quarta-feira, 30 de setembro de 2020

A América já não é o que era?



No meu tempo de existência, John Fitzgerald Kennedy foi o presidente que de modo consistente e sistemático, mais pensou a sua ação política no quadro do respeito por uma tradição e uma cultura políticas. Mas agora é a insídia, a ignomínia, a corrosão. Donald Trump não podia estar mais nos antípodas relativamente à matriz fundacional da América. Uma afronta à memória dos seus fundadores. 

Já depois da formação dos EUA, a tradição constitucional americana foi um dos principais produtos de exportação do país. Ainda antes da existência da atual Constituição Federal, elaborada pela Convenção de Filadélfia em 1787, o conjunto das Constituições estaduais, traduzidas em França, pela mão de Benjamin Franklin, que representou junto da corte de Luís XVI os interesses do novo país, serviria de inspiração na produção da primeira Constituição francesa depois da Revolução, aprovada em 1791.

Os Estados Unidos da América nascem de uma união de treze estados que uniram esforços para se tornarem independentes do Reino Unido. Finda a guerra da independência em 1783, vieram ao de cima as deficiências estruturais. Havia o Congresso, mas não tinha capacidade para conduzir uma política com impacto de nível federal. Os Estados viviam em competição permanente, procurando fazer valer as suas prioridades económicas, políticas e sociais. Foram estas circunstâncias que levaram à realização de uma Convenção em Filadélfia, em 1787, da qual resultou uma Constituição Federal que entrou em vigor em 1788.

O poder legislativo ficou entregue a um Congresso, formado por um Senado e por uma Câmara dos Representantes, muito diferentes na sua composição. A Câmara dos Representantes constituída por membros eleitos diretamente pelo povo dos diversos Estados, em proporção com o tamanho populacional de cada Estado. As eleições são bienais desde o início, apesar das várias críticas a um sistema que coloca os representantes num estado permanente de candidato. Para o Senado, apenas substituindo um terço em cada ato eleitoral, também de dois em dois anos, do que resulta que cada terço só vota a ir a votos passado seis anos. E por outro lado, quem elege o Senado não é o povo diretamente, mas o parlamento de cada Estado. Este sistema tem em vista um corpo mais preparado, que ao mesmo tempo permite reforçar a lealdade dos senadores em relação aos seus respetivos Estados. Cada estado, todos igualmente, independentemente do seu tamanho, elegem dois senadores.

Ao Presidente dos Estados Unidos compete o poder executivo. E também é o chefe supremo das Forças Armadas. É eleito de quatro em quatro anos, podendo fazer dois mandatos. Mas quanto ao número de mandatos nem sempre foi assim. Houve épocas em que era possível mais de dois mandatos. Ora, o processo eleitoral do Presidente é singular, pois para ter ao mesmo tempo legitimidade popular, e estar de harmonia com o caráter federal, a eleição passa pelo chamado Sistema do Colégio Eleitoral, em que a cada estado cabe um número específico de eleitores. O Colégio Eleitoral é hoje composto por 538 membros. Significa isto que para vencer a presidência, um candidato necessita de conquistar pelo menos 270 votos eleitorais. Em cada Estado, o candidato vencedor leva todos os mandatos. Este sistema tende a valorizar a votação dos estados mais pequenos e menos populosos. Para efeitos práticos, cada cidadão do Alasca ou do Delaware tem uma maior influência do que cada cidadão do Texas ou de Nova Iorque. Assim, nem sempre é vencedor o candidato que teve maior número de votos populares, porque o que determina é o esquema do Colégio Eleitoral. Como o candidato que recebe a maioria dos votos em cada estado conquista a totalidade dos votos do Colégio Eleitoral, os votos do candidato derrotado não contam para o resultado.

Para completar o edifício institucional da soberania dos Estados Unidos, há ainda três complementos ao sistema: o poder judicial, a Carta de Direitos e as autoridades estaduais. O Supremo Tribunal tem por missão zelar pela aplicação dos preceitos constitucionais, mas também de ajuizar litígios interestaduais. A Carta de Direitos reforça a capacidade dos tribunais para vigiarem a ação dos órgãos legislativo e executivo, e assim protegerem os cidadãos contra eventuais abusos de poder. Os governantes estaduais e demais instituições dos vários estados constituem uma partilha de soberania entre o poder local e o poder federal, contribuindo assim para todo um sistema de equilíbrios, traduzido na conhecida designação de checks and balances.

Trump / Biden - Primeiro debate


Mike Baker, correspondente do New York Times, partilhou no Twitter algumas mensagens de membros do grupo. “Estamos a postos, sir”, lê-se numa delas; “Basicamente, Trump disse-nos para irmos espancá-los. Isto deixa-me tão contente”, lê-se noutra mensagem.


© Jornal Público
« Primeiro debate entre os dois candidatos à Presidência dos EUA ficou marcado por ofensas e ameaças de caos na noite eleitoral. Donald Trump repetiu acusações falsas de fraude e pediu ao grupo extremista Proud Boys que “se mantenha a postos”.

A forma como Donald Trump se apresentou no debate, com constantes interrupções e ataques pessoais contra Joe Biden – “Você não tem nada de inteligente” –, e sem se esforçar por agradar a um eleitorado mais moderado, confirma que o Presidente dos EUA vai tentar ser reeleito com a mesma base que tinha em 2016, e mais ou menos nos mesmos estados que lhe deram a chave da vitória (onde em 2016 venceu por poucos milhares de votos), em estados como o Michigan, o Wisconsin e a Pensilvânia, e onde segue hoje atrás do seu adversário nas sondagens).

E Joe Biden, ao surgir de forma surpreendente como um candidato agressivo e capaz de usar alguma da linguagem que é mais habitual no seu adversário, terá ganho algum fôlego para o que resta da campanha. Mas é provável que o próximo debate entre os dois, a 15 de Outubro, seja ainda mais crispado do que o desta noite – muito vai depender da forma como Donald Trump reflectir sobre a sua primeira prestação, e se concluir que terá de devolver os insultos a Joe Biden para manter a sua base eleitoral entusiasmada. »

© Jornal Expresso
« Se o Presidente foi igual a si mesmo, Biden perdeu por vezes a fleuma que o caracteriza e distingue do adversário. Um estudo de opinião da CNN revelou, mal terminou o debate, que 60% dos telespectadores atribuíam a vitória a Biden e apenas 28% a Trump. Mas esses valores estão próximos dos do primeiro debate de 2016 (62-28% a favor de Hillary Clinton) e isso não impediu o milionário nova-iorquino de ser eleito.

É natural que ambos tenham agradado às respetivas bases eleitorais, mas menos claro que a prestação de um e outro tenha servido para convencer indecisos em número suficiente para ganhar. No inquérito da CNN, à pergunta obre se o debate os impelia a votar nalgum candidato, 32% dos inquiridos indicaram Biden, 11% Trump e 57% nenhum. Restam-lhes 34 dias e, se tudo correr como previsto, dois debates, a 15 e 22 de outubro. Os candidatos a vice-presidente, o republicano Mike Pence e a democrata Kamala Harris, debatem no próximo dia 7. »

terça-feira, 29 de setembro de 2020

O Banquete de Trimalquião



O Banquete de Trimalquião é um dos capítulos do livro “Satíricon” de Petrónio. Dessa sátira notável dos tempos do imperador Nero sobrevivem apenas fragmentos, dos quais o mais significativo é este Banquete de Trimalquião, onde se fazem descrições detalhadas dum jantar luxuoso, extravagante e decadente, oferecido pelo que se poderia chamar um "novo-rico" romano. 

Na literatura clássica, o Satíricon constitui, de certo modo, um caso especial e único, quer pelo tema, quer pela estrutura narrativa, quer pelo estilo, afirmando-se como o proto-romance por excelência na tradição greco-latina. A forma como o seu autor soube reescrever a produção literária que lhe era anterior, inserindo-a num retrato da Roma imperial do tempo de Nero, simultaneamente refinado, crítico e divertido, faz de Petrónio, quase vinte séculos volvidos sobre a sua morte, um dos autores mais interessantes e modernos que a Antiguidade nos legou. Um romance satírico escrito em latim atribuído, sem absoluta certeza, a Petrónio [27 d.C. - 66 d.C.]. 

Aventuras numa Roma decadente. Giton e amigos, durante as suas andanças, são convidados para uma festa esplêndida organizada por um rico homem livre - Trimalquiãode quem eles conseguem escapar. Depois de uma discussão entre Encolpe e Ascylte sobre Giton, separaram-se. Giton parte com Ascylte, mas depois encontra Encolpe, que então conheceu o poeta Eumolpe. Embarcam, mas naufragam após uma tempestade perto de CrotoneEncolpe então encontra Circé, um residente de Crotone. Mas sentindo-se impotente, decide ir para uma residência da sacerdotisa de PríapeO enredo é essencialmente baseado na fuga e perambulação de um trio de jovens marginais. Um romance que aflora a homossexualidade no seio dos costumes romanos em fim de civilização. Daí ser considerado uma mensagem à civilização: pela descrição da decadência e da vida à margem. Também uma paródia constante aos grandes textos greco-romanos clássicos, em particular a Odisseia. A descrição de um mundo, dos comportamentos num quotidiano romano fim de império, que faz lembrar o nosso Eça de Queirós. Especialmente os traços de caráter dos personagens, e a psicologia das relações interpessoais, atingem uma dimensão bem moderna. O Satíricon influenciou profundamente a literatura mundial e foi adaptado à ópera, ao cinema, como foi o caso de Fellini, tendo entrado até na banda desenhada. 

Romance picaresco, uma inovação literária para a Antiguidade, tanto que poderia ser considerado o primeiro romance europeu. A história é complexa, porque o Satíricon que existe hoje é o resultado de vários manuscritos cujos caminhos ainda são obscuros. A identificação genérica, e o legado de Petrónio, é reconhecida no título do romance. Um romance de deboche sexual que através da sátira constitui um documento com forte mensagem moral. Essa é a característica do romance realista moderno. Apesar de várias inconsistências narrativas, o Satíricon é escrito num latim popular que testemunha a pesquisa estética e sociológica de Petrónio.

« Estávamos já no terceiro dia, aquele em que devíamos participar da ceia pública oferecida por Trimalquião; mas nós, com os corpos ainda doridos pelos golpes recebidos, preferimos fugir daquele lugar maldito. Voltamos apressadamente ao albergue e, deitados na cama, tratamos das nossas feridas com azeite e vinho. Todavia, aquele raptor, que não havia levado a melhor, jazia ainda no meio da estrada, e nós tremíamos de medo de ser apanhados. Quando, aflitos, procurávamos descobrir um meio de conjurar a tempestade que pairava sobre nós, eis que chega um escravo de Agamenon: “Não sabeis, então, em casa de quem se vai comer hoje? Em casa de Trimalquião, homem muito generoso, que tem no seu triclínio um relógio e um corneteiro sempre pronto a anunciar-lhe, de hora a hora, quanto tempo da sua vida já passou.” 

Ao ouvir estas palavras, esquecemo-nos de todos os nossos males, vestimo-nos à pressa, e Giton, que até àquele momento nos servia afetuosamente, obedeceu às nossas ordens acompanhando-nos ao banho. Lá chegados, ainda andamos à deriva até nos aproximarmos de um círculo de pessoas entretidas. Vimos um velho calvo, que vestia uma túnica vermelha, e jogava a péla com meninos de cabeleiras abundantes. Um velho de chinelos a exercitar-se com bolas verdes. Quando uma bola caía, não cuidava de apanhá-la; um escravo, com um saco cheio de pélas novas, estava sempre pronto a fornecê-las. Enquanto admirávamos todo aquele aparato, Menelau aproximou-se de nós e disse: “Eis ali o senhor que vos oferece a ceia. Prepararem-se para ela”. Assim falou Menelau quando vimos Trimalquião estalar os dedos e dele se aproximar rapidamente um eunuco, que colocou o vaso sob a sua túnica. Esvaziada a bexiga, pediu água para as mãos; molhou apenas as pontas dos dedos, e depois enxugou-as nos cabelos de um pequeno servo. Ao admirar boquiaberto todas estas coisas quase caí para trás, correndo o risco de quebrar as pernas. Com efeito, à esquerda da entrada, perto da portaria, via-se pintado sobre a parede um cão enorme, preso a uma corrente, e sobre o qual estava escrito o seguinte com letras maiúsculas: “Cuidado com o cão!” O susto que levei provocou o riso dos meus companheiros; e eu, retomando a respiração, quis observar pormenorizadamente toda a parede. Havia ali pintado um mercado de escravos cujos nomes e idade estavam escritos em cartazes, vendo-se também o próprio Trimalquião, que, na figura de um jovem de longos cabelos, com o caduceu na mão, entrava em Roma, guiado por Minerva. 
Era preciso muito tempo para contar todos os pormenores. Entramos no banho e quando o suor nos saía por todos os poros, passamos sem demora para o duche frio. Trimalquião, cheio de unguentos, fazia-se enxugar, não com toalhas de pano comum, mas com lã macia, enquanto diante dele três massagistas bebiam vinho de Falerno. E enquanto discutiam consumindo grande quantidade de bebida, Trimalquião disse: “É da minha adega o vinho que eles bebem à minha saúde!” 

Tomamos o nosso lugar à mesa, e vieram logo pequenos escravos de Alexandria com água gelada para as mãos; em seguida, outros nos lavaram os pés, limpando-nos as unhas com extrema delicadeza. E não ficavam calados ao executar um serviço tão ingrato; ao contrário, cantavam despreocupadamente. Levado pela curiosidade de saber se todos os servos cantavam, pedi algo para beber, e um esbelto rapaz, enquanto me servia, brindava-me, ao mesmo tempo, com uma canção desafinada. Do mesmo modo procediam os outros escravos, a quem se pedia qualquer coisa: "Quando eu era ainda escravo, morava no Vicus Augustus, precisamente onde está hoje a casa da Gavila. Ali, com a vontade dos deuses, apaixonei-me pela mulher de Terêncio, o estalajadeiro: vós conhecestes Melissa, a Tarentina, um belo pedaço de mulher. Mas, por Hércules, não era por seus dotes físicos, ou para proporcionar-me um instrumento de prazer que eu lhe fazia a corte, mas pelas suas qualidades morais. Eu podia pedir-lhe o que fosse, e ela jamais dizia não."

Envergonho-me de contar o que se seguiu. De uma maneira inaudita nos nossos costumes, jovens escravos de longos cabelos trouxeram, numa bacia de prata, unguento perfumado com o qual untaram os pés dos convivas, depois de os enfeitar com flores da coxa ao calcanhar. Puseram depois o mesmo unguento na ânfora do vinho e nas lâmpadas. Fortunata já demonstrava vontade de bailar, e Cintila, incapaz de falar, não podia senão aplaudir, quando Trimalquião disse: “Permito-te, Filargiro, que te sentes à mesa; e a ti também, Carion, ainda que sejas um famoso partidário dos verdes; diz a Menofila, tua companheira, para fazer o mesmo". Que hei de acrescentar? Pouco faltou para que não fôssemos atirados para fora, tão grande foi o número de escravos que invadiu o triclínio. Ao meu lado, em lugar mais alto, instalou-se o cozinheiro que cheirava a salsa e a molho. E, não contente de estar à mesa, pôs-se a imitar o ator trágico Efesco, querendo por todos os meios apostar com o seu patrão, que, nos próximos jogos do circo, os verdes ganhariam o primeiro prémio. 

Passada a nossa embriaguez, fomos conduzidos a um segundo triclínio, onde Fortunata havia preparado outras magnificências. As mesas eram inteiramente de prata tendo em volta taças de terracota douradas. O vinho jorrava de um odre posto à nossa frente. "Meus amigos", disse depois Trimalquião, "um de meus escravos festeja hoje a sua primeira barba; é um rapaz, seja dito sem ofensa, de boa conduta e bastante económico. Vamos comer e beber à vontade, e prolonguemos a ceia até clarear o dia". Enquanto ele pronunciava estas palavras, um galo cantou. Desconcertado por esse presságio, ordenou que atirassem vinho para debaixo da mesa, mandando também molhar a lâmpada. Em seguida ele passou o anel da mão direita para a esquerda, dizendo: “Não é sem razão que esta trombeta soou ou haverá um incêndio ou alguém entregará a alma na vizinhança. Para bem longe de nós tudo isso! Quem me trouxer esse profeta da desgraça será recompensado”. Logo depois de pronunciar essas palavras trouxeram-lhe um galo das redondezas, o qual ele mandou cozinhar. O animal foi cortado em pedaços por aquele hábil cozinheiro que de um porco havia feito aves e peixes, e atirado num caldeirão. E enquanto Débalo o regava com um caldo fervente, Fortunata moía pimenta num gral de madeira. Trimalquião, por seu lado, exasperado por esta cena, atirou uma taça à cabeça de Fortunata. Esta soltou tais gritos que parecia que tinha perdido um olho, e, ao mesmo tempo, cobria o rosto com as mãos trémulas. Cintila, consternada ante o que ocorria, acolheu em seu seio a amiga amedrontada. Um jovem escravo aproximou da face  da patroa uma pequena bacia de água fresca, sobre a qual Fortunata se inclinou, chorando e gemendo. Ao mesmo tempo Trimalquião dizia: “Então, esta tocadora de flauta síria não se recorda mais? Eu tirei-a do palco de escravos e dei-lhe uma figura humana! Mas agora ela se insufla como uma rã e nem cospe no vestido”. 

As coisas vão depressa quando os deuses o querem. Numa única viagem, consegui ganhar dez bons milhões. Resgatei logo todas as terras que tinham pertencido ao meu patrão. Construí uma casa, comprei mercados de escravos e animais de carga: tudo aquilo em que eu tocava crescia como um favo de mel. Quando eu me vi mais rico que todo o país reunido, retirei-me do jogo. Abandonei os negócios e comecei a emprestar dinheiro aos libertos. Não queria, verdadeiramente, permanecer nesse mister; mas segui os conselhos de um astrólogo, aparecido por acaso em nossa colónia. Era um grego, chamado Serapa, que poderia ter-se sentado no conselho dos deuses. Ele disse-me coisas da minha vida que eu já havia esquecido; contou-me tudo do princípio ao fim; sabia o que tinha no ventre, pouco faltando para dizer o que eu tinha comido na véspera. Parecia que ele jamais se havia separado de mim. 

Enquanto esperávamos, Stico trouxe os trajes com os quais ele quer ser enterrado; traz também os perfumes e a ânfora que contém a essência com a qual serão lavados os ossos. Trouxe uma coberta branca e uma toga de senador; fomos então convidados a verificar se a sua lã era de boa qualidade. Sorrindo, Trimalquião disse em seguida: "Toma bem cuidado, Stico: que os ratos ou as traças não toquem nesse traje. Se isso acontecer, far-te-ei queimar vivo. Eu quero ser enterrado com pompa, a fim de que todo o povo me cubra de bênçãos". Ele abriu, em seguida, um frasco de nardo, perfumando-nos a todos. “Espero que isso me fará, disse, tanto bem depois de morto, quanto me fez enquanto vivo”. Mandou depois que enchessem de vinho a ânfora comum, e disse: “Figurai-vos que fostes convidados para o meu banquete fúnebre”. A coisa chegava à extrema repugnância, quando Trimalquião, embrutecido pela sua ignóbil embriaguez, quis um novo concerto, fazendo entrar no triclínio tocadores de trompa. Sustentado por um grande número de travesseiros, ele estendeu-se no leito, dizendo: “Suponde que eu esteja morto. Tocai alguma coisa de belo”. Os músicos tocaram uma ária fúnebre. Mas um deles, servo do empresário de enterros – que do grupo parecia ser o mais decente –, soprou com tal força que acordou toda a vizinhança. Os guardas encarregados da vigilância do quarteirão, persuadidos de que a casa de Trimalquião ardia, arrombaram bruscamente a porta e, com seus baldes e machadinhas, fizeram grande alarido, no exercício de suas funções. Aproveitando esta excelente oportunidade, ali deixamos Agamémnon e fugimos precipitadamente, como se de um verdadeiro incêndio se tratasse. »


domingo, 27 de setembro de 2020

Máscaras & Covid-19. Umas vezes com ironia outras vezes a sério


Recusar-se a usar uma máscara para reduzir a probabilidade de transmissão do SARS-CoV-2 provoca a fúria de muitas pessoas em todo o mundo. Num caso extremo, recente, oito pessoas em East Java, Indonésia, que se recusaram a usar máscara em público, foram punidas com a ordem de cavar sepulturas para outras pessoas que morreram de Covid -19. O presidente da autarquia mandou distribuir por cada sepultura duas pessoas dessas – uma para cavar a sepultura e a outra para colocar tábuas de madeira dentro da cova para sustentar o cadáver. “Oxalá isso possa criar um efeito dissuasor contra os infratores”, disse o autarca. 




Muitos opinantes nas redes sociais alertaram para as implicações de não usar máscara: “deveriam ser negados tratamentos a um doente que se infetou por não ter usado máscara." Um comentador a esta opinião chamou-lhe “punição médica”. Mas os médicos dizem que quando veem um doente com infeção por Covid -19, não lhe perguntam se desrespeitou as recomendações de saúde pública, como recusar-se a usar máscara ou manter a distância social: “Negamos cirurgia a um assassino condenado com apendicite aguda? Claro que não, porque, independentemente de quais sejam os nossos sentimentos pessoais sobre essa pessoa, a nossa responsabilidade como profissionais de saúde é tratar e cuidar de todos os pacientes como iguais, sem discriminação por qualquer motivo”.

António Vaz Carneiro, especialista em medicina interna e diretor do Instituto de Saúde Baseada na Evidência, defende que esta recomendação da DGS não se justifica e lembra que não existem estudos científicos que comprovem que o uso de máscaras ao ar livre proteja as pessoas do vírus. “Acredito que o risco é tão pequeno que é completamente inútil usar máscaras em espaços abertos”, diz. O médico defende que primeiro é preciso saber cientificamente quantas pessoas se infetam nos parques, à entrada das escolas, ou nas filas para os supermercados. “Sem isso estamos a adivinhar.” E deixa uma pergunta: “Vale a pena viver numa sociedade de mascarados? Além disso, é preciso ter em conta o incómodo que a máscara representa.” António Vaz Carneiro acredita que 99,9% da população usa mal a máscara. “Basta tocar numa com os dedos para ela ficar inutilizada”. O especialista salienta que as autoridades de saúde devem usar “o senso comum” e deixar que sejam as pessoas a decidirem se querem ou não usar máscara na rua. E não entrar em atitudes mais fundamentalistas. “Já agora, porque não meter de 5 em 5 metros uma garrafa de álcool/gel nos parques nacio­nais?”.

Mas ouve quem especificamente disse que queria ver se quem não usou máscara e adoeceu de Covid-19 tinha coragem de escolher voluntariamente ir até ao “fim da linha”, e autopenalizar-se ficando em casa a assumir as consequências da sua escolha. “A responsabilidade é o que é necessário”, enfatizou um clínico. As manifestações são um duplo perigo, porque as manifestações em si têm à partida de respeitar a necessidade de se tomarem precauções contra os riscos para a saúde pública durante as próprias manifestações. 



Um clínico, no entanto, foi mais longe: "Na medida em que o sistema de saúde dos EUA está sobrecarregado por pessoas que não estão a cuidar de si próprias de forma adequada, essas pessoas que ignoram as recomendações de saúde pública deveriam assinar uma renúncia, ao não quererem usar máscara nos sítios onde ela é obrigatória. E então, se mais tarde tiverem que ser tratadas da Covid-19 num hospital, as despesas deviam-lhe ser imputadas." 

Para o virologista Pedro Simas, a recomendação da DGS é válida. “Vivemos num período de grande incerteza. O comportamento de cada cidadão vai ser importante para evitarmos uma segunda vaga descontrolada.” Este investigador do Instituto de Medicina Molecular (IMM) da Universidade de Lisboa defende que quanto mais pessoas usarem máscara em espaços abertos mais dificilmente o vírus se espalhará. Pedro Simas esteve há poucas semanas na Feira do Livro, em Lisboa, e dá como bom exemplo o que se passou naquele evento que juntou milhares de pessoas em poucos dias no Parque Eduardo VII: “Toda a gente usava máscara”. Acredita que as autoridades fizeram bem em não obrigar os portugueses ao uso de equipamentos de proteção individual na rua e apenas em fazer uma recomendação. “A medida da DGS não fere a liberdade individual. É uma sugestão baseada numa evidência científica. Usar máscara em espaços abertos partilhados com mais pessoas é uma responsabilidade civil de cada um. Não se deve impor uma coisa destas numa democracia.” 

Tal como preconizam as autoridades de saúde, Simas defende que só não faz sentido colocar-se a máscara num parque vazio. Aí o risco de contágio é mínimo: “Vai sempre haver fações da população que não concordam com estas medidas. Há movimentos antimáscaras, tal como há, por exemplo, movimentos muito fortes antivacinas. É importante usar máscaras para conquistar a liberdade, proteger os grupos de risco e evitar a segunda vaga.”

sexta-feira, 25 de setembro de 2020

Desta vez é o médico




Desta vez ele tinha transposto a fronteira entre médico e paciente, de ativo a passivo, de sujeito a objeto. Especialista médico que partilhava uma íntima familiaridade com a morte, velho internista quando ainda não havia oncologistas, geriatras ou intensivistas. Até ao surgimento da derradeira doença, ele era simultaneamente médico e paciente de si mesmo. A sua vida podia ser compreendida como a soma das suas escolhas. Aliás, ainda estão vivos, num bom punhado, médicos que nunca foram ao médico. Portanto, se há quem se saiba muito bem "ser mortal" é este tipo de médico que não vai ao médico...

Ele não tinha ido ao gabinete do colega atrás de um plano de tratamento. Ele tinha um tumor com metástases de um órgão que ele se havia fartado de mandar citostáticos para dentro das veias dos outros, um número considerável de doentes. Tinha experiência suficiente para saber qual era o melhor caminho clínico a seguir. O que ele procurava era o consolo de uma sabedoria oracular, agora que o tempo começava a encolher. Podia ser mais tare do que imaginava, mas de certeza mais cedo do que desejava.

Parte da crueldade não estava apenas no limiar do tempo; estava na progressiva falta de forças, reduzindo em muito o que podia fazer num só dia. Mas, mesmo que tivesse energia, preferiria uma abordagem mais próxima da tartaruga do que da lebre. Ou será o contrário? Será que o tempo se dilata quando nos movemos a alta velocidade, e se contrai quando mal nos movemos? Deve ser, os dias estendiam-se consideravelmente.

Curioso…com pouca coisa para distinguir entre um dia e o seguinte, o tempo começou a parecer estático. O tédio tinha tomado as rédeas do tempo. Agora a hora do dia não significa nada, nem mesmo o dia da semana tem algum significado. A cura da medicina é fixada num ponto futuro, adiando a gratificação. Grandes avanços dali a cinco anos! A ciência básica já descobriu a solução. Agora falta pôr em prática: “Posso estar morto. Posso não estar. Posso estar com saúde. Posso escrever um livro. Não sei.” É inútil passar o tempo a pensar no futuro – quer dizer, o futuro neste caso é logo, depois do jantar.

Todos sucumbem à finitude. Das ambições, umas realizadas outras abandonadas, de uma forma ou de outra elas pertencem ao passado. O caminho do futuro, em vez de ser uma escada, é uma corda bamba num perpétuo presente. Dinheiro, status, todas as vaidades que os pregadores do Eclesiastes descrevem têm muito pouco interesse. Onde já vai o tempo da caça ao tesouro?

Para entrevermos o que se trama neste teatro, faz bem ler os antigos, que são aqueles que falam das emoções pensantes: o pânico grandioso, o riso radical, perturbações intensas que põem em marcha a reflexão, como a do herói que se dirige para a sua destruição, para uma morte inelutável. Pelo menos é o que parece. A tragédia é mais enigmática do que aquilo que se pensa. Na etimologia: tragédia significa “o canto do bode”. Mas ninguém sabe dizer porquê. Apenas uma ínfima amostra se salvou do que Ésquilo, Sófocles e Eurípides escreveram.

Os homens da Antiguidade davam muita atenção à morte. E para isso meditavam muito acerca do Tempo, sobre o instante e a duração. Sobre as relações entre a plenitude de um momento, e a sucessão dos dias e dos anos. Paradoxalmente hoje não apenas perdemos tempo, como falta tempo: "gostava de estar aqui mais tempo a falar consigo, mas não posso, não tenho tempo. Só tenho vinte minutos para cada consulta". E assim enganamo-nos pensando que fugimos à morte. Todavia, a companhia pachorrenta dos Antigos pode ajudar a corrigir as disfunções dos Modernos. A espera da morte, o cuidado da sua preparação, a celebração da sua vinda não figura na agenda dos Modernos, a repelirem o limite com a barriga, mas sem olhar para ele: o caso. Hoje não se vê partir um ente sem arrependimento. Podia-se ter feito mais, e mais, e mais. Se calhar, se...Ao menos nas rábulas mitológicas dos Antigos há os deuses. E há os mortais, que somos nós. Imortais são só os deuses. Pois uma vida que ignora, que escolhe não saber, que crê prosseguir indefinidamente, deixa de ser uma vida humana. Uma ideia semelhante é transmitida por Platão no Fedro. Os filósofos aprendem a morrer desligando-se progressivamente dos bens deste mundo, recusando agarrar-se à existência, não se deixando levar pelos desejos, pelos prazeres sensacionais do corpo. 

Todas as escolas de sabedoria dos Antigos não faltava tempo para dominar o medo de morrer. Ensinavam a vencer o pânico, para que se pudesse viver uma vida serena. Epicuro ensinava que não havia nada a temer. Já o passamento era outra coisa. É no momento do passamento que nos é revelado aquilo de que uma vida é feita. O que se é. Para os homens da Antiguidade, o momento da viagem no barco de Caronte, era o momento da verdade, verdade revelada no momento crucial para o verdadeiro esclarecimento. Montaigne perpetuou essa tradição, dizia ele: “Vê-se o fundo do pote”. Sócrates foi forçosamente exemplar, forçosamente sublime. Empédocles lançou-se à lava do Etna, deixando apenas as suas sandálias. Crisipo morreu a rir depois de ter visto um burro comer figos a seu lado. Diógenes morreu de uma intoxicação por ter comido polvo cru.

Conde de Gloucester, personagem do Rei Lear, queixa-se do destino humano como “moscas para meninos travessos”. Mas é a vaidade de Lear que coloca em movimento o arco dramático da peça. O indivíduo passa a ocupar o centro do palco. Até aí, antes de Shakespeare vivia-se num mundo diferente, num mundo de forças sobre-humanas, em que havia mais tragédia. Nenhum grande esforço pôde ajudar Édipo e seus pais a escaparem ao destino. O seu único acesso era às forças que controlavam o destino, que se davam a conhecer através dos oráculos dotados de visão divina.

Calano é um sábio da Índia que se tornou célebre por via de Alexandre Magno. Um exemplo de morte filosófica a oriente que deixou poucos traços na cultura a ocidente. Plutarco fala dele em Vidas Paralelas, juntamente com um tal Dandamis. Dois sábios indianos que impressionaram Alexandre. São os sábios nus, que os Gregos apelidaram de “gimnosofistas”, renunciadores de qualquer tralha. Sobre as relações de Alexandre com as sabedorias da Índia existem vários testemunhos, nomeadamente o do Pseudo-Calístenes, que em O Romance de Alexandre oferece indicações interessantes. Entre os Gregos e os filósofos da Índia, as relações foram, com efeito, mais numerosas do que geralmente se pensa. Mais do que tudo, foi a morte de Calano que marcou os Gregos, depois de ter acompanhado as tropas de Alexandre cerca de um ano. Eis os termos em que Plutarco faz o seu relato:

Calano que, desde há algum tempo, sofria dos intestinos, pediu que lhe acendessem uma fogueira. Para lá se dirigiu a cavalo e depois, após ter rezado, após se ter consagrado deitando sobre si próprio libações e ter oferecido em premissas uma madeixa de cabelo, subiu à fogueira, saudando com a mão os macedónios presentes e convidando-os a passar o dia alegremente e a beberem com o seu rei: ele cedo iria revê-lo em Babilónia, declarou. Depois de o dizer, deitou-se e tapou o rosto. À aproximação do fogo, não se mexeu e manteve a posição de adotara ao deitar-se. Este sacrifício era conforme aos costumes dos sofistas do seu país. 
Este relato é, contudo, estranho, porque havendo casos descritos de imolações em vida pelo fogo, a incineração era habitual depois da morte. No entanto, esta cena tornou-se canónica para os Gregos. A morte de Calano originou um mito perene sobre a morte dos sofistas indianos. Esta coragem enigmática de suicídio de Calano era para os Gregos o indicador de um domínio excecional que estes sábios superiores manifestavam sobre si próprios. 

É possível que os Estoicos se tenham inspirado nestes relatos de filósofos orientais lendários, cujo modelo bem nítido nos chegou pelo exemplo de Séneca e a sua morte. Para Séneca, a morte faz parte da vida desde que nascemos, acompanha-nos de uma ponta à outra da nossa vida em crescendo. Vivemo-la todos os dias. Progredimos para ela de hora a hora. Por isso, um sábio não é sábio apenas pelo que sabe em teoria, mas mais pelo que consegue pela ação. Um estoico só é estoico na ação. E o sábio deve poder ser livre de escolher a sua morte, pensa ele. Daí o seu longo fascínio pelo suicídio. Este pensamento acompanha Séneca ao longo de toda a sua vida filosófica.

Imaginemos que não morríamos: seríamos completamente diferentes. Não seríamos seres humanos de verdade. Pois aquilo que nos define, sem dúvida, é, antes de tudo, diz Séneca, “sermos hóspedes de passagem”. O importante não é o comprimento de uma existência, o número dos seus anos, mas a sua intensidade e, sobretudo, a sua retidão. Uma vida digna. Morrer bem é saber abandonar sem gemer a mesa do banquete, não lamentar aquilo que é inelutável, termos vivido suficientemente de maneira correta e livre para não nos sentirmos apegados àquilo que devemos necessariamente deixar. 

Séneca no fim da sua vida esperava a todo o momento ser intimado pela “lei e ordem” de pôr fim à sua existência. E esperava-o porque não se era impunemente precetor de Nero. Aquilo em que Nero se tornou assinala a falha total da pedagogia de Séneca. Tudo aquilo em que Nero desejara tornar-se, era aquilo que Séneca não queria. Segundo Tácito, o fim de Séneca não se desenrola como previsto. A agonia é longa e difícil. O corpo de Séneca resiste longamente, um corpo magro, mas robusto e saudável. O sague dos pulsos corre pouco. Um corte nos membros inferiores, também pouco adianta. É necessário engolir um veneno que tinha como reserva. Este não produz o efeito esperado. É então levado para uma sauna onde acaba por sufocar sob o efeito conjugado das várias tentativas.

quinta-feira, 24 de setembro de 2020

Vida de rico: Húbris e Némesis




Rico...mas pouco - Jean-Jaques-Rousseau defendeu que nenhum cidadão devia ser tão rico ao ponto de poder ser capaz de comprar o pobre. E ninguém devia ser tão pobre assim, ao ponto de ter de se vender ao rico. Deste ponto de vista, uma sociedade em que, devido às desigualdades, uns acabarem por ficar nas mãos de outros, é uma sociedade que não pode ser justa, porque nem sequer é formada por cidadãos verdadeiramente livres. Em situação de pobreza, os muito pobres não são livres para escolher o que fazer devido à falta de condições para isso. Para se ser livre é preciso ter as condições adequadas para que as escolhas possam ser genuínas. 

Bem, infelizmente uns vendem-se caro, outros vendem-se barato, mas a impressão que fica é a de que há em Portugal demasiada gente habituada a subornar, e outros demasiadamente dispostos a vender-se; ambas as partes com o mesmo fito: abrir um caminho rápido para subir na vida e ser rico, não pelo trabalho, e muito menos por uma vida honesta e honrada.

O que torna o luxo tão irresistivelmente atrativo? O luxo é irresistível porque satisfaz a vaidade e transmite um sentimento de superioridade e segurança que, não sendo reais, todavia conforta quem se deixa iludir. A vaidade constitui uma motivação imbatível. Para isso é preciso exibir sinais de riqueza até mesmo quando esta não é real e não passa de uma aparência. O problema é quem se serve de meios ilícitos para ter uma vida de luxo ostensiva.

Há diferenças significativas, no que diz respeito à corrupção, entre os povos do Sul da Europa Católico,  e os do Norte Protestante. São culturas muito diferentes, no que concerne à moral e à vida cívica, a que o acontecimento histórico da Reforma no Norte, e da Inquisição no Sul, no Cristianismo Europeu, não são alheios. O protestantismo é a todos os títulos mais exigente do que o catolicismo, cujos crentes têm sempre, mediante o confesso e o arrependimento, a salvação. As Democracias do Sul da Europa padecem todas do mesmo mal: uma corrupção endémica infiltrada em todo o corpo social, não poupando a oligarquia governativa.

Húbris - era o termo dos gregos clássicos para significar a vaidade com arrogância e insolência. Portanto, uma vida desmedida com todo o tipo de excessos.

A húbris, concebida pelos gregos dos tempos mitológicos, que determinava a moral, constituía uma infração desviante da mesura, da moderação e da sobriedade. Esses valores eram a medida de todas as coisas que tinham a ver com a moral. Nada devia ser em demasia: antes pouco, mas bom, do que muito, mas estragado. O homem devia estar ciente da sua pequenez perante os deuses e o cosmos. Devia ter a noção do seu lugar no universo. Eram essas conceções que depois governavam a polis de uma sociedade hierarquizada e meritocrática.

A húbris é um tema mitológico comum nas tragédias gregas, e no pensamento pré-socrático. As transgressões eram castigadas pelos deuses, não necessariamente implicando um desfecho trágico. 
Como nessa antiguidade os deuses brincavam, mas não brincavam em serviço, quando assim era, tinham um remédio chamado Némesis, a deusa da vingança que castigava. Na mitologia grega Némesis representa a força encarregada de abater toda a desmesura (húbris), como o excesso de felicidade de um mortal ou o orgulho dos reis. Essa é uma conceção fundamental do espírito helénico. Uma das vítimas foi Narciso, demasiado vaidoso para pouco amor às jovens desprezadas. Elas pediram vingança a Némesis, que as ouviu e causou um forte calor. Após uma caçada, Narciso debruçou-se sobre uma fonte para matar a sede. Nela viu o seu belo rosto e, apaixonado por sua própria beleza, definhou até à morte pelo amor impossível. Um festival chamado Nemeseia (às vezes identificado como Genesia) ocorria em Atenas. O seu objetivo era neutralizar o inimigo dos mortos, que teria o poder de punir os vivos, caso seu culto tivesse sido de alguma forma negligenciado. 

Na Teogonia de Hesíodo, as diferentes raças de homens (de bronze, de ferro) sucedem-se, enquanto as anteriores são condenadas pela sua húbris. De ceto modo, a infração de Agamémnon na Ilíada, está relacionada com a húbris, por ter despojado Aquiles da parte da pilhagem que lhe deveria corresponder por justiça. Não é o acerto de contas por erros cometidos, como aquela frase “cá se fazem cá se pagam”. Nem é o destino de cada um dado pelos deuses. O homem que comete húbris é culpável por desejar mais do que lhe foi concedido pelo destino. Era esse o castigo da húbris - a Némesis - O castigo dos deuses para a húbris consistia em fazer com que o transgressor regredisse até ao ponto de partida. “Némesis” tem também o sentido de justiça distributiva. A riqueza e a felicidade obtida ilegitimamente era retirada, para que fosse redistribuída de forma mais justa. Portanto, a seguir a uma vida vivida com uma felicidade obscena e imerecida, vinha a Némesis para repor as coisas no seu devido lugar. Subjaz a ideia de um mundo que deve obedecer a uma lei de harmonia e de virtude, segundo a qual o bem e o mal devem estar distribuídos em igual medida.

quarta-feira, 23 de setembro de 2020

Discriminação: positiva e negativa



Numa cónica no jornal Público de hoje, com o título: “A extrema-direita em perseguição às mulheres” – Maria João Marques tece várias considerações sobre o tema, dizendo que já anteriormente o Chega tinha gozado com a Lei da Paridade – instrumento para obrigar à representação política de mulheres – e foi premiado por isso. Um juiz validou-lhe as listas de candidatos para as legislativas – que não respeitavam a Lei da Paridade – e a CNE considera o vício sanado pelo tempo. Ao juiz que validou listas eleitorais ilegais não aconteceu nada – o Conselho Superior da Magistratura aparentemente não se incomoda. Corromper leis eleitorais talvez não seja grave para o CSM, entretido que está a punir comentários de juízas feministas com Clara Sottomayor feitas no Facebook de amigas na sequência do assassinato de uma criança. Já a CNE deu a todos uma pancadinha nas costas de parabéns pela esperteza. 

É consensual a ideia de que não devemos aceitar que alguém seja discriminada. Neste caso, negativamente, porque quando se trata de discriminação positiva, aqui as opiniões dividem-se. Por exemplo, discriminação positiva é beneficiar deliberadamente grupos de pessoas quando no passado foram discriminadas negativamente, e por isso foram vítimas de muitos abusos. Há quem defenda a discriminação positiva destas pessoas de forma a serem compensadas pelo que sofreram. É o caso da necessidade de haver paridade entre homens e mulheres em cargos que tradicionalmente foram sempre ocupados predominantemente por homens. Pelo menos, enquanto essa paridade não for efetiva, deve haver leis que o permitam.

No entanto, há opositores ao ponto de vista defendido pela feminista Maria João Marques que, estando longe de se identificarem com a extrema-direita, e até com a direita, argumentam que a intenção na discriminação positiva até pode ser boa, mas acaba na mesma por fomentar desigualdades, ao enviesar a igualdade de oportunidades que deve ser dada a todos os indivíduos. A ideia é que nem sempre os fins justificam os meios. Para se ganhar uma coisa importante, perde-se outra igualmente importante. Por isso, discriminações negativas do passado, por razões de tradicionais preconceitos sociais, é uma questão que deve ser resolvida de outra maneira sem perpetuar sistemas que fomentem mais desigualdades.

Por outro lado, a discriminação positiva ainda acarreta outro problema, que é o de provocar ressentimento de quem se sente injustiçado por não ter culpa de erros do passado. E assim, a discriminação positiva através de leis de paridade para beneficiar as mulheres, acaba por cair num populismo de esquerda. Populismo esse que é tudo menos justo. Portanto, homens que ao terem justamente mais competências e direito de ocuparem um lugar - ao serem preteridos a favor de mulheres menos qualificadas para esse lugar, mas que são escolhidas pela força de uma qualquer lei de paridades -, não se conformam com isso por se sentirem injustiçados.

terça-feira, 22 de setembro de 2020

Risco Moral


Em Economia, o Risco Moral ocorre quando uma entidade tem um incentivo para aumentar a sua exposição ao risco porque não acarreta com a totalidade dos custos correspondentes a esse risco.

O que se passa em Portugal – no que diz respeito a estratégias face à pandemia covid-19, e de uma forma semelhante nos países do Sul da Europa, que contrasta com os países do Norte da Europa, de que a Suécia é o exemplo máximo – é que os jovens enfrentam um Risco Moral na pandemia, porque os custos da pandemia são na sua maior parte suportados pelos mais velhos. E os mais velhos estão também numa situação de Risco Moral ao estarem dispostos a sacrificar os mais jovens com as medidas de restrição da sua liberdade, o que ao longo prazo pode comprometer o seu futuro, numa altura em que os mais velhos já cá não estão.

E é nesse sentido que Daniel Oliveira diz na sua crónica de hoje (22/09/2020) –
https://expresso.pt/opiniao/2020-09-22-Obrigado-aos-jovens

– Que devemos, mais do que tudo, os mais velhos, sentirmo-nos gratos pela disponibilidade manifestada pela grande maioria dos jovens para nos proteger, colocando-a em destaque, em paralelo com a dos outros heróis da pandemia.

O Risco Moral dos jovens tem sido muito divulgado nos media, quando são muito criticados por estarem a colocar em risco os mais velhos com as suas “festas ilegais” e como tal, parecem valorizar mais a diversão do que a saúde dos pais e avós. Defeitos de caráter… Assim são os jovens desde o princípio do mundo.

De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), a nível mundial, a letalidade do COVID-19 (a percentagem de infetados que acabam por falecer) encontra-se para as idades nos intervalos entre os 10-19 e os 20-29 anos nos 0,2%. Entre os 60-69, a percentagem é de 3,6% (18 vezes maior) e a partir daí aumenta bastante até aos 14,8% (para os infetados com mais de 80 anos). Em Portugal os dados são semelhantes.

Assim se interrogou Daniel Oliveira em outra ocasião: “é justo sacrificar o futuro de uma geração, que corresponde à dos jovens, para que a geração dos mais velhos continue a desfrutar de uma vida com mais anos?” A pergunta – feita em linha com a mentalidade da gente da Suécia, que aos olhos da gente de Portugal, e de um modo geral da gente do Sul – parece ter implícita a aceitação de podermos descartar sem remorso pessoas que já viveram mais do que o tempo que seria expectável na ordem natural das coisas.

Ora, Daniel Oliveira faz questão de salientar que tem dado provas de estar a léguas desse tipo de raciocínio: “Esse é, aliás, um dos meus maiores choques culturais com o pragmatismo demolidor do norte da Europa. Mas se a pergunta tem, como têm todas as que lidam com a vida e com a morte para lá da comoção, qualquer coisa de insensível, não a fazer não terá menos”.

O que Daniel Oliveira faz é o papel do cientista imparcial à luz do que já se conhece acerca da sobrevivência da espécie. É o sacrifício milenar pela preservação e superação das nossas capacidades em prol das gerações que nos seguem. Só um egoísmo, que seria suicida para a espécie, nos poderia levar a abandonar esta quase instintiva pulsão.
««O dever moral que temos é, antes de tudo, o de não lhes mentir, levando-os a acreditar que fazem este sacrifício por eles e não por nós. Seria desonesto e sinal de ingratidão. E só lhes podemos pedir o indispensável para garantir a segurança dos mais velhos, mostrando-nos disponíveis para corrermos alguns riscos em nome do seu futuro. Uma sociedade que não se sacrifica pelos velhos é falha de empatia. Uma sociedade que não se sacrifica pelos novos está condenada. Isto não tem dois lados da barricada e não há nada tão inútil e repetitivamente e passageiro como guerras de gerações. Desde que não nos esqueçamos de uma coisa: é por nós, não por eles, que lhes pedimos sacrifícios. Temos de lhes agradecer e dar o nosso melhor para os compensar pelo esforço.»» 

segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Esquemas de lavagem de dinheiro e outros crimes




Uma fuga de informação com mais de 2100 relatórios sobre atividades suspeitas enviados entre 1999 e 2017 por vários bancos às autoridades norte-americanas, conhecidos como SARs (Suspicious Activity Reports), revela detalhes sobre transferências bancárias de mais de dois biliões de dólares – 2.000.000.000.000 (dois milhões de milhões) – triliões na nominação americana.

Esta é a maior fuga de informação de sempre de documentos do Departamento de Tesouro americano, os FinCEN Files (Financial Crimes Enforcement Network). Os SARs são documentos entregues a esta agência federal no âmbito das regras que os bancos que operam nos Estados Unidos estão obrigados. Foram obtidos pelo site de informação BuzzFeed News e partilhados com o ICIJ (Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação), para poderem explorar, cruzar e expor informações relevantes para o interesse público.

Isto mostra o comportamento miserável da maioria das instituições financeiras, incluindo cinco dos principais bancos do mundo: o JP Morgan, o HSBC, o Standard Chartered, o Deutsche Bank e o Bank of New York Mellon. Primeiro está o lucro. Depois está tudo o resto. Na Europa, o HSBC, o maior dos seus bancos, depois de ter admitido em 2012 que ajudara a lavar mais de 800 milhões de dólares para os cartéis mexicanos de droga, e de ter pago por causa disso uma multa de quase 2 mil milhões de dólares, os FinCEN Files mostram que este gigante da banca continuou nos anos seguintes a fechar os olhos a muitos clientes potencialmente problemáticos.

Ao falharem redondamente na sua função de impedirem a ocorrência de transações corruptas, as instituições financeiras assumem ter desistido do seu dever de estarem na linha da frente da luta contra o branqueamento de capitais. Apesar de o HSBC ter assumido o compromisso de que os seus departamentos de compliance iriam funcionar muito melhor, num acordo negociado em 2012 com o Ministério Público, tendo-lhe sido dado um período de cinco anos de tolerância zero, o banco enviou para a FinCEN relatórios sobre atividade suspeitas em que esse compromisso parece ter sido posto em causa. De acordo com a investigação do ICIJ, entre outras situações, foram detetadas mais de 900 milhões de dólares de transferências a partir da sua sucursal de Hong Kong envolvendo companhias offshores identificadas na imprensa ou em processos-crime como estando associadas a organizações criminosas.

Foram identificados e analisados pelo Expresso dois documentos que referem transferências de dinheiro, e que tiveram como origem ou destino contas bancárias em Portugal. Tirando ainda um terceiro caso em que é mencionada uma conta de uma companhia offshore de Isabel dos Santos. Esses dois SARs não estão, contudo, sequer focados em Portugal. Os movimentos mais significativos estão ligados a uma conta bancária na Sucursal Financeira Exterior (SFE) do BES (atual Novo Banco) no chamado offshore da Madeira, no Funchal. Trata-se de uma conta titulada por uma empresa chamada Intersecurities International Inc., registada no Panamá, de onde saíram duas transferências – uma de 28,17 milhões de dólares a 7 de março de 2014 e outra de 28,15 milhões de dólares a 22 de abril desse ano —, num total de 56,3 milhões e tendo com destino final uma conta no Continental Bank, nos Barbados. Essas duas transferências que partiram do BES no Funchal passaram por vários bancos correspondentes, entre eles o JP Morgan, nos Estados Unidos. Foi o departamento de compliance deste banco que veio a escrever um SAR a 26 de setembro de 2014 em que as duas transações são referidas. As suspeitas estão relacionadas com um grupo bancário da Venezuela e com a compra e venda de divisas naquele país. O segundo SAR em que são referidas contas bancárias portuguesas foi produzido a 1 de outubro de 2010 pelo compliance do Bank of New York Mellon a propósito de pagamentos feitos por uma empresa de tecnologia que tinha uma conta no Investors Bank e deu como morada um endereço em Nova Iorque. Várias dessas transferências, efetuadas a partir de uma conta no Investors Bank, em New Jersey entre abril e junho de 2015, tiveram como destino duas empresas portuguesas, ambas com contas no BES em Lisboa, num total de 940.467 dólares. Na esmagadora maioria dos casos, trata-se de situações em que bancos estrangeiros tinham contas correspondentes abertas em bancos portugueses. Alguns dos movimentos passaram pelo BPI, pelo Millennium BCP, Montepio, mas mais de metade do volume diz respeito ao Novo Banco.

domingo, 20 de setembro de 2020

Memória de Elefante - António Lobo Antunes

António Lobo Antunes, no seu primeiro romance - Memória de Elefante, 1979 - relata um dia da vida de um médico psiquiatra, regressado de Angola onde havia cumprido no final dos anos 60 a sua missão como médico militar na chamada guerra do ultramar. É um romance com ressonâncias joyceanas, como o Ulisses, narrado na terceira pessoa (pelo autor narrador), mas com bastantes interferências da primeira pessoa através de falas do médico, ou comunicação dos seus pensamentos. É a história começa logo de manhã no Hospital Miguel Bombarda, onde exerce clínica. E termina às cinco da manhã do dia seguinte numa varanda frente ao mar do apartamento do Monte Estoril onde habita, depois de uma noite passada com uma prostituta. 

A narrativa romanesca de António Lobo Antunes apresenta uma concatenação prosódica que faz muito do seu estilo e estesia. É por isso que Lobo Antunes não esgota a velha questão da prosa poética e da poesia em prosa. É a prosódia do texto que modela o enunciado poético de modo a que ele nos pareça como tal. Lobo Antunes é original no modo como o caráter vincadamente romanesco adquire marcas poéticas, não apenas pela qualidade lírica que por vezes assume, mas pelo tipo de tratamento que a sua ficção admite. O autor é o primeiro a entender os seus romances como possíveis textos poemáticos.

A prosódia tem a ver com a vertente de proferição, o que dá para perceber quando lemos, pelo menos certas partes do texto, em voz alta. Tal como na poesia, faz toda a diferença na nossa entrada no encadeamento do texto pela via sonora. É ao-fim-e-ao-cabo a matriz da nossa linguagem que foi para ser falada e entrar pelos ouvidos. A escrita é já um novo estádio da nossa evolução, que deu a primazia à visão, e à invenção da escrita.

Foi a partir deste entendimento que surgiram as controversas questões pontuadas pela pergunta: afinal o que é a literatura? Ritmo e musicalidade tende a desaparecer na literatura. Nada que se pareça com as narrativas dos antigos bardos dos tempos dos primeiros celtas irlandeses, ou dos tempos homéricos.

Ler memória de elefante hoje, um romance de 1979, ainda surpreende pela sua frescura. Independentemente do seu forte caráter autobiográfico, o que avulta é o uso da metáfora insólita num constante tom humorístico. Diálogos desconcertantes, exacerbando o grotesco, projetam no leitor imagens fabulosas manifestadas pela expressão discursiva numa torrente incessante de desdobramentos.

Em resumo: A intriga é centrada numa personagem referida como "o médico psiquiatra", mas nunca aparece o nome, o que chama a atenção desde logo para a questão do romance ter um forte cunho autobiográfico. António Lobo Antunes é, de facto, médico psiquiatra, e fez a guerra colonial em África. 




Respigos

Percorre a autoestrada e a Marginal. Menção do senhor Ferreira, porteiro do prédio do seu apartamento, e da tapeçaria dos tigres. Passa por Caxias, pelo Mónaco. Lembrança da gaivota que, na semana anterior, viera morrer contra o para-brisas. Segue em direção do Casino.
Todas as noites, aproximadamente àquela hora, o psiquiatra fazia o percurso da autoestrada e da Marginal para voltar ao pequeno apartamento desmobilado onde ninguém o esperava, empoleirado no Monte Estoril num prédio excessivamente luxuoso para a sua timidez. A secretária do porteiro, no átrio enorme de vidro e de metal, com um lago, plantas de Jardim Botânico e vários desníveis de pedra, possuía um painel de botões através dos quais uma voz sem corpo de Juízo Final ecoava nos diversos andares os seus mandamentos domésticos, com sonoridades divinas de balde roto ou de garagem à noite.
O médico quedava-se sempre de auscultador em punho, esquecido da chamada, a examinar estupefacto tão abracadabrante realização. A mulher do senhor Ferreira, que nutria por ele a simpatia instintiva que despertam os órfãos, saía da cozinha a enxugar as mãos ao avental: "Muito gosta o senhor doutor dos tigrezinhos." E postava-se ao lado do psiquiatra, de cabeça à banda, a contemplar orgulhosamente os seus bichos, até o senhor Ferreira surgir por seu turno e debitar, na célebre voz divina, a frase que resumia para ele o clímax da admiração artística: "Esses sacanas até parece que falam."

Desembocou em Caxias com as ondas a pularem sobre a muralha em cortinas verticais. Não havia lua e o rio confundia-se com o mar no espaço negro à sua esquerda, gigantesco poço deserto de luzes de navios: os candeeiros vermelhos do Mónaco assemelhavam-se, atrás dos vidros húmidos do restaurante, a fanais anémicos na tempestade: jantei aqui quando me casei, pensou o psiquiatra, e nunca mais houve um jantar miraculoso assim: até da carne assada subia um gosto de surpresa; no fim do café descobri que não era necessário, pela primeira vez, levar-te a casa, e isso disparou-me nas tripas uma alegria formidável, como se tivesse começado, a partir de então, a minha vida de homem, aberta apesar da iminência da guerra numa vigorosa perspectiva de esperança. Lembrou-se do automóvel que a avó lhes emprestara para a lua-de-mel e que fora o último carro do marido e do seu trabalhar ronceiro de berço, lembrou-se da impressão esquisita da aliança no dedo, do fato que estreara nessa tarde e do seu cuidado patético com os vincos. Amo-te, repetia ele em voz alta agarrado ao volante como a um leme quebrado, amo-te amo-te amo-te amo-te amo-te, amo o teu corpo, as tuas pernas, as tuas mãos, os teus olhos patéticos de bicho: e era como um cego continuando a conversar com uma pessoa que saiu pé ante pé da sala, um cego aos berros para uma cadeira vazia, tacteando o ar, palpando com as narinas um odor que se evaporava. Se vou agora para casa fodo-me, disse ele, não me acho em condições de enfrentar o espelho do quarto de banho e aquele silêncio todo à minha espera, a cama fechada sobre si própria à maneira de um mexilhão pegajoso. E recordou-se da garrafa de aguardente da cozinha e que podia sempre sentar-se no banco de madeira da varanda, de copo na mão, a ver o modo como os prédios desciam de cambulhada para a praia, arrastando os seus terraços, as suas árvores, os seus jardins torturados: acontecia-lhe adormecer ao relento, de cabeça encostada ao estore, com um barco que saía da barra a viajar-lhe dentro das pálpebras cansadas, e lograr desse jeito alguma espécie de sossego, até que um indício de claridade roxa, misturada com pardais, o despertasse obrigando-o a tropeçar na direcção do colchão à laia de criança sonâmbula para o seu chichi nocturno. E ao banco da varanda aderiam excrementos solidificados de pássaros, que arrancava com as unhas e sabiam ao cré da infância, devorado às ocultas no decurso das breves ausências da cozinheira, ditadora absoluta daquele principado de caçarolas.
Frente ao casino - no topo de uma espécie de Parque Eduardo VII em ponto pequeno - a noite marítima, os comboios e os versos de Dylan Thomas. O jogo no Casino. Recordação da tia Mané, que gostava de jogar. A mulher do leopardo de plástico.

No topo de uma espécie de Parque Eduardo VII em ponto pequeno bordado de palmeiras hemofílicas cujos ramos rangiam protestos de gavetas perras, de hotéis de Visconti habitados por personagens de Hitchcock e de guardadores de automóveis manetas, de olhos de fome escondidos nas palas dos bonés como pássaros ávidos presos na rede franzida das sobrancelhas, o edifício do Casino assemelhava-se a um grande transatlântico feio adornado entre vivendas e árvores, batido pelas ondas de música do Wonder-Bar, pelos gritos de gaivotas roucas dos croupiers e pelo enorme silêncio da noite marítima em torno de que subia um odor denso de água de colónia e de mênstruo de caniche. Os comboios partindo para Lisboa da estação do Tamariz levavam consigo, nos bancos vazios, os versos desse Dylan Thomas de que tanto gostavas. 
Dylan Thomas foi o tipo de quem tive até hoje mais ciúmes, pensou o psiquiatra abandonando o automóvel à sombra protectora de um autocarro de turistas, cujo condutor explicava a um chofer de táxi maravilhado os méritos íntimos das francesas de uma certa idade, capazes de tornarem o coito leve e de fácil digestão como um suflé de espargos. Odiei desesperadamente Dylan Thomas e os poemas tumultuosamente convincentes com que esse gordo bêbado ruivo viajava contigo a países interiores a que eu não possuía acesso, vizinhos dos sonhos de que me chegavam esbatidos ecos através das palavras soltas que mastigavas num êxtase de sereia naufragada. Odiei Dylan Thomas sem que o soubesses sequer, disse o médico caminhando sobre a relva húmida da noite na direcção do convés do Casino e dos seus tripulantes mascarados de grooms majestosos trocando cinzeiros em gestos lentos de vestais, odiei esse rival defunto vindo do nevoeiro das ilhas do norte com um sorriso de corsário pensativo nas bochechas inocentes, esse sacana galês que rebentava os grossos diques da linguagem com ventosas frases cheias de sinos e de crinas, esse amante de espuma, esse fantasma de sardas, esse homem que morava numa garrafa de uísque como os barcos dos coleccionadores, ardendo na sua chama de álcool com dolorosa graça de fénix refractária. Caitlin, disse o psiquiatra trocando com o porteiro cabalísticos sorrisos vagos de Chirico, Caitlin de Nova Iorque te chamo under the milk wood neste novembro de 1953 em que morri, com uma ilha a desvanecer-se na paisagem da cabeça cercada pela raiva voraz dos albatrozes, Caitlin um dia destes desço ao Tamariz e tomo um comboio eléctrico para o país de Gales onde me esperas diante de um chá tão triste como a cor dos teus olhos, sentada na sala em que nada mudou, com um espesso fumo de pub a separar-te, sólido, da pressa dos meus beijos. Caitlin este mugido aflito de farol é o meu berro de boi saudoso que te procura, este apito modulado de locomotiva o canto de amor que sou capaz, este barulho de tripas um comovido sobressalto de ternura, estes passos na escada o meu coração ao teu encontro: vamos voltar ao princípio, passar a vida a limpo, recomeçar, jogar crapaud ao serão, beber licor de ginja, deixar o caixote do lixo lá fora, num estrépito de palhaço pobre, entre o espanto dos vizinhos e dos gatos, abrir uma lata de caviar e comer lentamente os grãozinhos de chumbo até que, tornados cartuchos de caçadores furtivos, disparemos um para o outro no fogo-de-artifício de uma explosão final, e será um pouco essa, Caitlin, a nossa maneira de partirmos.
O médico trocou duas notas de conto de réis em fichas de quinhentos escudos e instalou-se na sua banca francesa favorita, quase vazia de parceiros por estar a dar jogo irregular. Sentia nas costas o frenesim das mesas de roleta, cuja morosidade o impacientava, com os croupiers contando intermináveis pilhas de fichas e um cortiço de apostadores à volta, inclinados para o pano verde num apetite de louva-a-deus. O psiquiatra reparou especialmente numa inglesa muito alta e muito magra, com um vestido de alças dependurado do cabide das clavículas, reluzente ainda de cremes para o sol, as mãos esqueléticas a escorrerem fichas que colocava sobre os ombros dos outros em gestos angulosos de grua. O croupier anunciou Pequeno, o pagador recolheu as fichas perdentes e dobrou as ganhantes: o médico viu que a mulher sentada à sua esquerda anotara três pequenos seguidos depois de dois grandes, de modo que empurrou quinhentos para a zona do Grande e ficou à espera. Primeiro apalpar, disse-se ele, conforme a técnica da minha mãe na praça: ao menos que o tanto tê-la visto regatear fruta de alguma coisa me sirva. E sorriu de imaginar o que a mãe, criatura prudente e comedida, julgaria se o topasse ali arriscando quantias que ela considerava exorbitantes, deitando-se tarde para chegar ainda mais tarde ao hospital no dia seguinte, a descer velozmente o plano inclinado de uma ruína segura: histórias trágicas de fortunas evaporadas no Casino corriam tetricamente nos serões da família, narradas em tom cavo pelos aedos da tribo. A tia Mané, octogenária histórica cujo sorriso abria um ziguezagueante caminho através de pinturas e de cremes ressequidos, sumira as pratas da casa ao bacará e utilizava uma cautela de penhor em lugar de bilhete de identidade. – Pequeno, disse o croupier pousando o copo dos dados e embrenhando-se de imediato em conversa sussurrada com o fiscal, de cabeças docemente inclinadas como apóstolos da última Ceia: Jesus e S. João partilhando as delícias do Espírito Santo. O pagador retirou a ficha do médico numa manobra destra de língua de camaleão caçando uma mosca imprevidente. A mulher anotou, conscienciosa, o Pequeno, era gorda e loira, já gasta, e usava um casaco de peles sintético nos ombros moles: o perfil dela assemelhava-se ao de Lavoisier no retrato oval do livro de Física do 4.o ano do liceu, e jogava duzentos e cinquenta escudos de cada vez na determinação raivosa de quem perde obstinadamente. Do lado oposto da mesa uma velha coçada atirava vinte escudos teimosos para os ases na esperança de um milagre. Dois sujeitos com ar de mestres-de-obras prósperos hesitavam de fósforo nos dentes: a pastilha elástica dos naturais de Tomar, pensou o psiquiatra apostando de novo no Grande, chocos com tinta, Mercedes Diesel amarelo torrado e Vila Mélita na fachada da casa. A mulher do leopardo de plástico absteve-se. Saiu um 12, um 13, um 14, um 12, um 18: os mestres-de-obras colocaram cinco mil escudos cada no Pequeno. Um rapaz ruivo surgiu da nuca do médico e lançou quinhentos no Grande: já me fodi, pensou o psiquiatra sem razão aparente a não ser um aperto avisador no esófago. Estendeu o braço para o seu dinheiro e ia pescá-lo quando o croupier levantou o queixo e disse Pequeno com uma indiferença cruel. Croupiers e analistas puta que vos pariu.
A mulher gorda sorriu-lhe: faltava-lhe um incisivo em cima e possuía as gengivas pálidas de Vasco da Gama ao quadragésimo dia de avitaminose. "Grande, proclamou o croupier que se ria respeitosamente de uma piada qualquer do fiscal." É curioso como as graças dos superiores têm sempre humor, verificou o médico repetindo a frase surpreendida de um irmão seu a quem a bajulice espantava como um fenómeno incompreensível: o pagador debruçou-se para o croupier que lhe repetia a anedota do chefe, o qual aprovava gravemente com um sorriso solene, ajeitando o ângulo dos colarinhos: "É ou não é, Meireles?" O Meireles, que trocava fichas a um corcunda, ergueu as sobrancelhas sem levantar os olhos do trabalho, na careta entendida com que as tias do psiquiatra respondiam, durante a contagem das malhas do tricot, às perguntas dos sobrinhos. Será que cresci, que cheguei realmente a crescer, interrogou-se o psiquiatra correspondendo com o joelho à pressão de anca da mulher do leopardo de plástico, a avaliá-lo de viés com lenta pálpebra sabida, cresci de facto ou permaneci um puto assustado de cócoras na sala entre gigantescas pessoas crescidas que me acusam, fitando-me em silêncio numa hostilidade horrível, ou tossindo de leve, a coberto de dois dedos, a sua desaprovação resignada? Dêem-me tempo, pediu ele a essa roda de ídolos da Ilha de Páscoa que o perseguia de um amor ferozmente desiludido, dêem-me tempo e serei exactamente o que vocês desejam como vocês desejam, sério, composto, consequente, adulto, prestável, simpático, empalhado, miudamente ambicioso, sinistramente alegre, tenebrosamente desingénuo e definitivamente morto, dêem-me tempo, give me time […]
Tempo, repetiu o médico, necessito imperiosamente de tempo para me vestir de coragem, colar todos os meus ontens no álbum de retratos. A mulher gorda pousou-lhe no braço as unhas compridíssimas vermelhas escuras: o punho dela, idêntico ao de um lagarto ressequido, ornava-se de uma pulseira símile-filigrana, com uma enorme medalha de Nossa Senhora de Fátima tilintando contra uma figa de marfim, e o psiquiatra sentiu-se prestes a ser devorado por um réptil terciário em cujas mandíbulas o sangue do baton revelava claramente monstruosas intenções assassinas. Os olhos do dinossauro fixavam-no na intensidade postiça do rímel, sob as sobrancelhas depiladas até à espessura de uma curva de tira-linhas, e o peito subia e descia numa cadência de guelra, conferindo aos seus múltiplos colares o balançar de rins dos botes ancorados. Os dedos treparam aracnideamente a manga do médico beliscando-lhe de leve o polegar, enquanto a coxa absorvia completamente a sua e um salto aguçado lhe premia o pé, a arrancar-lhe o calcanhar numa carícia malévola. O corcunda, instalado à esquerda, chupava ruidosamente pastilhas para a garganta disseminando no ar um aroma de inalações de asmáticos: se eu fechasse com força as pálpebras por um segundo poderia supor-me sem esforço no quarto de Marcel Proust, escondido atrás da pilha de cadernos manuscritos da Recherche du Temps Perdu: c’est trop bête, assim costumava ele definir o que escrevia, je peux pas continuer, c’est trop bête. Querido tio Proust: o papel de parede, a lareira, a cama de ferro, a tua difícil e corajosa morte: mas achava-me na realidade instalado a uma mesa de jogo do Casino, e a solidão roía-me por dentro como um ácido doloroso: a ideia da casa vazia apavorava-me, a solução de tornar a dormir na varanda fazia-me gemer de antecipados lumbagos. De alma em pânico enxotei a derradeira ficha para o Grande: se ganhar vou direito ao Monte, enfio-me nos lençóis e masturbo-me a pensar em ti até o sono vir (receita de sucesso relativo); se perder convido esta jibóia idosa para uma orgia modesta de acordo com o casaco de plástico dela e os meus jeans no fio, e à medida de um fim de mês penoso: ignorava sinceramente qual destas duas catástrofes escolher, dividido com horror idêntico entre o isolamento e o ofídio.
Conversa monologada da prostituta que trouxe do Casino. Levá-la no carro em direção a uma boite onde comem e dançam.

"Você tem mesmo a certeza de que é médico?" Perguntou-lhe o ofídio olhando-lhe com desconfiança os jeans rapados, a camisola gasta, a desordem descuidada dos cabelos. Estavam ambos no pequeno automóvel do psiquiatra (Não sei se caibo nesta coisa), junto ao impressionante autocarro de turistas que recebia de volta a sua carga de americanas velhas em vestidos de noite, de óculos suspensos do pescoço por fios de prata como as chuchas dos bebés, acompanhadas de sujeitos rubicundos parecidos com o Hemingway dos retratos finais. "Eu não costumo desconfiar das pessoas mas nunca se sabe", acrescentou ela examinando policialmente a cédula profissional que o outro lhe estendia, e já vou tendo a minha conta de barretes. Acredita-se acredita-se e vai na volta truca: passa para cá a carteira ó ai ó linda e fica-se na estrada a ver navios. Você desculpe, não é nada consigo, paga o justo pelo pecador como dizem os padres e nunca é demais acautelar. Tenho um primo por parte do meu pai enfermeiro em São José, no Serviço Um, o Carregosa, conhece? Baixo, forte, careca, um bocado gago, maluco pelo Atlético? Usa o emblema por cima da bata, jogou nos juniores, a mulher dele entrevou-se, só diz raisparta raisparta? O senhor perdoe as minhas prudências mas o Mendes dizia-me sempre: Dóri (chamo-me Dóri) põe-te a pau com os estranhos que mais vale prevenir do que remediar, até ouvi essa a uma senhora que tirou os peitos no instituto do cancro, apanhava malhas, agora apanha balões de soro, está quase tão mal como o Mendes, coitado, que depois da revolução teve de emigrar para o Brasil que remédio, deixou-me uma carta querida a garantir que me mandava para ao pé dele, que nunca gostara de ninguém como me amava a mim, era só uma questão de meses até arrumar a vida dele e pronto, mulatas nem vê-las que cheiram mal. Mais mês menos mês tomo o boingue para o Rio de Janeiro, ele é doutor de finanças e económicas não vai secar sem sacar emprego que nunca vi competência como o Mendes, trabalha que nem cão o desgraçado apesar de fraquinho dos pulmões e ao depois não é só isso, é a delicadeza, os modos, a forma de tratar uma mulher, adivinha o que a gente quer, nunca me bateu, quase todas as semanas eram flores, eram jóias, eram jantares no Comodoro, eram cinemas. Eu dizia-lhe, é claro, ó filhinho não é necessário tanto luxo mas o Mendes sabia que eu me pelava, não fazia caso, era um santo de altar, estou a vê-lo com as patilhas muito bem tratadas (dei-lhe uma filichaive no Natal), a camisa rosa negra impecável, o verniz das unhas a brilhar. Pausa. "Porque é que você não põe uma gravata de seda natural, um casaco piêdepule, fixador brilcrime na cabeça? Nunca vi um médico tão mal amanhado, tão à mecânico, os doutores devem de ter representação, não é, quem é que se quer tratar com um psiquiatra pope esgadelhudo? Eu quando vou à caixa exijo respeito, seriedade, percebe-se logo pela cara das pessoas se são competentes ou não, não achas, os especialistas como deve de ser usam colete, têm bêémedablius prateados, casas com lustres, torneiras doiradas que são peixes a deitar água, entra-se lá nota-se o dinheiro que o quinane anda pela hora da morte, diga-me lá o que se faz hoje na vida sem dinheiro, eu sem dinheiro sinto-me a morrer, é a minha gasolina, topas, tirem-me a minha carteira de crocodilo e fico perdidinha da silva, estou habituada aos luxos que é que queres, talvez não acredites mas o meu pai era professor de veterinários em Lamego."

Tirou um Camel de contrabando de uma horrorosa bolsa de cartão imitação de jacaré, acendeu-o com um isqueiro de baquelite a fingir tartaruga. O psiquiatra reparou que os sapatos dela, de tacões inacreditavelmente altos, necessitavam de meias solas, e que grandes vincos sem graxa estriavam o cabedal no peito do pé: saldos da Praça do Chile, diagnosticou ele. As raízes das madeixas loiras nasciam grisalhas no local da risca, e o pó-de-arroz tentava sem sucesso mascarar as múltiplas rugas fundas ao redor dos olhos e ao longo das bochechas moles, pendentes do queixo em cortinas flácidas de carne. Devia trazer as fotografias dos netos (a Andreia Milena, o Paulo Alexandre, a Sónia Filipa) no porta-moedas. "Para a semana que vem faço trinta e cinco anos, informou ela com descaro. Se prometeres pôr um smoquingue e levar-me a jantar a um restaurante decente o mais longe possível dos Caracóis da Esperança, convido-te: desde que o Mendes se foi embora tenho um vazio no coração." E apalpando-me o ombro:

"Sou uma pessoa muito afectuosa, chiça, não sei viver sem amor. Tu não deves ganhar mal, hã, os médicos esfolam, se te arranjasses, te penteasses, comprasses um fatinho na Avenida de Roma talvez ficasses jeitoso embora isso para mim, o dinheiro, o aspecto, não tenha importância nenhuma, são os sentimentos que me interessam, a beleza da alma não é? Um homem que me trate bem, me leve a passear a Sintra aos domingos e chega para eu andar feliz como um canário. Sou muito alegre percebes?, muito sossegada, muito caseira. Eu cá meu filho pertenço ao género amor e uma cabana, o meu banho de espuma, a minha depilação das pernas, conta aberta na pastelaria, não exijo mais. Tens aí duzentos escudos que me emprestes para o táxi para Lisboa que comboios, comigo, santa paciência, tens duzentos escudos com certeza, deves ganhar bem, és um cavalheiro, não aguento caramelos que não sejam cavalheiros, olha que gandulos sempre com a caralhada na boca puta que os pariu. Desculpa falar-te assim mas é que eu sou franca, não sou gaga, sei o que digo, a bem tudo a mal nada e ao depois simpatizo contigo, posso dar-te muitos gozos se gostares de mim, me compreenderes, me pagares a renda da casa, eu quero é dedicar-me, ter alguém que me leve ao cinema e ao café, me pague a renda da casa, me trate como deve de ser, goste do meu basset, me aceite. Por acaso podíamos ser felizes os dois, tu e eu, não achas, quando é que deslizas os duzentos bagos? Tens medo que isto seja conversa da fiada? Ó filho eu paixões é à primeira vista, não há nada a fazer, caíste-me no goto, deixa cá pôr os óculos para te observar melhor, te amar ainda mais."
Tirou primeiro um estojo, voltou a empurrá-lo para o fundo da carteira (Poça estes são os de longe) e extraiu de uma confusão de lenços de papel, de bilhetes de eléctrico e de documentos amarrotados, um par de lentes grossas como um caleidoscópio atrás das quais as pupilas desapareceram, dissolvidas na espessura do vidro: o psiquiatra sentiu-se examinado por um microscópio de má qualidade.
"Ai filho mas tu és novíssimo, exclamaram as dioptrias espantadas, tens para aí a minha idade, trinta e três, trinta e quatro o máximo, não? Apostava duzentas e cinquenta de percebes que tens trinta e quatro, eu nisto de anos nunca me engano, se fosse assim com o totobola já tinha aberto uma butique no Areeiro há mais de um colhão de séculos, o Mendes jurou-me pelos ossos do irmão que está debaixo da terra que me punha uma na Penha de França e logo haviam de vir os comunistas a roubar a gente, a enrabar isto tudo, foi-se o projecto por água abaixo mas se pensas que desisti estás mais enganado que um marido, aqui a Dóri é teimosa dos cascos, no amor e nos negócios sou um cão de fila, não largo, tenho a dentuça afiada. Olha lá a propósito quanto é que tens no banco, para cima de cem contos não, confessa-te aqui à Dóri, se quisesses abríamos um cabeleireiro de sociedade, Salão Dóri ficava giro não achas, letras luminosas cá fora, decência, clientela rica, empregadas escolhidas a dedo, música de fundo, cadeiras de veludo, uma coisa como no cinema, eu ficava à caixa que o meu forte é o comércio, estive dez anos na capelista do Mendes e nunca dei prejuízo à Havaneza de Arroios, fechou porque tinha de fechar, os negócios gastam-se, topas, é como a pila dos homens, a tua deve estar toda gastinha meu marau mas a Dóri compõe, é preciso é a gente saber tocar guitarra de uma corda só, e ao depois os fornecedores da Havaneza metiam a unha como o caneco e aconteceu-me encontrar o Leal, um que cantava na rádio conheces com certeza, esteve vai não vai para ir à televisão, dedicou-me músicas lindas, género romântico, até chorei já vês, uma estampa de moço apessoado não desfazendo, chegaram a convidá-lo para uma fotonovela da Crónica, a história de um engenheiro filho de uma condessa que gosta da criada da mãe que afinal é neta de um marquês e não sabia, o marquês morava em Campo de Ourique numa cadeira de rodas, eu bem que insisti com ele Ó Leal tu aceita-me, tu aceita-me o furo que andas aos caídos e tens cara de engenheiro mas o rapaz tinha orgulho e fodeu-se por isso, ainda se fosse um filme respondia-me ele, ainda se fosse um filme ia pensar desde que me deixassem dormir a sesta, um filme indiano, tinha aquela mania dos filmes indianos, quem o quisesse encontrar que o procurasse à saída do Aviz, parecia-se com o Arturo de Cordoba e com o Tony de Matos, a mesma voz, os mesmos caracóis bem penteados, a cintura assim fininha, fazia pesos e halteres às terças e quintas no Ateneu, em Caxias e na praia era uma razia nas pequenas, o Mendes aceitou a coisa, perdoou-me, ele sabia do meu temperamento e perdoava, o Leal casou-se com a dona de uma ourivesaria da Amadora, uma cabra safada que nem mamas tinha viúva de um embarcadiço que chupou umas lecas da merda no contrabando dos rádios, se calhar dava a cona da mulher no porta a porta, eu andei a pastilhas para dormir um mês, só suspirava, até o gosto pelo folhetim perdi, o Mendes fazia-me chá de tília, pobrezinho, aconselhava-me com bons modos, ó Dóri se o médico do coração deixar vou para a ginástica do Ateneu, sofria de angina do peito, coitado, para subir as escadas era uma desgraça, desatava logo a arfar, sei lá mais de quantas vezes se me ia ficando em cima, ó Dóri deixa lá que tens aqui o teu Riquinho, o Mendes chamava-se Reinaldo, Reinaldo da Conceição Mendes mas eu tratava-o por Riquinho porque ele gostava, emagreci cinco quilos com a infelicidade, ah conho que se pilhasse a ramelosa partia-lhe um chifre com os dentes, fressureira de um corno, puta esquentada, estoirou este outubro de um aneurisma abençoado, paguei uma missa de acção de graças no Beato, fiquei com a rata aos saltos para o resto da vida, o padre a latinar no altar e eu a dizer de joelhos Mal tu sabes pelo que é que rezas meu magano, viva o Benfica que já cá não está quem me enrabou." 
O médico alcançou a marginal e voltou para o Monte Estoril: havia uma boîte no sopé da colina onde não corria grandes riscos de tropeçar em pessoas que o conhecessem: envergonhava-o ser visto na companhia daquela mulher demasiado ruidosa, com pelo menos o dobro da sua idade, lutando contra a decrepitude e a miséria através de uma encenação absurda ao mesmo tempo ridícula e tocante, que o fez ter vergonha da sua vergonha: no fundo não eram diversos um do outro, e em certo sentido os seus frenéticos combates aparentavam-se: fugiam ambos à mesma solidão impossível de aguentar, e ambos, por falta de meios e de coragem, se abandonavam sem um gesto de luta à angústia da aurora como mochos aterrados. O médico lembrou-se de uma frase de Scott Fitzgerald, tripulante aflito do barco em que seguiam, deixado em terra numa viagem anterior, de coração exausto alimentado pelo oxigénio amargo do álcool: na noite mais escura da alma são sempre três horas da manhã. Estendeu a mão e afagou a nuca do dinossauro numa ternura sincera: salve, minha velha, atravessemos juntos estas trevas, declarava o seu polegar subindo e descendo ao longo do pescoço dela, atravessemos juntos estas trevas que só há saída pelo fundo consoante nos informou o Pavia antes de abraçar o seu comboio, só há saída pelo fundo e talvez que amparando-nos mutuamente lá cheguemos, cegos de Brueghel a tactear, tu e eu, por este corredor cheio dos medos da infância e dos lobos que povoam a insónia de ameaças. "Ah ah", exclamou a Dóri com um sorriso de triunfo, "atrevidote, hã?"
E apertou-me os testículos com as falanges em quebra-nozes até me fazer gritar de dor. A boîte devia estar no termo da sua viagem dessa noite: os únicos habitantes para além do empregado zarolho que nos serviu um gin e um prato de plástico de pipocas com maus modos evidentes, e da menina dos discos que lia o Tio Patinhas na sua gaiola sonora, figura de caixa de música curvada sobre si própria como um feto, eram dois homens sonolentos apoiados ao balcão, de narizes equinos mergulhados em alcofas de bagaço, e que miraram a mulher terciária, que rebolava à minha frente as ancas gigantescas, com a atenção distraída que se confere a uma ruína sem interesse. As luzes do tecto, pulsando molemente ao compasso de um tango, aclaravam o palco pindérico da minha execução: cadeiras de ferro de esplanada de café, um televisor apagado numa prateleira alta, cascas e pegadas circulares de copos no tampo das mesas: morreu na miséria, explicavam os livros de leitura acerca dos poetas defuntos, barbudos esqueléticos suspensos em atitudes pensativas, meditando provavelmente no que empenhar a seguir, ou fabricando na cabeça alexandrinos preciosos. A Dóri que regressava com a aproximação da madrugada a uma juventude de criada de servir doirada pelas sólidas promessas matrimoniais de um primo soldado, pediu uma sandes de paio com unto, de que ofereceu ao médico, numa guinada de súbita delicadeza, a trincadela inaugural: mastigava de boca aberta como as camionetas de cimento, e dançaram trocando meigamente pedaços de côdea (Papa quido que tás maguinho), à laia de náufragos repartindo, fraternais, a ração da jangada. O zarolho acotovelou os equinos do bagaço e ficaram-se os três a observá-los numa estupefacção imóvel, siderados pelo abracadabrante quadro de um adolescente envelhecido ao colo de uma baleia paleolítica de grande juba frisada. Foda-se, pensou o médico aterrado, inalando o perfume semelhante a gás de guerra de 14 que se soltava em rolos letais da nuca da mulher, o que faria eu se estivesse no meu lugar?
E por fim, na varanda do apartamento, às cinco horas da manhã, com a prostituta lá dentro a dormir. Olha o mar e monologa, dirigindo-se à mulher ausente e a um futuro ironizado.
São cinco horas da manhã e juro que não sinto a tua falta. A Dóri está lá dentro a dormir de barriga para cima, de braços abertos crucificados no lençol, e a dentadura postiça, descolada do céu da boca, avança e recua ao ritmo da respiração num ruído húmido de ventosa. Bebemos ambos a aguardente da cozinha pelo púcaro de folha, sentados nus na cama que o gás de guerra tornou inabitável carbonizando até as folhas estampadas das fronhas, escutei-lhe as confidências prolixas, enxuguei-lhe o choro confuso que me tatuou o cotovelo de um arbusto de rímel, puxei-lhe o cobertor até ao pescoço à laia de um sudário piedoso sobre um corpo desfeito, e vim para a varanda arrancar os dejectos endurecidos dos pássaros. Está frio, as casas e as árvores nascem lentamente do escuro, o mar é uma toalha cada vez mais clara e perceptível, mas não penso em ti. Palavra de honra que não penso em ti. Sinto-me bem, alegre, livre, contente, oiço o último comboio lá em baixo, adivinho as gaivotas que acordam, respiro a paz da cidade ao longe, desdobro-me num sorriso feliz e apetece-me cantar. Se eu tivesse telefone e me telefonasses agora deverias encostar cuidadosamente o auscultador à orelha numa expectativa de búzio: através das espiras de baquelite, vindo de quilómetros de distância, desta varanda de betão suspensa sobre o fim da noite, terias, juntamente com o eco do meu silêncio, o vitorioso eco do meu silêncio, o piano amortecido das ondas. Amanhã recomeçarei a vida pelo princípio, serei o adulto sério e responsável que a minha mãe deseja e a minha família aguarda, chegarei a tempo à enfermaria, pontual e grave, pentearei o cabelo para tranquilizar os pacientes, mondarei o meu vocabulário de obscenidades pontiagudas. Talvez mesmo, meu amor, que compre uma tapeçaria de tigres como a do Senhor Ferreira: podes achar idiota mas preciso de qualquer coisa que me ajude a existir.