quarta-feira, 29 de março de 2023

O caso do Voo Avianca 52





O voo Avianca 52, em 25 de janeiro de 1990, que fazia escala desde o aeroporto internacional da Colômbia, com destino ao aeroporto internacional J.F. Kennedy, Nova Iorque, acabou em desastre por falta de combustível, e devido a erros dos pilotos na comunicação entre a aeronave e os controladores de tráfego aéreo. O vento contrário diminuía significativamente, e eles estavam indo rápido demais para terem condições de aterrar. Em geral, naquela situação, seria acionado o piloto automático, que reage de forma imediata e adequada à variação do vento. Esse equipamento, no entanto, estava com problemas e fora desligado. Por isso, o piloto arremeteu e executou uma volta. A aeronave descreveu um amplo círculo sobre Long Island e, mais uma vez, aproximou-se do Aeroporto Kennedy. De repente, um dos motores falhou. Segundos depois, outro motor parou. “Mostrem-me a pista de pouso”, o piloto gritou, na esperança desesperada de estar perto o bastante para tentar uma aterragem segura planando com o avião. Mas o Aeroporto Kennedy estava a 26km de distância. O 707 caiu na propriedade do pai do campeão de ténis John McEnroe, na elegante cidade de Oyster Bay, em Long Island. Dos 158 passageiros a bordo, 73 morreram. Em menos de um dia, a causa do acidente foi descoberta: falta de combustível. Não havia nada de errado com o avião.

A neblina era tão espessa que os pilotos não conseguiam descobrir onde estavam. C: Onde está a pista de aterragem? Não consigo ver. Não consigo ver. Não temos combustível... Eles recolhem o trem de aterragem. C manda K pedir outra orientação de tráfego. Dez segundos se passam. C: Não sei o que aconteceu com a pista. Não a vejo. K: Não a vejo.

O avião está com um nível perigosamente baixo de combustível. Eles perderam a primeira tentativa de aterragem. Não têm a menor ideia de quanto tempo o avião ainda tem para voar. C: Diga que estamos numa emergência. K: um-oito-zero no ... ah! Vamos tentar de novo. Estamos a ficar sem combustível.

K faz um reconhecimento de rotina das instruções da TC e só menciona a preocupação com o combustível na segunda metade da mensagem. É como se dissesse: “Sim, aceito mais um cafezinho. E, de repente, ah! Estou-me engasgando com um osso de frango.” Até que ponto seria levado a sério? O controlador de tráfego aéreo com quem K havia comunicado declarou depois: “Apenas interpretei aquilo como um comentário sem importância.” Em noites de tempestade, os controladores ouvem o tempo todo os pilotos dizer que estão a ficar sem combustível. Além disso, o “ah” que K profere entre as duas metades da mensagem é uma espécie de indivíduo maluco. Outro controlador que lidou com o caso naquela noite fez a seguinte afirmação: “O copiloto falou de uma maneira muito bizarra ... dando a entender despreocupação na voz dele.”

Este tipo de aberração comunicativa explica uma das grandes anomalias dos desastres aéreos. Nos aviões comerciais, pilotos e copilotos dividem de modo igual as tarefas da pilotagem. Mas, historicamente, os acidentes tendem muito mais a ocorrer quando o piloto está no comando. Isso parece não fazer sentido, uma vez que ele quase sempre é mais experiente. Combater o falso otimismo zombie tornou-se uma das principais cruzadas da aviação comercial nos últimos anos.

Mas, entretanto, o avião afastou-se do Aeroporto Kennedy após a primeira tentativa de aterragem que foi abortada. K volta a falar por rádio com a TC, procurando saber quando poderão tentar de novo fazerem-se à pista. C: O que foi que ele disse? K: Já informei que vamos tentar de novo porque sabemos ... quatro segundos de silêncio. C: Diga-lhe que estamos numa emergência. Mais quatro segundos de silêncio. C: Você disse-lhe? K: Sim senhor, já o informei … Um-cinco-zero, mantendo a 2 mil, Avianca, zero-cinco-dois. C está claramente a entrar em pânico. C: Avise que não temos combustível. K: Subir e manter a 3 mil. E ah! Estamos a ficar sem combustível. O mesmo erro novamente. Nenhuma menção à palavra mágica “emergência”, que é ao que os controladores de tráfego aéreo estão treinados a dar atenção. Apenas a mensagem “estamos a ficar sem combustível” no fim da frase, precedida por “ah!”. C: Você já avisou que estamos sem combustível? K: Sim, já avisei... C: Ok.

Se não fosse o prelúdio de uma tragédia, os diálogos pareceriam uma comédia. Pouco mais de um minuto passou. TC: Avianca zero-cinco-dois, vou conduzi-los para cerca de 15 milhas a nordeste, para depois voltar à aproximação. Tudo bem com vocês, como está o combustível?

Eles estão à beira do desastre! Um dos comissários de bordo entra na cabine e constata a gravidade da situação. O marcador mostra combustível vazio. Com o dedo, faz um gesto de cortar o pescoço. Mas não diz nada. Nem ninguém diz mais nada nos cinco minutos seguintes. Há uma conversa pelo rádio com menções a assuntos de rotina até que no painel de voo: “Chamas no motor número quatro.” A pista está a 26 km de distância. Trinta e seis segundos de silêncio. O controlador de tráfego aéreo pergunta pela última vez: Vocês têm combustível suficiente para chegar ao aeroporto? A gravação termina.

As investigações do National Transportation Safety Board indicaram uma falha dos pilotos ao tentar comunicar-se claramente com o controlo aéreo. Tudo o que eles precisavam fazer era dizer ao controlador: Não temos combustível para fazer o que você está a mandar. Necessitamos aterrar nos próximos 10 minutos. Eles não conseguiram transmitir essa mensagem. Requisitaram apenas prioridade, mas não declararam emergência de combustível em nenhum momento. Além disso, as péssimas condições atmosféricas dificultaram o pouso, fazendo com que consumisse uma maior quantidade de combustível. Por último, o cansaço e o stress dos comandantes, para pousar mais rapidamente, também foi um fator considerável. 

Os controladores de tráfego aéreo de Nova Iorque têm fama de rudes, agressivos e intimidadores. Apesar disso, também são ótimos. Lidam com um volume de tráfego fenomenal num ambiente muito limitado. A maneira como encaram a situação é: «Estou no controlo. Bico calado e faça o que eu digo.» São ríspidos com os pilotos. E quem não concordar com as ordens deles deve responder no mesmo tom. Aí eles dizem: «Tudo bem.» Mas, se o piloto não os enfrenta, eles estão se ralando. Num voo da British Airways que ia para Nova Iorque, os britânicos estavam a ser tratados com grosseria pelos controladores. Então disseram que pessoas como eles deviam ir a Heathrow aprender a controlar um avião. Eles estavam na maior. Para quem não está acostumado com esse tipo de diálogo, O controlo aéreo de Nova Iorque pode ser bastante intimidador. Existe uma história célebre de um piloto que se perdeu no Aeroporto Kennedy. Ninguém imagina com que facilidade isso pode ocorrer ali depois de o avião atingir o solo. É um labirinto. A questão é que uma controladora de voo se aborreceu com ele e disse: «Pare. Não faça nada. Não fale comigo enquanto eu não lhe dirigir a palavra.» Ela simplesmente o deixou de lado. Por fim, o piloto apanhou o microfone e disse: «Madame, eu fui casado com você em alguma vida passada?»

segunda-feira, 27 de março de 2023

O muro e os túneis de Berlim





Heidelberger Strasse, dividida a meio pelo Muro, ficou conhecida como a "Rua das Lágrimas". Nesta zona, foi onde proliferou um grande número de túneis.




Nesta foto icónica, que mostra os guardas do lado oriental a recolher o corpo de Peter Fechter, de 18 anos de idade, morto a tiro quando tentava escapar para o lado ocidental em 17 de agosto de 1962.



Túnel da Bernauer Strasse, que se iniciou com uma armação triangular antes de passar à forma quadrangular. No início do verão de 1962 a entrada de água no túnel levou à suspensão temporária das escavações. É o correspondente da NBC, Piers Anderton, quem está na entrada do túnel.


O Muro de Berlim em Agosto de 1989:





O Muro de Berlim em Novembro de 1989:







segunda-feira, 20 de março de 2023

A Irlanda da Idade Média

  


The Temple Bar, no distrito de Dublin, grande reputação na vida noturna irlandesa.

Tomando a história da Irlanda desde a Idade Média, verifica-se a sua identidade como um caso único, não só porque havia muitos reis exercendo o seu senhorio sobre pequenas unidades populacionais e seus territórios (chamados tuaths), mas também porque havia muitos graus de realeza, com regras e costumes elaborados a respeito da sucessão.

No século VIII, quatro províncias tinham surgido, definidas efetivamente pelas tentativas das principais famílias em exercer uma suserania consistente e dominante sobre as demais: Uí Cheinnselaig no sudeste (Leinster), até serem substituídos pelos Uí Dúnlainge a partir de cerca de 738; os Eógannachta no sudoeste (Munster), especialmente o ramo da família Cashel; os Uí Briúin no noroeste (Connaught) desde meados do século VIII; e os Uí Néill (O’Neill) no nordeste (Ulster) desde o começo do século VII. Os O’Neill desenvolveram um padrão de realeza alternante entre os ramos setentrional e meridional da família, associada à realeza de Tara, um foco simbólico similar ao da Rock of Cashel dos Eógannachta no sul. O conflito entre os super-reis tornou-se comum, se bem que, nessa altura, a subestrutura de reis secundários e tuath permanecesse substancialmente intacta.

A partir de 795, um novo elemento foi introduzido na política irlandesa pelos vikings, que assolaram e devastaram no início vastas zonas, mas depois acabaram instalando bases permanentes, a primeira delas em Dublin, em 841. A chegada dos vikings não significou uma total mudança na política irlandesa, uma vez que a sua tendência era ajustarem-se aos padrões existentes, aliando-se aos principais reis e sendo por estes usados como mercenários. A competição pelo estatuto de suserano continuou sendo os Uí Néill os mais bem-sucedidos em suas tentativas de ampliação de seu poder além de suas próprias fronteiras; a partir de meados do século X, eles assumiram títulos que sugerem o predomínio sobre a totalidade da ilha. Entretanto, suas pretensões foram abaladas pela penetração na direção leste dos Uí Briúin, embora estes fossem, por sua vez, ultrapassados por uma nova família, os Dál Cais de Munster, que tomaram Cashel em 964. A partir de 976, o mais famoso membro da família, Brian Borumha, desenvolveu uma série de operações militares até conseguir a submissão do Sul e da região central em 1002 e do resto do Norte em 1005-11. O êxito de Brian foi efémero; uma revolta em Leinster, em 1012, culminou com a sua morte em Clontarf, dois anos depois. Contudo, o facto de que todos os principais reis se lhe submeteram, assinala uma importante mudança na política irlandesa, a qual daí em diante passou a estar cada vez mais intimamente vinculada à próspera cidade de Dublin.

A mudança também se evidenciou quando o poder foi territorializado: os reis secundários perderam a sua independência e as dimensões das unidades fundamentais da realeza aumentaram substancialmente. Nos séculos XI e XII, uma série de reis não aparentados, de diferentes famílias, estabeleceram uma vasta hegemonia. Assim como os reis anteriores tinham usado a capacidade militar viking para seus próprios fins, também os super-reis rivais buscaram ajuda no exterior e, num lance decisivo em 1167, um governante Leinster recorreu a Henrique II da Inglaterra. Henrique talvez já tivesse recebido o reconhecimento de sua suserania sobre a Irlanda pelo papa inglês Adriano IV em 1156, e sua resposta foi rápida e devastadora. Com a intrusão no quadro político de uma aristocracia anglo-normanda, o fim da velha ordem estava selado. Richard de Clare (Strongbow), conde de Pembroke, comandou uma força armada que desembarcou na Irlanda. Dublin caiu em 1170 e, em 1171, o próprio Henrique II realizou a travessia para Wetherford e efetuou o que se pode chamar um triunfal avanço de uma ponta à outra da ilha.

A conquista normanda da Irlanda foi muito diferente da conquista da Inglaterra. Nunca foi completa e, embora em 1300 a maior parte da ilha estivesse nominalmente sob o controlo do monarca inglês ou de seus representantes em Dublin, na realidade a situação era extremamente complexa, um emaranhado de senhorios com a sobrevivência de chefes tribais gaélicos governando suas comunidades de acordo com as antigas leis e costumes do mundo céltico. Alguns beneficiaram-se consideravelmente com a nova ordem feudal e foram criados grandes feudos, com destaque para os Fttz-Gerald, os Lacy e os Butler. Floresceram cidades; alguns dos anglo-normandos recém-chegados foram assimilados pela cultura gaélica, tornando-se mais irlandeses que os próprios irlandeses. 
O interesse da monarquia inglesa era constante, mas seu envolvimento foi esporádico. Ricardo II, no final do século XIV, e os yorkistas no século XV, tentaram impor a paz e a unidade mas seus êxitos foram efémeros. Os esforços no sentido da proscrição do uso da língua, leis e costumes irlandeses, como os consubstanciados nos Estatutos de Kilkenny, em 1366, fracassaram. No final da Idade Média registrou-se um ressurgimento gaélico fora das regiões diretamente controladas por Dublin e outras cidades. 

A Igreja irlandesa, embora a tradição atribua a conversão dos irlandeses a São Patrício, ficou claramente provado que alguns missionários já andavam por lá antes dele. Limitou a sua atividade evangelizadora ao norte e centro da Irlanda. Entretanto, a importância de São Patrício é indiscutível e sobrevivem dois de seus escritos do século V. As igrejas e os sacerdotes que ele instalou estavam sob a jurisdição de alguns bispos, sem os centros urbanos que caracterizaram a Igreja continental. No decorrer do século VI, a Igreja irlandesa começou a mudar com a fundação de numerosos mosteiros, frequentemente com patrocínio real. As comunidades de Bangor, Clonfert, Derry e Durrow, Iniscealtra e Terryglass, Lismore, Moville e Killeedy já existiam no final do século VI ou começos do século VII. Muitas delas retiveram fortes ligações com as famílias de seus fundadores, que exerceram influência na nomeação de abades e, assim, na administração de seus bens. No decorrer desse movimento, alguns monges viajaram para terras estranhas, estabelecendo outras comunidades monásticas e entregando-se ao trabalho missionário. No século VIII, muitos mosteiros na própria Irlanda tinham-se tornado excepcionalmente ricos, patrocinando a produção de obras de arte — missais e vasos de culto de grande esmero e requintado acabamento — e participando também na política. No final desse século, os abades dos principais mosteiros controlavam mosteiros menores e dependentes, por vezes muito dispersos, e se tornavam aos poucos mais poderosos do que os bispos a cuja jurisdição tinham estado originalmente sujeitos.

No final do século VIII e durante o século IX, seu envolvimento na política era tal que abades entraram em guerra, enquanto suas ligações com famílias aristocráticas eram tão estreitas que reis, por vezes, exerciam funções tanto clericais quanto seculares. Isso ocorreu de forma sumamente notória no caso dos reis de Munster, como, por exemplo, Olchobar, que foi abade de Emly e rei de Cashel em 848. Em contrapartida, alguns bispos esforçavam-se por afirmar sua superioridade sobre outros e a igreja de Armagh notabilizou-se pelas tentativas de estabelecer a hegemonia (à maneira de um suserano) sobre toda a Igreja irlandesa. Contentou-se inicialmente em dividir essa hegemonia com a igreja de Kildare mas, no século VIII, Armagh estava reivindicando para si jurisdição apelatória em toda a Irlanda e uma posição comparável à dos bispos de Roma na Itália. Essas pretensões não foram mantidas a longo prazo, embora Armagh continuasse sendo uma igreja poderosa.

Nesse meio tempo, alguns clérigos e monges tinham-se desiludido com a temporalidade da Igreja e deflagraram uma campanha em prol de uma prática mais ascética. Esse movimento Culdee, como é conhecido, estava em franco progresso por volta de 800, especialmente associado a Tallaght; levou à fundação de casas mais ascéticas, por vezes em lugares muito isolados, à reforma da prática em algumas casas existentes e à produção de obras eremíticas de devoção. Tanto a linha poderosa quanto a ascética continuaram marcando a Igreja irlandesa até ao século XI. Alguns dos mais elaborados cruzeiros esculpidos foram fruto do patrocínio e da habilidade do século X.

No final do século XI, o movimento de reforma continental começou a tocar a Irlanda; mas o grande avanço ocorreu em meados do século XII com a obra de São Malaquias (m. 1148); seus propósitos para a Igreja irlandesa frutificaram após sua morte quando, no Sínodo de Kells (1152), a Irlanda foi dividida em 4 arcebispados e 36 bispados. O novo movimento monástico passou a exercer influência e a conquista anglo-normanda (1169-72), liderada pelo conde Strongbow e Henrique II, colocou grande parte da Irlanda de um modo ainda mais direto na corrente principal da Cristandade ocidental. Catedrais foram construídas em típico estilo normando e fundaram-se novas e poderosas casas monásticas, sobretudo por parte dos cistercienses. No século XIII, foi especialmente encorajada a presença de frades mendicantes; e eles (sobretudo seus elementos mais pobres e mais ascéticos) conservaram boa reputação até ao final do período medieval. Nos últimos anos da Idade Média, a Igreja irlandesa continuou refletindo as divisões sociais da ilha, principalmente em decorrência das fronteiras linguísticas entre a fala inglesa e a gaélica; porém, de um modo geral, harmonizou-se então com os usos da Igreja ocidental, mais do que ocorrera no começo da Idade Média. 

segunda-feira, 13 de março de 2023

A Florença dos guelfos e gibelinos no tempo da Peste Negra





Florença, no início da Idade Média era uma cidade de importância relativamente secundária, apesar de o seu papel como sede de um ducado lombardo. Mas mais tarde, como residência ocasional do margrave da Toscana, ascendeu a um lugar de destaque na Toscana e a uma posição proeminente na economia europeia depois do século XII. Sua grande riqueza, derivada principalmente da indústria (em especial a têxtil), combinada com o comércio e a atividade bancária, encorajou a imigração, o que resultou no rápido crescimento da sua população mas também contribuiu para as divisões internas.

Desde os começos do século XIII, a nobreza e os grandes mercadores, secundados por grupos sociais inferiores, estavam divididos em dois partidos: os gibelinos, que apoiavam a causa imperial na luta entre o Sacro Império Romano Germânico e o Papado desde 1230, aproximadamente; e os guelfos, que eram favoráveis à causa papal, embora os interesses e lealdades de ambos os partidos fossem predominantemente locais. O conflito civil exigiu novos dispositivos para manter a ordem e, no final do século XII, o governo consular que administrara a comuna independente de Florença desde pouco depois da morte de Matilde da Toscana (1115), foi substituído pela Podestà (Signoria) para o exercício da magistratura suprema. A fim de assegurar uma administração imparcial, o Podestà foi recrutado, a partir do começo do século XIII, fora da cidade.

No transcurso do século XIII, o poder político passou a repousar cada vez mais nos mercadores organizados nas maiores guildas, graças ao sucesso internacional do comércio e dos bancos florentinos, o que foi confirmado pela emissão, desde 1252, do florim de ouro. Dois anos antes, a população não nobre tinha estabelecido a sua própria organização — uma espécie de Estado dentro do Estado — duplicando as instituições comunais em suas próprias magistraturas e conselhos. Isso durou até à vitória gibelina sobre o poder dos guelfos em 1260. Foi restabelecido numa base corporativista, agora de forma permanente, em 1282. Em 1293, a vitória do novo regime do povo culminou na exclusão das famílias nobres do governo, definidas como magnatas, e sua sujeição a severas punições por delitos contra os popolani. Os seis, depois oito, priores e o gonfaloneiro de justiça foram mantidos até ao século XVI no governo da cidade, ficando o Podestà reduzido às suas funções judiciais. A construção, iniciada no final do século, da nova catedral e do Palazzo Vecchio, indica a prosperidade de Florença e o orgulho dos cidadãos por suas realizações; também reflete o espetacular crescimento populacional, que por volta de 1338 tinha provavelmente superado a marca dos 100.000 habitantes.




O regime popular dos guelfos sofreu divisão na passagem do século XII para o século XIV, o que prenunciou o surgimento de facções de que Florença continuou sofrendo durante todo o século XIV, e que foi intensificado depois da Peste Negra. Outras fontes de conflito interno foram o antagonismo, aguçado pelas Ordenações de Justiça de 1293, entre a nobreza magnata e os setores populares com os contrastes sociais entre os artesãos das guildas menores e os patrícios das guildas maiores. Após o efémero governo despótico (1342-43) de Gautier de Brienne, duque de Atenas, os “novos homens” organizados nas guildas de ofícios conseguiram aumentar substancialmente a sua participação no governo; mas à recuperação patrícia seguiu-se uma tentativa da liderança oligárquica do partido guelfo, com vistas ao estabelecimento do controlo virtual do Estado. Na esteira da reação contra essa política, o descontentamento entre os trabalhadores submetidos às guildas da lã e da seda explodiu em 1378 na revolta dos Ciompi. A Peste Negra de 1348 tinha reduzido dramaticamente, talvez em mais da metade, a população de Florença, mas os efeitos económicos só estavam indiretamente relacionados com essa convulsão social. O regime democrático de guildas instalado após a sua supressão foi a última e a mais radical manifestação de organização corporativa no governo da cidade.

O regime que o substituiu em 1382 já não era dominado pelas guildas ou o partido guelfo. Instituições e valores corporativos continuaram sendo elementos importantes na política florentina mas deixaram de ter a influência de que desfrutavam anteriormente. O novo regime era aristocrático, na medida em que o patriciado ocupava uma posição predominante dentro de uma classe governante definida pela elegibilidade para altos cargos; mas as guildas de ofícios não estavam inteiramente excluídas do regime. A autoridade do governo foi reafirmada, embora as decisões mais importantes continuassem sujeitas ao consentimento dos conselhos legislativos. Uma das notáveis realizações do regime foi a expansão dos domínios florentinos pela aquisição de Arezzo, Pisa e Cortona com seus territórios, e a gradual transformação dos mesmos num Estado territorial. A oposição toscana ao expansionismo florentino ajudou o duque de Milão, Giangaleazzo Visconti, em sua investida rumo a essa região. Em suas guerras contra ele, desde 1390, os florentinos autoproclamaram-se defensores da liberdade contra a tirania; a morte de Giangaleazzo em 1402 e a conquista de Pisa em 1406 garantiram não só a independência da cidade mas também sua hegemonia na Toscana.

O regime aristocrático gozou de um notável grau de coesão até a década de 1420, quando, diante de uma crise fiscal e de renovada guerra com Milão, a cidade dividiu-se uma vez mais em duas facções. Tanto a implantação em 1427 de um imposto progressivo baseado na propriedade, o catasto, quanto a paz com Mião em 1428 não atenuaram essa divisão, que culminaria em 1433 com a vitória dos Albizzi sobre os Medici, e no exílio de Cosimo de Medici. O regresso deste em 1434 assinalou a derrota dos Albizzi, seguido por seu exílio e o de muitos de seus adeptos. Através de reformas, especialmente no método de eleger a Signoria, Cosimo estabeleceu gradualmente sua ascendência pessoal e a do seu partido, até obter o controle da administração e da legislação. Mas essas reformas defrontaram-se com repetida resistência e sofreram seu mais sério revés em 1456-66. Embora efêmero, o êxito dessa oposição ao controlo dos Medicis demonstrou a robustez das tradições republicanas.

Em 1478, a hostilidade dos Pazzi, apoiados por Roma, ocasionou um atentado contra a vida de Lourenço de Medici, do qual ele saiu ileso mas em que seu irmão Giuliano morreu apunhalado. A conspiração dos Pazzi resultou em guerra contra o papa e o rei de Nápoles; na conclusão da paz, a posição de Lourenço como chefe virtual da república estava decisivamente estabilizada e fortalecida, mas o papel da elite política do regime também foi promovido pela criação de um Conselho Supremo dos Setenta, a quem incumbia controlar a legislação, assim como a política externa e interna.

Estabelecido para mandatos de cinco anos, o Conselho foi periodicamente renovado até à queda do regime. Após a morte de Lourenço em 1492, Pedro não conseguiu preservar o delicado equilíbrio entre interesses divergentes que seu pai tinha realizado em Florença e do qual fizera a pedra angular de sua política externa. Impotente para impedir a invasão da Toscana por Carlos VIII, Pedro fugiu da cidade no meio a um levantamento popular (1494). Todas as instituições dos Medici foram abolidas mas os patrícios, que tinham desempenhado um papel decisivo na queda do regime Medici, e que haviam pertencido ao seu mais prestigiado grupo, não conseguiram restaurar o regime aristocrático do início do século XV. 

A criação de um Grande Conselho de mais de 3.000 cidadãos, devida em grande parte à pregação de Savonarola, imitando o maggior consiglio veneziano, era exclusivamente responsável pela legislação e as eleições para cargos oficiais. Tal, significou uma radical reforma constitucional que, embora ampliando substancialmente a participação ativa dos cidadãos na política, tornou possível para uma elite política manter um papel predominante no governo de Florença. Mesmo assim, o descontentamento patrício com as crescentes tendências democráticas no Grande Conselho levou em 1502 à transformação do gonfaloneirato de justiça num cargo vitalício. Não obstante, não foi a oposição interna, mas a pressão militar resultante da batalha de Ravena, que constituiu a principal causa da queda do regime republicano e do restabelecimento dos Medici em 1512. 

Com seu claro reconhecimento da autoridade papal e suas tentativas, quer bem-sucedidas quer frustradas, de realização da unidade cristã, o Concílio de Florença revela elementos de fraqueza e de força no movimento conciliar do século XV. Em 1437, o papa Eugénio IV transferiu o pernicioso Concílio de Basileia para Ferrara e em 1438 para Florença. Um grupo remanescente permaneceu em Basileia, num desafio ao papa. Uma poderosa delegação grega visitou o Concílio, chefiada pelo imperador bizantino João VIII, procurando ajuda militar para Constantinopla e oferecendo em troca a união religiosa; fórmulas de acordo, mediante concessões mútuas, foram combinadas em relação a divergências teológicas a respeito da cláusula Filioquee, o tipo de pão usado para a Eucaristia. Em compensação, iniciava-se uma Cruzada com patrocínio papal, mas que foi desbaratada em Varna em 1444. A queda de Constantinopla, em uma década, liquidou todas as esperanças de união.

Outras uniões religiosas estabelecidas em Florença foram mais permanentes: os latinos foram unidos à Igreja copta do Egito (1440), aos arménios (1439), caldeus e maronitas (1445). O Concílio também desferiu um significativo golpe nos elementos do movimento contra o papa. Sérias deliberações com os gregos tiveram lugar em Florença, não em Basileia; considerou-se que a autoridade suprema residia no papa e não no Concílio per se. Após a morte de Eugénio IV (1447), Nicolau V conseguiu a reconciliação com os cardeais recalcitrantes que permaneceram em Basileia.


quinta-feira, 9 de março de 2023

Belém






Belém é um local onde os arqueólogos encontraram vestígios de ter sido continuamente habitada por ancestrais humanos desde há cerca de 1,4 milhões de anos com sucessivas migrações vindas de África. E a história conta que Belém foi ocupada uma dezena de vezes. Passou pelas mãos de filisteus, israelitas, gregos, romanos, bizantinos, pelo califado árabe, pelas cruzadas, por Saladino, pelos mamelucos e pelos otomanos, que perderam a cidade para os britânicos na Primeira Guerra Mundial. E, na partilha das Nações Unidas, assinada em 1947, Belém retornou aos palestinos, também chamados de filisteus.

Onde é hoje a Basílica da Natividade, o imperador Adriano havia construído um monumento em homenagem a Adonis. Foi o imperador Constantino que transformou o lugar numa basílica, por volta da primeira década dos anos 300. Os samaritanos a destruíram durante a revolta de 529. E foi o imperador bizantino Justiniano que construiu o edifício que foi preservado até hoje. Religiosos gregos ortodoxos, arménios ortodoxos e católicos romanos dividem o legado na basílica.




Ao entrar na Manger Street, à direita está a Mesquita de Omar e à esquerda, a basílica. A entrada tem apenas 1,2 metro. Os religiosos dizem que a porta é baixa para que os fiéis se curvem em sinal de respeito. Mas há quem diga que Justiniano ordenou que a entrada fosse reduzida para evitar que os cavalos entrassem na igreja e lá fizessem suas necessidades. De facto, dá para ver a marca da antiga porta, na forma de um arco, que era muito maior.

Para chegar à gruta onde teria nascido Jesus, descem-se algumas escadas. A pedra da gruta fica à mostra em algumas partes. Independentemente da crença, é incrível estar num lugar que alimenta tanta história. 
Os territórios ocupados estavam tomados pelo exército. O presidente da Autoridade Palestina na época, Yasser Arafat, estava confinado em Ramallah, cercado por soldados, armas e tanques. Israel exigia que Arafat controlasse o que o Estado hebreu chamava e chama de ataques terroristas. Os palestinos fazem a seguinte narrativa metafórica: Israel tranca o gato numa jaula. Depois maltrata e fere o animal. Arafat já pode vir para dominá-lo. Israel culpa-o pela violência que foi feita ao gato.
A Igreja da Natividade foi cercada no dia 2 de abril de 2002. O exército estava atrás de militantes. Havia cerca de quarenta, entre eles Ibrahim Abayat, um líder da Brigada dos Mártires de Al-Aqsa, um dos grupos responsáveis por atentados suicidas em Israel. Na basílica, estavam também quarenta religiosos e moradores da cidade que se abrigaram ali. No total, havia cerca de duzentas pessoas. A história que se conta é que os militantes organizaram as tarefas dentro da basílica. Dividiram grupos e turnos para cozinhar, limpar e ficar de guarda. Como eles não sabiam quanto tempo ficariam ali, a comida era racionada: uma refeição só por dia; sopa e macarrão. Era o que havia na despensa dos padres. Desde o primeiro dia, o exército cortou a água e a luz.

Em 2008, Belém recebeu cerca de um milhão de turistas, a grande maioria peregrinos com o desejo de conhecer a Terra Santa e a Igreja da Natividade, onde teria nascido Jesus. O Har Homa, que começou a ser construído em 2002, hoje abriga cerca de 6 mil famílias israelitas. Para ser construído, Israel destruiu a última área de floresta que restava na região. E, segundo os palestinos, o Har Homa fecha o cerco de colonatos judaicas em torno de Belém, que, junto com o muro, separam Belém de Jerusalém. O assentamento continua a crescer e avança para dentro de Belém, ou seja, apesar das resoluções das Nações Unidas contrárias à ocupação, Israel continua invadindo terras palestinas e expulsando os árabes da sua própria casa.




Belém tem cerca de 180 mil habitantes, somando-se a população dos vilarejos e de outras pequenas cidades ao redor, cuja administração também é da responsabilidade da autarquia de Belém. As mais próximas são Beit-Sahour e Beit-Jala, cada uma com cerca de 12 mil habitantes. A maioria da população daqui já foi católica, mas há um êxodo crescente por causa das dificuldades impostas pela ocupação: desemprego, sistema de saúde e de educação precários, falta de perspectiva para os jovens, medo do exército israelita. 

quinta-feira, 2 de março de 2023

A nova lei das Ordens Profissionais. Uma evocação das guildas medievais





A nova lei das Ordens Profissionais – tal como está – prevê alterar questões como as condições de acesso às respetivas profissões, introduzir estágios profissionais remunerados e criar uma entidade externa para fiscalizar os profissionais. No texto final foram introduzidas – no ano passado – alterações como precisões sobre as taxas cobradas durante o estágio e a possibilidade de serem reduzidas. A duração dos estágios fixou-se em 12 meses, podendo ser maior em casos excecionais. Outra das alterações foi a aprovação da existência de um órgão disciplinar, que não estava previsto na anterior lei-quadro, que prevê a fiscalização sobre a atuação dos membros das ordens profissionais, composto por elementos externos às profissões respetivas. Outra das questões polémicas é a introdução das sociedades multidisciplinares.

Segundo dados do Conselho Nacional das Ordens Profissionais (CNOP), existem atualmente em Portugal 20 ordens profissionais, tendo as duas últimas sido criadas em 2019, a Ordem dos Fisioterapeutas e a Ordem das Assistentes Sociais. Estas ordens regulam a atividade de mais de 430 mil profissionais.

Apesar de ser um diploma complexo, Marcelo Rebelo de Sousa teve dúvidas sobre alguns aspetos e decidiu pedir a fiscalização ao TC. Entre as dúvidas do chefe de Estado está:
  • Avaliação final do estágio profissional feita por um júri independente, de “reconhecido mérito”, com elementos externos à atividade profissional em causa;
  • Um órgão disciplinar com elementos externos à profissão em causa, que não sejam membros da associação pública profissional;
  • A criação de um órgão de supervisão que exerce funções de controle dos profissionais da classe em questão;
  • O exercício de uma função na Ordem Profissional em causa ser incompatível com o exercício de funções dirigentes em qualquer cargo da função pública;
  • A criação da figura do provedor em cada associação pública que seja externo à profissão em causa e que defenda os destinatários dos serviços da profissão em causa e que seria designado pelo bastonário, sob proposta do órgão de supervisão e que não poderá ser destituído a não ser por “faltas graves” no exercício da função.

As guildas medievais, corporações de ofício (do latim "corpora" ou "collegia") também chamadas guildas ou mesteirais, associações de pessoas qualificadas em um ofício, que surgiram a partir do século XII com as transformações no sistema feudal. O seu objetivo consistia no controlo económico e no regulamento das profissões nas cidades. Essas corporações de artesãos eram organizadas por uma hierarquia (mestres, oficiais e aprendizes) que providenciava pela qualidade técnica da produção das mercadorias. Uma pessoa só poderia trabalhar num determinado ofício, e teria de ser membro da corporação. Caso esse costume fosse desobedecido, corria-se o risco de até mesmo ser expulso da cidade.

Uma guilda (no inglês arcaico “geld” = pagamento) era provida de solenidades, ligadas por alguma modalidade de juramento de vinculação entre elas por meio de formas rituais de comer e beber. Instituições desse tipo aparecem em numerosas culturas. E, embora o pagamento de joia e taxas de filiação seja uma característica constante das guildas, há na base uma ligação mais antiga entre pagamento e sacrifício pagão que o cristianismo tentou eliminar. A guilda era, contudo, uma instituição com profundas raízes, mais fácil de assimilar do que de abolir; e durante toda a Idade Média suas únicas rivais como forma de organização social eram a família, com todos os seus dependentes e servidores domésticos, e a corte.

As guildas clericais surgiram no século X. Londres tinha uma guilda para a manutenção da paz, a qual contava com o bispo entre seus membros. O mais importante papel da guilda na Igreja era, provavelmente, a edificação de igrejas e, de certa maneira, a definição da paróquia como uma comunidade de fiéis. A manutenção de uma igreja paroquial, excetuando-se o altar-mor e o coro, era responsabilidade dos paroquianos, e o empreendimento de construir o edifício e conservar a estrutura em boas condições exigia um esforço cooperativo que a guilda estava perfeitamente apta a promover. As guildas paroquiais e as guildas sociais que se encarregaram do acréscimo e manutenção de capelas e altares em igrejas paroquiais fixaram honorários para os sacerdotes e financiaram a aquisição de luminárias e serviços particulares, mantendo a estreita associação entre guilda e vida paroquial até ao fim da Idade Média.

Duas manifestações da guilda serviram para distorcer a sua história. Uma foi a guilda mercantil, que nos aparece quando a documentação da vida urbana se intensifica do século XI em diante, e que manteve um papel central nos negócios de algumas cidades durante séculos. Sua natureza e função foram largamente incompreendidas, porque os historiadores tentaram classificar as guildas como entidades e não como meios adaptáveis a uma variedade de fins. Com o aumento do comércio, as cidades cresceram. Essas cidades eram construídas com a união de burgos (fortificações), igrejas e terrenos. Seus habitantes eram mercadores. Com o passar do tempo, criou-se um embate entre a lógica feudal e a lógica das cidades, que era comercial. Para solucionar esse conflito, surgiram as corporações, que nada mais eram do que associações de mercadores, que tinham como objetivo garantir liberdade para as cidades em que viviam, de modo que houvesse crescimento contínuo desses locais. O homem da cidade queria ser livre e muitas vezes buscava a liberdade através da violência. Por isso, muitas das guerras travadas nas cidades foram lideradas pelas corporações de ofício. As mercadorias deveriam, ao chegar na cidade, serem, a princípio, analisadas e compradas pelos membros das corporações. Caso algum estrangeiro ou não membro comprasse ou trocasse alguma mercadoria antes dos membros, o infrator seria punido e o produto confiscado pelo rei. Ou seja, as instituições de poder estavam diretamente ligadas e dispostas pelas associações de mercadores, que determinavam os preços, assim eliminando a concorrência e ganhando cada vez mais poder.

Quando os cidadãos procuravam obter privilégios do rei ou de algum outro senhor, era natural que usassem a guilda como símbolo e como reforço de seu objetivo comum; também era natural que os mercadores protegessem seus interesses no país e no estrangeiro do mesmo modo. A partir do século XII, os boroughs ingleses, com frequência, mas não invariavelmente, procuraram assegurar-se do direito de estabelecer uma guilda mercantil entre os privilégios da cidade e, em alguns lugares, como Ipswich em 1200, a filiação à guilda era equiparada à liberdade do borough.

Há muitas cidades, contudo, onde não existe o menor vestígio de uma guilda mercantil; aquelas na Inglaterra nas quais a guilda desempenhou um destacado e duradouro papel nos assuntos cívicos ou apenas uma função secundária, como Calne, no Wiltshire, ou então, como Leicester, tinham senhores que não estavam dispostos a permitir o controlo burguês de seus próprios tribunais. O funcionário que presidia uma guilda chamava-se alderman [intendente], e os intendentes municipais podem ter tido sua origem nas guildas. O principal magistrado de Grantham foi conhecido por esse título até ao século XIX. Na maioria dos boroughs, entretanto, a guilda mercantil logo perdeu o significado dominante que pudesse ter tido para o tribunal do borough, que se converteu num órgão tanto administrativo como judicial. Mesmo assim, o edifício no qual o tribunal se reunia era frequentemente conhecido como Guildhall, como aconteceu em Londres, onde nunca houve qualquer guilda mercantil.

O outro uso urbano da guilda foi como um meio de organizar e controlar as artes e ofícios. É quase certo que as guildas foram usadas em algumas incipientes tentativas de artesãos afirmarem uma independência corporativa em relação aos patrões comerciantes, mas na época de documentação mais completa, final da Idade Média, as guildas ou corporações de ofícios regulamentavam a qualidade, a produção e o recrutamento para os diversos ofícios visando os interesses do empregador e do artesão qualificado e estabelecido. Uma vez mais, era a finalidade da organização, não a sua forma, que a distinguia das outras guildas, e era o contexto social do momento, não alguma ideologia peculiar da guilda, o que determinava seu objetivo. Entretanto, nos séculos XIV e XV, numa sociedade profundamente impregnada de formas religiosas, todas as guildas tinham fins religiosos e sociais que eram tão proeminentes quanto quaisquer outros fins. A manutenção de capelães, de orações pelos mortos, de providências para assistir aos irmãos e enfermos e indigentes e a seus dependentes, eram características regulares das guildas ou corporações de ofícios, assim como eram os únicos objetivos confessados de muitas outras irmandades.

Também era usual, nessa época, as guildas professarem o culto de determinado santo ou santos padroeiros, uma convenção que refletia e promovia a associação de santos com certos ofícios e profissões. A Virgem era objeto generalizado de devoção, mas de todos os cultos, o de Corpus Christi foi, provavelmente, o mais influente. Desde começos do século XIV, representações rituais da Paixão de Cristo na Páscoa evoluíram para elaborados espetáculos teatrais em igrejas e procissões alegóricas nas ruas; foi nesses eventos que os autos e outras formas de dramaturgia laica encontraram suas origens. No século XVI, a Reforma varreu as guildas e muitas de suas obras, mas as formas sociais da nova era ficaram devendo suas origens ao mundo medieval, em que a solene irmandade da guilda tinha sido não só uma força estabilizadora, mas também um potente motor de mudança.



Síndicos dos comerciantes de fazendas em Amsterdam. Rembrandt, 1662