos como aporéticos, isto é, inconclusivos. A aporia pode também ser definida como uma figura de retórica dizendo respeito aos momentos em que uma personagem dá sinais de indecisão ou dúvida sobre a forma de se expressar ou de agir. O melhor exemplo é o célebre solilóquio de Hamlet, de William Shakespeare, consagrado na expressão “to be or not to be”

Mais recentemente, o termo "aporia" foi utilizado com frequência pelos tais autores pós-modernistas. Jacques Derrida foi o maior desconstrutivista. A aporia é identificada pela leitura desconstrutiva do texto, que terá como fim mostrar que o sentido nele inscrito atingirá invariavelmente o nível da indeterminação ou da indecidibilidade. Uma aporia é um núcleo que cria uma tensão lógico-retórica que impede que o sentido de um texto se possa fixar. Um texto, por definição, conterá sempre aporias que servirão para mostrar que esse mesmo texto pode querer dizer algo que escapa a uma qualquer leitura convencional. Nem o texto nem o seu autor estão obrigados a ter conhecimento prévio ou consciência da presença de aporias. Compete ao leitor, pela desconstrução.

Justiça Social e estudos culturais no âmbito da Teoria Crítica


A Lei Orgânica n.º 1/2019 de 29 de março da ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA PORTUGUESA – Segunda alteração à lei da paridade nos órgãos do poder político, aprovada pela Lei Orgânica n.º 3/2006, de 21 de agosto
DECRETA no Artigo 1º que
1 – As listas de candidaturas apresentadas para a Assembleia da República, para o Parlamento Europeu e para os órgãos eletivos das autarquias locais, bem como a lista de candidatos a vogal das juntas de freguesia, são compostas de modo a assegurar a paridade entre homens e mulheres.
2 — As listas de candidatos às mesas dos órgãos deliberativos das autarquias locais são compostas de modo a respeitar a paridade entre homens e mulheres.

Há muito que o tema das quotas é debatido, e tem estado na agenda de movimentos sociais que combatem o fenómeno multifacetado e com várias expressões: desde a “xenofobia (negrofobia ou afrofobia); ao anti judeu e anti cigano. Alguns críticos contra as quotas argumentam que as quotas resultam num efeito contrário ao pretendido. Porque a ideia bem-intencionada, de boa vontade (voluntarista), de apelar aos direitos civis e humanos para defender as minorias, acaba por ser visto como um privilégio concedido às minorias.

Ora, esta questão das quotas é apenas uma das medidas que o Governo quer desenvolver nos próximos quatros anos no âmbito do Plano nacional de combate ao racismo e à discriminação 2021-2025. É o primeiro plano nacional deste género, do qual se destaca ainda o objetivo de desenhar medidas que promovam uma maior diversidade entre os trabalhadores da administração pública: de professores a forças de segurança, de oficiais de justiça a magistrados, de profissionais da cultura aos media. O Governo quer que os sectores público e privado lhe siga o exemplo, e, por isso, pretende incentivar práticas de contratação que promovam a diversidade. Trata-se de uma resposta do Governo ao primeiro Plano de Ação da União Europeia contra o racismo [2020-2025]. O documento sublinha que o objetivo é “concretizar o direito à igualdade e à não-discriminação através de uma estratégia de atuação nacional que vá para além da proibição e da punição da discriminação”. Quer-se reforçar os meios para a prevenção e combate ao racismo, mas também aplicar “medidas transversais e direcionadas aos vários sectores” para promover “a diversidade de uma sociedade plural”.

Mas ao promover a igualdade, não se devem criar situações em que as minorias, os grupos vulneráveis, os segmentos mais fracos da população e os grupos mais frágeis acabem por se encontrar em situação privilegiada relativamente aos que não foram beneficiados por intervenções oficiais, mas que vivem do seu trabalho, dos seus rendimentos e dos seus esforços. As leis e as políticas destinadas a promover direitos de grupos especiais, a conceder privilégios que causem nova injustiça, quem se opõe argumenta que são nefastas aos direitos gerais que devem ser promovidos de modo igual para todos. Os direitos são dos cidadãos, dos seres humanos, não de minorias ou de grupos, de velhos, de mulheres, de crianças, de doentes, de LGBTQ, de imigrantes, de negros ou ciganos. Incluir não é fomentar a criação de novos grupos. A inclusão deve aumentar a integração e não a construção de sociedades fragmentadas. Os autores que discordam de quotas argumentam que elas são sectárias e desiguais, bem como as leis e políticas que deviam ser gerais, destiná-las apenas a proteger grupos especiais.

Segundo as palavras do Primeiro-Ministro do atual Governo, António Costa do Partido Socialista - «Embora tenham sido dados passos importantes em termos de políticas públicas, continuam a verificar-se “fenómenos de racismo e de discriminação que violam direitos fundamentais”». Como diz o ditado, ou máxima popular, feito de conhecimento acumulado ao longo de séculos: de boas-vontades, ou de voluntarismo (como se diz agora), está o inferno cheio. E como diz o outro ditado atribuído aos chineses: “tens fome? Vou dar-te agora um peixe para comeres e saciares a fome; mas também te dou uma cana de pesca para seres tu a arranjares os peixes que hás de comer”. Ou seja, ao mesmo tempo que se dá o subsídio para matar a fome, também se tem de dar as ferramentas que todos têm de ter para não terem de pedir esmola. E essas ferramentas são dadas na escola, na instrução pública.

Se partirmos do princípio que é consensualmente aceitável a ideia de que foi através da construção de um discurso idiossincrático que o homem branco obteve privilégios sociais e poder, então temos de admitir que o desafio desse poder por parte de grupos que subjetivamente o sentiram na pele têm razão para se vingarem com a construção de um novo discurso idiossincrático que lhes confira a precedência de serem eles agora os privilegiados. Mas ainda não é líquido que esse consenso esteja estabelecido na sociedade. E, por outro lado, ainda há controvérsia quanto a realidades autocentradas poderem estar a salvo de oportunismos indevidos no assalto ao poder, legitimando mais uma vez o surgimento de novos privilegiados sem mérito.

A forma até agora aconselhada, a todos os conotados como beneficiários do status quo, tem sido sentirem a obrigação moral de incorporarem na sua mundividência as formas de visão veiculadas pelos designados "Estudos de Cultura e Justiça Social" (feministas; pós-coloniais; etc.). Estes "Estudos" têm como premissa a ideia de que pessoas com diferentes identidades marginalizadas têm diferentes conhecimentos decorrentes das suas próprias experiências pessoais, sentidas e vividas em partilha de identidade de grupo, particularmente devido à sua exposição à opressão e exploração sistémicas.

E foi o sentimento de oprimidas por parte de um sistema dominante branco - instrumentalizado pelo paradigma científico das chamadas ciências duras obcecadas pela objetividade protegida de preconceitos - que forçou as mulheres dos "Estudos de Cultura e Justiça Social" a lutarem com as armas que possuíam: a "Teoria Crítica da pós-modernidade". Estes “Estudos” pressupõe um compromisso político alicerçado numa 'Teoria' e numa 'Ideologia'. E foi assim que os Departamentos de Humanidades das Academias, com este compromisso, se transformaram em efetivos polos geradores de ativismo político. E foi assim que alguns departamentos universitários se tornaram progressivamente mais parecidas com ‘igrejas’, do que 'faculdades', na medida em que professoras e professores passaram a ensinar às suas alunas e alunos, que se tornassem membros de organizações de protesto a favor de causas que elas consideravam legítimas.




Linda Tuhiwai Smith, professora de Educação Indígena da Universidade de Waikato, na Nova Zelândia, vai mais longe quando diz: «Do ponto de vista do colonizado, posição a partir da qual escrevo e que escolho privilegiar, o termo “investigação” está inextricavelmente ligado ao imperialismo e ao colonialismo europeus. A própria palavra investigação é provavelmente uma das palavras mais sujas no vocabulário do mundo indígena». Linda Tuhiwai Smith já foi membro do grupo radical Ngã Tamatoa na década de 1970. Agora, em vez disso, ela considera-se uma docente de estudantes radicais.




As suas afirmações estão em conformidade com os termos defendidos pelos estudos pós-coloniais. Estas ideias para a maioria dos cientistas, inclusivamente alguns cientistas sociais, são, no mínimo, abstrusas, mesmo no campo das ciências sociais, onde a correspondência com a realidade não pode ser dispensada. É incompreensível por parte dos cientistas ditos "convencionais ou tradicionais do paradigma cartesiano/newtoniano", como pode haver investigação científica sabendo-se à partida que não corresponde aos factos, e não dá primazia ao método empírico. Por isso, não pode funcionar, quando o seu objetivo se resume beneficiar grupos específicos de pessoas, por mais marginalizadas que sejam, e por mais justo que possa parecer. A teoria pós-colonial, ao negligenciar a 'Ciência', e ao desprezar a razão como primazia do conhecimento, não pode ser levada a sério.

Andrew Jolivette, em 2015, no seu livro com o título - Research Justice: Methodologies for Social Change – apresenta como argumento-chave: ciência, razão, empirismo, objetividade, universalidade e subjetividade - foram sobrevalorizados no Ocidente como única forma de obter conhecimento. Critica o facto de não ter sido incluída nem a experiência vivida pela emoção, nem as narrativas e costumes tradicionais. Isto tem seduzido
 uma ampla faixa de intelectuais e ativistas, predominantemente de esquerda, mas ao mesmo tempo confundido gente comum, muita dessa gente manifestando-se perplexa. Quando se pergunta: “de onde foram tiradas essas teorias", a resposta é que não se podem dar ao luxo de as questionar, quando está em causa o pagamento de uma dívida por um certo número de atrucidades cometidas ao longo de séculos. Ora, isso tem deixado essas pessoas ainda mais confusas e alarmadas. Por exemplo, engenheiros americanos foram despedidos de uma certa organização hegemónica por dizerem apenas: "obviamente que há diferenças entre os géneros". Um outro caso passou-se na BBC com um humorista. Quando, ao ter tecido piadas que poderiam ser interpretadas como racistas por parte de certos cidadãos, acabou por ser convidado a não continuar com o seu programa.




Gayle Rubin é uma antropóloga cultural americana mais conhecida como ativista e teórica da política de sexo e género. Ela escreveu sobre uma variedade de assuntos, incluindo feminismo, sadomasoquismo, prostituição, pedofilia, pornografia e literatura lésbica, bem como estudos antropológicos e histórias de subculturas sexuais, especialmente focadas em contextos urbanos. O seu ensaio "Thinking Sex", de 1984, é amplamente considerado como um texto fundador dos estudos de gays e lésbicas, estudos de sexualidade e teoria queer. Rubin questionou o sistema de valores que define alguns comportamentos como bons/naturais, contra outros definidos como maus/não naturais. Nesse ensaio, ela questiona o sistema binário chamando-lhe "Círculo Encantado" da sexualidade. A ideia de uma valorização hierárquica dos atos sexuais. Neste ensaio, Rubin também discute uma série de disposições ideológicas que permeiam a sexualidade. Critica a negatividade sexual das culturas ocidentais ao considerarem o sexo como uma força perigosa e destrutiva, quando é contra o matrimónio, a reprodução, o amor. Rubin argumenta que os atos sexuais são problematizados pela sociedade devido a um excesso de 'significado'.

Baseando-se na visão de Michel Foucault - sobre a construção social da sexualidade a partir do século XIX - Gayle Rubin tornou-se profundamente cética em relação às teses da ciência biológica quanto a sexo e sexualidade. Para justificar a sua ideia - rejeita a tese dos biólogos quando afirmam que o sexo é uma força natural que vem antes do condicionamento social. Rubin diz o seguinte: "É impossível pensar com qualquer clareza sobre as políticas de raça ou género, enquanto estas forem pensadas como entidades biológicas ao invés de construções sociais. Da mesma forma, a sexualidade é impermeável à análise política enquanto for concebida principalmente como um fenómeno biológico ou um aspeto da psicologia individual". Gayle Rubin, defende que a heterossexualidade e a homossexualidade é uma construção social, negligenciando completamente a realidade de que os humanos são uma espécie que se reproduz sexualmente. Rubin nega a abundante evidência científica acerca do papel da biologia nas variantes comportamentais no campo da sexualidade humana.

Gayle Rubim tenta persuadir-nos a acreditar que sexo, género, e sexualidade são construções sociais. Não porque seja necessariamente verdade, mas porque é mais fácil politizá-los e exigir mudança. Mais fácil se forem construções sociais do que se forem realidades biológicas. Portanto, Rubin é indiferente ao "o que é", preferindo lutar pelo que "deve ser". E
sta é, aliás, a imagem de marca de todo o pós-modernismo. Naturalmente, isto tem consequências. Esta posição, deste pós-modernismo renovado não deixa de ser abstruso, para não dizer estrambólico, tanto mais quanto captura as instituições vigentes, como se fossem igrejas. É sob dogmas que funcionam as religiões. Que as coisas não são como a ciência diz que são, mas como devem ser segundo o dogma.

quarta-feira, 21 de julho de 2021

Homens e mulheres: evolução e cultura




A imagem que ilustra este artigo como epígrafe intertextual, da autoria do humorista Tom Rhodes, 2009, é uma caricatura de uma outra ilustração, que vem a seguir, da autoria de Rudolph Zallinger [1919-1995], e que faz parte da obra "Marcha do Progresso", também chamada de Estrada para o Homo Sapiens, e que representa alguns milhões de anos de evolução humana. Esta obra faz parte do volume Early Man, da Life Nature Library, publicada em 1965 pela Time Life. Tem sido visto como um retrato desacreditado da ortogénese (evolução é progressiva). Como tal, foi amplamente parodiado e imitado para criar imagens de progresso de outros tipos. A ideia de "progresso" já vinha de Thomas Henry Huxley, com a publicação em 1863 de "Evidence as to Man's Place in Nature". A caricatura de Tom Rhodes tem a ver com o facto de representar a mulher que faltava na ilustração original de Zallinger. Por incrível que pareça ( e este "incrível que pareça" é retórico), todas as representações anteriores apenas se referem ao género masculino, como se a evolução acontecesse sem que homens e mulheres não fizessem o que homens e mulheres podem fazer. Daí que muitos autores considerem errada a perspetiva linear da evolução humana.  




Ortogénese, também conhecida como evolução ortogenética, evolução progressiva, progresso evolutivo ou progressão, era a hipótese biológica de que os organismos têm uma tendência inata para evoluir numa direção determinada como se tivesse algum objetivo. A isto se chama teleologia, que na linguagem de Aristóteles era a força das causas. De acordo com essa teoria, a uma escala maior há uma força absoluta que se encaminha para um fim, no sentido de propósito, que é evidenciada pela complexidade biológica num crescendo progressivo. A teoria dos defensores da ortogénese é uma teoria antitética da teoria da seleção natural de Darwin. Depois do advento da genética, a teoria de Darwin revelou-se ainda mais sólida.

No tempo em que os homens caçavam, as mulheres ficavam com o grupo para cuidar, amamentar, vigiar. Os homens protegiam e as mulheres cuidavam. Como resultado, os seus corpos e cérebros tomaram rumos diversos no processo de evolução e se transformaram para se adaptarem melhor às suas funções específicas. Os homens se tornaram mais altos e mais fortes que a maioria das mulheres, e seus cérebros se desenvolveram para cumprir as tarefas que lhes cabiam. As mulheres ao verem os seus homens saírem para a caça podiam pedir como se pede hoje: “que Deus te acompanhe”. Enquanto elas mantinham o fogo aceso. Seus cérebros, então, evoluíram para atender às funções que precisavam desempenhar.

Assim, por milhões de anos, as estruturas dos cérebros de homens e mulheres foram-se formando de modo diferente. Hoje em dia, sabemos que homens e mulheres processam a informação de modos distintos. Pensam diferente. Têm crenças, perceções, prioridades e comportamentos diversos. Desconhecer este fato é uma receita certa de sofrimento e desilusão para toda a vida. No cérebro as hormonas também têm uma palavra a dizer por intermédios de outros mediadores neuronais – tal como a dopamina, a serotonina e noradrenalina – responsáveis por nossas atitudes, preferências e comportamento. Isso quer dizer que, ainda que criados em uma ilha deserta, sem uma sociedade organizada ou pais que os influenciassem, meninos competiriam física e mentalmente entre eles, formando grupos com uma nítida hierarquia, e meninas trocariam toques e carinhos, se tornariam amigas e brincariam como meninas brincam.

Desde os anos 60, vários grupos vêm tentando nos convencer a renegar a nossa herança biológica, dizendo que esta é uma treta que não é mais do que uma conspiração masculina para manter o poder do patriarcado. Afirmam que governos, seitas religiosas e sistemas educacionais se aliaram ao objetivo masculino de dominação, reprimindo as mulheres que tentavam se destacar. Um modo ainda mais eficiente de controlo seria mantê-las sempre grávidas. Mas aí cabe a pergunta: se homens e mulheres são idênticos, como afirmam esses grupos, por que os homens sempre mantiveram sua dominação? E isso, é bom que se perceba, que não invalida a tese de que homens e mulheres devem ser iguais no direito à oportunidade de desenvolver plenamente as suas potencialidades. Historicamente, parecendo que está certo, se homens e mulheres têm direitos iguais, isto é uma questão política e moral. Se são idênticos, é uma questão científica.
Se estivermos, por exemplo no cinema, ou numa sala cheia de gente, podemos verificar que as mulheres são mais baixas e mais miúdas que os homens. Pode ser que haja uma mulher mais alta e corpulenta que todos os homens, mas, em geral, os homens são mais altos e fortes.
O bando ou tribo só esperava que os homens cumprissem as suas tarefas de caçador e protegessem o grupo, nada mais. Não era preciso "repensar o relacionamento" e ninguém lhes pedia para levar o lixo para fora. O papel da mulher era também muito claro. A necessidade de ser a progenitora perpetuadora da espécie apontou a direção em que deviam evoluir as tarefas numa família. A mulher com a sua extraordinária sensibilidade para identificar as pequenas mudanças na aparência e comportamento das crianças e adultos dotou-a de ser melhor a cuidar dos filhos na doença e na tristeza. Tudo muito simples: ele era o caçador da comida, ela a guardiã da cria. A mulher passava o dia cuidando das crianças, colhendo frutos e sementes e se relacionando com as outras mulheres do grupo. Não tinha que se preocupar com a parte principal do abastecimento de comida, e seu sucesso estava ligado à capacidade de manter a vida em família. Ter filhos era um ato mágico, sagrado mesmo, como se só ela conhecesse o segredo da vida. Ninguém esperava que fosse caçar, enfrentar inimigos ou trocar lâmpadas. A sobrevivência era difícil, mas o relacionamento era fácil. Assim foi por centenas de milhares de anos. Ao fim de cada dia, os caçadores voltavam com os animais abatidos, que eram divididos igualmente, e todos comiam juntos na caverna ou na cabana onde viviam. Cada homem entregava parte da caça à mulher, que, em troca, lhe dava frutos e sementes.

Depois de comer, os homens se sentavam à volta da fogueira, contavam estórias, pregavam partidas uns aos outros, e riam. Depois de um dia tão estafante deviam estar exaustos. Precisavam de recuperar forças para caçar novamente no dia seguinte. As mulheres continuariam a cuidar das crianças e a garantir o descanso e a alimentação do grupo. Cada um apreciava o que o outro fazia. Eles não eram considerados preguiçosos nem elas se sentiam como criadas oprimidas.

Esses rituais e comportamentos simples ainda são encontrados em civilizações primitivas, em lugares como Bornéu, parte da África e Indonésia, e entre alguns aborígenes australianos, maoris da Nova Zelândia e inuits do Canadá e Groenlândia. Nessas culturas, cada pessoa conhece e entende o seu papel. Os homens admiram as mulheres e as mulheres admiram os homens. Cada um reconhece no outro uma contribuição única para a sobrevivência e o bem-estar da família.

Mas, para quem vive nos modernos países civilizados, essas coisas mudaram. A família não mais depende unicamente do homem para a sua sobrevivência e não se espera mais que a mulher fique em casa exercendo as funções de mãe e zeladora. Agora, a maior parte dos homens e mulheres se confundem na hora de definir as suas tarefas familiares. Nós agora passamos por situações que os nossos antepassados duas gerações antes de nós nunca conheceram. Eles repetiam o seu comportamento, 
com os seus papéis claramente definidos, que aprenderam com os pais deles, que, por sua vez, imitaram os pais deles, e assim por muito tempo até regredirmos ao povo das cavernas pré-históricas.

Ainda não é há muito tempo que o ser humano busca amor, romance e realização pessoal, e não em todo o lado. Em primeiro lugar está a sobrevivência. Estando garantida, para muitos pela estrutura de várias instituições governamentais, então entra-se no tempo do Homo Ludens. Então, quais são as novas regras? Onde se pode aprender? Certamente que os nossos pais não nos podem ajudar, porque as regras sociais têm uma sobrevida cada vez menor, tudo mudando muito depressa. O índice de divórcios entre os casamentos recentes está em crescendo todos os dias. E se levarmos em conta as uniões de facto, e os relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo, a verdadeira taxa é abismal. A procura de crianças para adoção sobe exponencialmente. Ninguém sabe ser feliz. Mas também não vai ser preciso no meio do cataclismo do Antropoceno, que se vem anunciando com pezinhos de lã.



terça-feira, 20 de julho de 2021

Um julgamento de sexo ilegal e a venda de esposas na Inglaterra de outros tempos


«Londres, terça-feira, 10 de março de 1612. No Tribunal de Justiça da cidade, os magistrados estão reunidos em sessão: um homem e uma mulher solteiros foram detidos e trazidos até eles. São acusados de terem fornicado um com o outro. A mulher confessa. O homem nega. Não demora muito para que o destino dos dois seja decidido. Eles são levados a julgamento diante de um júri masculino. Depois de interrogados são declarados culpados. Eles não apenas fizeram sexo, mas também trouxeram ao mundo um filho bastardo. Por isso, Susan Perry e Robert Watson devem ostracizados dos seus amigos, família, e modo de vida — devem ser expulsos para sempre da sociedade em que vivem. Os juízes ordenam que os dois sejam levados imediatamente para a prisão da Gatehouse, despidos da cintura para cima, e, assim, atados à traseira da carroça e açoitados desde a Gatehouse, em Westminster, até Temple Bar; e ali, efetivamente, banidos da cidade.»

Estávamos no século XVII. Depois veio o Iluminismo, e chegados ao século XIX, Londres era a maior metrópole do mundo, o epicentro do poder político, da literatura, da cultura e das novas ideias para todo o mundo anglófono. Atitudes e estilos de vida modernos urbanos, novas tendências sociais, intelectuais e sexuais. Tudo o que havia de novo era criado ali primeiro, e os seus efeitos acabavam por ser sentidos em toda a parte, também no que respeitava a questões sexuais, Londres moldava o mundo de uma ponta à outra do Império Britânico – de Edimburgo a Brighton, de Dublin a Nova York, de Delhi a Melbourne. Metade do mundo britânico, chegado a meio do século XIX vivia em cidades de algum porte.

Não há registo do que aconteceu à criança vítima daquele julgamento. O ato sexual, apesar de ser uma prática humana universal, teve sempre uma história social conturbada, devido a muitas ideias equivocadas desde Abraão. O modo como o pensamos, como o tratamos enquanto sociedade, todas as suas conotações, diferem enormemente conforme a época e o lugar. Durante a maior parte da história do Ocidente, a punição pública de homens e mulheres como Robert Watson & Susan Perry era um acontecimento habitual. Às vezes, eles eram tratados de forma mais severa, outras, menos, mas qualquer ato sexual fora do casamento era ilegal, e a Igreja, o Estado e as pessoas comuns dedicavam imensos esforços para suprimi-lo e puni-lo. Parecia óbvio que as relações ilícitas despertavam a ira de Deus, impediam a salvação, feriam as relações pessoais e minavam a ordem social. Ninguém discordava seriamente disto, embora homens e mulheres constantemente cedessem à tentação e tivessem que ser açoitados, presos, multados e humilhados para não se esquecerem. Embora os detalhes variassem de um lugar para o outro, todas as sociedades europeias promoviam o ideal da disciplina sexual e puniam pessoas por sexo consensual fora do casamento. Assim também faziam as suas extensões coloniais, na América do Norte e em outras regiões. Esta era uma característica central da civilização cristã, um aspeto cuja importância vinha crescendo continuamente desde o começo da Idade Média. Só na Grã-Bretanha, no início do século XVII, milhares de homens e mulheres sofriam as consequências a cada ano. Às vezes havia condenações à morte.

Esta é a grande diferença entre o mundo moderno e o mundo medieval. O período entre 1660 e 1800 foi um importante divisor de águas, uma grande mudança secular nas atitudes e comportamentos sexuais. A Guerra Civil Inglesa, e a execução de Carlos I em 1649, a Revolução de 1688, as guerras religiosas entre católicos e protestantes, a expansão da sociedade urbana, todos estes acontecimentos, e muitos outros não se dissociam das mudanças drásticas que ocorreram na cultura sexual europeia. A bem dizer trata-se do Iluminismo que ajudou a criar um modelo totalmente novo de civilização ocidental, cujos princípios de privacidade individual, igualdade e liberdade continuam distintos, até hoje, do resto do mundo sobretudo a oriente. No ocidente, mercê dos debates filosóficos esclarecidos entre intelectuais, deram-se uma série de mudanças sociais e intelectuais, de uma ponta à outra da sociedade, que alterou as noções de religião, verdade, natureza e moralidade de quase toda a população. A revolução sexual demonstra como os modos de pensar iluministas moldaram a sociedade ocidental de forma diferente das outras sociedades ditas “não-ocidentais”.

Isso significa que o Iluminismo não afetou todas as pessoas igualmente, ou de modo favorável. Beneficiou, acima de tudo, uma minoria de homens brancos, heterossexuais e detentores de propriedade. Contradições e disparidades mais óbvias para as mulheres, para as relações homossexuais, para diferentes classes e grupos sociais em outras sociedades ocidentais. Tradicionalmente, a maior parte da população que vivia em pequenas e vagarosas comunidades rurais, era fácil exercer a conformidade social e moral. A vida nas cidades grandes era diferente, em sua escala e anonimato, na circulação cada vez mais veloz de notícias e ideias, e na mera disponibilidade de aventuras sexuais. Ela punha a imposição da disciplina sexual sob uma pressão cada vez maior. O primeiro lugar a vivenciar estas mudanças foi Londres.




Thomas Rowlandson [13 de julho de 1757 - 21 de abril de 1827] foi um artista inglês e caricaturista da era Georgiana, conhecido por sua sátira política e observação social. Artista prolífico e impressor, Rowlandson produziu sátiras sociais e políticas individuais, bem como um grande número de ilustrações para romances, livros humorísticos e obras topográficas. Como outros caricaturistas da sua idade, como Jmes Gillray, as suas caricaturas são muitas vezes robustas e desajeitadas. Rowlandson também produziu uma série de gravuras eróticas altamente explícitas  para uma clientela privada; isso nunca foi publicado publicamente na época e agora só é encontrado num pequeno número de coleções. Caricaturas que incluíam as elites e pessoas do poder político, como a Duquesa de Devonshire, William Pitt, o Jovem e até Napoleão Bonaparte.




Joshua Reynolds nasceu em Plympton, Devon, Inglaterra, a 16 de julho de 1723, e faleceu em Londres, a 23 de fevereiro de 1792. Joshua Reynolds foi um pintor e retratista inglês, um dos principais retratistas do século XVIII. A sua técnica e invocação dos valores morais clássicos, influenciou as gerações seguintes de pintores retratistas. Cores em fortes pinceladas retratando mulheres e crianças. Foi o primeiro presidente da Academia Real Inglesa, preocupando-se em divulgar a arte através dos seus trabalhos e preleções aos estudantes e membros da academia britânica. Está sepultado na Catedral de São Paulo.

Na Inglaterra, a venda de esposas era uma maneira de acabar com a insatisfação no casamento, que era consensual. Esse costume terá começado no final do século XVII, época em que o divórcio era uma impossibilidade prática exceto para os mais ricos. Na visão de um casal que desejava separar-se, de maneira moralmente aceitável embora a venda representasse um vexame, no entanto era legítimo, e portanto socialmente satisfatório. A forma típica desse costume assumia um ritual que buscava assegurar a pretensa legalidade das transações. A venda era anunciada publicamente com antecedência. No dia fixado, o marido levava a esposa, como quem levava um animal pela trela, até ao local onde o leilão ia ocorrer. Negócio feito, a esposa era entregue ao comprador em troca de dinheiro vivo. As vendas também podiam incluir os filhos, e por vezes os valores em dinheiro eram completados com outros bens, nomeadamente pipas de vinho e animais de tração. Isto chegou ao ponto de haver venda e revenda com o fito do lucro. Existem registos de maridos venderem as suas esposas e depois a seguir verem-nas revendidas com lucro.

Embora estes relatos da época tenham muitas vezes intuitos de sátira social, 
a situação não deixa de ser  inerentemente humilhante. Contudo, muitos relatos à época sugerem a independência e a vitalidade sexual das mulheres, e afirmam que o consentimento da esposa era essencial para o sucesso de cada transação. Embora esposas tenham resistido a serem vendidas durante o século XIX, não existem registos de resistência à venda no século XVIII. Com efeito, são conhecidos casos de serem as próprias esposas as proponentes da venda, tal era a sua vontade em se libertarem dos maridos que tinham. E muitas vezes eram elementos da família original da mulher, tanto podiam ser irmãos como pais, que as compravam de volta. E as coisas não ficavam por aqui. Há relatos de ser depois a família a fazer a venda segundo a sua conveniência escolhendo o comprador, escapando assim à aleatoriedade do leilão.  A venda de esposas parece ter sido difundida por toda a Inglaterra, e cerca de quatrocentas ocorrências foram documentadas, um número pequeno em comparação com os casos de abandono conjugal do mesmo período.

Um costume notadamente ilegal a partir de meados do século XIX, passou a constar de processos judiciais. Mas, em geral, a atitude das autoridades públicas e religiosas manteve-se com algumas ambiguidades. Pelo menos um magistrado declarou não aceitar que tivesse o direito de impedir a venda de uma esposa. E houve casos de clérigos e comissários das Poor Laws a forçarem os maridos a venderem as suas esposas como forma de evitar o seu envio para 'workhouses'. Foi a crescente exposição de vendas de esposas nos jornais que fez com que, gradualmente, se acabasse com esse costume. O número de vendas documentadas diminuiu drasticamente a partir de meados do século XIX. Mas a prática, embora residual, ainda se verificava nas primeiras duas décadas do século XX. O último caso reportado, foi em Leeds, em 1926.

O Carnaval de Notting Hill





É um dos carnavais mais conhecidos do mundo. Sobretudo porque se celebra em agosto no popular bairro londrino de Notting Hill.

Subam Notting Hill e observem os veículos de segurança privados, pagos por residentes privados, a patrulhar lentamente as ruas para cima e para baixo em frente de todas aquelas residências de £20M, talvez nervosos com os residentes das habitações sociais que ainda resistem do outro lado de Portobello Road.

Quem não souber a localização exata do carnaval de Notting Hill, ao ver as fotografias pode ficar baralhado. Há mais de 50 anos que a tradição se repete. Em agosto há Carnaval em Londres. Há um toque de samba, claro. Isto porque há 35 anos a escola de samba de Londres se associou à iniciativa que nada tem a ver com a Quaresma.

A expressão “a vida são dois dias e o Carnaval são três” é que não se aplica a Notting Hill já que a folia dura mesmo apenas dois dias. É uma tradição com origem nas chamadas ilhas das Antilhas e Bahamas, ou Caraíbas, trazida para as Ilhas Britânicas dessas comunidades migrantes do tempo colonial. Acabou por se transformar num dos maiores festivais de rua do mundo, atraindo todos os anos cerca de um milhão de pessoas.

À semelhança do que acontece no Brasil, também os foliões demoram vários meses a preparar as “mas” (uma abreviação de ‘masquerade’ — mascarado em tradução livre), todas feitas à mão, cheias de cor, plumas e brilhantes, como se vê num exemplar do cartaz a anunciar o evento para este anos, que se realiza de 29 a 30 de agosto.

Há quem diga que o Carnaval Universal terá origem no Egito Antigo. Depois foi importado pelos Gregos Antigos. E posteriormente pelos Romanos do Império. Como todos os festivais pagãos que se realizavam nos territórios onde o Cristianismo depois se propagou, a Igreja Católica teve o cuidado de os absorver e integrar nos rituais festivos da Cristandade por toda a Europa, mas principalmente da orla mediterrânica. O festival de Carnaval (Carne Vale) foi levado para o Caribe, em princípio pelos traficantes de escravos. Mas os escravos africanos eram excluídos dos bailes de máscaras frequentados pelas elites. Na emancipação dos escravos africanos, os libertos do Caribe transformaram o festival europeu numa celebração do fim da escravatura. Uma nova forma cultural derivada da sua própria herança africana miscigenada com as novas culturas artísticas crioulas desenvolvidas no Caribe. É o Carnaval Caribe, que é exportado para grandes cidades em todo o mundo.

No início da década de 1960, havia um grande número de imigrantes de Trindade e Tobago em Londres que, por serem discriminados, decidiram manifestar-se, embora de forma ordeira e pacífica. E isso aconteceu nas ruas do bairro de Notting Hill. Rhaune Laslett e Claudia Jones são as precursoras da reconhecida “Mãe do Carnaval de Notting Hill”. Inicialmente os festejos faziam-se dentro de casa. Foi daí que surgiu o Carnaval de Notting Hill. E, com o tempo, cresceu e ganhou mais imigrantes de outras ilhas caribenhas.


segunda-feira, 19 de julho de 2021

O cérebro diferenciado: .




Ele e Ela estão a vestir-se para ir a uma festa de aniversário de uma amiga comum. Ela tinha comprado um vestido novo. Queria estar o máximo. Pegou dois pares de sapatos - um azul, outro dourado. E então foi perguntar-lhe: Qual dos dois fica melhor com este vestido? Ele sentiu um frio na espinha: Não sei, leva os que tu gostares mais. Ela, já impaciente, insistiu: Mas diz lá, qual é o par de sapatos que combina melhor com o vestido … o azul ou o dourado? O dourado! - Ele arriscou, nervoso. Achas que o azul destoa muito? E Ele desanimado, já de ombros descaídos: Não gostas do azul? Se não queres a minha opinião não perguntes!

Ele tentou resolver o problema e Ela não ficou satisfeita com a tentativa dele, uma atitude. Em bom rigor, Ela já tinha decidido que sapatos levar à festa, não precisava de uma segunda opinião. O que queria era a confirmação de que tinha feito a melhor escolha. Este é um diálogo que hoje em dia aparece em muitos livros ditos de "autoajuda", na tentativa de resolver os problemas mais comuns que existem na comunicação dentro de um casal. Se a mulher estiver a escolher que sapato usar e perguntar "azul ou dourado?", é importante que o homem saiba que não deve responder. Em vez disso, deve rebater com outra pergunta, como por exemplo: "Qual deles tinhas escolhido?" A maioria das mulheres é apanhada de surpresa por o homem ter uma atitude dessas, já que os homens costumam dar a sua opinião. É difícil encontrar um casal que não reconheça este tipo  de diálogo, porque alguma vez já terá passado pelo mesmo. Mas a verdade é que qualquer mulher não entende como pode aquele seu homem ser um burgesso, quando ela apenas lhe pediu uma mera opinião. 

Se quisermos saber ao certo, sem os preconceitos da tradição conservadora, nem a agenda identitária de escolas de uma sociologia alternativa, temos de ouvir o que os neurocientistas têm para dizer acerca das diferenças que existem nos cérebros dos dois sexos, e com relevância na diferença comportamental sem ser por influência das convenções sociais e culturais. Afinal, que diferenças existem entre os cérebros de homens e mulheres que se correlacionem com comportamentos específicos de género? Ora, é consensual entre neurólogos que o cérebro dos homens difere em alguns pontos do das mulheres em termos anatómicos e funcionais. O cérebro dos homens é mais assimétrico. Ou seja, tem as funções mais lateralizadas. Ao passo que no cérebro das mulheres, as mesmas funções, estão mais distribuídas pelos dois hemisférios cerebrais. Podem até chegar às mesmas conclusões cognitivas, porém, por caminhos diferentes. E embora o cérebro seja bastante plástico para se moldar às influências do meio ambiente, com aprendizagem e cultura, existe algum condicionamento filogenético. Ao longo da história evolutiva humana houve necessidade de enfrentar desafios adaptativos de superação das dificuldades no sucesso reprodutivo e na preservação da espécie.

Homens e mulheres veem o mesmo mundo com olhos diferentes. O homem estabelece relações com os objetos e organiza-os espacialmente, cartografa, mapeia, para depois os reconstruir de forma analítica, como se brincasse com legos. A mulher percebe o cenário de forma mais holística, mas nem por isso deixa de notar os detalhes. A prioridade masculina é perseguir resultados, objetivos, estatuto e poder, alcançar a "linha de chegada" e vencer a competição. As preocupações femininas são a comunicação, harmonia, igualdade, o amor e o relacionamento interpessoal. As diferenças são tantas, que parece surpreendente como um homem e uma mulher aceitam em algum momento viver juntos. O cérebro das meninas é estruturado para responder a pessoas e rostos, enquanto o dos meninos responde a objetos e à sua forma.

Se uma menina brinca com legos, geralmente faz uma construção baixa e comprida, imaginando pessoas lá dentro. Os meninos competem entre si para ver quem faz o prédio maior e mais alto. Eles correm, pulam, lutam e fingem ser aviões e tanques de guerra. Elas conversam. Uma nova colega é bem recebida pelas outras e todas se conhecem pelo nome. O menino recém-chegado é geralmente tratado com indiferença e só é aceite no grupo se o líder achar que pode entrar (isto é Mark Twain em Tom Sawyer e Huckleberry Finn). À despedida os rapazes ainda não sabem o nome do novo colega, mas já sabem se ele é bom a dar uns toques à bola, ou não. Se não, na próxima vai à baliza. As meninas aceitam melhor quem chega e são mais solidárias com coleguinhas que estejam com algum problema. Os meninos com frequência desprezam ou implicam com os mais choninhas.

Numa discussão, por exemplo, o homem consegue argumentar com lógica, manejando as palavras (hemisfério esquerdo), mudando em seguida para soluções espaciais (lobo frontal do hemisfério direito), sem se deixar levar pela emoção. O corpo caloso do cérebro masculino, a comunicação entre os dois hemisférios, é mais reduzido que o do feminino. Não opera tão bem, em simultâneo, a emoção com as outras funções racionais. O cérebro emocional da mulher é bem mais robusto que o do homem. É por isso que as mulheres conseguem desempenhar bem as suas tarefas e chorar ao mesmo tempo. A mulher pode-se emocionar durante uma discussão com o homem, e ainda assim prosseguir. Isso é mais difícil de acontecer com o homem. Ele, ou passa logo para a agressão, para a violência, ou então simplesmente vira costas à discussão, recusa continuar a discutir e vai jogar uma partida de gamão, para descontrair. Assim, não corre o risco de se descontrolar. Como o cérebro feminino pode "ligar" a emoção a outras funções, é possível ver uma mulher chorar e descascar umas batatas, porque se for cebola o homem também chora. O homem vai na estrada, e às tantas tem um furo. Tem de trocar um pneu. Não chora, mas pragueja, o palavrão dá-lhe força e energia. É um desafio à sua capacidade de resolver problemas. E não entra em pânico se descobre que não tem o macaco na mala, ou, tendo tudo pronto, eis que desaba uma bátega de água, ou granizo, ficando todo encharcado. Quando chega a casa, atrasado para o jantar, com as mãos sujas e o corpo molhado, a mulher e os filhos à sua espera para jantar com ar de enfado, e ele em ocasiões destas já não a praguejar, já descarregou toda a sua energia, e, por isso, apresenta-se todo sorridente, dizendo que está tudo bem, nada de drama, podia ter sido muito pior. Orgulhoso de ter vencido mais uma batalha.

Há milhares de anos que se sabe que os homens não são grandes faladores, principalmente se comparados com as mulheres. As meninas não só começam a falar mais cedo que os meninos, como, aos três anos, têm mais ou menos o dobro do vocabulário deles – e falam quase corretamente. Se o menino tiver uma irmã mais velha, os pais notam que a diferença é flagrante. E não tarda, todos à mesa, a irmã e a mãe a atropelarem-no, não o deixando falar. Pergunta-se: "Então como é que vão os estudos, Zequinha?" E quem responde é a mãe ou a irmã: "Ele vai bem, mas é um grande malandro!". Quando alguns homens se juntam para assistir a uma partida de futebol, a conversa resume-se a: "alguém quer mais cerveja?" Mulheres, quando se reúnem em volta da televisão, aproveitam para pôr a escrita em dia.

Os pais deixam a filha mais nova ir com o irmão mais velho ao baile. No dia seguinte, à mesa, os pais perguntam que tal foi o baile. Ela começa a fazer uma descrição muito circunstanciada – quem estava na festa, quem disse o quê para quem e como as pessoas estavam vestidas. E os pais perguntam ao filho: "E tu, não dizes nada?" - "Hum . . . nada de especial". Não podemos ignorar que os homens evoluíram como caçadores e não como comunicadores. Durante a caça, só utilizavam sinais não-verbais e muitas vezes ficavam horas e horas em silêncio à espera da presa. O homem moderno, quando vai pescar com os amigos, também fica muito tempo imóvel, sem falar. Os pescadores gostam de estar juntos, ao lado uns dos outros, mas não veem necessidade de dizer seja o que for, a não ser fumar. Reunião de mulheres é diferente: se estiverem caladas, é sinal de problema grave. Homens só aceitam mais proximidade quando o compartimento do seu cérebro onde fica a comunicação se abre - depois da terceira caneca de cerveja. 

Mercê da grande plasticidade do nosso cérebro, uma boa parte do que somos hoje depende de muita adaptação no passado, em que o cérebro, na sua relação com o meio ambiente, se foi moldando conforme o condicionalismo das contingências e circunstâncias. Enquanto o homem ia caçar, a mulher ficava no acampamento para cuidar da prole e do grupo. Enquanto o homem para caçar tinha de ficar em silêncio para não espantar a caça, a mulher para cuidar e educar tinha de falar. Daí não ser de admirar que a mulher tenha uma área cerebral para a linguagem mais desenvolvida e distribuída pelos dois hemisférios cerebrais. A plasticidade do cérebro acompanha a aprendizagem e caminha em paralelo com ela. Enquanto no homem a resposta do cérebro ao stress, para o preparar para a luta, se processa mais ao nível do córtex pré-frontal direito, que vai estimular as suprarrenais e produzir mais cortisol; na mulher a resposta ao stress faz-se mais através do aumento da atividade do sistema límbico e amígdalas cerebrais, que estão mais relacionadas com os receios, e as emoções destinadas à proteção da família.
Voltando ao episódio da introdução deste artigo, o casal tinha sido convidado para a festa de aniversário e perdera-se no caminho. Um percurso que levaria no máximo vinte minutos de carro, transformou-se num pesadelo. Depois de uma hora às voltas, voltaram para casa e faltaram ao encontro. Ao passarem pela terceira vez pela mesma paragem de autocarro, ela arriscou: a gente devia ter virado à direita na paragem. Vamos parar e perguntar. Mas ele é teimoso, e continua a dizer que está tudo sob controlo. Mas nós já estamos meia hora atrasados. Vamos parar e perguntar! Olha, eu sei o que estou a fazer! Queres pegar tu no volante? Não, eu não quero conduzir, mas não quero andar aqui às voltas toda a noite. Tudo bem. Então, que tal a gente voltar para casa? E então ela remata assim: Estás como o Moisés, que andou 40 anos perdido pelo deserto, e não chegou a pôr os pés na terra prometida porque se recusou a pedir informações a Jeová. Se fosse ela, não teria tido nenhum problema em perguntar a alguém. O problema é que ele não pode admitir que não conhece o caminho. A mulher não se importa de admitir que errou porque, em seu mundo, isso é visto como forma de aproximação e demonstração de confiança. Mas para o homem isto é admitir um grande falhanço.
Agora o casal está deitado na cama e ele, silencioso, concentra o olhar no teto. Ela também silenciosa, porém, não para quieta com os pés, inquieta, portanto: "Ele faz de conta que eu não existo . . . Acho que já não gosta de mim . . . Será que está envolvido com outra?" E ele entretido com a mosca a andar no teto de um lado para o outro, com a cabeça para baixo, e intrigado porque é que a mosca não cai, contrariando a lei da gravidade.
O homem evoluiu para guerrear e resolver problemas. Ele é um caçador e precisa descansar junto da lareira, depois de uma grande jornada arriscada, esta é a história verdadeira. O problema começa quando a mulher reclama que ele não lhe dá atenção. Ao lado de um homem calado, com o olhar perdido, sempre há uma mulher se sentindo desprezada. A orientação do cérebro de caçador, e o condicionamento social, impedem o homem de demonstrar medo ou dúvida. É por isso que, quando se pede a um homem ajuda para resolver um problema, ele diz "vou pensar" ou "deixa comigo". E é exatamente o que faz: fica em silêncio a pensar. Só volta a falar ou demonstrar animação quando encontra a resposta. A conversa do homem passa-se dentro da cabeça, dada a sua grande dificuldade em verbalizar.

Hoje já temos a Ressonância Magnética Funcional para ver isso. Uma boa notícia: temos capacidade para adquirir novas habilidades necessárias para enfrentar os novos desafios do momento. O cérebro feminino já vem estruturado para usar a fala como principal forma de expressão, e essa é uma vantagem. O homem, com vários compromissos pela frente, diz: "Tenho muito em que pensar, vemo-nos mais tarde." A mulher verbaliza, menciona todas as suas tarefas, pensando nas opções em voz alta, mas sem estabelecer prioridades. Para a mulher, pensar em voz alta é um modo de agradar e compartilhar, mas o homem não entende isso. Fica nervoso, impaciente e tenta organizar as coisas.

Ele tem a impressão de estar a ser submetido a um interrogatório policial, e não fica nada satisfeito. Ele só quer que não lhe massacrem o juízo. Um homem já com anos de experiência de casado, antes que ela comece uma discussão sobre o seu "mutismo", já consegue utilizar estratagemas como: “Então como correu o dia?” Ela então fala, entrando em muitos atalhos, minúcia de detalhes. E ele mortinho que ela se cale e o deixe em paz. Ele só quer um pouco de sossego! E ela: "Fui ao supermercado e parti o salto do sapato no paralelo da passadeira". E ele: "E tu foste ao supermercado de saltos altos? É um perigo! Porque não foste de sapatilhas? É mais seguro!". Ela pensa: "Porque é que ele é um chato?" Quando um homem fala, usa de modo geral frases curtas, com ar de estrutura. Geralmente, há um início simples, uma ideia clara e uma conclusão. É fácil entender o que ele quer dizer. Mas se a mulher começar a misturar uns assuntos com outros, ele passa a baralhar tudo e perde-se. E é por isso que elas dizem que eles nunca as entendem. É importante que a mulher aceite que, para se fazer entender, ou convencer um homem, deve apresentar com clareza um pensamento, ou uma ideia de cada vez, uma coisa de cada vez para ele ter que pensar.


sexta-feira, 16 de julho de 2021

Filosofia ocidental – das duas escolas à pulverização




Qualquer leitor que tenha perseverado na leitura deste blogue terá sido surpreendido pelo facto de que todos os filósofos, mesmo os maiores filósofos, cometeram erros de pensamento. Isto é indicação do facto de a filosofia andar pelas ruas da amargura nos tempos que correm. Mas também, sem dúvida, devido à sua extrema dificuldade de ser pegada de caras (abusando aqui de uma metáfora tauromáquica portuguesa. Quando os forcados falham na pega de caras ao touro, recorrem a outra solução, a que chamam "pega de cernelha". Isto tem a ver com aquela ideia de que o difícil não está nas respostas, mas desde logo na formulação das perguntas. E a ambição da filosofia, para alcançar a tal 'verdade', é de encontrar as perguntas certas a serem feitas. Porque trata-se de um tipo de verdade que não é trivial, mas que transcende o que é meramente local e temporal. Nem mesmo o maior dos filósofos, e há mais do que um para os vários gostos, chegou perto de alcançar esse objetivo de um modo abrangente, de encontrar a pergunta que se tem de fazer a todas as perguntas. A tentação, que no passado era constante, para vencer essa dificuldade, por agora, desapareceu dos radares epistemológicos e metafísicos.

Começou a ser evidente, pelo menos desde os inícios dos anos de 1960, que tanto o marxismo, como a escolástica, deviam o seu lugar nas instituições académicas não à filosofia, mas a organizações cujos objetivos primários não eram filosóficos. Os anos 60 foram uma década de expansão, mas não para a escolástica. Muitos filósofos ocidentais viraram-se para Marx, apesar de as suas abordagens ditas marxistas se foram cada vez mais se afastando dos seus manuscritos e apontamentos. As suas obras, quer as obras do jovem Marx, quer o Capital, passaram a ser abordadas de forma cada vez mais desconcentrada. E é assim que os anos 70 marcam o início do cinismo e das teorias cínicas, que paradoxalmente, e parafraseando Peter Sloterdijk: " foi no leste, onde o marxismo era universalmente ensinado por obrigação. E foi no leste, quase universalmente, que o descrédito em Marx foi mais brutal. No leste, hoje em dia ninguém MAIS acreditava nele. Ao passo que foi no ocidente que o marxismo foi ensinado com grande fervor, ao ponto de hoje ainda ser muito amado nas escolas dos estudos culturais. Vá lá, ainda que seja uma minoria, a audiência de crentes apaixonados por Marx ainda se faz ouvir com grande barulho. 

Visitemos então os mundos filosóficos dos anos de 1960, considerada a melhor década do século XX para os filósofos de todos os quadrantes. No mundo de língua inglesa, chamemos-lhe assim, a filosofia não era um conjunto de doutrinas autoritárias, mas um método de pensar. No mundo de língua alemã a filosofia estava conectada a instituições cujo propósito primário era guardar as verdades filosóficas mais importantes de uma vez por todas, expondo-as, mas nunca colocá-las seriamente em questão. Interessavam as minúcias puramente teóricas, e os seus laços estreitos que mantinham com sistemas de lógica formal. No mundo da língua francesa dominava a corrente do Existencialismo de esquerda, que tinha orgulho no seu comprometimento político e desprezo pelos aspetos da lógica formal.

Estes blocos filosóficos começaram a desagregar-se, a abrir fendas, e a mudar. O segundo Concílio do Vaticano, inaugurado em 1962, conduziu a um período de liberalização na Igreja Católica Romana; no decurso disto, a nova escolástica perdeu grande parte do seu estatuto canónico nas instituições de ensino superior da Igreja, e por volta da década seguinte era provável que os professores de um seminário fossem tão versados no existencialismo como no tomismo. Mas, ao mesmo tempo, o existencialismo clássico de Kierkegaard a Nietzsche estava a perder o seu poder onde tinha antes dominado. Entretanto, a influência de Heidegger entrou em sério declínio, e o próprio Sartre, nas últimas décadas da sua vida, estava mais interessado no marxismo do que nos temas das suas anteriores batalhas contra o essencialismo.

Enquanto que nos anos 50 e 60 o Canal da Mancha tinha determinado uma barreira quase impenetrável entre a filosofia anglo-americana e a filosofia continental, por volta dos anos 70 começaram a aparecer muitas ligações de cruzamento cultural. A Alemanha, a Itália e (depois da morte de Franco) a Espanha, particularmente a região da Catalunha, tornaram-se recetivas aos métodos analíticos em filosofia, ao mesmo tempo que ideias filosóficas engendradas em França encontraram grande recetividade na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos da América, particularmente na região da Califórnia em Berkeley apesar de isto acontecer mais nos departamentos de literatura do que de filosofia. 

A Alemanha, por exemplo, nos finais dos anos 60, em algumas das principais universidades, dominava a filosofia analítica, na tradição de Frege, e a filosofia marxista (que tinha expoentes orais entre alguns dos mais enérgicos dirigentes estudantis). A escola de pensamento mais próxima do existencialismo alemão que conseguiu sobreviver foi a hermenêutica, que fez da natureza da compreensão o seu tema central de estudo; a natureza da compreensão em geral, especialmente a compreensão das obras literárias, e em particular a compreensão das obras filosóficas das várias tradições. A escola hermenêutica na Alemanha operou de um modo conciliador, tomando a atividade inevitavelmente fluente e flexível de interpretação de textos como um modelo geral para a compreensão das diferentes atividades e instituições humanas. 

Em França, alguns pensadores com um espírito mais combativo aproveitaram a ideia de que o mundo é todo ele um texto e tornaram-na o grito de guerra de uma cruzada iconoclasta. A cruzada foi levada a cabo em nome do estruturalismo. Como método, o estruturalismo convida-nos a pressupor, com respeito a uma dada estrutura, que a inter-relação entre os seus elementos é mais importante do que qualquer relação entre um elemento individual e qualquer item exterior à estrutura. O estruturalismo, enquanto teoria de um dado campo de estudo, é a tese de que o método estruturalista é a chave para a compreensão desse campo. Assim, com respeito à linguagem, é a tese de que se queremos compreender o significado, temos de estudar as inter-relações entre os elementos significantes do interior da linguagem, em vez de olhar para uma relação entre qualquer significante e o que isso significa.

O pós-estruturalismo levou as teses estruturalistas a posições extremas. E na verdade a refutarem-se a si próprias. Para compreendermos um texto temos de excluir rigorosamente todos os elementos extratextuais. Isto significa não apenas o abandono da procura de qualquer realidade exterior representada pelo texto, mas também deixar de encarar o texto como a expressão do pensamento de um autor fora do texto. É o leitor que paga a despesa na produção do significado. Como a cada leitor corresponde uma interpretação diferente, nunca há um significado definitivo. E assim cada texto destrói a sua própria pretensão de significar seja o que for.

Também a filosofia analítica mudou imensamente desde os anos 60. Em 1960 Oxford era o centro inquestionável do movimento analítico, e os filósofos vinham dos Estados Unidos para ouvir os epígonos de Wittgenstein que migraram de Cambridge para Oxford. Cambridge tinha dado o que tinha a dar depois do desaparecimento da ribalta de 
Bertrand Russell e Wittgenstein. Achavam que a sua tarefa era explorar este feliz legado e partilhá-lo com o resto do mundo filosófico. Mas nos anos de 1970 a liderança do movimento analítico mudou-se definitivamente para o outro lado do Atlântico, apesar de nenhuma universidade americana ter, só por si, herdado o papel dominante de que Oxford gozou. A tradição de Russell e Wittgenstein também não podia durar sempre. E já não estávamos em tempos de adorar génios. Ninguém foi bem-sucedido em redefinir a natureza da filosofia, como Russell e Wittgenstein fizeram. Mantiveram a linguagem no centro da filosofia, mas já não conseguiram ser tão convincentes de que a tarefa da filosofia era o estudo da linguagem que usamos para exprimir os nossos pensamentos. 

Tanto Frege como Wittgenstein faziam uma distinção profunda entre filosofia e psicologia. Para Frege, a lógica, que estava no coração da filosofia, era uma ciência a priori muito diferente de uma ciência empírica como a psicologia; para Wittgenstein, a filosofia diferia da psicologia porque não era de maneira alguma um tipo de ciência, fosse ela empírica ou a priori. Em contraste com isto, os filósofos americanos têm tido tendência para ver a filosofia como uma disciplina científica com técnicas especiais rigorosas próprias, e não como uma demanda informal pela compreensão, demanda fundada na reflexão sobre as atividades não académicas das pessoas comuns. Daniel Dennett, um "wittgensteiniano" e discípulo de Gilbert Ryle em Oxford, foi o grande impulsionador do novo domínio da filosofia - A filosofia da Mente. Inclusivamente, Dennett, foi dos poucos que meteu as mãos nos projetos iniciais do que viria a ser a Inteligência Artificial, um modelo da mente que o estudante de inteligência artificial possa ter como objetivo criar. 

Da primeira denúncia de Frege acerca do psicologismo na lógica, passando pelos escritos do Wittgenstein mais jovem e mais maduro, até à filosofia da linguagem corrente de Oxford e à sua receção nos Estados Unidos, todos aceitavam que a maneira de compreender o pensamento era aprofundar o papel da linguagem. Era uma convicção comum que os pensamentos só podem identificar-se e individuar-se através da sua expressão na linguagem, e que uma estrutura do pensamento acessível independentemente da estrutura da linguagem era coisa que não existia. 

Nos países de língua inglesa encara-se agora como perfeitamente apropriado que os filósofos usem as suas próprias aptidões profissionais para fazer propostas específicas para a reforma de questões públicas, ou denúncias específicas de políticas e administrações. Os filósofos passaram a demonstrar um grande interesse em questões do dia-a-dia, desde os direitos dos animais aos direitos das mulheres. 
A própria conceção de filosofia tornou-se mais vaga e mais aberta nas suas margens. Isto acarreta outra consequência, que é sobretudo relevante para o presente trabalho: a filosofia no mundo de língua inglesa mudou a sua atitude relativamente à sua própria história. Uma era revolucionária não perde tempo a dissecar as minúcias que preocuparam os seus predecessores. As fraturas e a fragmentação do monólito analítico conduziram a um interesse renovado por causas que passaram, devido a essas fraturas, a ser chamadas de "causas fraturantes".


quinta-feira, 15 de julho de 2021

Uma crónica sob os auspícios dos Estudos baseados na Teoria (pós-moderna)




Está a haver uma grande preocupação por parte da maioria dos líderes democratas da União Europeia com a escalada mais recente de populistas de extrema-direita, em que um dos nomes neste momento mais falado é Viktor Órban, um político húngaro que, desde 2010, serve como primeiro-ministro o seu país. Os da direita liberal e os conservadores europeus, que nos finais do século XX e início do século XXI se alinharam pelas ideias dos Direitos Civis, que vinham sendo propostas pelos liberais de esquerda, tinham conseguido acantonar essa minoria sem expressão, uma extrema-direita de má reputação, xenófoba e racista.

Mas, de repente, a culpa passou a ser transferida para os grupos dominantes de homens brancos por serem todos racistas, heterossexuais e homofóbicos. Este ressentimento preconceituoso, em relação a poderes históricos, não caiu bem nas intuições humanas de reciprocidade. Certamente há uma série de causas para a atual vaga populista de extrema-direita, que nada têm a ver com os famigerados estudos e ativismos justicialistas. Mas, naturalmente, estudos pós-coloniais, estudos de género, estudos queer, etc., também têm contribuído, por reatividade, para esta deriva autoritária.

O ativismo LGBTI continua a incomodar muita gente, embora de forma contida, ou envergonhada. E é claro que os sintomas colonialistas e suprematistas de cinco séculos não desaparecem da noite para o dia. Mas esse ativismo tornou-se na última década de tal modo vertiginoso que o caldo azedou também do lado esquerdo do espetro político, sobretudo pensadores liberais e marxistas ou ex-marxistas. Tentativas autoritárias de ditar aquilo em que as pessoas devem acreditar sobre género e sexualidade passou a ser insuportável mesmo à esquerda. A linguagem em que as pessoas em geral se devem expressar para respeitar determinadas crenças em nome da Justiça Social sem ofensa, criaram rapidamente uma resistência hostil a esse tipo de ditadura do apelidado “politicamente correto”, sem ofensa. Caiu o Carmo e a Trindade nas hostes pós-modernistas quando a esquerda liberal na sua crítica explicitou que as pessoas não deviam ser avaliadas pela raça, pelo sexo ou pela sexualidade.

A ciência sabe que existe variação humana e que a natureza tende a ser confusa. Muito do que é verdade sobre o mundo nada tem a ver connosco. E muito do que é verdade sobre nós é verdade sobre nós como humanos e não como membros de qualquer cultura particular. As teses pós-modernistas cobrando à História, com as suas exigências justicialistas, também estão a servir de combustível para a política revanchista de extrema-direita. As instituições que os pós-modernistas vão atacando, ao sentir que estão a perder prestígio, acabam por ser deixadas à mercê de nacionalistas e populistas de direita, estes sim, representando uma ameaça ainda maior. Se bem que estas ideias pós-coloniais estejam situadas na extrema-esquerda, convém lembrar que há uma esquerda liberal que não se identifica com a sua Teoria, para além de ter segurado o impulso identitário dos suprematistas brancos.

No entanto, não se pode confundir liberdade de pensamento com liberdade epistemológica; ou liberdade de expressão com liberdade de conhecimento. As diferenças de opinião dirimem-se com factos e dados objetivos. A condição subjetiva de vítima não é suficiente para obter uma verdade.

Sob o signo da Modernidade - liberalismo, racionalismo e empirismo - caminharam juntos na defesa dos direitos humanos. Acolheu a diversidade de pontos de vista, mas sem relativismo. E os avanços no sentido do progresso foram sendo dados acreditando em reformas e não em revoluções. Educação pública, saúde gratuita, intervenção do governo na economia, votos para a s mulheres foram todos alcançados, geralmente de forma pacífica por atos de reforma. 

Fé, revelação, tradição, dogma, autoridade, o brilho extático da certeza subjetiva, são tudo receitas para o erro e devem ser descartados como fontes de conhecimento. Os pós-modernistas perverteram o ceticismo num cinismo corrosivo ao defenderem o regresso a narrativas locais regressivas. Foi com a Modernidade que se chegou à conclusão de que muitas das atividades do colonialismo, atrocidades como a escravatura e genocídios, estavam erradas.

Vemos um impulso fundamentalista significativo nos estudos e ativismo pós-colonial. Algo não precisa de ser verdadeiro para ser respeitado. Este é o tipo de relativismo epistemológico e moral que os fundamenta. Tal relativismo serve de suporte ao argumento de que não é aceitável criticar algumas das suas ideias, muitas delas rotuladas, lato senso, politicamente corretas. As ideias pós-modernistas, dizem os seus defensores, não valem pela sua solidez racional, mas pelo discurso certo de modo a não ofender e discriminar posições identitárias. Pessoas de diferentes grupos de identidade nunca conseguem entender-se plenamente. Essa é a essência do conhecimento pós-moderno.

As ideias de Justiça Social na Teoria pós-moderna – ao contrário do que se passava, e ainda se passa, com as ideias pensadas no seio da nossa cultura chama da Modernidade, em que o conhecimento é estruturado numa epistemologia realista, objetivada numa biologia da natureza – veem as ideias da Modernidade como sendo fruto de um conhecimento criado artificialmente por uma mente hegemónica de origem europeia, que se autointitulou de “Humanista” por alegar defender os valores humanos individuais e universais. Ora, a Teoria pós-moderna valoriza a identidade de grupo mais do que tudo o resto que o liberalismo moderno diz que valoriza. A verdade em si não existe, diz o pós-modernista, apenas existem as verdades de cada um, que dependem dos valores de uma determinada cultura. Tudo isto parece muito contraditório, mas enfim,

Transcrevo aqui na íntegra a página do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, no que diz respeito ao Programa de Doutoramento em Pós-colonialismos e Cidadania Global, que teve início em 2004-2005 e foi acreditado pela Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior (A3ES) em 2020, por 6 anos. O programa é oferecido bienalmente, abrindo assim uma nova edição cada dois anos. As edições de 2013/2014, 2015/2016 e 2017/2018 foram financiadas pela FCT.



O
Programa de Doutoramento em Pós-colonialismos e Cidadania Global,
«Aborda a herança colonial e os desafios pós-coloniais nas sociedades contemporâneas, com incidência especial no espaço de língua oficial portuguesa. O seu objetivo é proporcionar formação avançada, da perspetiva da crítica pós-colonial, sobre a complexidade das relações políticas, sociais e culturais no mundo de hoje. O seu horizonte epistemológico baseia-se na discussão sobre a possibilidade de novas formas de conhecimento suscetíveis de abranger a diversidade e a pluralidade híbrida das diferentes formas de estar no mundo. O pressuposto básico é que a narrativa da modernidade não só não esgota a complexidade e heterogeneidade do mundo e dos modos de conhecer o mundo como, historicamente, reprimiu e silenciou narrativas rivais remetendo-as a uma posição subalterna no quadro de relações de poder desiguais e, muitas vezes, violentas. A tarefa em mãos consiste, pois, na produção de conhecimento contextual e posicional capaz de equacionar possibilidades alternativas, como base para o emergir de uma cidadania verdadeiramente global fundada na superação da injustiça cognitiva.

O mundo moderno foi configurado de modo decisivo pela expansão colonial. Além disso, o fim dos impérios coloniais não pôs fim à colonialidade, isto é, à persistência de relações de poder e perceções da diferença que continuam a ser dominadas decisivamente pelo modelo colonial, como demonstram, por exemplo, as atuais estruturas da globalização hegemónica. A crítica do eurocentrismo proporcionada pelo pensamento pós-colonial constitui uma base sólida para a exploração de novas condições de articulação de epistemologias alternativas e para um questionar das narrativas dominantes que têm dado forma à nossa compreensão do mundo, abrindo, assim, a possibilidade de promover uma cooperação igualitária entre investigadores do “Norte” e do “Sul” do sistema-mundo.

O pensamento pós-colonial é, por definição, transdisciplinar. Entende-se a si próprio como um pensamento fronteiriço capaz de transgredir as fronteiras disciplinares e de desestabilizar as dicotomias estabelecidas. Em conformidade, o programa de doutoramento, situado firmemente na interface entre as ciências sociais e as humanidades, está estruturado de modo a percorrer transversalmente um espectro amplo de áreas do saber, dos estudos literários e culturais à sociologia, à história, à antropologia e à ciência política. Esta abordagem plural reflete-se produtivamente no modo como o programa concebe o paradigma pós-colonial. Na verdade, a forma plural “Pós-colonialismos” pretende chamar a atenção para o facto, quase sempre negligenciado, de que a primeira modernidade, a modernidade ibérica, e os impérios a que deu origem se desenvolveram historicamente em sentidos que, em muitos aspetos, não são abrangidos pelas teorias pós-coloniais dominantes de raiz anglo-saxónica. O efeito de invisibilidade assim gerado redunda num vasto “desperdício da experiência” (Boaventura de Sousa Santos), no sentido em que as especificidades desses contextos, explícita ou implicitamente classificados como subalternos, não são tidas em conta ou tendem a ser assimiladas pela narrativa padrão, redundando numa redução da complexidade muitíssimo problemática.

Ao pôr em destaque um amplo conjunto de questões tornadas invisíveis pelos paradigmas hegemónicos, o programa concebe-se a si próprio como o espaço reflexivo e autorreflexivo de uma formação para a complexidade. A metáfora da tradução descreve adequadamente o objetivo perseguido pelo programa de se confrontar com a diversidade da experiência e as diferentes abordagens ao conhecimento de uma forma suscetível de proporcionar condições de articulação e inteligibilidade mútua sem sacrificar a diferença em nome de uma assimilação cega. Ao mesmo tempo, ao centrar-se no contemporâneo através da atenção que dá às questões relacionadas com o Estado, a sociedade e a cultura no sistema-mundo atual, o programa concebe a noção de contemporâneo como a constelação de uma semântica densa do tempo histórico e, assim, recorre em permanência à contextualização histórica.»