terça-feira, 30 de maio de 2023

Tolstoi visita Chekhov


Em 1897, Tolstoi fez uma visita a Chekhov [1860-1904], que estava gravemente doente. A prolongada tuberculose piorara de forma súbita e drástica, terminando na clássica hemoptise fulminante. Chekhov até então ignorara a doença, tendo acabado por ser obrigado a chamar o médico. Quando Tolstoi chegou à clínica, seis dias depois de uma hemorragia, encontrou Chekhov sentado na cama, de humor alegre, rindo e contando piadas, e tossindo sangue num grande copo de cerveja. Chekhov tinha consciência do perigo que corria — afinal de contas, era médico —, mas mantinha o bom humor e chegou a falar de planos para o futuro. Tolstoi ao observar Chekhov com o humor cortante de sempre, ficou “quase desapontado” ao não encontrar o amigo à beira da morte. Tolstoi terá ido visitá-lo com a intenção de falar sobre a morte. Tinha uma grande admiração pelo modo como Chekhov parecia aceitar a morte e apenas continuar vivendo e, talvez com inveja da sua atitude calma.

Tolstoi, enquanto Chekhov cuspia sangue, discorria sobre a morte e a vida depois da morte. Chekhov inicialmente escutou-o com atenção, mas, no final, perdeu a paciência e começou a discutir. Via a força misteriosa na qual Tolstoi achava que os mortos se dissolveriam como “massa congelada e informe”, e disse ao amigo que não queria esse tipo de vida eterna. Na verdade, disse Chekhov, ele não entendia a vida após a morte. Não via razão para pensar nisso nem para se consolar, como disse, com “ilusões de imortalidade”.

Ali estava a diferença fundamental entre os dois homens. Quando pensava na morte, a mente de Tolstoi sempre se voltava para o outro mundo, enquanto a de Chekhov se mantinha neste aqui. “É assustador virar nada”, disse na clínica ao amigo e editor A. S. Suvorin depois que Tolstoi saiu. “Eles nos levam para o cemitério, voltam para casa, começam a tomar chá e dizem coisas hipócritas sobre nós. É medonho pensar nisso!” Não que Chekhov fosse ateu, embora nos últimos anos da vida afirmasse não ter fé. Na verdade, a sua atitude religiosa era muito complexa e ambivalente. Chekhov crescera numa família religiosa e, durante a vida inteira, manteve forte apego aos rituais da Igreja. Colecionava ícones. Na sua casa em Ialta havia um crucifixo na parede do quarto. Gostava de ler sobre os mosteiros russos e a vida dos santos. Pela correspondência, sabemos que Chekhov adorava ouvir o dobre dos sinos, que frequentava a igreja e gostava dos cultos, que ficava em mosteiros e que, em mais de uma ocasião, chegou a pensar em se tornar monge. Via a Igreja como aliada do artista e a missão do artista como espiritual. 

Certa vez Chekhov disse ao amigo Gruzinski: “a igreja da aldeia é o único lugar onde o camponês pode viver algo belo”. As obras literárias de Chekhov estão cheias de temas e personagens religiosos. Nenhum outro escritor russo, com a possível exceção de Leskov, escreveu com tanta frequência ou com tanto carinho sobre o culto do povo ou sobre os rituais da Igreja. Muitos contos e peças importantes de Chekhov (como “O bispo”, “O estudante”, “Na estrada” e “Enfermaria n. 6”) são profundamente versados na busca da fé. O próprio Chekhov tinha dúvidas religiosas; certa vez, escreveu que se tornaria monge se os mosteiros aceitassem pessoas não religiosas e se ele não tivesse de rezar. Mas sentia clara simpatia por quem tinha fé ou ideais espirituais. Talvez a opinião de Chekhov seja mais bem expressa por Masha que, em Três irmãs, diz: “Parece-me que o homem precisa ter fé ou buscá-la, senão a sua vida é vazia, bem vazia.” Chekhov não se preocupava abertamente com a questão abstrata da existência de Deus. Como disse a Suvorin, os escritores deviam saber que esse tipo de coisa não se pergunta. Mas ele adotava o conceito de religião como um modo de vida, um código moral básico; para ele, religião era isso, e achava que era assim também para o homem simples da Rússia.

Em 1899, quando publicou Ressurreição, Tolstoi era mais famoso como crítico social e dissidente religioso do que como escritor de ficção. Foi o ataque religioso do romance às instituições do Estado dos czares — a Igreja, o governo, os sistemas jurídico e penal, a propriedade privada e as convenções sociais da aristocracia — que o tornou, de longe, o romance mais vendido em vida do autor. Quanto mais a Igreja e o Estado atacavam Tolstoi, maior o séquito do escritor, até que, finalmente, ele foi excomungado em 1901. A intenção da excomunhão fora provocar uma onda de ódio popular a Tolstoi, e houve reacionários e ortodoxos fanáticos que responderam à caça ao Tolstoi. Recebeu ameaças de morte e cartas agressivas, e o bispo de Kronstadt, famoso pelo apoio aos nacionalistas extremados, chegou a escrever uma oração pela morte do escritor que foi muito divulgada pela imprensa de direita. Mas para cada mensagem ameaçadora Tolstoi recebeu cem cartas de apoio de aldeias do país inteiro. As pessoas lhe escreviam para contar abusos do governo local ou para lhe agradecer a condenação ao czar no famoso artigo “Não me posso calar”, escrito em resposta à execução dos revolucionários desde 1905. De repente, milhões de pessoas que nunca tinham lido romances começaram a ler os de Tolstoi. E por toda parte aonde ia o escritor, surgiam multidões imensas para cumprimentá-lo — muito maiores do que as aparecidas para receber o czar.

Ainda que o anarquismo cristão de Tolstoi fosse motivado pelo anseio de pertencer a uma livre comunidade de amor e fraternidade cristãos, a origem pessoal da sua religião era o medo da morte, que ficava mais intenso a cada ano que passava. A morte foi uma obsessão durante toda a sua vida e em toda a sua arte. Ele era criança quando os pais morreram; depois, quando jovem, perdeu também o irmão Dmitri, episódio inesquecível que descreveu na cena da morte de Nicolai Levin, irmão de Konstantin, em Anna Karenina. Tolstoi tentava com desespero racionalizar a morte como parte da vida. “Os que temem a morte temem-na porque ela lhes surge como vazio e treva”, escreveu em “Sobre a vida” (1887), “mas veem vazio e treva porque não veem vida.” Depois, talvez por influência de Schopenhauer, ele passou a ver a morte como dissolução da personalidade em alguma essência abstrata do universo. Mas nada disso era convincente para os que o conheciam bem. Como explicou Chekhov numa carta a Gorki, Tolstoi se apavorava com a própria morte, mas não queria admitir, e se acalmava lendo as Escrituras. 

Tolstoi tem uma abordagem mística de Deus. Achava que Deus não podia ser compreendido pela mente humana, apenas sentido por meio do amor e da oração. Para ele, a oração é um momento de consciência da divindade, um momento de êxtase e liberdade no qual o espírito se liberta da personalidade e se funde com o universo. De fato, a sua abordagem mística tinha afinidades em comum com o modo de oração dos eremitas do Optina. No entanto, a divisão entre Tolstoi e a Igreja russa era fundamental e nem mesmo o Optina podia satisfazer as suas exigências espirituais. Ele passou a rejeitar as doutrinas da Igreja — a Trindade, a Ressurreição, toda a noção de um Cristo divino — e, em vez delas, passou a pregar uma religião prática baseada no exemplo de Cristo como ser humano vivo. 

A pobreza e a desigualdade, a crueldade e a opressão — nenhum cristão num país como a Rússia podia ignorar. Ali estava a base religiosa da crise moral de Tolstoi e da renúncia à sociedade a partir do final da década de 1870. Cada vez mais convencido de que o verdadeiro cristão tinha de viver como Jesus ensinara no Sermão da Montanha, Tolstoi prometeu vender a sua propriedade, distribuir o dinheiro entre os pobres e viver com eles em fraternidade cristã. Em essência, Tolstoi era um anarquista, a sua crença rejeitava todas as formas de Igreja e autoridade estatal. Mas Tolstoi não era revolucionário. Rejeitava a violência dos socialistas. Era pacifista. Na sua opinião, a única maneira de combater a injustiça e a opressão era obedecer aos ensinamentos de Cristo.

Pelas 4 da madrugada de 28 de outubro de 1910, Tolstoi, de forma sorrateira, sai de casa em Iasnaia Poliana, apanha uma carruagem até à estação vizinha e compra uma passagem de terceira classe para Kozelsk, estação do Optina Pustin. Com 82 anos, renunciava a tudo — a mulher e os filhos, o lar da família, no qual vivera quase cinquenta anos, os camponeses e a carreira literária — para se refugiar no mosteiro. As discussões intermináveis com a esposa Sónia, devidas principalmente às opiniões religiosas dele, tinham tornado insuportável a vida em casa. Ele queria paz e silêncio nos seus últimos dias. O mosteiro não ficava longe da propriedade de Iasnaia Poliana, sob a direção dos monges do Optina. Nos trinta anos anteriores, em várias ocasiões ele andara até lá como um camponês para acalmar a mente perturbada conversando sobre Deus com o ancião Amvrosi. A vida ascética dos eremitas do Optina era uma inspiração para Tolstoi. Na verdade, a busca da fé foi elemento constante da vida e da arte de Tolstoi. Toda a sua identidade ligava-se à busca de significado e perfeição espirituais, e ele se inspirava na vida de Cristo. Tolstoi pensava em Deus em termos de amor e unidade. Queria sentir-se parte de uma comunidade. Esse era o ideal que sempre procurou na simbiose com o campesinato. Para Tolstoi, Deus é amor: onde há amor, há Deus. O âmago divino de todos os seres humanos está na compaixão e na capacidade de amar. O pecado é a falta de amor. Anna Karenina, isolada e recolhida totalmente sobre si mesma, estava destinada a perecer no universo de Tolstoi. No camponês Karataiev, de Guerra e Paz, sintetiza o amor através do sofrimento por outros seres humanos.

Tolstoi morreu a 20 de novembro de 1910. Em 1917 viria a Revolução. Em março de 1917 (ainda era fevereiro na Rússia que seguia o calendário Juliano) os revolucionários derrubaram a monarquia do Czar Nicolau II. Mas seria em novembro (outubro na Rússia) que os Bolcheviques derrubariam o governo provisório que era apoiado pelos partidos socialistas moderados, impondo o verdadeiro socialismo soviético. Revolução de 1917 obscureceu aos nossos olhos a ameaça que a leitura simples que Tolstoi fazia dos Evangelhos representava para a Igreja e para o Estado. Na década após a sua excomunhão, 1900, Tolstoi reuniu à sua volta um partido verdadeiramente nacional. O seu anarquismo cristão era extremamente atraente para o campesinato e, desse modo, percebido como grande ameaça à Igreja oficial e até ao Czar. Toda a revolução social na Rússia estava fadada a ter base espiritual, e até os socialistas mais ateus tinham consciência da necessidade de dar conotações religiosas às suas metas declaradas.

segunda-feira, 22 de maio de 2023

Arábia



A vida no deserto é extremamente precária. Os nómadas por natureza sofrem de subnutrição; também competem ferozmente uns contra os outros para garantir a satisfação das suas necessidades básicas. O único modo de sobreviver é pertencer a um grupo bastante unido; sozinho, um beduíno não tem nenhuma possibilidade de sobreviver. Assim, os nómadas se juntam em grupos autónomos, agrupados por laços de sangue (clãs) ou parentesco em grupos maiores formando tribos. Estão unidos por intermédio de uma ancestralidade comum, real ou mítica. Os árabes, contudo, em geral não fazem distinção entre clãs e tribos. Para evitar que as tribos se tornassem muito grandes e difíceis de controlar, os grupos constantemente se reconfiguram. Era essencial cultivar uma ardente e absoluta lealdade ao qawm e a seus aliados. Somente a tribo poderia garantir a sobrevivência dos indivíduos, e isso quer dizer que não havia lugar para o individualismo.

A ética tribal exigia certas habilidades técnicas e sociais, assim como atributos pessoais, cuidadosamente cultivados. Os árabes na península não foram sempre nómadas. O camelo, que tornara a sua vida possível, só foi domesticado há cerca de 4 mil anos. Com sua capacidade única de armazenar água, podia viajar longas distâncias no deserto a uma velocidade excepcional. 

Originalmente, os árabes haviam sido agricultores nas terras mais urbanizadas do Crescente Fértil. Após longa experiência com a criação de animais para o transporte, os mais aventureiros dentre eles se dirigiam às regiões áridas e inóspitas das estepes, durante os períodos de estiagem e seca. Ganhar a vida em tão difíceis circunstâncias era um gesto de rebeldia e um desafio à sorte cruel, exibindo, talvez, a vontade de provar que os árabes podiam sobreviver nessas circunstâncias praticamente impossíveis. 

Gradualmente, foram entrando nas regiões mais desertas e se distanciando dos centros urbanos. No verão os camelos pastavam em frente dos poços de que cada tribo se apropriava e, no inverno, vagavam pelas estepes, cobertas com rica vegetação que, após as chuvas, era uma bênção para seus animais. Bebiam leite de camela e comiam a carne dos animais que caçavam. Mas os nómadas não podiam sobreviver sozinhos: precisavam do auxílio dos agricultores, que lhes forneciam trigo e tâmaras, essenciais para o complemento de sua magra dieta. À medida que os nómadas gradualmente penetravam as regiões desertas do Crescente Fértil e da península arábica, eram seguidos por agricultores pioneiros que se estabeleciam nos oásis, irrigavam as proximidades e, até certo ponto, faziam o deserto florescer. Por sua vez, os agricultores dependiam da maior mobilidade dos nómadas, que os abasteciam com produtos e mercadorias de outras regiões. Como eram guerreiros mais hábeis, os nómadas asseguravam a proteção das comunidades sedentárias, em troca de uma parte da colheita.

Nem a Pérsia nem Bizâncio pensavam em invadir aquela região desolada e ninguém poderia sequer imaginar que nela estava prestes a nascer uma nova religião que logo se tornaria uma grande potência mundial. Nas terras civilizadas, muitos árabes se converteram ao cristianismo e, no século IV, formaram sua própria Igreja Siríaca. Mas, em geral, os beduínos árabes da Arábia Deserta desconfiavam tanto do judaísmo como do cristianismo, mesmo percebendo que essas religiões eram mais sofisticadas que a sua.

Ao se afiliar à Abissínia, Bizâncio encorajou o seu governante, o negus, a invadir o Iémen, para submetê-lo à suserania de Constantinopla. Contra a ameaça da Abissínia, os árabes do Sul pediram auxílio à Pérsia dos sassânidas. Finalmente, em 570, o rei Cosroes invadiu a região e o orgulhoso reino do Sul se tornou colónia da Pérsia. Dessa vez foi a heresia cristã do nestorianismo (que afirmava a existência de duas naturezas em Cristo, uma humana e outra divina), protegida pela Pérsia, que se tornou religião oficial. Os árabes beduínos de Hedjaz e Najd tinham imenso orgulho de seus vizinhos ao sul da Arábia e viram a sua queda como uma catástrofe. Inevitavelmente, o judaísmo e o cristianismo se tornaram suspeitos. Depois da morte de Maomé, os exércitos muçulmanos invadiram as fronteiras a norte com Bizâncio e a Leste com a Pérsia sassânida. Aí os árabes estavam profundamente ressentidos com os poderes locais e prontos para tentar a sorte com o islão.

No começo do século VII, os árabes da Arábia Central estavam cercados por fações dissidentes do cristianismo: no Sul, estava a majestosa igreja cristã de Najran, que os beduínos tanto admiravam, embora mantivessem sua desconfiança em relação a esses sistemas religiosos e estivessem decididos a continuar independentes das grandes potências. Ao mesmo tempo, havia um sentimento de insatisfação. Os árabes se sentiam inferiores tanto religiosa como politicamente. Mas parecia haver poucas chances de formação de um Estado beduíno unificado. Durante séculos, os árabes do Hedjaz e Najd viveram agrupados em tribos nômadas e em constante pé de guerra. Com o passar dos anos, desenvolveram um modo de vida altamente especializado, que se tornara comum na península pelo século VI d.C. Mesmo os árabes que viviam em cidades e assentamentos organizavam-se de acordo com o antigo etos pastoral: ainda criavam camelos e viam-se como filhos do deserto.

A Caaba, em Meca, e os rituais ali praticados, parecem ter respondido a importantes necessidades religiosas e psicológicas na Arábia antes de Maomé, que sentiu a misteriosa atração da Caaba durante toda a vida e que as circunvoluções rituais, tão arbitrárias e tediosas para um espectador, foram extremamente importantes na vida do povo de Meca. Não era uma obrigação enfadonha que as pessoas executavam de má vontade ou negligentemente. Ao que parece, gostavam de fazê-la e a consideravam parte de sua rotina diária. Gostavam de encerrar um dia agradável de caça fazendo as voltas à Caaba antes de retornar para casa; podiam estar se dirigindo ao mercado próximo para estar com amigos e então decidir, em vez disso, passar o fim de tarde repetindo o ritual, quando seus companheiros não apareciam. 

O mundo arábico é um mundo semítico. O círculo, o quadrado (representando os quatro cantos do mundo) e os 360 símbolos parecem ter vindo da antiga religião suméria. O ano sumério era composto por 360 dias, mais cinco dias santos adicionais, passados, por assim dizer, “fora do tempo”, na realização de cerimônias especiais que ligavam o céu e a terra. Em termos árabes, esses cinco dias especiais talvez fossem representados pela peregrinação do hajj, que acontecia uma vez por ano e era feita por todos os árabes da península. O hajj começaria na Caaba e se encaminharia aos vários santuários fora de Meca, possivelmente dedicados a outros deuses. O hajj originalmente acontecia durante o outono, e as várias cerimónias podem ter sido um modo de acompanhar o sol poente para que viessem as chuvas do inverno. Os peregrinos iriam em grupo até ao vale de Muzdalifa, morada do Deus Trovão; fariam uma vigília noturna na planície em volta do monte Arafat, a aproximadamente 25 Km de Meca; atirariam pedras nos três pilares sagrados de Mina e, finalmente, ofereceriam um sacrifício animal. Hoje ninguém entende qual o significado desses ritos e, no tempo de Maomé, é provável que os próprios árabes já tivessem esquecido o significado original, embora continuassem fervorosamente ligados à Caaba e aos outros santuários da Arábia, realizando os rituais com devoção.

Na Arábia, onde a vida era uma luta constante, o santuário deve ter sido uma necessidade. Lá, os árabes podiam se encontrar despreocupadamente, sabendo que as regras das vendetas tribais não teriam validade enquanto ali estivessem. Em termos práticos, isso significava que podiam negociar sem medo de ser atacados por tribos inimigas. Santuários como Meca eram em geral importantes mercados onde se realizavam feiras anuais. Mas o santuário e seus rituais provavelmente também proporcionavam um repouso espiritual essencial. 

Talvez o santuário em si, com os seus quatro cantos irradiados a partir do centro, representasse o mundo. O círculo parece ser um arquétipo: é encontrado em quase todas as culturas como símbolo da eternidade, do mundo e da psique. Representa, em termos temporais e espaciais, a totalidade: traçar um círculo ou andar em círculo — prática comum em muitas religiões — implica voltar constantemente ao ponto de partida; descobre-se que no fim está o começo. O centro do círculo, o pequeno ponto imóvel em torno do qual o mundo gira, é a eternidade, o significado último e inefável e, dando voltas e voltas, o peregrino aprendia a se reorientar e a encontrar o seu centro em relação ao mundo. A circunvolução se tornaria uma forma de meditação. Ela exigia concentração física talvez tediosa mas que tornava possível à mente se desprender. A maioria dos lugares sagrados, em todas as tradições, é considerada o centro do mundo e o primeiro lugar criado pelos deuses. Para o peregrino, o lugar está investido do encanto de todo o começo, e assim sentia estar de algum modo se aproximando do centro do poder.

Os rituais ajudam a desenvolver uma postura interior. A secularização das sociedades desviou as pessoas da participação desse tipo de atividade simbólica. Tal atividade arquetípica passou para o artista, o melhor detentor de um imaginário criador de símbolos. Em ritos como a tawwaf, ou os rituais do hajj, os árabes estavam criando um tipo especial de arte prática, por meio da qual descobriam sentido ou relevância que não se podem descrever em palavras com facilidade. Provavelmente, tinham consciência, em algum nível profundo, embora inarticulado da natureza simbólica e figurativa daquilo que esta celebração cerimoniosa representa. Talvez seja particularmente difícil para os republicanos apreciar isso, devido ao facto de algumas formas de agnosticismo encararem o ritual com um preconceito supersticiosamente equivalente, com suspeição e hostilidade.

A Caaba era o santuário mais importante, mas havia outros. As circunvoluções e o tipo de culto correntemente praticado no Monte Arafat durante o hajj pré-islâmico eram elementos essenciais em toda a península. Também o era o pedaço de terra (hima) afastado do uso profano e com direito a servir de asilo a todos os seres vivos. Nenhum dos demais santuários sobreviveu, mas sabemos de outros templos como a Caaba, em Najran, no Iémen, e em al-Abalat, ao sul de Meca. Porém, os de importância essencial são os três santuários próximos de Meca dedicados às três filhas de al-Llah (banat al-Llah). Na amuralhada cidade de Taif ficava o santuário de al-Lat, cujo nome quer dizer a Deusa, sob a responsabilidade da tribo dos thaqif; também era chamada al-Rabba, a Soberana. Em Nakhlah ficava o santuário de al-Uzza, a mais popular das três, cujo nome quer dizer a Poderosa, e, em seu santuário costeiro na cidade de Qudayd, estava Manat, deusa do destino. 

Essas deusas não eram como as do panteão greco-romano. Não eram personagens como Juno ou Palas Atena, com histórias, mitologia e personalidade próprias, nem tinham qualquer esfera específica de influência, como o amor ou a guerra. Os árabes não desenvolveram uma mitologia que explicasse a importância simbólica desses seres divinos e, embora fossem chamadas “filhas de Deus”, isso não quer dizer que fizessem parte de um panteão sofisticado. Os árabes às vezes usam termos de parentesco para denotar relações abstratas, de modo que, por exemplo, banat al-dahr (literalmente, “as filhas do tempo/do destino”), tem o significado de infortúnios ou vicissitudes. As banat al-Llah talvez fossem apenas “seres divinos”. Em seus santuários, não eram representadas por estátuas ou figuras, e sim por grandes pedras, como os símbolos de fertilidade utilizados pelos cananeus, frequentemente mencionados na Bíblia. Quando os árabes veneravam essas pedras, não o faziam de modo rudimentar e simplista, mas as viam como focos de divindade. 

Quando Maomé nasceu na cidade de Meca, por volta do ano 570 da era cristã, nenhuma das potências se importava com a Arábia. A Pérsia e o Império Romano Bizantino estavam imobilizados numa desgastante luta entre si que terminou pouco antes da morte de Maomé. Ambos estavam ansiosos por estreitar laços com os árabes do Sul, na região onde hoje é o Iémen. O reino da Arábia do Sul era diferente do resto da região: como tinha o auxílio das chuvas trazidas pelas monções, era uma região rica e fértil, detentora de uma cultura antiga e sofisticada. As intratáveis estepes da Arábia eram um ermo aterrador, habitado por gente do deserto a quem os gregos chamavam “sarakenoi” (povo que vive em tendas). Por isso, naquela região desolada ninguém poderia imaginar que nela estava prestes a nascer uma nova religião que logo se tornaria uma grande potência mundial.

muruwah supria muitas funções de uma religião, dando aos árabes uma ideologia e uma visão que os capacitava a encontrar sentido em sua perigosa existência. Era uma religião, contudo, totalmente terra-a-terra. A tribo era o valor sagrado; os árabes não tinham a noção de vida após a morte e o indivíduo não tinha um destino único e eterno. A única imortalidade que um homem ou uma mulher poderia obter estava na tribo e na continuação do espírito desta. Cada um tinha a obrigação de cultivar a muruwah como forma de garantir a sobrevivência da tribo. Assim, a tribo tomava conta de si mesma. Esperava-se de seu chefe que cuidasse dos membros mais fracos do grupo e distribuísse os bens e as posses de modo igual. A generosidade era uma virtude importante: um chefe demonstrava poder e confiança (logo, o poder de sua tribo) por meio da hospitalidade larga e generosa para com os membros da tribo e seus confederados de outros grupos. 

Hospitalidade e generosidade ainda são virtudes supremas para os árabes. Uma tribo hoje rica poderia estar na miséria amanhã, e se fosse egoísta durante os bons tempos quem a auxiliaria em sua hora de necessidade? Mas o cultivo da generosidade também ajudava os árabes a se elevar acima da árdua luta pela sobrevivência, não se preocupando com o amanhã. Ela estimulava a indiferença aos bens materiais, o que era essencial numa região onde não havia o bastante para todos, nem mesmo o essencial. Essa abordagem também delineava o profundo fatalismo da muruwah: o darh (tempo ou destino) era uma dura realidade e tinha de ser aceito com dignidade. A vida seria impossível se as pessoas não aceitassem que alguns desastres são inevitáveis. Os árabes, portanto, acreditavam firmemente que nada podia ser feito para prorrogar o término (ajal) da vida de um homem ou para assegurar provisões (rizq) suficientes de comida.

De facto, a Arábia era considerada uma região sem Deus, e nenhuma das religiões mais avançadas, associadas à modernidade e ao progresso, havia conseguido entrar nela. É verdade que havia umas poucas tribos judaicas de proveniência duvidosa nos assentamentos agrícolas de Yathrib (futura Medina), Khaybar e Fadak, mas esses judeus, cuja religião era de natureza algo rudimentar, eram praticamente indiscerníveis de seus vizinhos árabes. Nas terras civilizadas muitos árabes se converteram ao cristianismo e, no século IV, formaram a sua própria Igreja Siríaca. Mas, em geral, os beduínos, árabes da Arábia Deserta, desconfiavam tanto do judaísmo como do cristianismo, mesmo percebendo que essas religiões eram mais sofisticadas que a sua. Sabiam que as potências vizinhas estavam prontas para usá-las como forma de controlo imperial. Isso havia ficado tragicamente aparente no reino do Iémen, que perdeu para o império Sassânida a sua independência em 570, ano do nascimento de Maomé, convertido a uma satrapia persa. A heresia cristã do nestorianismo (que afirmava a existência de duas naturezas em Cristo, uma humana e outra divina), protegida pela Pérsia, tornou-se religião oficial. Os árabes beduínos de Hedjaz e Najd tinham imenso orgulho de seus vizinhos ao sul da Arábia e viram a sua queda como uma catástrofe. Inevitavelmente, o judaísmo e o cristianismo se tornaram suspeitos.

Bizâncio encorajara os árabes das fronteiras a se converter por meio da construção de mosteiros e centros de culto. A tribo dos ghassan, que invernava na fronteira de Bizâncio, acabou se convertendo ao cristianismo monofisista e se tornou confederada dos bizantinos. Os gassânidas formaram um estado tampão de Bizâncio cuja função, supõe-se, era proteger o império cristão do império zoroastrista da Pérsia. Mas a Pérsia conseguiu retaliar. Os árabes lachmidas, a leste da Síria, tornaram-se nestorianos, uma fé também favorecida pelos árabes nas regiões mesopotâmicas do império persa. Os sassânidas, por consequência, também indicaram os árabes lachmidas como governantes de um estado tampão, com capital em Hira, para proteger as suas próprias fronteiras. Mas tanto a Pérsia como Bizâncio se retiraram dos estados árabes: como medida económica, o imperador Heráclio cortou os subsídios aos gassânidas durante a guerra contra a Pérsia, por volta de 584, e o rei Cosroés deu fim ao regime lachmida por volta de 602, designando governantes persas para substituir os árabes. Quando, cerca de trinta anos depois, após a morte de Maomé, os exércitos muçulmanos invadiram a região, encontraram os árabes profundamente ressentidos com os poderes locais e prontos para tentar a sorte com o islão.

No começo do século VII, os árabes da Arábia Central estavam cercados por facções dissidentes do cristianismo: no Sul, estava a majestosa igreja cristã de Najran, que os beduínos tanto admiravam, embora mantivessem desconfiança em relação a esses sistemas religiosos e estivessem decididos a continuar independentes das grandes potências. Ao mesmo tempo, havia um sentimento de insatisfação. Os árabes se sentiam inferiores tanto religiosa como politicamente. Até que conseguissem se unir para criar um Estado beduíno e tomar as rédeas de seu destino, ainda estariam vulneráveis à exploração, correndo mesmo o risco de perder a independência, como acontecera aos árabes do sul. Mas parecia haver poucas possibilidades de formação de um Estado beduíno unificado. Durante séculos, os árabes do Hedjaz e Najd viveram agrupados em tribos nómadas e em constante pé de guerra. Com o passar dos anos, desenvolveram um modo de vida altamente especializado, que se tornara comum na península pelo século VI d.C. Mesmo os árabes que viviam em cidades e assentamentos organizavam-se de acordo com o antigo etos pastoril: ainda criavam camelos e viam-se como filhos do deserto.

Havia indivíduos possuídos que não eram tão respeitados no tempo de Maomé. Os kahins, ou profetas extáticos, assemelhavam-se aos videntes peripatéticos dos livros mais antigos da Bíblia. Não eram profetas no sentido grandioso que o termo irá assumir, mas antes adivinhos, consultados se alguém perdia um camelo ou queria que lhe lessem a sorte. Os kahins, como este tipo de adivinhos em todo o lado, com frequência tinham de ocultar a sua ignorância por meio de ambiguidades, de modo que seus “oráculos” eram normalmente uma versalhada incoerente ou ininteligível. Maomé, como veremos, não perdeu tempo com os kahins, considerando as suas profecias triviais, daninhas e sem sentido. Maomé sentiu a misteriosa atração da Caaba durante toda a vida e que as circunvoluções rituais, tão arbitrárias e tediosas para um espectador, foram extremamente importantes na vida do povo de Meca. Não era uma obrigação enfadonha que as pessoas executavam de má vontade ou negligentemente. Ao que parece, gostavam de fazê-la e a consideravam parte de sua rotina diária. Gostavam de encerrar um dia agradável de caça fazendo as voltas à Caaba antes de retornar para casa; podiam estar se dirigindo ao mercado próximo para beber vinho com amigos e então decidir, em vez disso, passar o fim de tarde repetindo o ritual, quando seus companheiros não apareciam. 

O sistema tribal e o antigo paganismo haviam servido bem aos beduínos por séculos, mas, durante o século VI, a vida havia mudado. Mesmo que a maior parte da península arábica estivesse fora da civilização dominante, os árabes começavam a ter consciência de algumas das ideias e motivações dessa civilização. Alguns talvez tivessem ouvido falar, por exemplo, na noção religiosa de vida após a morte, que faz da vida do indivíduo um valor supremo. Como se ajusta isso ao antigo ideal comunitário do tribalismo? Os árabes que haviam começado a travar relações comerciais com os países civilizados voltavam com histórias impressionantes, e os poetas descreviam as maravilhas da Síria e da Pérsia. Mas parecia que os árabes não poderiam aspirar a tanto poder e esplendor. O sistema tribal impossibilitava-os de juntar os poucos recursos de que dispunham e encarar o mundo como o povo unificado que tinham apenas vaga consciência de ser. As tribos pareciam presas num ciclo sem fim de guerras e vendetas: uma rixa de sangue levava inevitavelmente a outra, ao mesmo tempo que novos indícios de individualismo minoravam sensivelmente o valor do etos comunitário.

Durante o século VI, uma tribo emigrara da problemática região da Arábia do Sul para o oásis de Yathrib, estabelecendo-se junto às tribos judaicas. Prosperaram com a agricultura e, no entanto, achavam que o sistema tribal simplesmente não funcionava quando não estavam percorrendo vastos territórios. No começo do século VII, oásis inteiros pareciam imersos num ciclo crónico de violência e guerra. Mas em Meca, a tribo dos coraixitas [quraysh], na qual nascera Maomé, tornara-se a mais poderosa da Arábia. Mas vivia um tipo de mal-estar sombrio, já que também sentia que a antiga ideologia não a tinha preparado para a vida urbana. Os coraixitas haviam-se estabelecido em Meca por volta do fim do século V. 

Por volta de 560 a Arábia do Sul era província da Abissínia, Estado cliente de Bizâncio. Ao que parece, Abraha, o governador abissínio da Arábia do Sul, ficou com inveja do sucesso comercial de Meca e tentou invadir a cidade. O incidente recebeu adornos lendários, mas parece que Abraha se dera conta de que a Caaba havia sido fundamental para o sucesso de Meca. Para desviar os peregrinos para a Arábia do Sul, e assim atrair maior comércio, construiu um magnífico templo cristão de mármore listado em Sana’a e, diz-se, quando acampou do lado de fora de Meca com seu exército, sua intenção declarada era destruir a Caaba. Mas, ao chegar às portas da cidade, parece que o exército foi atacado por uma praga e forçado a bater em ignominiosa retirada. A libertação providencial naturalmente fez com que os coraixitas pensassem nela como milagrosa. Os abissínios haviam trazido um elefante e os habitantes de Meca ficaram fascinados com aquele animal tão grande e tão diferente. Mais tarde se disse que, ao chegar ao solo sagrado nas imediações da cidade, o elefante caiu de joelhos, recusando-se a se mexer; a seguir, Deus enviou uma revoada de pássaros vindos da costa, que lançaram pedras venenosas nos abissínios, afugentando-os e cobrindo-os com horríveis queimaduras. O Ano do Elefante se tornou extremamente popular entre os coraixitas. O próprio Maomé se sentiu tocado pela história do elefante, recontada na sura 105 do Corão.

Os coraixitas começaram a se interessar pelo comércio, combinando a nova atividade com a tradicional criação de animais. Meca ficava no lugar ideal para empreendimentos comerciais a longo prazo. O prestígio da Caaba trazia muitos árabes para o hajj todos os anos e o santuário criava um clima favorável ao comércio. Meca estava convenientemente localizada na encruzilhada de duas das maiores rotas comerciais da Arábia: a Rota do Hedjaz, que corria próxima à costa leste do mar Vermelho e ligava o Iémen à Síria, Palestina e Transjordânia; e a Rota do Najr, que ligava o Iémen ao Iraque. Os coraixitas obtiveram grande sucesso e garantiram a segurança da cidade fazendo alianças com os beduínos da região. Os nómadas eram melhores soldados que os coraixitas e, em troca de ajuda militar, tinham participação em várias companhias de Meca. Cultivando uma astuta e calculada diplomacia, conhecida como hilm, os coraixitas se tornaram a mais poderosa tribo da Arábia durante o século VI.

Depois disso, muitos clãs passaram a competir ferozmente e, no tempo da infância de Maomé, já haviam se dividido em três grandes grupos. Alguns clãs mais fracos, incluindo o dos Hashim, a que pertencia Maomé, não obtiveram o mesmo sucesso e sentiam que estavam a ser deixados para trás. Em vez de dividir as riquezas de maneira equitativa, segundo a antiga ética tribal, os indivíduos juntavam grandes fortunas pessoais. Usurpavam os direitos de viúvas e órfãos, sugando suas heranças, e não tomavam conta dos membros mais fracos e mais pobres da tribo, conforme exigia o antigo costume. A nova prosperidade rompera o elo dos valores tradicionais, e muitos dos coraixitas não tão bem-sucedidos sentiam-se desorientados e perdidos. Naturalmente, os comerciantes, banqueiros e financistas mais bem-sucedidos encantavam-se com o novo sistema. Acumulavam agressivamente mais e mais capital com zelo quase religioso. Mas algumas gerações mais novas estavam se desencantando e pareciam à procura de uma nova solução espiritual e política para o mal-estar e a inquietação da cidade.

Quando Maomé começou a pregar em Meca, era reconhecido por todos que a Caaba era dedicada a al-Llah, o Deus Supremo dos árabes pagãos, a despeito da efígie de Hubal. Por volta do começo do século VII, al-Llah se tornara mais importante que nunca na vida religiosa de muitos árabes. Muitas religiões primitivas mantêm a crença num Deus Supremo, às vezes chamado Deus do Céu. Acreditava-se que tivesse criado o céu e a terra e depois se retirado, como que exaurido pelo esforço. As pessoas perdiam o interesse nesse ser transcendente, que desaparecera de vista, e seu lugar era tomado por divindades mais atrativas e acessíveis. Deusas da fertilidade, em particular, afetavam de modo mais imediato as vidas de homens e mulheres, depois que se estabeleciam e começavam a cultivar a terra. Podemos ver isso nas Escrituras judaicas. Os antigos israelitas, ao se estabelecerem em Canaã, começaram a render culto a Baal, Anat e Ashtaroth, paralelamente a seu deus Iahweh. Parecia estupidez negligenciar essas divindades, que conheciam a terra muito melhor que eles. Mas em tempos de perigo se voltavam uma vez mais para Iahweh.

Durante o período de vida nómada, as funções de fertilidade das deusas árabes provavelmente tinham sido esquecidas, de modo que al-Llah, o Deus Supremo, tornou-se mais importante. O Corão deixa claro que todos os coraixitas acreditavam que al-Llah havia criado os céus e a terra. Isso era um dado a priori. Mas alguns deles, ao que parece, estavam dispostos a ir mais longe. No início do século VII, a maioria dos árabes passou a acreditar que al-Llah, o Deus Supremo, era o mesmo deus adorado por judeus e cristãos. Os árabes convertidos ao cristianismo chamavam seu Deus de “al-Llah” e parece que faziam o hajj juntamente com os pagãos. Mas os árabes tornavam-se cada vez mais conscientes de que al-Llah não lhes enviara uma Escritura. Podemos ver pelas primeiras biografias de Maomé que os árabes pagãos sentiam grande respeito pelo Povo do Livro, detentor de um conhecimento que eles não possuíam. Alguns deles decidiram procurar uma religião autêntica e não associada às grandes potências nem corrompida por sua conexão com o imperialismo e com o controlo estrangeiro. Já no século V, o historiador cristão palestino Sozomenus nos conta que alguns árabes haviam redescoberto a religião de Abraão e continuavam a praticá-la. Abraão, a rigor, não havia sido nem judeu nem cristão. Ele viveu antes que Moisés trouxesse a Torá ao povo de Israel. Na Arábia, durante o período em que Maomé recebeu as revelações, encontramos alguns árabes tentando praticar a religião de Abraão.



segunda-feira, 8 de maio de 2023

Os dias. Os meses. Os anos



O dia solar verdadeiro - intervalo de tempo entre duas passagens consecutivas do Sol pelo meridiano dum lugar - varia entre 23 horas, 59 minutos e 39 segundos / 24 horas e 30 segundos. Estas variações, devidas às desigualdades que afetam a ascensão reta do Sol, levam a que um dia civil tenha a duração de 24 horas. Este dia, definido em função do dia solar médio, começa à meia-noite e termina à meia-noite seguinte. Por outro lado, é a revolução sinódica da Lua que está na origem dos calendários lunares, em que os meses têm alternadamente 29 dias e 30 dias. A lunação, intervalo de tempo entro duas conjunções consecutivas da Lua com o Sol não tem um valor constante, mas varia entre 29 dias e 6 horas / 29 dias e 20 horas. O seu valor médio, conhecido com grande precisão é de 29 dias, 12 horas,  44 minutos e 2,8 segundos. 

O ano, é de outro modo menos evidente. Foi só com o desenvolvimento da Agricultura que os povos primitivos se aperceberam do ciclo das estações. São, portanto: dia; mês lunar ou lunação; ano - períodos astronómicos naturais utilizados em qualquer calendário. Em Astronomia consideram-se o ano sideral e o ano trópico como os mais utilizados. O ano sideral, duração da revolução da Terra em torno do Sol, é igual a 365 dias, 6 horas, 9 minutos e 9,8 segundos. É este ano que intervém na terceira lei de Kepler da mecânica celeste, ao ligar as durações das revoluções dos planetas com os eixos maiores das órbitas. O ano trópico, tempo decorrido entre duas passagens consecutivas do Sol médio pelo ponto vernal, é atualmente de 365 dias, 5 horas, 48 minutos e 45,3 segundos. É mais curto do que o ano sideral, devido à precessão dos equinócios, que faz retroceder o ponto vernal de 50,24 segundos de arco por ano. É o ano trópico que regula o retorno das estações e que intervém nos calendários solares.

O protótipo atual de calendário lunar é o calendário islâmico; do calendário solar é o calendário gregoriano; o calendário israelita é luni-solar. Mas também o calendário gregoriano conserva, de certo modo, uma base luni-solar no que diz respeito às regras para a determinação da data da Páscoa.

Um outro período de tempo utilizado nos calendários é a semana de sete dias, e que há uma disputa entre os especialistas quanto à sua origem. Uns acham provável estar relacionada com o mês lunar, visto que sete dias são aproximadamente um quarto de lunação, o intervalo aproximado entre a Lua cheia e o quarto minguante. Outros levam a origem para o número dos sete astros principais do firmamento desde a Antiguidade: os cinco planetas conhecidos mais o Sol e a Lua. Outros ainda, pensam que a escolha de um intervalo de sete dias se deva à Bíblia, em que o número sete entre os judeus era um número sagrado. Seja como for, o ciclo semanal de sete dias propagou-se inicialmente no Médio Oriente, e só bastante mais tarde chegou ao Ocidente, encontrando-se hoje praticamente incorporado em todos os calendários como ciclo regulador das atividades laborais.

Os calendários mais antigos que nos chegaram à Europa são provenientes do Egito por via judaica, com um ano civil de 360 dias. Os egípcios dividiam o ano em 12 meses de 30 dias. E dividiam o ano em três estações, de acordo com as suas atividades agrícolas dependentes das cheias do Nilo: a estação das inundações; a estação das sementeiras e a estação das colheitas. Não satisfeitos com o ano de 360 dias, os hebreus voltaram-se para o sistema luni-solar, ajustando os meses com o movimento sinódico da Lua e coordenando o ano com o ciclo das estações. Depois de muitas reformas, os egípcios estabeleceram um ano civil invariável de 365 dias, conservando a tradicional divisão em 12 meses de 30 dias e 5 dias adicionais no fim de cada ano. O atraso aproximado de 6 horas por ano em relação ao ano trópico motivou que, lentamente, as estações egípcias se fossem atrasando, originando uma rotação destas por todos os meses do ano. 

Calendário provém do latim kalendae, o primeiro dia do mês em Roma, no qual se concluíam e pagavam as contas mensais. Neste dia, os funcionários do império saíam à rua, chamando os cidadãos (calare) para que cumprissem os seus deveres para com o Estado, pagando os impostos. Associando estes dois assuntos, tornou-se célebre a expressão: “Ficar para as calendas gregas”, que hoje corresponde aproximadamente a ficar em “águas de bacalhau”, uma vez que os Gregos não tinham calendas. O calendário é, pois, um sistema de contagem do tempo, ao qual se aplica um conjunto de regras baseadas na astronomia, associando os dias a períodos maiores, como a semana, o mês, o ano.



Calendário Gregoriano


No primitivo calendário romano, o ano tinha 304 dias distribuídos por 10 meses. Os 4 primeiros tinham nomes próprios dedicados aos deuses da mitologia romana e provinham de tempos mais remotos, em que, provavelmente, se aplicaram às 4 estações; os 6 restantes eram designados por números ordinais, indicativos da ordem que ocupavam no calendário. Numa Pompílio seguiu o exemplo dos gregos, estabeleceu o ano de 12 meses, introduzindo em primeiro lugar o mês de Januarius, dedicado a Jano, e em último lugar o mês de Februarius, dedicado a Februa, ao qual os romanos ofereciam sacrifícios para expiar as suas faltas de todo o ano. Este foi o motivo por que o mês de Februarius foi colocado no fim. O ano tinha 354 dias (ano lunar dos gregos). Mas devido à superstição dos romanos que tomavam por nefastos os números pares, pela mesma razão, consideraram nefasto o ano ter 354 dias. Por isso, tiveram que acrescentar mais um dia, atribuindo o dia excedente ao mês Februarius, com 28 dias. Os pontífices alongavam ou encurtavam o ano conforme os seus amigos estavam ou não no poder. A desordem atingiu tal ponto que o começo do ano já estava adiantado três meses em relação ao ciclo das estações.

Foi esta desordem que Júlio César encontrou ao chegar ao poder. Decidido a acabar com os abusos dos pontífices, chamou a Roma o astrónomo grego Sosígenes, da escola de Alexandria, para que examinasse a situação e o aconselhasse nas medidas que deveriam ser adoptadas. Estudado o problema, Sosígenes observou que o calendário romano estava adiantado 67 dias em relação ao ano natural ou ao ciclo das estações. Para desfazer essa diferença, Júlio César ordenou que naquele ano (708 de Roma, ou 46 a.C.), além do mês Mercedonius, com 23 dias, que naquele ano era um mês intercalar, fossem adicionados mais dois meses: um de 33 dias; outro de 34 dias - entre os meses de November e December. Resultou assim um ano civil de 445 dias, o maior de todos os tempos, único na história do calendário e conhecido pelo nome de "ano da confusão", pois, devido à grande extensão dos domínios de Roma e à lentidão dos meios de comunicação de então, nalgumas regiões a ordem foi recebida com tal atraso que já havia começado um novo ano.

Assim passou a existir o Calendário Juliano, nome que obviamente se deve a Júlio César, que começou a vigorar no ano 709 de Roma (45 a.C.), mediante um sistema que devia desenrolar-se por ciclos de quatro anos, com três comuns de 365 dias e um bissexto de 366 dias, a fim de compensar as quase seis horas que havia de diferença para o ano trópico. Suprimiu-se o mês Mercedonius e o mês Februarius passou a ser o segundo mês do ano. O valor médio do ano passou a ser de 365,25 dias e o equinócio da primavera deveria ocorrer por volta de 25 de Março. O ano de 365,25 dias do Calendário Juliano é cerca de 11 m 14 s mais longo do que o ano trópico. A acumulação desta diferença ao longo dos anos representa um dia em 128 anos e cerca de três dias em 400 anos. Assim, o equinócio da primavera, que no tempo de Sosígenes ocorria por volta de 25 de março, teve lugar em 21 de março no ano da realização do Concílio de Niceia.

Ainda antes do Calendário Gregoriano, chegou a vigorar o calendário que havia sido proposto pelo historiador e monge grego chamado Dionísio, o Menor, no ano de 525. Calculando a data da Páscoa cristã, Dionísio tomou o ano do nascimento de Jesus como o ano 1 do século I, tendo por base o Calendário Juliano. Os períodos e os acontecimentos anteriores a esta data passaram a ter a sigla a.C. e contados do fim para o princípio; os posteriores, seriam datados com a sigla d.C. ou A.D. (Anno Domini). No final do século XIX, quando a contagem cronológica da História pelo sistema de Dionísio já estava difundida, e uniformizada pelo mundo, descobriu-se um erro de cálculo: O nascimento de Jesus, segundo a moderna historiografia, teria sido no ano 4 a.C., ano da morte de Herodes I, o Grande. 

Calendário Gregoriano teve início no dia 1 de janeiro do ano de 1582, por ordem do Papa Gregório XIII. A Igreja teria interesse no calendário para determinar corretamente a data móvel da Páscoa. É um ajuste no Calendário Juliano, que tinha acumulado uma diferença de dez dias em relação ao ano solar. Tirou-se dez dias ao Calendário Juliano conservando um ano bissexto em cada quatro anos. Em períodos de três séculos retirava-se um dia a cada século, e no quarto século em vez de se retirar acrescentava-se um dia. Isto é, em cada 400 anos eliminavam-se três anos bissextos para evitar o desfasamento. Todo o ano não bissexto começa e acaba no mesmo dia da semana, porque se se dividir 365 por 7 sobra 1.

A prática de contar datas antigas para trás é recente e um pouco complicada, pelo facto de os astrónomos e historiadores não inserirem geralmente o ano zero entre o séc. I a.C. e o séc. I d.C. O ano civil nunca coincidia com o ano solar exatamente. Desde cedo, os Romanos quiseram estabelecer um calendário perpétuo, que os auxiliasse nos trabalhos agrícolas, onde constassem, por exemplo, fenómenos astrológicos e meteorológicos significativos, como o movimento dos ventos. Os chamados calendários rústicos italianos documentam este facto; foram elaborados segundo os signos do zodíaco que não respeitam os meses civis. Convém esclarecer que até 1925 o tempo solar médio era contado em astronomia a partir do meio-dia, para que as observações noturnas caíssem sempre dentro do mesmo dia e não a partir da meia-noite, como é usual no tempo civil. O dia solar médio era então chamado dia astronómico. A partir de 1925, por acordo internacional, os dias solares médios passaram a contar-se com início à meia-noite tanto em astronomia como na vida civil e a designação de dia astronómico caiu em desuso. Mas os dias do período juliano, que começaram a contar-se de meio-dia a meio-dia segundo o uso astronómico da época, continuam a contar-se da mesma maneira, por razões óbvias de continuidade da escala.

O deslocamento do equinócio no calendário, que não foi tomado em consideração pelos padres conciliares de Niceia, continuou a produzir-se à razão de um dia em cada 128 anos, causando várias preocupações à Igreja durante toda a Idade Média. Foi necessária a autoridade de um Papa com a cultura e a tenacidade de Gregório XIII para conseguir impor a reforma. Entretanto, o equinócio da primavera ocorria já por volta de 11 de Março. Depois de várias consultas a instituições científicas, em 1576 foi criada uma comissão encarregada de estudar o problema e as várias propostas existentes para o resolver. Nesta comissão, constituída pelos melhores astrónomos e matemáticos da época, teve papel preponderante o célebre padre jesuíta Clavius, que estudara matemática em Coimbra com Pedro Nunes.

A reforma gregoriana tinha por finalidade fazer regressar o equinócio da primavera a 21 de Março e desfazer o erro de 10 dias já existente. Para isso, a bula mandava que o dia imediato à quinta-feira 4 de Outubro fosse designado por sexta-feira 15 de Outubro. Como se vê, embora houvesse um salto nos dias, manteve-se intacto o ciclo semanal. 
Para evitar, no futuro, a repetição da diferença foi estabelecido que os anos seculares só seriam bissextos se fossem divisíveis por 400. Suprimir-se-iam, assim, 3 dias em cada 400 anos, razão pela qual o ano 1600 foi bissexto, mas não o foram os anos 1700, 1800 e 1900, que teriam sido segundo a regra juliana, por serem divisíveis por 4.

Portugal, Espanha e Itália foram os únicos países que aceitaram de imediato a reforma do calendário. Em França e nos Estados católicos dos Países Baixos a supressão dos 10 dias fez-se ainda em 1582, durante o mês de Dezembro. Os Estados católicos da Alemanha e da Suíça acolheram a reforma em 1584; a Polónia, após alguma resistência, em 1586 e a Hungria em 1587. Os russos, gregos, turcos e, duma maneira geral, os povos de religião ortodoxa, conservaram o Calendário Juliano. Como tinham considerado bissextos os anos de 1700, 1800 e 1900, a diferença era já de 13 dias. A URSS adoptou o Calendário Gregoriano em 1918, a Grécia em 1923 e a Turquia em 1926.

A mobilidade da data da Páscoa, que oscila entre 22 de março e 25 de abril, é um dos efeitos colaterais do Calendário GregorianoOs padres do concílio de Niceia e o Papa Gregório XIII ligaram o calendário ao Sol verdadeiro, mas tomaram para Lua pascal uma Lua média que, por vezes, se afasta bastante da Lua astronómica. Por esse motivo, podem dar-se desvios de uma semana ou mesmo de um mês na data da Páscoa.

As únicas fontes são os relatos da infância de Jesus, que se encontram no início dos Evangelhos de Mateus (Mt) e Lucas (Lc), que apresentam muitos problemas literários e históricos, já que a sua escrita surge muito depois da morte de Jesus, revelando o maravilhoso à maneira dos relatos do mundo judaico/helenístico. A composição de Mt e de Lc é geralmente datada entre o ano 70 d.C. e o ano 80 d.C.. O nascimento de Jesus é celebrado pelos católicos no dia 25 de dezembro. Para a Igreja Russa e as antigas Igrejas do Oriente, que ainda usam o Calendário Juliano, é no dia 7 de janeiro. Sobre a infância de Jesus, Mateus e Lucas diferem radicalmente, quer quanto à estrutura, quer quanto à narrativa. A maioria dos historiadores acredita que esses dois textos foram escritos independentemente um do outro na base de relatos da oralidade de comunidades cristãs anteriores. É nos detalhes comuns que os historiadores buscam os elementos históricos, a partir do critério da historicidade das múltiplas versões em fontes literárias independentes. Os historiadores geralmente colocam a data da morte de Jesus durante a festa judaica da Páscoa em Jerusalém entre os anos 30 e 33 d.C.. Os Evangelhos relatam unanimemente que Jesus foi condenado à morte sob a administração do romano Pôncio Pilatos, governador da Judeia entre 26 e 36 d.C.

Só alguns séculos após o nascimento de Jesus é que alguém se lembrou de ligar este acontecimento a uma origem de contagem do tempo. A proposta foi apresentada pelo monge cita Dionísio, o Exíguo, por volta do ano 532 da era atual. Imediatamente adoptada pela Igreja de Roma, ela foi-se generalizando a todos os países católicos. Em Portugal, a era de César ou hispânica, vigorou até ao ano 1422. Esta era havia sido introduzido na Península Ibérica no século V para recordar a conquista da península por Caio César Augusto no ano 38 a. C. (ano 716 de Roma). Por determinação de Dom João I, foi abolida a era de César e o ano 1460 desta era passou a ser o ano 1422 da era cristã.

É importante notar que na era cristã os anos são referidos a uma escala sem zero, isto é, a contagem inicia-se no ano 1 depois de Cristo, designando-se o ano anterior como ano 1 antes de Cristo. Por conseguinte, qualquer acontecimento ocorrido durante o primeiro ano da era cristã, embora seja apenas de um dia ou de um mês, conta-se como tendo ocorrido no ano 1 depois de Cristo. Por esta razão, o primeiro século (bloco de 100 anos) da era cristã, terminou no dia 31 de dezembro do ano 100 d.C. (os primeiros 100 anos após o início da era). O século II começou no dia 1 de Janeiro do ano 101 d. C. e assim sucessivamente. Consequentemente, o século XX começou no dia 1 de Janeiro do ano 1901, o que significa que o século XX terminou no dia 31 de dezembro do ano 2000.

Esta forma pouco lógica de numerar os anos do calendário é particularmente inconveniente quando se trata de determinar intervalos de tempo que começam antes do início da era cristã e terminam depois. Assim, por exemplo, o intervalo entre os anos 50 a.C. e 50 d.C. não é de 100 anos, mas apenas de 99. Em geral, estes intervalos de tempo obtêm-se diminuindo um ano, o que é necessário ter em conta ao investigar acontecimentos históricos ou fenómenos astronómicos da Antiguidade datados segundo a era cristã. Este inconveniente é facilmente resolvido com a introdução dos números negativos, como aliás o fazem os astrónomos. Assim, o ano 1 a.C. corresponde ao ano 0, o ano 2 a.C. ao ano -1 e assim sucessivamente. As datas depois de Cristo exprimem-se da mesma maneira. 

quarta-feira, 3 de maio de 2023

O toque humano em tempo de Inteligência Artificial



Quanto mais digital e tecnológico o mundo se torna, maior é a necessidade de sentirmos o toque humano. Para uns basta apenas ser através de relacionamentos íntimos. Para outros, são mais importantes as conexões sociais através de banhos de multidões, sejam eles em manifestações de rua, sejam dentro de estádios desportivos à pinha. Há crescentes preocupações com esta espécie de apocalipse tecnológico que se está a traduzir não apenas na desregulação climática, mas também na imaterialidade de uma mente virtual descarnada, sem corpo humano. A tecnologia está a afetar negativamente as nossas habilidades corporais. Uma delas está na incapacidade progressiva de empatia humana. E mesmo a empatia pelos animais de companhia será mais uma perversão do ego. Um estudo, que remonta já a 2010, realizado por uma equipa de pesquisadores da Universidade de Michigan, descobriu um declínio de 40% da empatia entre estudantes universitários comparados com um grupo semelhante de há 30 anos.

Um dos nossos bens mais preciosos é a conversa. É estarmos reunidos a conversar à volta de uma mesa, ou à volta de um braseiro enquanto o sargo assa sem a barreira ou interposição de um qualquer meio tecnológico. Este lastimável estado de coisas havia começado em meados do século XX com a televisão. Hoje é a internet e as famigeradas redes sociais virtuais ou cibernéticas. Quanto mais tempo passamos imersos nas redes digitais, mais superficiais se tornam as nossas capacidades cognitivas. E isso deve-se ao facto de deixamos de controlar o nosso corpo. Logo, a nossa atenção.

Não há dúvida de que o estrondoso sucesso alcançado pelas diversas manifestações da cultura mediática se deve à sua capacidade de oferecer um universo de lazer, de esquecimento, de sonho. Inúmeros estudos empíricos puderam assim, sem grande risco, sublinhar que o que está a acontecer é a evasão. Esta cultura mediática massificada é perversamente destinada a satisfazer necessidades evasivos do momento efémero. O problema está nos seus efeitos a mais longo prazo. Para além das evidentes implicações psicológicas, a cultura massificada destruiu o sentido do juízo crítico. Ora isso teve como propósito a reorientação de atitudes individuais e coletivas para satisfazer a ganância gerada pelo sistema capitalista. Estamos num tempo em que uma minoria de atores do sistema económico/financeiro, que capturou a elite política, difunde padrões de vida incompatíveis com a vida. É incompreensível como a atração por este tipo de cultura nos afundou neste marasmo civilizacional.

Doravante é a informação que produz os efeitos culturais e psicológicos mais significativos; ela substituiu globalmente as obras de ficção no avanço da socialização democrática individualista. As revistas de informação, os debates e pesquisas têm mais repercussão sobre as consciências do que todos os sucessos do ensino da escola pública. Em muitos domínios, os média conseguiram substituir a escola, a família, os partidos, os sindicatos, bem como instâncias de socialização ancestrais como as religiões. É cada vez mais através dos meios de comunicação que somos informados sobre o curso do mundo. A socialização dos seres - que antigamente se fazia por intermédio da tradição, da religião, da moral - cedeu terreno à ação da informação mediatizada pela ditadura da imagem em detrimento da palavra. Saímos definitivamente do que Nietzsche chamava “a moralidade dos costumes”. A instrução disciplinar foi substituída por um tipo de socialização completamente inédito: o prazer da imagem.

A informação tem a particularidade de individualizar as consciências e disseminar o corpo social por seus inúmeros conteúdos. Por outro lado, trabalha de alguma maneira para homogeneizá-lo pela própria “forma” da linguagem mediática. Sob sua ação os sistemas ideológicos do passado perderam autoridade. A informação é um agente determinante no processo de desafeição dos grandes sistemas de sentido que acompanhou a evolução contemporânea das sociedades democráticas. Sustentada por uma lógica da novidade imediata, que não pode esperar pela ponderação reflexiva, a informação nas atuais sociedades democráticas não cessa de reduzir o impacto das consciências amadurecidas pelo pensamento demorado.

E tudo isto apesar de aparecerem no "prime time", de forma fragmentada e descontínua, transmissões em que intervêm os peritos, os homens de ciência, os diversos especialistas explicando de maneira simples e direta ao público o último estado das questões. É o charme discreto de um simulacro de objetividade documental e científica. Ao ser admitido que é pela diversidade de opinião que se recria uma certa unidade cultural, o debate atual em vez de clarificar, ofusca, como ofusca o excesso de luz apontada por uma lanterna diretamente sobre os nossos olhos. É assim que com este embuste de cientificidade instantânea, como uma novidade, os atuais meios de comunicação "Mega", contribuem para desenvolver uma nova relação dos indivíduos com "o que se passa no mundo".

As inteligências contextuais, inspirada e emocionalmente conduzida, são as características essenciais para lidarmos com a revolução em curso. A epigenética, um campo da biologia que floresceu nos últimos anos, é o processo pelo qual o ambiente modifica a expressão de nossos genes. Indiscutivelmente, isso mostra a importância crítica do sono, da nutrição e dos exercícios em nossas vidas. O exercício regular, por exemplo, tem um impacto positivo sobre como pensamos e nos sentimos. Ele afeta diretamente o nosso desempenho no trabalho e, por fim, nossa capacidade de obter sucesso. Então algumas pessoas tentam aprender novas maneiras para manter o corpo físico em harmonia com a mente. Incríveis progressos em inúmeras áreas, incluindo as ciências médicas, os dispositivos e as tecnologias implantáveis e as pesquisas sobre o cérebro. Complexos desafios que enfrentamos. Isso será cada vez mais importante para que possamos navegar e aproveitar as oportunidades da quarta revolução industrial.

Saber o que é necessário para prosperar é uma coisa; agir é outra. Para onde tudo isso está nos levando? Como podemos estar bem preparados? Voltaire, o filósofo francês e escritor do Iluminismo, uma vez disse: “A dúvida é uma condição desconfortável, mas a certeza é ridícula”. Com efeito, seria ingenuidade afirmar que sabemos exatamente para onde a ciência nos levará. Mas seria igualmente ingénuo ficar paralisado por medo e pela incerteza do que poderá acontecer. Claramente, o futuro é tão assustador como as oportunidades são desafiantes. Devemos mudar a maneira compartimentada na tomada de decisões, particularmente porque os desafios que enfrentamos estão cada vez mais interligados. Somente uma abordagem inclusiva poderá engendrar a compreensão necessária para abordar as muitas questões levantadas pela Inteligência Artificial. Isso exigirá estruturas colaborativas e flexíveis, que reflitam a integração dos vários ecossistemas e que levem em conta todas as partes interessadas, reunindo o público e o privado, bem como as mentes de todas as origens mais informadas.

Embora não saibamos a forma, sabemos as características cruciais que devia conter, por exemplo, os princípios éticos que os nossos futuros sistemas devem encarnar. Os mercados são fatores eficazes de criação de riqueza, mas precisamos assegurar que os valores e a ética sejam o centro de nossos comportamentos individuais e coletivos, bem como dos sistemas que alimentam. Essas narrativas devem também evoluir progressivamente para perspectivas mais amplas, desde a tolerância e o respeito. Elas devem também ser inclusivas, guiadas por valores compartilhados que incentivem isso.

Com base na consciência obtida pelas narrativas compartilhadas, devemos iniciar a reestruturação dos nossos sistemas económicos, sociais e políticos para tirar o máximo proveito das oportunidades apresentadas. Está claro que os nossos modelos dominantes de criação de riqueza e os atuais sistemas de tomada de decisão foram projetados e evoluíram de modo incremental ao longo das três primeiras revoluções industriais. Esses sistemas, no entanto, já não estão equipados para cumprir as necessidades.