terça-feira, 28 de dezembro de 2021

Trocaram-se certificados de aforro por cartões de crédito quando foi anunciado o iPhone 5S



Que milhares de pessoas façam fila diante da Apple Store três ou quatro dias antes do lançamento do último modelo de iPhone não é algo que a sociologia, a psicologia ou, evidentemente a economia possam explicar. Para compreendê-lo, é preciso contar com os instrumentos conceptuais da psicanálise, os quais nos permitem captar de que modo um objeto técnico pode adquirir valor libidinal, isto é, transformar-se em causa do desejo.

Cada produto que sai para o mercado transforma-se automaticamente em objeto caduco. Ao mesmo tempo o sujeito demanda o novo, cada vez mais novo, mais rápido, porque o avanço da técnica também pode ser medido (com um rigor quase científico) em função da velocidade com que um objeto deixa de satisfazer o consumidor. A “frustração desequilibrada” que o iPhone 5S provocou nos expectantes e ávidos consumidores de sonhos gerou uma séria queda das ações da Apple.




O extraordinário desenvolvimento da técnica, unido aos interesses da indústria e do capital, conseguiu produzir em massa aqueles que denominamos objetos de consumo, que constituem a base da economia capitalista. Como bem sabemos, um objeto de consumo não é sinónimo de um objeto de necessidade. Se os seres humanos se conformassem com os objetos de necessidade, ou, dito de outro modo, se os seres humanos só fossem regidos pelos rigorosos imperativos da necessidade, o capitalismo simplesmente não poderia existir. Se ele existe, é porque se dedica ao fabrico em massa de objetos cuja virtude fundamental consiste em entrar em sintonia com o objeto inconsciente que opera como causa de nossos desejos. O que é um objeto em linguagem psicanalítica? E o desejo? Um desejo é, para dizê-lo nos melhores termos freudianos, a perversão de uma necessidade. E é isso que, nem mais nem menos, faz de nossa espécie algo incomparável com qualquer extrapolação para o resto dos seres vivos.

O que resta do tempo que passa





O que será mais inquietante, ou angustiante, a ideia de que todos teremos um fim ou de que não pode haver um fim? Enquanto esperava pelo tempo que não passa, perguntei que coisa é o mundo quando vi na TV o Telescópio Espacial James Webb ir para o espaço com a missão de procurar a origem do Universo.

Chegados aos setenta, o melhor é não esperar por nada exceto o sono de todas as noites em que um dia já não acordaremos. Quem espera saber as coisas que se virão a saber e que ainda não se sabem, fica com um anseio permanente de não conseguir chegar a tempo. O anseio é irmão do medo. Que o nosso destino é morrer, todos devem saber. A diferença está no morrer a tempo. Esse é o grande paradoxo, de não querer chegar atrasado. Nas Mil e Uma Noites é o entretenimento que adia a iminência da morte executada.

Eu sou do tempo das leituras dos grandes guias da Internationale Situationniste dos anos 1970, em que se faziam críticas tenazes da espetacularização do social nos media, ou seja, nos meios massificados de comunicação mediática, que criam dinâmicas de controlo social, mental e corporal. Poder-se-ia pensar que a sociedade do espetáculo mais não é que uma forma tardia e desencantada dos contos de As Mil e Uma Noites e que estes constituem uma espécie de prelúdio oriental das atuais telenovelas que passam na TV. Contudo, se a televisão é realmente a nossa Xerazade, então provavelmente não haverá qualquer alegre escapatória às mil interações da iminência da morte.

O desaparecimento de um filho pequeno por rapto, que nunca mais voltou, para uma mãe, é muito pior do que se tivesse morrido. É o caso de uma mãe que ainda espera pelo filho 23 anos depois de ter desaparecido por rapto quando ainda tinha 6 anos de idade. A mãe está ainda desesperada, visível no seu fácies escavado. Como não pode ter a certeza de que o filho morreu, não é possível fazer o luto da perda definitiva. A incerteza é o pior que pode acontecer nestes casos. Não são poucos os que se matam por medo da morte incerta. O suicídio surge talvez como a medida mais radical para triunfar sobre a incerteza do futuro.

Nas últimas 24 horas morreram 256 pessoas de covid-19, na França. Número de novos casos será muito expressivo. Filas para testes no aeroporto de Lisboa esta tarde. As cheias no Brasil fazem 20 mortes na Baía. Duas barragens colapsaram. Milhares de famílias desalojadas. Na Catalunha foi decretado o recolher obrigatório por causa da covid. E alguns catalães protestam, quando por exemplo só têm 15 minutos para beberem uma sangria num bar. Em vigiar e punir Michel Foucault analisou em detalhe a feição totalitária das medidas disciplinares a quem é cerceada a liberdade. Proibir a movimentação de alguém sempre foi uma prerrogativa do poder patriarcal.

terça-feira, 21 de dezembro de 2021

Chi-Rho




Chi-Rho, é um monograma do nome de Jesus Cristo (cristograma) muito usado antes mesmo do tempo do imperador Constantino, e adquiriu grande popularidade depois que ele o adotou para o seu lábaro (estandarte militar usado pelos antigos romanos). O símbolo que forma o monograma é formado pela sobreposição das duas primeiras letras (iniciais) chi e rho - XP - da palavra grega "ΧΡΙΣΤΟΣ" (Cristo).

Conta a história que Constantino tivera a visão do Chi-Rho no céu quando estava a caminho da difícil batalha da Ponte Mílvio, onde o aguardava um exército maior e mais forte sob a liderança de Magêncio. E ouviu uma voz proclamar: "Por este sinal conquistarás". Constantino ordenou rapidamente que o Chi-Rho fosse pintado em todos os escudos dos soldados e em seu estandarte. O exército de Constantino ganhou a batalha. Há outra versão que diz que ele teve um sonho na noite anterior da batalha, e que alguém em seu sonho lhe disse para colocar o símbolo em seus escudos para enfrentar o inimigo.

Eusébio de Cesareia deu dois relatos diferentes dos acontecimentos. Em sua história da Igreja, escrita logo após a batalha, quando Eusébio ainda não tinha tido contacto com Constantino, ele não menciona nenhum sonho ou visão, mas compara a derrota de Maxêncio, afogado no Tibre, com o do faraó bíblico, e credita a vitória de Constantino à proteção divina. Num livro de memórias do imperador romano que Eusébio escreveu após a morte de Constantino (Sobre a Vida de Constantino, por volta de 337-339), uma aparição milagrosa é dito ter vindo na Gália muito antes da Batalha da Ponte Mílvio. Nesta versão posterior, o imperador romano estava ponderando os infortúnios que se abateram sobre os comandantes que invocaram a ajuda de muitos deuses diferentes, e decidiu buscar ajuda divina na próxima batalha do Único Deus. Ao meio-dia, Constantino viu uma cruz de luz imposta sobre o Sol. Anexado a ele, em caracteres gregos, estava o ditado "Τούτῳ Νěκα!" ("Com este signo vais conquistar!"). Não só Constantino, mas todo o exército viu o milagre. Naquela noite, Cristo apareceu para o imperador romano em um sonho e disse-lhe para fazer uma réplica do sinal que tinha visto no céu, o que seria uma defesa certa em batalha.

Eusébio escreveu no Vita que o próprio Constantino lhe havia contado esta história "e confirmou-a com juramentos" no final da vida "quando fui considerado digno de seu conhecimento e companhia". "Na verdade", diz Eusébio, "se mais alguém tivesse contado essa história, não teria sido fácil aceitá-la". Eusébio também deixou uma descrição do lábaro, o padrão militar que incorporou o sinal de Chi-Rho, usado pelo imperador Constantino em suas guerras posteriores contra Licínio.

Na imagem que se segue está representado no sarcófago de Domitila em Roma, século IV, o Chi-Rho envolvido por uma coroa de flores simbolizando a vitória da Ressurreição sobre a morte. Crucificação e Ressurreição estão intrinsecamente ligadas.




Depois de Constantino, o Chi-Rho tornou-se parte da insígnia imperial oficial. Ficou demonstrado que o Chi-Rho estava estampado nos capacetes de alguns soldados romanos. Moedas e medalhões cunhados durante o reinado do Imperador Constantino também traziam o Chi-Rho. No ano 350, o Chi-Rho começou a ser usado em afrescos e sarcófagos cristãos. Magêncio [278 - 312] ou Maxêncio o usurpador, filho de Maximiano, montou um exército entre 306-307 e conquistou Roma, que esperava ser proclamado césar- Parece ter sido ele o primeiro a usar o monograma Chi-Rho ladeado pelo alfa e pelo ômega. 

Em 2020, arqueólogos descobriram em Vindolanda, no norte da Inglaterra, um cálice do século V coberto de iconografia religiosa, incluindo o Chi-Rho. [Ver imagem abaixo]. Este achado lançou uma nova luz sobre um período menos compreendido do passado romano na Grã-Bretanha. Vindolanda foi um forte romano para forças auxiliares que guardava a Stanegate, uma importante estrada romana que ia do rio Tyne até Solway Firth, estuário que fica na fronteira entre Inglaterra e Escócia. Enterrado entre um prédio em escombros, agora conhecido por serem os restos de uma igreja cristã do século VI, eram 14 restos fragmentários de uma incrivelmente rara taça cristã ou cálice. Embora em condições muito degradadas devido à sua proximidade com a superfície do solo, cada fragmento do vaso foi encontrado coberto por símbolos levemente gravados, cada um representando diferentes formas de iconografia cristã da época. A combinação de tantas dessas gravuras e o contexto da descoberta fazem deste artefacto um dos mais importantes do seu tipo vindo do cristianismo primitivo na Europa Ocidental. É o único cálice parcial sobrevivente deste período na Grã-Bretanha e o primeiro artefacto desse género a vir de um forte na Muralha de Adriano.




As marcas parecem ter sido adicionadas, tanto para o exterior quanto para o interior deste copo, pela mesma mão ou artista e embora agora sejam difíceis de ver a olho nu, com o auxílio da fotografia especializada, os símbolos foram cuidadosamente gravados e o trabalho começou agora uma nova jornada de descoberta para desbloquear os seus significados. As gravuras incluem alguns símbolos bem conhecidos da igreja primitiva, desde o Chi-Rho, incluindo navios, cruzes e peixes, uma baleia, um bispo feliz, anjos, membros de uma congregação, cartas em latim, grego e potencialmente Ogam.


Condado de Champanhe





Condado de Champanhe foi uma entidade feudal, dependente do antigo Reino de França, cujos titulares tinham a consideração de um dos seis Pares da França primitivos, a mais alta consideração nobiliária do reino. O condado nasceu da fusão dos condados de Meaux e de Troyes, que até meados do século XII esteve dividido entre os herdeiros do conde Teobaldo IV de Blois. As regiões foram anexadas pelos condes de Vermandois, ao que se incorporaria, mais tarde, o Condado de Blois. Embora descrito apenas com o título de Conde de Troyes, Hugo I foi o primeiro a proclamar-se Conde de Champanhe, por volta do ano 1102.

Henrique I de Champanhe [1126 - 1181] - O "Liberal"
herdou a região que logo foi província de Champanhe enquanto que seus irmãos menores, Teobaldo V de Blois e Estêvão de Sancerre repartiram entre si as diferentes dependências que ficaram adscritas ao condado do Blois. Henrique I, em 1179, cria um código de leis para a região.

Filipe IV, o Belo [1268 - 1314], rei de França e de Navarra, conde de Champanhe, em 1284, casa com Joana I de Navarra, herdeira do Condado de Champanhe, dá-se a anexação do condado à coroa Francesa. Durante a guerra dos cem anos, em 1420, a região é sitiada e tomada pelo rei inglês Henrique V. Joana I de Navarra ou Joana I de Champanhe [1273 - 1305], foi rainha soberana de Navarra e condessa de Champanhe desde 1274, e rainha consorte de Filipe IV de França. Era filha do rei Henrique I de Navarra e de Branca de Artois.



Troyes

A corte do Conde de Champanhe, uma escola influente de estudos cabalísticos e esotéricos em Troyes, florescia desde 1070. Troyes, em 1128, via os Templários a serem oficialmente incorporados. Troyes permaneceu como o centro estratégico da ordem durante os dois séculos seguintes; e ainda hoje existe um bosque adjacente à cidade chamado Forêt du Temple. Em Troyes, surgiu um dos primeiros romances sobre o "Cálice" - possivelmente o primeiro -, escrito por Chrétien de Troyes. Em 1104, o conde de Champagne reuniu-se num conclave com nobres de alta linhagem, pelo menos um dos quais estava recém retornado de Jerusalém. Entre os presentes, havia representantes de algumas famílias - Brienne, Joinville e Chaumont. Também estava presente o soberano André de Montbard, um dos cofundadores da Ordem dos Templários e tio de São Bernardo.

Logo após o conclave, o Conde de Champanhe partiu para a Terra Santa e permaneceu lá quatro anos, retornando em 1118.  Ao retornar, ele imediatamente doou um pedaço de terra à Ordem Cisterciense, cujo eminente porta-voz era São Bernardo. Nesse pedaço de terra São Bernardo construiu a Abadia de Claraval, onde estabeleceu a sua própria residência e consolidou a Ordem Cisterciense. Meia dúzia de abadias foram construídas nos dois anos seguintes. Por volta de 1153, existiam mais de trezentas. São Bernardo, em pessoa, fundou várias. Este crescimento extraordinário coincide com o da Ordem do Templo, que nos mesmos anos se estava expandindo da mesma maneira. 



Abadia de Claraval, na região de Champanhe

Com São Bernardo, os cistercienses obtiveram ascendência espiritual sobre a Europa. Com Hugues de Payen e André de Montbard, os Templários obtiveram ascendência militar e administrativa sobre a Terra Santa, e tal ascendência se espalhou rapidamente pela Europa. Por trás do crescimento de ambas as ordens fulgurava a presença de tio e sobrinho, bem como a riqueza, a influência e o patrocínio do conde de Champagne. Estes três indivíduos constituem um elo vital. São como marcadores rompendo a superfície da história, indicando as ténues configurações de algum desígnio elaborado e oculto. Se tal desígnio realmente existiu, ele não pode ser atribuído apenas a estes três homens. Pelo contrário, deve ter envolvido muita cooperação de outras pessoas e uma grande e meticulosa organização. Organização talvez fosse a palavra-chave, pois era a organização comparável à de uma Ordem. 

Bernardo de Claraval [1090 - 1153] em 1128 participou no Concílio de Troyes, que delineou a regra monástica que guiaria os Cavaleiros Templários que rapidamente se tornou o ideal de nobreza utilizado no mundo cristão. Depois da morte do papa Honório II, em 1130, Bernardo foi instrumental para reconciliar a Igreja durante o chamado "cisma papal de 1130", que só terminaria definitivamente com a morte do antipapa Anacleto II em 1138. No ano seguinte, Bernardo ajudou a organizar o 2º Concílio de LatrãoEm 1141, Inocêncio convocou o Concílio de Sens para tratar da denúncia de Bernardo contra Pedro Abelardo. Com bastante experiência em curar cismas na Igreja, Bernardo foi em seguida recrutado para ajudar no combate às heresias que grassavam no sul da França. Na Terra Santa, depois da derrota cristã no cerco de Edessa, o papa encarregou Bernardo de organizar a 2ª Cruzada, cujo fracasso seria depois considerado parcialmente culpa sua.

Há lendas que associam São Bernardo a Portugal. E Agostinho da Silva era um fã de São Bernardo. Diz-se, por exemplo, que o próprio Bernardo teria vindo a Portugal quando se estabeleceu a Ordem de Cister no Mosteiro de São João de Tarouca, em 1142), e até que teria estado na Abadia de Alcobaça. Ora, sabe-se que Bernardo nunca saiu para muito longe da Abadia de Claraval na região de Champanhe durante cerca de quarenta anos lá enclausurado. Seja como for, e
studos recentes dão como certo que São Bernardo está associado à independência de Portugal através dos seus cordelinhos de longo alcance. Parece ter sido por sua mediação (ou pelo menos, por mediação da sua Abadia) que o Papa enviou um delegação que reconheceu, senão a independência nacional, pelo menos o título de Ducado, sendo o duque - Afonso Henriques.  

Em 1146, notícias alarmantes para os cristãos começaram a chegar da Terra Santa. A maior parte do Condado de Edessa havia caído nas mãos dos turcos seljúcidas depois da vitória muçulmana no Cerco de Edessa. O Reino de Jerusalém e os demais Estados estabelecidos pelas Cruzadas estavam agora à beira de um desastre similar. Diversas embaixadas, vindas do Reino Arménio da Cilícia, chegaram Roma para pedir ajuda ao Papa. Na Germânia estava-se no tempo de Frederico Barba Ruiva (Frederico I do Sacro Império Romano Germânico).
 O papa Eugénio foi pessoalmente à França depois para reforçar a pregação e, assim como já havia acontecido na cruzada anterior, a pregação deu início a uma série de ataques à população judaica da região. Um fanático monge francês chamado Radulphe foi, aparentemente, o responsável por muitos massacres em Colónia, Mainz e Worms. Diziam que os judeus não estariam contribuindo financeiramente para o resgate da Terra Santa.

Os últimos anos de Bernardo foram de grande tristeza por causa do fracasso desta cruzada, que, por ter sido pregada principalmente por ele, acabou tornando-se também um fracasso pessoal. Ele considerava que era seu dever enviar um pedido de desculpas ao Papa e ele foi inserido na segunda parte do "Livro de Considerações". Nele, Bernardo explica como os pecados dos Cruzados teriam sido responsáveis pelo desastre. Quando iniciou a sua tentativa de convocar uma nova cruzada, Bernardo tentou desassociar o seu nome completamente da Segunda Cruzada.

Em 1153, um nobre da região - simpatizante dos cátaros tornou-se o sexto grão-mestre da Ordem do Templo. Seu nome era Bertrand de Blanchefort [1109 - 1169] , e seu lar ancestral se situava num pico de montanha a poucos quilómetros de Béziers e de Rennes-le-Château. Bertrand de Blanchefort, que presidiu a Ordem de 1153 até 1170, foi provavelmente o mais importante de todos os grão-mestres templários. Antes de seu comando, a hierarquia e a estrutura administrativa da Ordem eram nebulosas. Foi Bertrand quem transformou a organização dos Templários na instituição hierárquica soberbamente eficiente, bem organizada e disciplinada que ela veio a ser. Foi Bertrand quem lançou os Templários na alta diplomacia e na política internacional. 

Qualquer que tenha sido sua misteriosa missão, os Templários gozavam de imunidade especial. De todos os templários da França, foram os que permaneceram sem ser molestados pelos senescais de Filipe, o Belo, em 13 de outubro de 1307. Naquele dia fatídico, o comandante do contingente de templários em Béziers era o senhor de Goth. E o arcebispo de Bordéus - peão vacilante do rei Filipe, antes de tomar o nome de papa Clemente V - era Bertrand de Goth. Além do mais, a mãe do novo pontífice era Ida de Blanchefort, da mesma família de Bertrand de Blanchefort. 
O Obituário de Reims dá sua morte em 2 de janeiro de 1169. Ele foi feito prisioneiro depois que o rei Balduíno foi derrotado em Banyas em 1157. A derrota permitiu que uma emboscada fosse marcada para Blanchefort, que havia dispensado seus soldados francos após a batalha cessar. Ele foi mantido em cativeiro por três anos em Alepo antes de ser libertado para o Imperador Bizantino Manuel I Comnenus, quando o imperador fez as pazes com Nur ad-Din.

Bertrand acompanhou o rei Amalrico I durante a expedição ao Egito em 1163. A expedição terminou em fracasso, apesar dos números consideráveis que os cristãos poderiam usar. Bertrand se recusou a participar de uma segunda expedição em 1168, já que grandes perdas eram quase certas. Ele foi sucedido por Filipe de Milly. Blanchefort pediu ao Papa que usasse o título de "Mestre pela Graça de Deus", que se encaixava na posição dos Templários como estrelas em ascensão na igreja, um favor que Roma alegremente concedeu. Suas reformas internas foram mais importantes no entanto. Ele escreveu os "Retraits", que estabeleceram estrutura dentro da ordem. Isso significava que os cavaleiros tinham papéis e protocolos mais claros. Ele também estabeleceu verificações dentro das lideranças da ordem, o que impediu que futuros Grão Mestres decidissem a direção dos Templários, sem o apoio dos cavaleiros. O seu trabalho na criação de papéis de negociação dentro da ordem também vale a pena notar. Após a fracassada expedição ao Egito, foram os Templários que ajudaram a elaborar um tratado de paz.

Em 13 de outubro de 1307, os Templários em toda a França foram capturados pelos senescais de Filipe, o Belo. É uma afirmação que não encerra toda a verdade. Os Templários, de pelo menos uma preceptoria,  - a preceptoria de Béziers, deslizaram sorrateiramente sob o olhar da rede armada do rei. 

Lenda da Cabração




Cabração é uma antiga freguesia portuguesa do concelho de Ponte de Lima, com 16,43 km² de área e 118 habitantes (2011). Pela última Reorganização Administrativa do território das freguesias, de acordo com a Lei nº 11-A/2013 de 28 de janeiro, esta freguesia juntamente com a freguesia de Moreira do Lima passou a constituir a freguesia de Cabração e Moreira do Lima, com sede em Moreira do Lima.




Cabração é terra antiquíssima como se documenta pelo conhecimento que se tem da existência de um povoado castrejo pré-romano e do Convento da Carrapachana cuja localização não foi ainda possível determinar com absoluta segurança, apesar dos vestígios de ruínas no Outeirinho e na Costa. Mas, a humildade da terra não permitiu despertar até ao presente o interesse dos arqueólogos.

Não obstante, aqui nasceram algumas das mais ilustres figuras de Ponte de Lima como foi o Dr. Augusto Joaquim Alves dos Santos que, para além de eminente pedagogo, teólogo, escritor, político e cientista, foi o introdutor do estudo da Psicologia em Portugal, tendo na Universidade de Coimbra criado um laboratório, atualmente transformado em museu que ostenta o seu nome.




Rodeada de floresta e sem iluminação pública até há escassas quatro décadas, Cabração viveu ao longo de séculos isolada na encosta da serra, fechada sobre si mesma, temerosa do bulício que ocorria à sua volta. De importantes acontecimentos que vieram a ficar na História chegava, por vezes, o som longínquo que ecoava para além dos montes, umas vezes do lado da Galiza quando a Espanha esteve a ferro e fogo, outras mais a sul quando os realistas proclamaram em Viana do Castelo a restauração do regime monárquico. Na Cabração, apenas aqui foi hasteada a bandeira monárquica por essa altura, na casa que foi dos Carmo.

padre Miranda foi o último pároco que ali exerceu tal ofício. Era extraordinária a afluência diária de visitantes à localidade. O atendimento era geralmente feito durante a manhã até à hora de almoço. E, no exterior da capela de Nossa Senhora do Azevedo, podia ver-se uma longa fila de automóveis que por vezes chegava às três dezenas. A pequena capela enchia-se por completo de pessoas que invariavelmente recorriam aos serviços do gentil pároco. Este procurava saber os pecados que condenavam a “alma penada” a encostar-se à criatura que atormentava. E, com umas valentes bofetadas, sempre acompanhadas de algumas preciosidades do nosso mais requintado vernáculo, lá tratava de enviar a alma atormentada para “o alto do monte onde só ouvisse cantar o mocho”…

padre Manuel Lopes Miranda faleceu em 26 de Janeiro de 1978 e foi sepultado em jazigo de família, em Barcelos, no cemitério paroquial de Cristelo, sua terra natal. Com ele, a prática do exorcismo extinguiu-se na freguesia de Cabração. Resta na memória dos seus habitantes, sobretudo dos menos jovens, a forma como o mesmo era tratado – O “Pintinho”!




É de um Almanaque de Ponte de Lima que foi retirada a "Lenda da Cabração", escrita pelo Conde de Bertiandos em 1923: "Cabras são Senhor . . .".
Após o recontro no Rego do Azar, quis D. Afonso Henriques deambular pelas montanhas próximas, caçando ursos e javalis. Convidou alguns poucos ricos-homens e infanções. Quando estavam no sítio que hoje se chama Cabração, apareceu muito açodado o Capelão das freiras de Vitorino das Donas, que à frente de moços com cestos pesados andava desde manhã à busca do real monteador, com um banquete mandado do Mosteiro. Em boa hora vinha a refeição. Estendeu-se na relva uma toalha de linho e sentados em troncos de carvalho cortados à pressa, começou o jantar. Alegre ia correndo.

D. Nuno, o Soares, que o chamavam assim para o diferençar de seu avô, a quem chamavam D. Nuno o Velho, e cujas proezas ainda se recontavam em toda a terra da Cerveira, começou a trinchar um leitão assado. "Parece-me que tens mais jeito para matar infiéis", – disse-lhe o Rei brincando. "Ai Real Senhor, antes eu ficasse morto com os últimos que matei, que desde essa refrega não passo um dia que me não lembre do momento em que o bom cavaleiro Gonçalo da Maia exalou o derradeiro suspiro encostado ao meu peito."

"Quisera eu ouvir da tua boca essa heroica morte do Lidador", interrompeu o Monarca triste, mas curioso. E o Senhor da Torre do Loivo obedeceu, com voz pausada e lágrimas nos olhos. Ia escurecendo o dia e era tão esquisita a coincidência de estar ali um punhado de homens, senão solenizando um aniversário, festejando uma vitória, que talvez um pressentimento apertasse o coração dos guerreiros.

Dos lados da Galiza… Atentos, escutavam silenciosos a narração. De golpe ergueu-se o Espadeiro e olhou fito para as bandas da Galiza. "Que examinas D. Egas?" – perguntou o Príncipe. "Vejo além muito ao longe um turbilhão de pó, que se aproxima. São talvez inimigos que procuram encontrar-nos descuidados." De facto vagalhões de poeira negra encobriam multidão fosse do que fosse. O ruído do tropel era cada vez mais distinto.

"Sejamos prestes" – gritou o Rei, cingindo o seu enorme espadão. Todos fizeram o mesmo. "Cavalgar, cavalgar". Já não era outra a voz que se ouvia, enquanto cada um se dirigia para o lugar onde prendera o seu cavalo. O capelão olhou, escutou e sentou-se começando a comer aqui e além os deliciosos postres e bebendo aos goles pachorrentos um licor estomacal, resmungando… –"Deixá-los ir que voltam breve. Eu era capaz de apostar todo o mel deste monte, em como sei que inimigos são aqueles. E mais dizem que é mel igual ao do Himeto. A história do Lidador é que lhes esquentou a cabeça."

“Cabras são…” Pouco depois voltavam os monteadores rindo à gargalhada. – "Cabras são": – disse o rei ao apear-se, e, dirigindo-se ao padre: – "Bem fizestes vós que não bulistes". E D. Afonso tomando um púcaro e enchendo-o de vinho, acrescentou – "Bebei todos, que estais muito quentes e podeis ter um resfriado, e dizei-me depois se não valeu a pena o engano para nos refrescarmos agora com este delicioso néctar. Capelão, quero comemorar o caso de confundir rebanho de cabras com mesnada de leoneses e beneficiar o convento para vos honrar a vós que fostes, não sei se mais perspicaz, se mais valente do que nós debicando mui sossegadamente em todos os doces. Vou coutar aqui uma terra, para que as boas monjas possam de vez em quando apanhar bom ar da montanha e rir-se de nós." Riscou-se o couto e nessa noite os cavaleiros dormiram na ermida da Senhora de Azevedo. O dito do Rei “Cabras são” corrompeu-se em Cabração.

Os Citas segundo Heródoto




Os Citas, na Antiguidade, e os Sármatas, povo com o qual os Citas tinham forte parentesco, dominaram a estepe que ia do Ponto ao Mar Cáspio. No tempo do Império Bizantino os escritores gregos usaram o termo "citas" como arcaísmo para denotar os povos nómadas que encontravam. Depois da tomada de Babilónia, Dario marchou contra os Citas. A Ásia era, então, rica e muito povoada, encontrando-se em situação florescente. O soberano desejava vingar-se dos Citas, que, tendo invadido a Média, bateram as tropas que a eles se opuseram e entraram a violar. Esse povo tinha dominado na Ásia Superior durante vinte e oito anos. Havia ali penetrado perseguindo os Cimérios, arrebatando o império aos Medos.

Depois de uma ausência de vinte e oito anos, conta Heródoto, os conquistadores citas quiseram retornar à pátria; mas para voltar à Cítia não encontraram menores dificuldades do que as que tinham tido para dominar os Medos. Um exército numeroso erguera-se diante deles, impedindo-lhes a entrada; pois enquanto estiveram ausentes, as suas mulheres, entediadas pela longa espera, entregaram-se aos escravos, daí resultando toda uma nova população. Desses escravos e de mulheres citas nasceram muitos jovens, que, tendo conhecimento da sua origem, marcharam ao encontro dos Citas que regressavam da Média. Começaram por dividir o país em duas partes, cavando um largo fosso que ia dos montes Táuricos ao Palos-Meótis, abrangendo vasta extensão. Foram, em seguida, acampar diante dos Citas que procuravam penetrar no país, aos quais ofereceram combate. Houve entre eles várias escaramuças, sem que os Citas pudessem conseguir a menor vantagem.



“Companheiros, que estamos a fazer? — gritou um dos Citas no meio da peleja — se esses homens matam um dos nossos, diminuímos de número; se matamos um deles, diminuímos o número de nossos escravos. Abandonemos os arcos e dardos e marchemos contra eles armados do chicote com que fustigamos nossos cavalos. Enquanto nos virem de armas na mão considerar-se-ão nossos iguais; mas se em lugar de armas nos virem de chicote, lembrar-se-ão de que são nossos escravos, e apercebendo-se da sua baixa origem, não mais ousarão resistir-nos”. A sugestão foi aceita por todos. Os escravos, atemorizados, puseram-se logo em fuga, sem mais pensar em combater. Assim regressaram os Citas à pátria, depois de haverem dominado a Ásia e terem sido dali expulsos pelos Medos. Foi para vingar-se dessa invasão, que Dario levou contra eles poderoso exército. É isso o que dizem os Citas com relação a si próprios e ao seu país. Todavia, os gregos que habitam o litoral do Ponto Euxino dizem que Hércules, conduzindo as boiadas de Gérion chegou ao país hoje ocupado pelos Citas e então deserto. Gérion morava além do Ponto Euxino, numa ilha denominada Erítia pelos gregos e situada perto de Gades, no oceano, adiante das colunas de Hércules. Acreditam esses gregos que o oceano começa a leste e envolve a terra com as suas águas. Mas, nenhumas provas apresentam, em apoio de tal crença.

Há ainda sobre o mesmo assunto outra versão, que de muito boa vontade passo a relatar. Os Citas nômades habitantes da Ásia, batidos pelos Masságetas, com os quais entraram em guerra, atravessaram o Araxo e foram ter à Ciméria — pois o país hoje ocupado pelos Citas pertenceu outrora, ao que dizem, aos Cimérios. Estes, vendo-os invadir suas terras, discutiram a medida a tomar ante tão grave contingência. As opiniões se dividiram em extremos opostos, sendo as dos reis aceitas como as melhores. O povo achava que deviam retirar-se para não se exporem aos azares de um combate contra tão numeroso grupo de invasores, opinando os reis que se desse batalha aos que vinham atacá-los. O povo não queria ceder ante o parecer dos reis, nem estes ante o dos seus súditos. Estes últimos preferiam a desonra à eventualidade de se verem massacrados; aqueles achavam preferível morrer na pátria do que fugir com a população. Por um lado, consideravam as vantagens que haviam desfrutado até ali; por outro lado, previam os males que lhes adviriam fatalmente se abandonassem a pátria.

Como ambos os lados se mantivessem irredutíveis em suas opiniões, a discórdia agravou-se entre eles. Sendo os partidários de uns e de outros equivalentes em número, não tardaram a decidir a questão pela força. Os que pereceram nessa ocasião foram enterrados, primeiro o nome de Agatirso; ao segundo, o de Génolo, e ao mais jovem, o de Cíntio. Lembrou-se, então, das ordens de Hércules e cumpriu-as. Os dois mais velhos, não tendo forças para dobrar o arco, foram banidos do lugar, indo estabelecer-se em outro país. Cíntio, o mais moço, fez o que o pai havia determinado e permaneceu na sua pátria. É, pois, de Cíntio, filho de Hércules, que descendem todos os reis dos Citas, e até hoje esse povo traz presa ao talabarte uma taça como reminiscência da que Hércules trazia pendente do seu, por ocasião da sua aventura naquele país. É assim que os Gregos habitantes do litoral do Ponto Euxino relatam esse fato.

Transpondo-se esse rio, encontra-se primeiramente a Hiléia, na direção do litoral. Acima ficam os Citas agricultores. Os Gregos que vivem às margens do Hípanis chamam-nos Boristênidas, mas denominam a si próprios Olbiopólitos. O país desses Citas agricultores, que fica a três dias de viagem do lado do levante, estende-se até o rio Pantícapes. Atravessando-se essa região chega-se a vastos desertos, além dos quais vivem os Andrófagos, que nada têm de comum com os Citas. Ao norte do território por eles habitado existem apenas desertos — pelo menos não se sabe da existência de nenhum povo ali. A leste da região ocupada pelos Citas agricultores e para lá do Pantícapes vivem os Citas nômades, que não lavram a terra. Toda a região, com exceção da Hiléia, é desprovida de árvores. Os Citas nômades ocupam, a leste, uma extensão correspondente a quatorze dias de jornada até o rio Gerro.

Em toda a região de que acabo de falar, o Inverno é tão rude, e o frio tão intenso pelo espaço de oito meses, que espalhando-se água pela terra não se faz lama, senão quando se acende fogo. O próprio mar gela, assim como o Bósforo Cimeriano; e os Citas da Quersonésia passam com seus exércitos sobre o gelo, conduzindo carroças, para irem ao país dos Sindas. O Inverno mantém-se intenso durante oito meses, sendo que os outros quatro últimos meses também são frios. O Inverno nessas paragens é, aliás, muito diverso do dos outros países. Chove tão pouco durante a estação, que se pode dizer ser ela de completa seca; e no Verão não cessa de chover. Não troveja na época em que costuma trovejar em outros lugares; mas as trovoadas são muito frequentes no Verão; e se as ouvem no Inverno, encaram o fato como algo fenomenal. 

Os Délios falam mais detalhadamente sobre o referido povo. Contam que as oferendas dos Hiperbóreos lhes vinham envoltas em palha de trigo. Passando pelas mãos dos Citas e transmitidas de povo a povo, essas oferendas alcançavam terras distantes, chegando até o Adriático, a ocidente, de onde eram enviadas para o sul. Os Dodoneus eram os primeiros Gregos a recebê-las. Dali desciam até o golfo Malíaco, de onde passavam para a Eubéia, e, seguindo de uma cidade para outra, iam ter a Cariste. Dali, sem tocar em Andros, os Caristeus levavam-nas para Tenos, de onde os Teneus as transportavam para Delos. A dar crédito aos Délios, era assim que essas oferendas chegavam à sua ilha. Acrescentam eles que, nos primeiros tempos, os Hiperbóreos enviavam as oferendas por intermédio de duas virgens — Hiperoquéia e Laodicéia; que, para segurança dessas jovens, os Hiperbóreos faziam-nas acompanhar por cinco cidadãos, a que atualmente se rendem grandes homenagens em Delos sob o nome de Pérferos; mas que, os Hiperbóreos, não os vendo regressar e ante a desagradável possibilidade de virem a perder muitos outros de seus delegados nessa missão, resolveram, depois de certo tempo, levar as oferendas até as fronteiras, envoltas em palha de trigo, de onde eram enviadas aos vizinhos mais próximos, a quem solicitavam remetê-las a outra nação. Dessa maneira, as oferendas iam passando, segundo os Délios, de país a país, até chegarem ao seu ponto de destino.

Os Citas sacrificam em todos os lugares sagrados, procedendo da seguinte maneira: a vítima fica de pé, com os pés dianteiros amarrados. O que deve sacrificá-la coloca-se atrás dela e puxa a corda que lhe prende os pés, fazendo-a tombar, enquanto invoca o deus ao qual vai imolá-la. Em seguida, amarra uma corda em torno do pescoço do animal, apertando-a com auxílio de um bastão até estrangulá-lo. Não se acende fogo e nem fazem libações. Estrangulada a vítima, o oficiante esfola-a, esquarteja-a e prepara-se para cozinhá-la. Como não há lenha na Cítia, procedem da seguinte maneira para cozinhar a vítima: depois de esquartejá-la, retiram toda a carne que envolve os ossos e colocam-na em caldeiras, se as possuem. Essas caldeiras se assemelham muito às crateras de Lesbos, com a diferença de serem bem maiores. Debaixo delas acendem o fogo com os ossos da vítima. Se, porém, não possuem caldeiras, colocam toda a carne, com água, no ventre do animal, e queimam os ossos por baixo(6). Os ossos fornecem um bom lume, e o ventre mantém muito bem a carne. Assim, os animais sacrificados servem para cozinhar a si próprios. Quando tudo está cozido, o sacrificador faz o oferecimento dos primeiros bocados de carne e de vísceras atirando-os para a frente. Os Citas sacrificam várias espécies de animais, principalmente cavalos.

Quanto aos costumes que observam na guerra, vale mencionar os seguintes: o guerreiro cita bebe o sangue do primeiro homem que consegue abater, corta a cabeça a todos os que mata em combate e leva-as ao seu soberano. Quando apresenta a este a cabeça de um inimigo, pode compartilhar dos despojos da luta; em caso contrário, lhe é negado esse direito. Para esfolar a cabeça do inimigo abatido, o Cita faz primeiramente uma incisão em torno da mesma, na direção das orelhas, e, segurando-a pelo alto, puxa a pele, arrancando-a. Em seguida, limpa a pele tirando-lhe toda a carne, depois do que fricciona-a nas mãos para amaciá-la. Tendo-a assim preparado, dela se serve como guardanapo e amarra-a no bridão do cavalo. Isso constitui um título de honra. O Cita que possui tais guardanapos é considerado valente e destemido, e quanto maior o número desses troféus, maior é a consideração de que goza entre os seus. Muitos cosem os fragmentos de pele humana, como as capas dos pastores, e fazem delas vestuários. Outros também esfolam até as unhas a mão direita do inimigo, fazendo da pele bainha para as aljavas. A pele humana é, realmente, espessa e brilhante, e de todas a mais notável pela brancura. Outros há, ainda, que esfolam homens inteiros, e depois de espichar a pele em pedaços de madeira, colocam-na sobre seus cavalos.

Se o rei dos Citas cai doente, manda buscar três dos mais famosos adivinhos que praticam a arte da maneira que acabo de expor. Convidados a explicar, servindo-se dos seus dons, a razão do mal e o meio de combatê-lo, eles geralmente declaram pele de boi, como o douram por dentro, dele servindo-se, à semelhança de uma taça, para beber. Fazem o mesmo com a cabeça dos parentes próximos se, depois de alguma disputa com eles, levam a melhor. A decisão da contenda tem de ser feita perante o rei. Se um estrangeiro de categoria visita o país apresentam-lhe esses crânios, relatando-lhe como venceram aqueles a que eles pertenceram, ainda que se trate de parentes, constituindo isso motivo de vaidade e classificando tal procedimento como ações de mérito. Cada governador cita dá anualmente um festim em seu distrito ou província, no qual é servido vinho misturado com água, numa cratera. Todos os que se podem vangloriar de haverem matado inimigos em combate bebem desse vinho; os que nada fizeram de semelhante estão privados desse direito, e permanecem à parte, em situação sumamente humilhante. Os responsáveis pela morte de grande número de inimigos bebem em duas taças ao mesmo tempo.

O rei da Cítia manda matar os filhos dos condenados à morte, poupando, porém, as filhas. Quando os Citas estabelecem um pacto, eis como procedem: despejam vinho numa grande taça de barro, e os contratantes, fazendo pequenas incisões no corpo com uma faca ou espada, vertem ali um pouco do seu próprio sangue, depois do que mergulham na taça uma cimitarra, flechas, um machado e um dardo. Terminada a cerimônia, fazem longas preces e bebem parte do conteúdo da taça, e depois deles, as pessoas presentes de mais alta categoria, uma a uma. Os túmulos dos reis citas acham-se no país de Gerro, no ponto em que o Borístenes começa a tornar-se navegável. Quando morre um soberano cita, abrem ali um grande fosso quadrado para receber o cadáver. O corpo do falecido é untado com cera, e o ventre, depois de aberto e limpo, enchem-no de pedra esmigalhada, de essências e de sementes de aipo e de anis, recosendo-o em seguida. Feito isso conduzem o corpo num carro para outra província, onde os habitantes, à maneira dos Citas reais, cortam uma parte da orelha, raspam o cabelo em torno da cabeça, fazem incisões nos braços, fendem a fronte e o nariz e passam flechas através da mão esquerda. Dali, o corpo é levado, ainda de carro, para outra província, acompanhado pelos habitantes daquela por onde passou em primeiro lugar. O soberano percorre assim, depois de morto, todas as nações submetidas ao seu domínio, até chegar ao país dos Gerroneus, na parte extrema da Cítia, onde o colocam na sepultura já preparada, sobre um leito de verdura. Lanças à guisa de estacas são fincadas em torno do corpo, sobre as quais são colocadas peças de madeira coberta com galhos de salgueiro. No espaço vazio deixado no fosso acomodam os corpos estrangulados de uma das concubinas do rei, de um escudeiro, de um cozinheiro, de um pajem, de um dos ministros reais, de um dos servidores, de cavalos, enfim, as premissas de todas as riquezas do soberano, inclusive taças de ouro — os Citas não conhecem nem a prata nem o cobre. Isso feito, enchem de terra o fosso e erguem, trabalhando por turnos, um cômoro elevado sobre a sepultura.

A barbárie sob a lei do pêndulo





Cada indivíduo é virtualmente inimigo da civilização. A civilização é algo que foi imposto há milénios por uma minoria a uma maioria a ela contrária. Assim se insere a contestação às regras de contenção da propagação do vírus da pandemia covid-19 que tem ocorrido na maior parte das capitais dos países supostamente mais civilizados do mundo. Essas pessoas, subjugadas pelas pulsões mais profundas que se possa imaginar, vêm para as ruas das cidades manifestar-se contra as medidas governamentais suportadas na ciência, provocando todo o tipo de desacatos que as polícias tentam travar com muito baixa eficácia.

Porque será que isso acontece? É imputável a duas circunstâncias amplamente difundidas entre os cidadãos: a submissão às pulsões hedonísticas do gozo do prazer; e o desamor ao trabalho. Há uma ineficácia tremenda dos argumentos contra as paixões do corpo. Desde os tempos de Aristóteles que os seres humanos se distinguem das bestas e dos anjos pelo facto de só poderem existir no interior de uma pólis, esse antigo equivalente/arquétipo da ideia moderna de “sociedade. Depois Thomas Hobbes inseriu no senso comum da era moderna uma versão atualizada, ou modernizada, da perceção aristotélica, ao assegurar que, sem coação exercida a partir de cima - homo homini lupus est, (o homem é o lobo do homem) - o homem está condenado a uma vida horrenda, breve e brutal. E onde há coação, isto é, onde as pessoas se veem obrigadas a manter um comportamento diferente daquele que suas inclinações naturais ditam, há insatisfação e dissensão, na maior parte do tempo sufocados, reprimidos ou desviados, mas evidentes de vez em quando.

Há um preço a pagar pelo homem se ter emancipado da existência bestial, por haver obtido aquela segurança confortável e reconfortante que somente o poder da sociedade consegue proporcionar. Se se quer uma coisa, é preciso perder outra coisa. A vida civilizada é um contrato social. O que os indivíduos cedem na transação é uma quantidade nada pequena de satisfações que seus instintos os exortariam a buscar, e que eles buscariam se nada lhes fosse proibido ou impedido pela força. Em troca, eles ganham uma medida considerável de segurança contra os males e os perigos que provêm da natureza, neste caso de uma insignificante forma de quase vida que damos pelo nome de vírus.

Mas nada pode ser considerada solução definitiva para o dilema de equilibrar segurança e liberdade – dois valores igualmente indispensáveis, mas obstinadamente incompatíveis. Uma solução de compromisso, com o subsequente armistício, sempre temporário, sempre até ao próximo aviso, sempre um espinho cravado no corpo das relações entre o indivíduo e a sociedade, que ao longo da história tem oscilado sempre como um pêndulo: ora uma tentação a embarcar em rebeliões anárquicas; ora em golpes de Estado autocráticos/totalitários. Depois de chegar a uma das extremidades, volta a iniciar um outro combate, outra rodada. Outros diretos, outros deveres.

A eutopia, um bom lugar, onde a segurança e a liberdade estariam perfeitamente equilibradas, sem causar insatisfação nem dissensão, é uma utopia. A civilização é um dom ambíguo, que suscita impulsos ambivalentes: é irremediavelmente uma bênção mesclada com uma maldição. A civilização, tudo aquilo em que a vida humana se eleva acima de suas condições animais, e se distingue da vida animal, não pode prescindir da coerção, tampouco pode existir sem gerar resistência contra si mesma.

Não há um caminho benigno, fácil de percorrer e à prova de danos colaterais, que leve as massas a obedecerem às normas da vida civilizada, sem que tenham de passar mais uma vez pelo estado de barbárie. Incerteza, insegurança e desproteção - depois da queda do Muro de Berlim, e a seguir a queda das Torres Gémeas em Nova Iorque - passaram a ser, de longe, o pior mal da civilização atual. O pêndulo dos valores volta a mover-se em sentido contrário, de forma muito acelerada.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

Terra Santa


Podíamos dizer Palestina como se diz hoje, mas em 163 a.C. esse nome referia-se a uma pequena faixa junto ao Mediterrâneo que pouco mais era do que é hoje a faixa de Gaza. Portanto, Palestina, nem sequer é mencionada no Novo Testamento. Deriva da palavra grega 'Philistia'  que os gregos usavam para se referirem a uma região próxima da Judeia. Com o tempo, Philistia passou a ser Palestina, para designar toda a região de Canaã. Esta região vai das montanhas da Síria, a Norte, até às estepes do deserto do Negueve a Sul. E na sua largura vai do Mediterrâneo até ao deserto da Arábia. O mapa da região dessa época que é apresentado aqui, corresponde aproximadamente ao primeiro século com a configuração geopolítica dada pelo Império Romano. 
Precisamos entender todo o processo histórico, dentro da configuração territorial romana para chegarmos à Palestina do primeiro século da presente era. 




Depois de Alexandre Magno este território ficou incluída na região Mesopotâmica/Ásia Central, sob o governo dos Selêucidas que governavam a Síria. O Egito ficou sob a alçada dos Ptolemeus. Assim, o território onde é hoje a Palestina ficou num espaço disputado entre os Ptolemeus e os Selêucidas. Sabemos que a dinastia Selêucida na Síria foi de várias formas mais agressiva que a dos Ptolemeus. Em certas épocas sob Antíoco III (223-187 a. C.), o seu reino abarcou a Arménia, a Pártia, e um pouco da Índia. Já a dinastia dos Ptolemeus era mais tolerante com a vida cultural e religiosa, em especial com os Judeus.

Os Selêucidas trouxeram grande desconforto para a Palestina, sobretudo a partir do governo de Antíoco Epifânio, que invadiu Jerusalém, 143 anos depois de Seleuco e seus sucessores ter começado a reinar na Síria. Nesse período, muitos judeus incorporaram a cultura helénica às suas práticas religiosas e sociais, especialmente entre a “nobreza alta de Jerusalém”. Entre 175 e 163 a. C., estes judeus helenizados, cujos interesses eram prejudicados pelas regulamentações detalhadas da Torah, romperam com as instituições tradicionais. Encorajados por Antíoco, fundaram em Jerusalém uma polis no estilo grego, que completaram com um ginásio e um conselho dominado pelos nobres não sacerdotais da família de Tobias. Este desiderato alcançou o seu clímax em 167 a. C., quando Antíoco demoliu as muralhas da cidade de Jerusalém e construiu uma nova fortaleza - Acra - para a guarnição síria. Inclusivamente estabeleceu-se no próprio Templo um culto dedicado ao deus grego - Zeus, e Antíoco publicou um decreto proibindo a prática da religião judaica na Judeia. Os tradicionalistas responderam com revolta armada. Sob a liderança de uma família de ricos sacerdotes rurais - os Macabeus - fizeram guerra aos Selêucidas que durou vinte anos. Em 164 a. C., Judas Macabeus abateu o culto de Zeus, que viera a ser conhecido por ‘abominação da desolação’. Ficou assim restabelecido o culto tradicional dos judeus, evento que ainda hoje se celebra no feriado da Hannukah.

Esse momento da história ganha contornos marcantes com a aproximação aos Romanos por iniciativa dos Macabeus. Com a vitória dos Hasmoneus, Judas Macabeu é nomeado sumo sacerdote. Os Romanos, que tinham grande interesse na região, até porque significava o livre acesso ao Egito, e com esse horizonte em mente, estabeleceram o primeiro tratado com a dinastia dos Macabeus. O tratado era amplamente favorável aos Macabeus e oferecia a segurança que precisavam no ambiente hostil da dinastia dos Selêucidas. O ano de 142 a.C. marca o início da independência da Judeia. Com o estabelecimento da família dos Macabeus, é definida uma dinastia vitalícia na Judeia, os Hasmoneus, que vai permanecer até ao ano 63 a.C. 
Com o apoio de Roma, os Hasmoneus vão ampliar continuamente o território, anexando a Idumeia (região dos árabes), cidades no litoral do Mediterrâneo, e a região de Decápolis (cidades de cultura helenizada). A geopolítica hasmoneia era baseada especialmente na imposição do Judaísmo e na remoção da cultura grega, abolindo as instituições típicas como o ginásio e os templos pagãos. Os traços de corrupção e degeneração foram-se evidenciando na dinastia hasmoneia, até que em 63 a.C. o general Pompeu entrou em Jerusalém, sitiou e conquistou a área do Templo, provocando um banho de sangue. Entrou e profanou o Santo dos Santos, assumindo a Judeia como Estado vassalo de Roma, sob a fraca autoridade do sumo sacerdote Hircano II, do qual tirou o título de rei.

A anexação da Idumeia e a ligação da família Herodes à família dos Hasmoneus viabilizaram a introdução dos Herodes no governo da região. Os Herodes possuíam boas relações com os Romanos, devido aos serviços militares prestados pelos Herodes quando Jerusalém foi invadida pelos Partos, sendo reassumida posteriormente por Herodes, apoiado pelo governador da Síria. Dessa forma, a família Herodes conseguiu os auspícios dos Romanos em 43 a. C, sendo Herodes declarado como rei de uma Judeia que abarcava Galileia, Pereia e Samaria. Num futuro próximo, Herodes vai exercer o controlo de numerosas cidades gregas da costa do Mediterrâneo, e vai distribuir a população da Judeia, reduzindo o excesso de população no território judaico original. 

Quando foi conquistada por Pompeu, as terras dos judeus não se tornaram, imediatamente, uma unidade administrativa do Império Romano, guardando uma certa autonomia, ainda que governada por monarcas politicamente subordinados a Roma, um dos quais foi Herodes, que reinou de 37 a.C. a 4 a.C. Uma grande parte da opinião pública (entre os judeus) estava contra Herodes, por ser idumeu, praticamente incircunciso, um filho de Esaú. Este período de Herodes, podemos dizer que a vida política se apresentou sempre conturbada e à beira de levantamentos e conspirações, sempre abafadas de forma violenta pelo mesmo Herodes.

Após a morte de Herodes, o território foi dividido em três principados entre os seus filhos: Arquelau, Herodes Antipas e FilipeA partir de 6 d.C., tornou-se uma província romana sob jurisdição parcial do governador da Síria. A administração do território foi entregue a governadores romanos da ordem equestre, chamados 'prefeitos'. Mais tarde, foram também chamados 'procuradores'. Arquelau foi chamado a Roma e partiu para o exílio. Idumeia, Judeia e Samaria foram entregues a Arquelau Herodes; Antipas Herodes ficou com a Galileia e Filipe ficou com a região de Basã. Entretanto, Arquelau não conseguiu suportar as pressões e os conflitos na região da Judeia, sendo substituído por Procuradores Romanos. Dessa maneira, as regiões da Galileia e Judeia eram governadas por dois atores principais: Na Judeia e Samaria, um oficial romano; na Galileia, Herodes Antipas. 
Grande admirador da cultura greco-romana, Herodes lançou um audacioso programa de construções, que incluía as cidades de Cesareia e Sebástia e as fortalezas em Heródio e Massada.

Quando Roma assumiu o controlo direto da Judeia, um fariseu rabino conhecido como Judas da Galileia tinha criado um grupo revolucionário altamente militante, os Zelotas. Não eram, estritamente falando, uma seita como eram os Fariseus e os Essénios. Eram um movimento, com filiados de várias seitas.




À medida que aumentava a opressão romana sobre os judeus, crescia a insatisfação, que se manifestava por revoltas esporádicas, até que rompeu uma revolta total, em 66 d.C. 
Por volta de 44 d.C., as atividades tinham-se intensificado de tal modo que algum tipo de luta armada já parecia inevitável. Mas foi em 66 d.C. que a luta irrompeu. Toda a Judeia se levantou em revolta organizada contra Roma. Foi um conflito desesperado, tenaz, mas inútil. Vinte mil judeus foram massacrados pelos romanos só em Cesareia. Em quatro anos as legiões romanas ocuparam Jerusalém, arrasando a cidade, saqueando e destruindo o Templo. Entretanto, a fortaleza montanhosa de Massada resistiu por mais três anos, comandada por um descendente de Judas da GalileiaAs legiões romanas lideradas pelo general Tito, superiores em número e armamento, conquistaram a Judeia e arrasaram a cidade de Jerusalém e o Templo, corria o ano 70 da nossa era. 

No entanto, a resistência em Massada, só havia sido exterminada em 73. Apenas por um breve período em 132 a soberania judaica se fez sentir a seguir a uma revolta liderada por Simão Barcoquebas. Mas logo a seguir, no tempo de Adriano, Jerusalém e a Judeia foram reconquistadas. Adriano decidiu mudar os nomes, passando a Judeia a ser Palestina, e Jerusalém passou a ser chamada Élia Capitolina. Grande parte da população foi massacrada e os sobreviventes tiveram então que partir definitivamente, que veio a ser conhecida por diáspora.

Foi neste enquadramento que os Evangelhos surgiram, uma realidade de opressão, descontentamento cívico e social, ansiedade política, perseguições incessantes e rebeliões intermitentes. Em relação à liberdade política, tais aspirações foram brutalmente extintas pela guerra devastadora que ocorreu entre 66-74. Contudo, quando transpostas para a forma religiosa, o cenário entra numa outra dimensão. Realmente, a revolta de 66 foi instigada em grande parte pela agitação e propaganda feita pelos Zelotas em nome de um Messias cujo advento seria iminente. O termo Messias, então, não significava divino. Estritamente definido, significava simplesmente um rei abençoado; e, na mentalidade popular, veio a significar um rei abençoado que seria também um libertador. Em outras palavras, era um termo de conotação especificamente política, algo bem diferente da ideia cristã posterior de um "filho de Deus". Este termo, essencialmente mundano, foi usado para Jesus, chamado "Jesus, o Messias" ou - traduzido para o grego "Jesus, o Cristo". Só mais tarde é que esta designação se contraiu para "Jesus Cristo", e um título puramente funcional se distorceu em um nome próprio.

A região da Galileia era, presumivelmente, o lar de Jesus durante pelo menos 30 anos de sua vida. Os três primeiros Evangelhos do Novo Testamento são principalmente um relato do ministério público de Jesus na província, particularmente nas cidades de Nazaré e Cafarnaum. A Galileia é também citada como o lugar onde Jesus curou um homem cego.

Ao adotar o Cristianismo como religião oficial do império, Roma dispensou especial proteção ao território que a partir de então começou a ser chamado de "Terra Santa". A cidade de Jerusalém voltou a florescer e transformou-se num importante centro de peregrinação, ao qual afluíam peregrinos de todas as regiões do império. Construíram-se basílicas notáveis e a cidade foi embelezada pelos imperadores bizantinos. Após a divisão do Império - em Romano do Ocidente e Romano do Oriente, a Palestina ficou sob jurisdição de Bizâncio (Constantinopla). Em 611 dá-se a invasão dos Sassânidas, que ao fim de três anos acabaram por conquistar Jerusalém. Todos os templos foram destruídos. O imperador bizantino Heráclio, em 628, voltou a recuperar a Terra Santa.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

A entronização e a crença cega na técnica



Hoje volto a lembrar-me do que já lá vão quase trinta anos quando cruzei Karl Popper com Sigmund Freud e a sua psicanálise, uma pseudociência pelos critérios de ciência de Popper. Longe de buscar o seu fundamento em algum resquício atávico ou primitivo do instinto animal, Freud achou que a pulsão de morte deve ser reconhecida como elemento que, além de não contradizer a função do logos, faz parte do próprio núcleo desse logos. A pulsão de morte é um dos conceitos centrais da teoria psicanalítica. Desconhecê-la implica retirar uma parte substancial da subjetividade de qualquer ponto de vista que pretenda uma aproximação do real humano, tanto no plano individual como no coletivo.

O pensamento de Freud poderá ser caracterizado por um ceticismo alerta e crítico diante de alguns dos valores máximos do Iluminismo: a crença na soberania da razão, a fé no progresso e a veneração incondicional pelo saber científico. Evidentemente isso não quer dizer que Freud não seja tributário da razão iluminista, mas cujos pontos chave da sua investigação assenta nos sintomas do logos, abrindo caminho ao impensado do saber, além de mostrar os devastadores efeitos produzidos pelo retorno daquela parte da verdade que o paradigma técnico/científico ataca, ou simplesmente prefere desconhecer. A dialética entre Eros e Tanatos designa o facto de que a condição humana é atravessada pelo paradoxo de reinarem nela os desejos que promovem a vida, mas também a destruição. As pulsões de vida e de morte se enlaçam, constituindo uma estrutura intrincada, isto é, uma estrutura na qual os representantes de Eros (o amor e o desejo) devem estabelecer barreiras e limites à tendência letal da pulsão de morte.

Uma pessoa com 80 anos tem aproximadamente 1000 vezes mais risco de falecer, se for infetada pelo SARS-CoV-2, do que uma pessoa de 20 anos. Graças ao progresso tecnológico e à melhoria dos cuidados de saúde, a esperança de vida dos europeus tem vindo a aumentar consideravelmente desde o século XIX. Se a esperança de vida de hoje fosse a mesma da última década do século XIX, a mortalidade da Covid-19 seria negligenciável. Mas, de acordo com uma equipa de cientistas norte-americanos, este indicador estagnou por volta da década de 1990. Desde aí que a idade da pessoa mais velha do mundo não aumenta. A equipa de especialistas do Departamento de Genética da Faculdade de Medicina Albert Einstein, em Nova Iorque (EUA), usou bases de dados demográficos para concluir que o limite máximo da longevidade da nossa espécie foi atingido e fixa-se à volta dos 115 anos, ainda que o recorde até à data conseguido esteja nos 122 anos atingido por uma mulher francesa - Jeanne Louise Calment - falecida em 4 de agosto de 1997.

Há experiências em modelos animais que já mostraram que a alteração de fatores associados ao ambiente e à genética pode “alterar substancialmente a duração de vida”. Mas mais importante do que vivermos muito tempo, será sermos capazes de viver muito tempo com qualidade de vida. Ou seja, aumentar a longevidade travando o envelhecimento. E é isso que um frenético grupo de cientistas está a tentar obter.

A evolução exponencial da mortalidade com a idade, foi constatada e proposta em 1825 por Benjamin Gompertz, que propôs uma nova metodologia para o cálculo da variação do risco de morte com a idade. Foi feita com base em informações puramente estatísticas, sem consideração das causas específicas ou dos mecanismos que tinham causado as mortes. Porém, numerosos trabalhos posteriores vieram a demonstrar que a probabilidade de morte por muitas causas específicas (mas não todas) evolui de uma forma adequadamente modelada pela Lei de Gompertz, com um fator que varia com a doença específica e com características da sociedade, assim como o sistema de saúde e o nível de desenvolvimento económico do país.

As pessoas precisam de treinar o instinto que une os pontos mais profundos do mundo para melhor o compreenderem. Neste tempo de inteligência virtual cada vez mais nebulosa, os computadores às vezes não sabem distinguir o lixo do bom senso. Uma coisa é a ciência. Outra coisa são os cientistas. A ciência em si avança sempre, e amanhã estará um passo mais à frente do que estava ontem. Mas os cientistas são apanhados no caminho das perplexidades. E uma boa parte deles não gosta de ser apanhada. E é assim que começa o baralhamento. Sim, é muito frequente os cientistas mais arrogantes serem os que mais se baralham. Depois da licenciatura vem o mestrado. Depois do mestrado vem o doutoramento. E ao fim de cinco anos e uma sucessão de publicações vêm os convites e os prémios. E se o desempenho for bom fica praticamente garantida uma cátedra prestigiada. Este é um tipo de cientista. Não são todos iguais. A maior parte dos cientistas fica obcecada pelas certezas quando está a fazer experiências na tentativa de encontrar uma solução para um problema. E isso tolda as decisões. A investigação é mais produtiva quando o cientista se sente mais confortável com a incerteza.

Voltando à longevidade, que não tem nada a ver com o direito à vida, podemos transferir aquele raciocínio, aplicado à ciência, para as nossas escolhas ao longo da vida. E as pessoas pensam que morrer é a pior coisa para a vida de uma pessoa. Mas não pode ser, na medida em que é a única certeza que nós temos, ninguém escapa, mais tarde ou mais cedo, à morte. Em contrapartida, certas vicissitudes e sofrimentos podem acontecer ou não. Estas coisas são do domínio da incerteza, a que as pessoas chamam sorte ou azar. E nesse caso as nossas escolhas, que estão sob a tutela da estatística, não podem ser tomadas sem um grau de risco, porque é isso que a incerteza nos oferece. Temos sempre que arriscar sob os auspícios do otimismo da vontade na ação. Retomo aqui a frase de Romain Rolland, que depois Gramsci também a utilizou: “devemos ser pessimistas pela inteligência; e otimistas pela vontade”.


quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

Deus morreu e deixou os anjos à mercê do capitalismo da estética hedonista




Bárbara Reis foi dar uma vista de olhos a um novo projeto digital de investigação jornalística – Setenta e Quatro. Mas não gosta das irritantes manias deste 'politicamente correto' com frases como: “às leitoras e aos leitores” e o facto de nos tratarem por “tu” (“se tens informação”, “podes saber”, “fala conosco”, “podes contactar-nos”, “podes ler”...).

O trabalho do Setenta e Quatro inclui uma entrevista a Miguel Salazar - “Aceitei submeter-me a uma prática de conversão por medo dos meus pais”. E a carta que escreveu à Assembleia de Deus a anunciar o corte com a Igreja. Sair do armário teve o resultado previsível: “Vais para o inferno”, “isso é pecado”, “estás no lixo”, “isso é contranatura”, “estás possesso por espíritos demoníacos”, “isso é doença”, “nem os animais fazem isso”, “podias ter esperado que eu morresse para assumires”, “Deus está contra ti”. Houve isso e também houve cenas de estalos. Na entrevista, Miguel Salazar descreve com pormenor as discussões violentas que teve com os pais por ser gay.

Logo na primeira aula de jornalismo a primeira lição a reter é que não é de esperar respostas cogentes se as perguntas não tiverem pés e cabeça. Ou seja, o esclarecimento de qualquer coisa, depende mais da pergunta do que da resposta. Como dizia Kant inspirado em Hume: "é preciso acordar do sonho dogmático". A uma pergunta feita a Putin, se ia invadir a Ucrânia, a jornalista recebeu como resposta: "A pergunta é uma provocação". Numa pergunta a Biden como é que ele respondia ao facto de não aparecerem pessoas para trabalhar numa obra após anúncio, Biden respondeu com outra pergunta: "E já experimentaram pagar-lhes mais?"

O mestre é aquele que sabe manter vivo o espírito socrático da pergunta, e seu ensinamento consiste em nos dar a melhor prova de que o que importa é aprendermos a única lição magistral que nos põe no caminho de um saber verdadeiro, e que consiste em nos darmos conta de que nenhuma palavra pode dizer toda a verdade, como do porquê deste mundo, e o que viemos cá fazer.

Nesta hipermodernidade de lixeira (poluição da Terra, Mar e Ar), e anacronismos, não há empatia para um olhar lúcido sobre o movimento do mundo. Como abrigar o sofrimento dos condenados do sistema, devolver a dignidade aos marginais do discurso politicamente correto? Dos rejeitados de um sistema cuja engenharia social se baseia no álibi do progresso universal. Tenhamos consciência disso ou não, é urgente a aproximação a uma posição mais ética. É preciso dar a palavra ao sujeito verdadeiro, sequestrado pelo silêncio ao qual o paradigma técnico-científico o condena sem muitas considerações.

Os aspetos devastadores da economia liberal impõem-se com tanta evidência que não se pode pô-los em dúvida. Mesmo assim existem realidades mais amenas que convidam a reconsiderar o que ocorre na cena do capitalismo de consumo superdesenvolvido. Devemos, contudo, dirigir o nosso foco para uma ordem económica cujo efeito seja menos devastador.

No decorrer da sua histórica evolução, já secular, as lógicas produtivas do sistema capitalista mudaram. Não estamos mais no tempo em que produção industrial e cultura remetiam a universos separados, radicalmente inconciliáveis; estamos no momento em que os sistemas de produção, de distribuição e de consumo são impregnados, penetrados, remodelados por operações de natureza fundamentalmente estética. O estilo, a beleza, a mobilização dos gostos e das sensibilidades são impostas cada vez mais como imperativos estratégicos das marcas. Este capitalismo de hiperconsumo, é o capitalismo da estética hedonista.

As indústrias de consumo, alavancadas pelo mundo mediático (o mundo do design, da moda, da publicidade), criaram necessidades com os seus próprios produtos em massa, carregados de sedução, afetos e sensibilidade. Assim se foi moldando um universo estético abundante e heterogéneo. Com a estetização da economia, vivemos num mundo marcado pela abundância de estilos, de imagens, de narrativas, de espetáculo, da cosmética à música.

O capitalismo engendra um mundo “inabitável” ou “o pior dos mundos possível”, embalado por uma economia estética que estetiza a vida quotidiana. Em toda a parte o real se constrói em virtual através da imagem. Foi dessa maneira que as gigantes tecnológicas que dão suporte às redes sociais, integrando nas suas plataformas uma dimensão estético-emocional que se tornou central na concorrência que as marcas travam entre si através da utilização dos próprios utilizadores para publicitarem os seus produtos. É o que Gilles Lipovetsky chama de "capitalismo artista ou criativo trans estético", que se caracteriza pelo peso crescente dos mercados da sensibilidade e do “design process”, por um trabalho sistemático de estilização dos bens e dos lugares mercantis, de integração generalizada da arte, do “look” e do afeto no universo consumista. Portanto, uma paisagem económica mundial caótica, e ao mesmo tempo estilizada.

Assim, o desenvolvimento do capitalismo financeiro contemporâneo associou-se ao mundo da Arte para se potenciar. Não se deve entender com isso que seja um capitalismo menos cínico ou menos agressivo quanto ao lucro e à conquista dos mercados. O que daí decorre é que estamos num novo ciclo marcado por uma relativa indiferenciação das esferas económica e estética, pela desregulamentação das distinções entre o económico e o estético, a indústria e o estilo, a moda e a arte, o divertimento e o cultural, o comercial e o criativo, a cultura de massa e a alta cultura. Doravante, nas economias da hipermodernidade, essas esferas se hibridizam, se misturam, se interpenetram. Uma lógica de indiferenciação que é menos pós-moderna do que hipermoderna, a tal ponto se inscreve na dinâmica de fundo das economias modernas que se caracterizam pela otimização dos resultados e pelo cálculo sistemático dos custos e benefícios.

A profusão da estética hipermoderna é filha das “águas frias do cálculo egoísta”, como disse Karl Marx. É a cultura moderna da racionalidade instrumental. E da eficiência económica do "Crescimento? Sempre!" . E contínuo. A dominação da racionalidade produtiva e mercantil não elimina de modo algum o avanço das lógicas sensíveis e intuitivas, qualitativas e estéticas. E, simultaneamente, a uniformidade planetária do “calcular tudo” não deve ocultar a excrescência das criações de intuito emocional. A lei homogénea do economicismo, e da produtividade do mundo do trabalho, é o que leva a uma estetização sem limites e ao mesmo tempo pluralista, privada de unidade e de critérios consensuais.

terça-feira, 7 de dezembro de 2021

Uma questão de ressentimento








O estudo filosófico do ressentimento remonta a Nietzsche. Nietzsche, no seu pensamento mais forte, fala da tendência que resulta da sua própria condição contrária. O ressentido não elimina, mas acomoda, como se tratasse de um amortecedor. A essência do ressentimento reside na pulsão de eliminação fundada na culpabilidade. Mas na verdade não é de culpabilidade que se trata, mas sim de defeito. 

Este é o jargão nietzschiano: “O ressentimento é a face niilista de um combate que é preciso empreender no devir, com ele, mas para o transformar em futuro”. Dito por outras palavras: não é boa ideia combater o “ressentimento”, porque ao combatê-lo está-se a ser tão ressentido quanto o que se quer combater. Ou seja, o combate ao ressentimento vai gerar mais ressentimento de ambos os lados. A intelectualidade académica, a certa altura, quando numa aula algum professor pertencente a essa intelectualidade dizia apenas 'o ressentido', e não 'a ressentida', fazia questão de ressalvar que se tratava de qualificar o ente ou o sujeito. Se fosse 'sujeita ressentida', ou 'enta ressentida', para além de erro gramatical, era um oximoro, portanto, a palavra “sujeita” veiculava uma conotação pejorativa na psicologia popular do senso comum.

O ressentimento pode resultar de uma variedade de situações que envolvem uma transgressão percebida de um indivíduo, que muitas vezes é desencadeada por expressões de injustiça ou humilhação. Fontes comuns de ressentimento incluem incidentes que humilham publicamente, como aceitar tratamento negativo sem expressar qualquer protesto; sentir-se objeto de discriminação ou preconceito. Sentir-se usado ou aproveitado por outros; e ter conquistas não reconhecidas, enquanto outros têm sucesso sem mérito. O ressentimento também pode ser gerado por interações diádicas, como rejeição emocional ou negação por outra pessoa, constrangimento deliberado ou depreciação por outra pessoa, ou ignorância, rebaixamento ou desprezo por outra pessoa.

O ressentimento também pode ser fabricado e desenvolvido para ser mantido. Focando nas queixas passadas (isto é, memórias perturbadoras de experiências dolorosas) continuamente, ou tentando justificar a emoção (isto é, com pensamentos/sentimentos adicionais). Assim, o ressentimento pode ocorrer como resultado do processo de luto, e pode ser sustentado pela ruminação obsessiva.

O ressentimento acabou por entrar na política como uma forma de protesto. O ressentimento como forma de protesto de uma ação passada, que persiste como uma ameaça presente. É o caso do ressentimento contra o racismo pós-colonial. Isso representa uma ameaça e como tal é desafiada ao se ressentir como forma de protesto. O ressentimento afirma o que os opressores negaram e negam, perpetuando a condição da vítima de racismo. O ressentimento está focado na situação ou evento prejudicial do passado e não nas pessoas do aqui e agora. 

O ressentimento, quando não é saudável, pode vir na forma de raiva hostil com um motivo de retaliação. O
 ónus tem de continuar a recair sobre a civilização ocidental ou europeia. E é a isso que João Miguel Tavares se refere quando diz que são os próprios europeus, sobretudo nas instituições e meios académicos, a serem mais papistas que o papa, "desejosos de se mostrarem condescendentes e progressistas". A partir de 1970 meteu-se na cabeça dos académicos, sobretudo franceses, que o chamado processo de 'racialização', não era um fenómeno universal, mas sim criado no que também chamavam 'mundo ocidental'. O termo 'racialização' surgiu na década de sessenta do século XX para exprimir o processo social, político e religioso a partir do qual certas camadas da população de etnia diferente eram identificadas em relação à maioria da população, tendo em conta que esta identificação estava diretamente associada ao seu aspeto, características fenotípicas ou à sua cultura étnica, normalmente associada a preconceitos relativamente à diferença.

Convém distinguir os conceitos de 'racismo' e de 'racialização'. Por exemplo, no caso das vítimas de racismo, estas ao sofrerem de um processo de 'racialização' estabelecem, nesse processo com as pessoas que as vitimizaram, uma relação que as distingue como raça. Mas esta distinção, de um modo geral, não tem qualquer conteúdo racista. É um processo que se desenvolve sem conteúdo ideológico, mas resultante da vivência quotidiana.

Em sociologia, 'racialização' ou 'etnização' é o processo de atribuir identidades raciais ou étnicas no relacionamento com um grupo, o qual não se identificou como tal. É um processo de significação resultante de relações socias, sem conteúdo biológico. As categorias raciais têm sido historicamente usadas como uma maneira de permitir que uma figura ou grupo opressivo discrimine outros grupos ou indivíduos que eram vistos como diferentes dos opressores. A racialização é um processo longo, e os membros de cada grupo são categorizados com base em suas diferenças percebidas em relação àquelas que são consideradas elite dentro de uma sociedade.