terça-feira, 31 de outubro de 2023

No Ocidente a iniciativa das hostilidades deve ser deixada ao inimigo – Chamberlain



Às 21h, Hitler e Ribbentrop deixaram Berlim, e em separado seguiram por comboios especiais para quartéis-generais no Oeste. Não, porém, sem terem realizado antes mais duas manobras diplomáticas. A Inglaterra e a França estavam agora em guerra com a Alemanha. Mas havia ainda duas outras grandes potências europeias a serem consideradas e cujo apoio tornou possível a aventura de Hitler: a Itália, a aliada, que se esquivara no último instante, e a Rússia soviética, que, embora não inspirasse confiança ao ditador nazi, ajudara-o a tornar a ideia de guerra tão interessante e lucrativa.

Quando deixava a capital, Hitler enviou outra carta a Mussolini, telegrafada às 20:51h, nove minutos antes que o comboio especial do Führer partisse da estação. Embora a carta não fosse inteiramente franca, nem isenta de falsidades, ela nos oferece a melhor imagem que talvez jamais possamos ter sobre os pensamentos de Adolf Hitler, quando deixava pela primeira vez a sombria capital do Terceiro Reich para assumir o seu papel de supremo comandante da guerra:
Duce:
Primeiramente devo agradecer pela vossa última tentativa de mediação. Eu estaria pronto a aceitar, desde que me fossem dadas certas garantias de que a conferência seria bem-sucedida. Pois as tropas alemãs já estavam empenhadas há dois dias num avanço extraordinariamente rápido para dentro da Polónia. Seria impossível permitir que o sangue ali derramado fosse malbaratado por intrigas diplomáticas.
Apesar disso, acredito que um caminho seria encontrado se a Inglaterra não estivesse determinada desde o princípio a resvalar para a guerra de qualquer modo. Não cedi às ameaças britânicas porque, Duce, estava certo de que a paz não poderia ser mantida por mais de seis meses, ou talvez um ano. Nestas circunstâncias, o momento presente é, apesar de tudo, o mais adequado para tomar uma iniciativa. (...) O exército polaco entrará em colapso dentro de pouco tempo. Devo dizer que, na minha opinião, seria duvidosa a possibilidade de alcançar um sucesso rápido como este, daqui a um ou dois anos. A Inglaterra e a França teriam continuado a fornecer armamentos aos seus aliados em tal escala que a decisiva superioridade técnica da Wehrmacht não ficaria em evidência desta maneira. Tenho consciência, Duce, de que a batalha em que agora me empenho é uma batalha de vida e morte (...). Mas também estou certo de que a batalha não poderia ser evitada e que o momento certo para a resistência tem de ser escolhido com deliberação férrea, de tal modo que as probabilidades de sucesso sejam asseguradas; e neste sucesso, Duce, minha fé é tão firme como uma rocha.
Em seguida vinham palavras de advertência a Mussolini
Há alguns dias, bondosamente me assegurastes de que seria possível ajudar-me em determinados setores. Aceito, antecipadamente, com sinceros agradecimentos. Mas também acredito que embora no momento sigamos caminhos diferentes, o destino ainda nos unirá um ao outro. Se a Alemanha nacional-socialista for destruída pelas democracias ocidentais, a Itália fascista também enfrentará um futuro adverso. Pessoalmente sempre estive certo de que o destino dos nossos dois regimes estão ligados, e eu sei que vós, Duce, sois de opinião exatamente igual. (...) No Ocidente permanecerei na defensiva. Ali a França tem precedência para derramar o seu sangue. Chegará o momento de podermos enfrentar o inimigo com todas as forças da nação. Querei aceitar mais uma vez os meus agradecimentos, Duce, por todo o apoio oferecido no passado, e que espero que não me faltará no futuro.
Adolf Hitler
O desapontamento de Hitler com a Itália, por não ter honrado a sua palavra, mesmo depois que a Inglaterra e a França haviam honrado as suas ao declarar guerra naquele dia, foi conservado sob estrito controlo. Uma Itália amistosa, embora não beligerante, poderia assim mesmo ser de alguma utilidade para ele. Mas a Rússia poderia ser de utilidade bem maior. Já no primeiro dia do ataque alemão à Polónia, o governo soviético, como os documentos secretos nazis iriam revelar mais tarde, deu à Luftwaffe um serviço de sinalização. Nesta manhã, o chefe do Estado-maior da força aérea, general Hans Jeschonnek, telefonou à embaixada alemã em Moscovo, para dizer que apreciaria se a emissora de rádio russa, em Minsk, se identificasse constantemente, a fim de proporcionar auxílio aos pilotos alemães, orientando-os no bombardeio da Polónia; dava a isto o nome de “urgentes testes de navegação aérea”. Ao anoitecer, o embaixador von Schulenburg estava apto a informar Berlim que o governo soviético estava pronto para “satisfazer seus desejos”. Os russos concordaram em intercalar o maior número possível de prefixos identificadores dos programas desta estação, e em prolongar as transmissões da rádio de Minsk por mais duas horas, para auxiliar os aviadores alemães.

Mas quando se preparavam para deixar Berlim, na noite de 3 de setembro, Hitler e Ribbentrop tinham em mente auxílios militares mais substanciais por parte da Rússia, para a sua conquista da Polónia. Às 18:50h, Ribbentrop despachou um telegrama urgentíssimo para a embaixada em Moscovo. Levava o carimbo “ultra-secreto”, e advertia: “Exclusivamente para o embaixador. Para o chefe da delegação ou seu representante, pessoalmente. Agir com extrema cautela. Para ser decifrado por ele mesmo. Muito secreto”. No maior segredo, os alemães convidaram a União Soviética a unir-se a eles no ataque à Polónia. «Estamos certos de que derrotaremos o exército polaco definitivamente dentro de poucas semanas. Conservaremos depois o território previsto em Moscovo como esfera de influência alemã, sob ocupação militar. Deveremos, naturalmente, por motivos militares, continuar o avanço pelo território polaco a fim de destruir forças polacas que se acham localizadas dentro da zona prevista como esfera de interesse russo. Deve-se tratar disso imediatamente com Molotov, e ver se não seria desejável para a União Soviética que dirigisse, no momento adequado, as suas forças contra as tropas polacas localizadas dentro daquela zona, ocupando assim, automaticamente, a sua esfera de interesse. Na nossa opinião isto seria não só um alívio para nós, mas também estaria dentro dos intuitos dos acordos de Moscovo, e ainda viria ao encontro dos interesses russos.»

Essa cínica manobra por parte da União Soviética seria de facto um alívio para Hitler e Ribbentrop. Tal manobra não só evitaria problemas e atritos entre alemães e russos na divisão do espólio, mas também diminuiria a responsabilidade da Alemanha na agressão à Polónia, atribuindo parte dela à União Soviética. Se compartilhavam o saque, por que não haveriam de compartilhar a culpa? O almirante Erich Räder, comandante da marinha alemã, era a personalidade de menor evidência em Berlim, naquele domingo em que se soube que a Inglaterra estava em guerra. Na opinião dele, a guerra chegara cedo demais, com uma antecedência de quatro ou cinco anos. Em 1944-45 o plano Z da marinha estaria completo, dando à Alemanha uma frota considerável para opor-se à da Inglaterra. Mas, estava-se em 3 de setembro de 1939, e Räder sabia, embora Hitler não lhe desse ouvidos, que não dispunha de navios em número suficiente, nem de submarinos para ousar uma guerra efetiva contra a Inglaterra.

No seu diário, o almirante escreveu: «Hoje estourou a guerra contra a França e a Inglaterra, uma guerra que, de acordo com declarações anteriores do Führer, não precisaríamos travar antes de 1944. O Führer acreditou até ao último instante em que poderia evitá-la, mesmo que isto significasse um adiamento da solução final da questão polaca (...). No que concerne à marinha, é óbvio que não está adequadamente preparada para a grande batalha com a Inglaterra (...), a força submarina ainda é insignificante para ter atuação decisiva na guerra. As forças de superfície, além disso, são tão inferiores à frota inglesa, em número e poderio, que mesmo empregando a sua capacidade máxima não poderiam fazer mais do que mostrar que sabem morrer com valentia (...).»

Não obstante, às 21h, no dia 3 de setembro de 1939, no momento em que Hitler deixava Berlim, a marinha alemã, advertência prévia, com o submarino 7-30, torpedeou e afundou o vapor de carreira Athenia, a cerca de duzentas milhas marítimas das ilhas Hébridas, quando estava em rota de Liverpool para Montreal, levando 1.400 passageiros, dos quais 112, inclusive 28 americanos, perderam a vida. A Segunda Guerra Mundial começara.

segunda-feira, 30 de outubro de 2023

A independência do povo árabe em relação ao Império Otomano



O papel do emir de Meca, de 62 anos, xarife Hussein, era o de guardião dos lugares santos do Islão. Como governante de facto do Hejaz fazia dele uma figura de importância política e religiosa no mundo árabe. Opositores do sultão otomano, dentro do mundo muçulmano e fora dele, consideravam-no um potencial califa, e já em 1911 representantes árabes no parlamento otomano tinham recorrido a ele para liderar uma revolta contra o governo dos Jovens Turcos. Inicialmente, os objetivos de Hussein era apenas a autonomia formal para o Hejaz e reconhecimento de sua família hashemita como xarifes hereditários de Meca. Mas como nem isso os Jovens Turcos estavam dispostos a aceitar, em 27 de junho de 1916 declarou a independência do povo árabe em relação ao Império Otomano, bem como a sua liberdade religiosa em relação ao califa, o sultão Mehmed V.

Em outubro de 1914, mesmo antes do início formal das hostilidades entre a Grã-Bretanha e o Império Otomano, Kitchener abriu negociações com o filho de Hussein Abdullah – para uma aliança anglo-árabe, oferecendo proteção britânica à “nação árabe” e o reconhecimento de Hussein como califa. Como outros líderes árabes que viviam sob domínio otomano, Hussein demorou a decidir-se romper com os turcos. Em nome de seu pai – Abdullah e seu irmão Faisal – negociavam com vários agentes de ambos os lados e com líderes nacionalistas árabes. Faisal passou grande parte da primeira metade da guerra em Damasco, mas voltou para Meca com a intenção de ajudar o pai. Em 5 de junho de 1916, começaram as hostilidades perto de Medina. Nessa altura, turcos e alemães estavam a ultimar os planos de uma segunda invasão do Egito, a partir da Palestina, como vingança da derrota sofrida no primeiro ataque turco ao canal de Suez, em fevereiro de 1915.

No final de 1916, as forças de Hussein e seus filhos não tinham feito conquistas importantes, mas entre as terras que ocupavam estavam a cidade de Meca e os portos próximos de Jidda e Rabigh, no mar Vermelho. Essa posição, em todo o caso, garantia a linha de abastecimento e comunicação com o mundo exterior. Eles ameaçavam Medina e a ferrovia do Hejaz, ao norte, e tinham isolado a guarnição turca do Iémen, ao sul. Os franceses logo se juntaram aos britânicos no reconhecimento de Hussein como “rei do Hejaz”, enviando assessores militares a Meca e canalizando armamento excedente.

Lawrence já havia chegado ao Cairo em outubro de 1916. ao Cairo. Depois de ter conquistado a confiança de Abdullah e Faisal, Lawrence convenceu-os de que o melhor para salvar Meca era atacar a ferrovia do Hejaz e ameaçar a cadeia de abastecimento otomana, algo que os soldados irregulares poderiam fazer de forma muito eficaz. Em janeiro de 1917, um pequeno grupo da Marinha Real ajudou-os na captura do porto de Wejh, 510 km acima na costa do mar Vermelho a partir de Rabigh, um local mais adequado como depósito de suprimentos para a nova campanha. Os ataques foram suficientes para forçar a guarnição das tropas turcas a abandonar a movimentação contra Meca e recuar até Medina, onde permaneceu entrincheirada até ao armistício. As forças árabes, redirecionando o centro de gravidade para norte, em julho de 1917 conseguiram tomar o porto de Ácaba, 455 km ao norte de Wejh. Nesta missão contaram com a ajuda do xeque beduíno Auda ibn Tayi, cujas tribos controlavam o deserto norte da Arábia, a leste do rio Jordão. 

O general Edmund Allenby havia chegado em junho ao Egito a substituir Murray, 
pouco antes de Lawrence e os árabes terem tomado Ácaba. O novo comandante teve de enfrentar uma situação estratégica confusa, com objetivos de britânicos e Aliados em geral mal definidos, assim como em relação ao papel dos árabes nesses objetivos. Lawrence levara os árabes a acreditar numa Arábia independente, que todos os árabes pressupunham incluir Jerusalém, uma das mais sagradas cidades do Islão depois de Meca. Mas, no outono de 1917, o ministro do Exterior, Arthur Balfour, emitiria a sua famosa declaração em uma carta ao líder sionista britânico barão Walter Rothschild, prometendo os melhores esforços da Grã-Bretanha para facilitar o estabelecimento na Palestina de um lar nacional para o povo judeu.

Ainda em setembro de 1917, três meses após a nomeação de Allenby, Mark Sykes - coautor, com o francês François Georges Picot, de um acordo para a divisão do Império Otomano entre os Aliados no pós-guerra - havia observado que o Gabinete de Guerra ainda não tinha acordado se Allenby deveria ocupar a Palestina. De qualquer modo, Allenby abriu a terceira Batalha de Gaza em 31 de outubro de 1917. As suas divisões montadas ultrapassaram o flanco esquerdo turco em Berseba e avançaram sobre Gaza. Em 7 de novembro a cidade de Gaza estava tomada por forças britânicas. Carecendo de instruções claras sobre o que fazer depois de tomar Jerusalém, em fevereiro de 1918, Allenby enviou uma coluna para tomar Jericó, 24 km a leste, e depois enviou suas divisões da cavalaria ligeira ao outro lado do Jordão, em dois ataques malsucedidos. A campanha de Jerusalém como um todo custou aos turcos 25 mil baixas, contra 18 mil para as tropas britânicas. Após a derrota, os alemães transferiram Falkenhayn para a frente oriental, deixando Liman von Sanders no comando da defesa da Palestina.

O exército de Allenby perdeu mais duas divisões de soldados britânicos durante o verão, mas, em setembro, finalmente começou a recuperar o contingente necessário para operações ofensivas, graças à chegada de mais quatro divisões indianas (incluindo duas de cavalaria), dois batalhões oriundos das Índias Ocidentais, uma legião arménia formada na França e uma legião judaica de voluntários sionistas – incluindo o futuro primeiro-ministro de Israel – David Ben Gurion. Allenby perdeu seu pequeno destacamento de tanques na primavera de 1918 e nunca o recuperou, mas, em setembro, tinha sete esquadrilhas de aeronaves (seis britânicas da RAF, uma australiana), um destacamento de blindados e um parque de artilharia com 540 canhões. Diante dele, no norte da Palestina e do outro lado do Jordão, em torno de Amã, os três exércitos comandados por Liman von Sanders tinham baixado para apenas 35 mil homens, apoiados por 400 canhões.

Para a ofensiva final dos Aliados, Allenby conseguiu por fim articular as operações com Lawrence e os árabes. O exército de Faisal surgiu do deserto em 17 de setembro, para se juntar ao destacamento de blindados e esquadrilhas aéreas no ataque a Daraa, a cerca de 80 km a norte de Amã, onde um ramal que vinha de Haifa se juntava à ferrovia do Hejaz. A ação cortou as únicas linhas ferroviárias e telegráficas que ligavam os exércitos de Liman von Sanders a Damasco. Dois dias mais tarde, depois que Allenby simulou um fortalecimento em seu flanco leste ao longo do Jordão, os bombardeios da Marinha Real contra linhas turcas ao norte de Jaffa sinalizaram a verdadeira intenção atacando o flanco oeste, com cerca de dois terços do seu exército. Mustafá Kemal, trazido por Liman von Sanders para comandar o 7º Exército turco, evacuou o quartel-general em Nablus, na noite de 20 para 21 de setembro, para evitar ser cercado. Mas, no dia seguinte, ficou preso no rio Jordão, a leste, onde a RAF aumentou o bombardeamento.

O exército de Faisal, acompanhado por Lawrence, perseguiu os turcos que recuavam. No dia 26, a Divisão Montada do ANZAC, aceitou a rendição temendo por seu destino nas mãos dos árabes. Após Faisal entrar em Damasco em 1 de outubro, os esforços de Lawrence para estabelecê-lo ali como “rei dos árabes” entraram em conflito com Allenby, que logo chegou com um oficial de ligação francês, já que o acordo de Sykes-Picot previa que a Síria, junto com o Líbano, passaria a ser um protetorado francês. Ainda em junho de 1918, os árabes tinham recebido garantias adicionais de que gozariam de “independência e soberania completas” em quaisquer terras que se libertassem, mas agora ficavam sabendo que os britânicos só cumpririam essa promessa no sentido estrito.
A cavalaria indiana garantiu a tomada de Beirute em 8 de outubro e, junto com as tropas árabes, Alepo, em 26 de outubro. Quatro dias depois, o armistício pôs fim às hostilidades entre o Império Otomano e os Aliados. Se os árabes tivessem atendido ao chamamento de Mehmed V à jihad, e apoiado ativamente o esforço de guerra turco, quaisquer esforços Aliados nessas áreas não teriam tido mais êxito do que os desembarques em Galípoli.

Deliberadamente enganado por seu próprio governo ou não, Lawrence permanecera confiante de que os acontecimentos concretos suplantariam todos os arranjos que os governos Aliados tivessem feito em relação às terras árabes. Ele partiu em licença para a Grã-Bretanha, desanimado e exausto. Então ressurgiu de novo como principal defensor de Faisal na Conferência de Paz de Paris. 


sábado, 28 de outubro de 2023

A ideia de uma nação



Segundo Ilan Pappe, é a partir de finais do século XIX até aos nossos dias, que a identidade de certos grupos reside na ideia de nação. Assim, podemos dizer que em contextos apropriados construiu-se uma “identidade nacional”, por uma autoafirmação que se buscou legitimar por meios políticos na senda internacional. Ilan Pappe data a entrada da Palestina na modernidade no final do governo otomano.

É de Ernest Gellner que retiro esta definição da categoria “nação”: duas pessoas são da mesma nação quando elas, e apenas elas, se reconhecem uma à outra como pertencentes à mesma nação. Pode ser suficiente, mas pode não bastar, o mero facto de ocuparem um dado território, ou falarem a mesma língua. Torna-se uma nação quando essas pessoas reconhecem certos direitos e deveres mútuos em virtude de se perceberem como membros dela. É neste tipo de reconhecimento de um ao outro como iguais que os torna uma nação, e não os outros atributos compartilhados, quaisquer que sejam, que os separem dos não-membros.

A ideia da nação Palestina surge no contexto da construção das fronteiras do Médio Oriente no final do século XIX e início do XX. E é movida não apenas por categorias positivas, mas também negativas em relação ao movimento sionista e à restante população de etnia árabe. O nome “Palestina” é muito antigo. Originou-se da província romana Palaestina, termo que substituiu o nome da província da Judeia (Iudaea) após a segunda revolta judaica (132-5 E.C). Com o domínio muçulmano e o fim do controlo bizantino, a região recebeu o nome de Filastin, sendo uma das divisões militares e administrativas (Jund) dos califados omíada e abássida. Dessa forma, ainda que o termo não tenha sido utilizado pelos governos mameluco e otomano, podemos ver que a região já possuía desde tempos antigos a referência à Filastin (nome da Palestina na língua árabe).

Devido ao avanço do antissemitismo na Europa, a partir de 1882 começa a verificar-se um movimento migratório de judeus vindos da Europa para a uma região que na Antiguidade se dava pelo nome de Judeia e Israel, e a cidade de Jerusalém como local de peregrinação das três religiões ditas do Livro, ou abraâmicas. E o grupo humano que habitava a região que hoje chamamos de Palestina se enxergava eminentemente como árabe. Esta constatação não implica dizer que não havia uma população árabe autóctone na Palestina quando os sionistas chegaram, ainda que haja especialistas que afirmem que os árabes da Palestina, durante o Mandato Britânico (1922-48), eram imigrantes ilegais vindos da Síria e da Transjordânia. Portanto, uma população flutuante e desenraizada.

É preciso notar que uma coisa é a identidade local ligada à posse e ao trabalho agrícola da terra. Outra coisa é a identidade nacional. Como se disse atrás, a identidade nacional se caracteriza eminentemente pela percepção de se constituir uma nação diferenciada do mundo árabe. E consequentemente, com o direito a um projeto político próprio, voltado para a constituição de um Estado moderno, soberano, com fronteiras definidas e reconhecido internacionalmente. Essa é a base de um projeto político nacionalista.

A população local da Palestina era uma entidade distinta do restante mundo árabe, de tal modo que desenvolveu o sentimento de pertencimento ao lugar. Porém, este era um sentimento local, não nacional. A identidade palestina ainda estava diluída nas identidades mais amplas, árabes e islâmicas.

Também se deve precisar que o movimento sionista é um movimento político e não étnico ou religioso. Até 1882, a população de judeus na Palestina era minoritária, mas sempre presente. A convivência entre árabes e judeus não possuía eventos de hostilidade significativa. Curiosamente, as relações eram mais tensas entre judeus Ashkenazy e Sefarditas, do que entre judeus e árabes. Claro, péssimas entre judeus e cristãos. Lembro que quando os judeus foram expulsos da Península Ibérica, muitos deles rumaram para o interior do Império Otomano.

Porém, no início do século XX, essa convivência mudaria radicalmente. Os judeus até então habitavam a Palestina enquadrados no estilo de vida local e no interior das instituições reconhecidas como legítimas: as otomanas e as locais. Mesmo a primeira leva de imigrantes de 1882 não despertou uma animosidade mais séria entre os árabes da Palestina. No entanto, a partir do Congresso de Basileia, em 1897, e posteriormente, no início da segunda onda de migrações, em 1904, quando os “pioneiros socialistas” se propunham a criar uma sociedade diferente, com organização social e ideologia europeias, a questão se alterou radicalmente e os árabes rapidamente identificaram o sionismo com o colonialismo europeu. Por fim, com as imigrações sionistas, emergia uma sociedade paralela à pré-existente. E, para alojar as levas de novos habitantes, seria necessário obter um recurso escasso na Palestina: terra.

Os judeus, com objetivos políticos, compravam terras de proprietários residentes nas cidades, na intenção de iniciar a construção de seu “lar nacional” na região. Embora esta nova sociedade estivesse localizada no interior da sociedade árabe, era paralela à sociedade árabe local, do ponto de vista social e político. Mas a percepção de que isso traria repercussões políticas de maior vulto ainda era muito incipiente. E, portanto, a noção de que os palestinos se constituíam como um grupo nacional era inexistente. A partir de 1908 nos jornais começavam a aparecer alertas para o fato de que, a continuar a venda de terras para os colonizadores sionistas, no futuro todo o “país” estaria em mãos judaicas. Mas o cerne do discurso ainda era arabista e não palestino. Os árabes diziam: «Quem conquistou a Palestina, retirando-a dos bizantinos em 638 foram os exércitos muçulmanos oriundos da península arábica».

No entanto, com a eclosão da Primeira Grande Guerra, as circunstâncias se alteram. Em 1917, no que ficou conhecido como Declaração Balfour, Lorde Artur Balfour enviou uma carta à Organização Sionista Mundial afirmando que a Grã-Bretanha apoiaria o estabelecimento de um “lar nacional” judeu na Palestina. A partir daí, levantam-se vozes alertando para os objetivos de longo prazo do movimento sionista. Assim, com o apoio explícito da Grã-Bretanha e como os imigrantes judeus eram de origem europeia, e imbuídos do pensamento progressista e cientificista, alguns líderes árabes identificavam o estabelecimento judaico na Palestina como um movimento aos moldes do imperialismo europeu. Porém, para eles, o colonialismo judeu era ainda pior.

No Congresso Geral Sírio, os delegados da Palestina participaram na posição de representantes regionais, da mesma forma que o Líbano. Ambas as regiões, Líbano e Palestina, seriam parte da Grande Síria. A Palestina não se diferenciava da “Nação Síria”, era parte integrante dela. O representante palestino afirmava no Congresso sírio em 1919 que o colonialismo sionista era pior do que o francês no Líbano, pois enquanto os franceses sabiam que eram estrangeiros, os sionistas acreditavam estar em casa na Palestina. Nesse período, o contraponto à identidade judaica era a identidade árabe e os palestinos ainda não eram percebidos como grupo nacional. E essa realidade é fundamental para compreendermos um passo significativo, a autonomia concedida à Transjordânia, em 1923, isolando a Palestina de sua irmã territorial. Em 1924, o segundo relatório do Mandato já traz o título: “Relatório do Governo de Sua Majestade Britânica sobre a administração sob Mandato da Palestina e da Transjordânia”. Esse ponto foi importantíssimo na trajetória de construção da identidade nacional palestina, pois a Palestina passou a ser juridicamente tratada como uma área territorial específica e, assim, sua população passou a ser vista como específica a esta nova entidade governamental

O acordo Sykes-Picot no fim da Grande Guerra 1918, editou o sistema de Mandatos após o desmantelamento do Império Otomano. A Grã-Bretanha e a França delinearam as fronteiras que ainda são as de hoje. Em 1922, com o Mandato oficialmente conferido pela Liga das Nações à Grã-Bretanha, a Palestina passou a deter uma configuração territorial, juridicamente definida, separada da Síria. Os limites territoriais ainda não se encontravam completamente definidos, pois a Palestina englobava também a Transjordânia. A haver uma questão da demarcação do território, isso era algo relacionado à disputa da Grã-Bretanha com a França.

Como outros movimentos nacionalistas, aquele que começava a se levantar na Palestina necessitava de uma base territorial para a qual reivindicar independência. Em 1936, com a deflagração de grande revolta, o governo britânico percebeu que a única solução era a partição da Palestina em dois Estados: duas comunidades nacionais (um judeu; outro árabe) no interior das estreitas fronteiras de um pequeno país. A grande revolta de 1936-9 foi liderada pelo mufti22 Hajj Amin al-Husseini, que embora explorasse a insatisfação nacional palestina, possuía como fundamento um ideário islamista (defendendo a umma, a grande “nação” muçulmana).

Os acontecimentos de 1948-1949 criaram entre os palestinos a percepção de que os sionistas não eram seus únicos adversários políticos. Para os Estados árabes que invadiram o Estado judeu um dia após ele ser declarado – Egito, Transjordânia, Líbano, Síria e Iraque –, a Palestina era ainda vista como uma terra árabe e não como o território sobre o qual seria construído um Estado palestino. Aliás, a derrota sofrida pelos árabes pode ser creditada em grande parte à sua desunião, cada qual buscando sair vitorioso em suas contendas internas. A Transjordânia nutria esperanças de conquistar a parte árabe da Palestina (que havia sido destinada aos árabes no Plano de Partilha de 1947) e incorporá-la à sua monarquia, enquanto a Síria não havia deixado de pensar na “Grande Síria”.

em 1959, ocorreu um outro ponto chave na trajetória do movimento político palestino. No Kuwait, foi criado o Harakat al-Tahrir al-Watani al-Filastin (Movimento de Libertação Nacional da Palestina), o Fatah, sob a liderança de Yasser Arafat, Abu Jihad e Abu Yiad. A isso seguiu-se a fundação de outros grupos políticos e braços armados com o objetivo de “libertar” toda a Palestina. Surgiu assim uma grande diversidade de grupos, orientados por várias tendências políticas. A Frente Popular para a Libertação da Palestina (FPLP), de tendência marxista, enxergava os palestinos como a vanguarda revolucionária do Oriente Médio, pretendendo desencadear a revolução socialista por toda a região.

Mas chegou o dia em que a ONU recebeu Arafat como líder da OLP, e que esta era a legítima representante do povo palestino perante o mundo. A Liga Árabe, a União Soviética, a França e a Itália, por exemplo, já reconheciam a OLP como representante legítima dos palestinos. Porém, Israel ainda tratava a OLP como um agrupamento de terroristas. Mesmo em 1988, quando Arafat renunciou ao terrorismo como estratégia, os líderes políticos de Israel hesitavam em negociar com a Organização. Somente em Oslo, em 1993, com o aperto de mãos entre Arafat e Ytzak Rabin, a OLP foi reconhecida por Israel.

A OLP, vivendo em um ambiente internacional onde os Estados são os entes de direito a tomar decisões, precisou, durante um longo tempo, se apoiar em governantes árabes. A Síria era adversária, tanto que na Guerra Civil do Líbano, lutou inicialmente contra os palestinos. Restava o Iraque de Saddam Hussein. Somente analisando esse contexto é que podemos entender o apoio de Arafat à invasão do Kuwait pelas tropas iraquianas em 1990. Esse foi um erro estratégico que lhe custou caro. Arafat morreu, em 2004, sem ter visto de pé um Estado Palestiniano.

Em 1987, com a eclosão da Intifada, a revolta popular contra a ocupação, se iniciaria um tempo de mudanças. Deflagrada por um movimento espontâneo, a Intifada inicialmente não possuía líderes. E quando estes surgiram, não eram as figuras mais conhecidas. Os condutores da revolta foram moradores e líderes locais da Faixa de Gaza e da Cisjordânia, enquanto toda a liderança da OLP estava dispersa. Dentre todos os grupos que surgiram no contexto da Intifada, apenas um deles não se juntou à OLP: o Movimento de Resistência Islâmica, o Hamas. Originado da rede de assistência social Al Mujamah, conduzida pelo xeque Ahmed Yassin, o Hamas se levantou em armas contra a ocupação e contra o Fatah. O declínio da OLP passou a ser cada vez mais acentuado e o Hamas foi ganhando força. Em 2006, o Hamas venceu as eleições legislativas para o Conselho Nacional Palestino. Pela primeira vez, em quase quatro décadas, o Fatah perdia a hegemonia no movimento político palestino. Hoje, o movimento político palestino encontra-se polarizado entre esses dois grupos. Ambos se enfrentaram em 2007 e o Hamas tomou o poder na Faixa de Gaza (Israel desocupou este território em 2005).

Assim, a faixa costeira se encontra sob o domínio do Hamas enquanto a Cisjordânia está sob controle do Fatah. Ambos os grupos são filiados a ideários discordantes. O Fatah, de tendência secular nacionalista, e o Hamas, de tendência islamista. O Fatah oficialmente renunciou ao terrorismo, mas mantém laços não totalmente esclarecidos com organizações armadas – as Brigadas dos Mártires de al-Aqsa e a milícia Tanzim. Já o Hamas prega em sua carta a destruição de Israel. Assim, ser um nacional palestino já não está em questão, hoje o que está em causa é: Afinal, quem os representa?


sexta-feira, 27 de outubro de 2023

As variações legadas dos países após a fragmentação do Império Otomano



Na obra de Ohran Pamuk avulta o passado otomano como cenário dos seus livros, o que demonstra a popularidade que a temática otomana tem granjeado. Hoje existe um interesse bastante assinalável no passado otomano, tanto por parte do público como dos estudiosos: os monumentos da arquitetura otomana, agora restaurados, readquirem o seu esplendor; os artefactos otomanos são muito procurados pela classe média turca para a decoração das suas casas.
Um certo embaraço de hostilidade da Europa - Turquia, ainda hoje, mostra como as heranças do passado otomano são duradouras. A desconfiança, o medo e a antipatia pelos Turcos de hoje são sentimentos que grassam em países da Europa Central e Balcãs. A recusa inicial da União Europeia relativamente ao pedido de integração apresentado pela Turquia, em 1998, é um sintoma. É certo que pesaram as razões económicas para essa rejeição. As repercussões da entrada maciça de Turcos na Europa e a concorrência industrial, nomeadamente. Além destes, existem outros motivos que influenciam essa renúncia. Em termos globais, é a quase inexistente tradição de respeito pelos direitos humanos na Turquia moderna. No caso da Grécia os ressentimentos com a Turquia são crónicas, para além da disputa do petróleo do mar Egeu e de Chipre.

As fronteiras administrativas otomanas foram mais ou menos irrelevantes no processo de constituição de Estados árabes após a I Guerra Mundial. Contudo, nos Balcãs, as atuais fronteiras políticas correspondem às antigas delimitações administrativas das províncias otomanas. Porém, poucas foram as práticas administrativas, ou as estruturas, que se transferiram do Império Otomano para os seus substitutos nos Balcãs. Quase todas as classes administrativas muçulmanas puseram-se em fuga, ou foram escorraçadas, após a independência.

Os fluxos migratórios impostos pelo sistema imperial otomano obrigaram à movimentação dos povos dentro do império; os seus efeitos fazem sentir-se ainda hoje. Os Turcos da ilha de Chipre descendem dos povos que colonizaram a Anatólia no século XVI; os Circassianos, por sua vez, chegaram à Jordânia no século XIX. Os Sérvios e os Croatas partiram dos seus anteriores territórios rumo ao Norte, a fim de fugir aos invasores; ou emigraram mais tarde, quando tomaram o partido dos Habsburgo. Estes legados permanecem por toda a parte, apesar de a sua importância se estar a diluir mercê das migrações posteriores ao período da guerra fria.

Os revezes políticos otomanos ecoam até aos nossos dias. Primeiro, a incapacidade de afastar a Grã-Bretanha do golfo Pérsico. De modo idêntico, os Otomanos tentaram, em vão, impedir que os judeus imigrassem para a Palestina e dessem ao sionismo um ponto de apoio demográfico nesse local; esse acontecimento ainda tem ressonâncias no presente. Tal como é sabido, também as hostilidades crónicas entre Gregos e Turcos decorrem, em linha direta, da libertação dos povos gregos subjugados.
A Palestina, a Síria e o Egito foram conquistadas pelo Império Otomano durante o reinado do sultão Selim I [1512-1520]. E continuaria sob administração deste império até ao mandato britânico depois da Primeira Guerra Mundial. O período de dominação otomana correspondeu, de uma forma geral, a uma era de decadência económica e cultural da Palestina. Antes do Império Otomano a Palestina, desde que havia passado para as mãos árabes de 636 a 640, nunca mais esteve em paz se nos recordarmos dos tempos das Cruzadas. Mas nos tempos árabes, a Palestina (Filastin) era a região a sul do planalto de Esdraelon, que a partir de 716 teve como capital Ramallah. A Galileia e Acre ficou sob a administração de Al-Urdunn, que corresponde ao que hoje é a Jordânia. 

O Império Otomano, nos primeiros anos do século XVIII, recebeu a primeira grande revolta popular na Palestina. O governador de Damasco, Maomé Paxá Curde Bairam (1701-1703) iniciou uma política de reorganização da província que administrava, tendo procedido ao aumento dos impostos em Nablus, Jerusalém e Gaza. Esta última medida levou a protestos da população beduína e camponesa. Em 1831, a Palestina foi ocupada por Mehmet Alivice-rei otomano do Egito, que junto com o seu filho Ibrahim procurou modernizar a região. Entre as medidas reformistas, destaca-se a abolição de certos impostos e as restrições que pesavam sobre cristãos e judeus (dhimmi). A política de centralização levada a cabo pelos egípcios provocou a queda da influência dos notáveis locais, que obviamente se ressentiram. Em 1839, no tempo do sultão Abdulmecide II, o Império Otomano levou a cabo uma série de reformas administrativas que ficou conhecido pela designação de "Tanzimat". Por exemplo, Beirute substituiu Acre como capital da província de Sídon. Jerusalém adquire uma maior importância a partir de 1840, quando os sanjacos de Gaza e Jafa foram incluídas no sanjaco (subdivisão administrativa) de Jerusalém; dois anos depois, o sanjaco de Nablus foi incluída no sanjaco de Jerusalém.

O sionismo foi um movimento político surgido no século XIX que defendeu o direito à autodeterminação do povo judeu e à existência de um Estado judaico no território onde historicamente existiram os antigos reinos de Israel e Judá. Dá-se que o sionismo desenvolveu-se num período histórico marcado pelas ideologias nacionalistas, bem como pelo crescimento do antissemitismo. Theodor Herzl notabilizou-se como uma das figuras mais importantes do movimento sionista. Era um intelectual judeu austro-húngaro que, marcado pelo caso Dreyfus, publica em 1896 - Der Judenstaat (O Estado Judeu) - na qual propõe a criação de um Estado para os judeus. O sionismo adquiriu um aspecto institucional em 1897, ano em que teve lugar, em Basileia o primeiro congresso sionista, do qual resultou a formação da Organização Mundial Sionista. Foi ainda neste congresso que se confirmou a opção da Palestina como local de fundação do estado judaico. Entretanto, os primeiros imigrantes judeus, ligados ao movimento russo Bilu, já tinham chegado à Palestina em 1882, onde fundaram colónias.

A colonização judaica da Palestina deu-se a princípio pacificamente, mas foi vista com apreensão pela população nativa, dado o grande número de estrangeiros que chegava à região, e devido a ideologia predominante entre os árabes a favor da criação de uma "Grande Síria", correspondendo às regiões que hoje são os estados da Síria, Líbano, Israel, Jordânia e as regiões da "Faixa de Gaza" e Cisjordânia. Com a intensificação da migração de judeus para a Palestina houve uma escalada de violência na região, com a formação de grupos paramilitares judeus e palestinos. Em 1948, com a Declaração de Independência do Estado de Israel, principia o "conflito israeloárabe". 
Os episódios nacionalistas retiraram à multiplicidade étnica e religiosa o seu lugar na evolução histórica que vinha evoluindo enquanto Império Otomano. 

Em todos os antigos territórios imperiais, os nacionalistas invocavam com eloquência a destruição cultural levada a cabo pelos turcos. É uma ironia, porquanto a heterogeneidade de culturas, de costumes e de línguas é o que atualmente impera nos Estados sucessores dos Balcãs - Bulgária, Roménia, Grécia e Sérvia. Mas o que perdura é a tremenda hostilidade para com os turcos. Para quase todos os Búlgaros, o jugo turco destaca-se até aos nossos dias como o mais negro e deplorável período da história da Bulgária. Na maior parte dos livros da história deste país (tal como nos da Grécia), mal se chega a consagrar um capítulo à era otomana, uma época que teve seis séculos de existência; e quando o fazem, é no tom mais sombrio. 

Ora, o mesmo que se passou nos Balcãs, aconteceu no mundo árabe no fim da Primeira Guerra Mundial. Nos seus esforços para criar um sentimento de comunidade árabe, os nacionalistas condenaram o que tinha a ver com o Império Otomano. Na Palestina, o censo britânico em 1922 registou 752.048 habitantes na Palestina, consistindo de 660.641 árabes, a maioria muçulmana e alguns cristãos; 83.790 judeus; 7.617 outros grupos. Os beduínos não foram contados no censo, mas um estudo britânico de 1930 estimou seu número em 70.860.

Em 1947 a Assembleia das Nações Unidas aprovou a resolução do Plano de Partilha, que estabelecia não apenas o direito de existência na Palestina do Estado de Israel, mas também o reconhecimento ao direito a um Estado próprio ao movimento político nacionalista palestino representante dos árabes residentes naqueles territórios da Palestina, assinalados num mapa anexo. Se quiser, a identidade nacional palestina surgiu de uma progressiva percepção de diferenciação de um grupo no interior do mundo árabe por via das transformações que se desencadearam no Médio Oriente depois do desaparecimento do Império Otomano. Assim, a matriz identitária palestina está mais ligada à pertença a um determinado lugar, do que a uma natureza étnica. Mas também como uma reação de defesa ao movimento sionista que levou a cabo o projeto de implantar na Palestina o Estado de Israel, também de direito reconhecido pela Assembleia Geral das Nações Unidas.

Em 1948 estabelece-se na Palestina um estado judaico independente: Israel. Segue-se uma guerra de Israel com os Árabes, de que resulta a Cisjordânia governada pela Jordânia, e a Faixa de Gaza governada pelo Egito. Mas em 1967 dá-se oura guerra entre árabes e judeus, que ficou conhecida pela Guerra dos Seis Dias. No fim, foi Israel a tomar conta desses dois territórios. E desde essa altura que Israel consegue a benevolência dos países ocidentais para manter esse estado de coisas: os palestinianos cerceados dos seus direitos à autodeterminação e à soberania da sua Palestina, apesar ter sido afirmado por várias vezes por parte da Assembleia Geral das Nações Unidas (133 países em 196); e pelo Tribunal Internacional de Justiça.

quinta-feira, 26 de outubro de 2023

A mãe de todos os conflitos



Na Palestina, depois da Primeira Guerra e do mandato britânico em 1922, O conflito entre nacionalistas palestinos e vários tipos de pan-arabistas continuou. Os britânicos nomearam para Mufti de Jerusalém o nacionalista palestino Mohammad Amin al-Husayni. E nomearam outro líder: o xeique Izz ad-Din al-Qassam. Mas este foi assassinado em 1935 pelos britânicos. E foi a partir daqui e até 1939 que se inicou a revolta árabe na Palestina. Desencadeou-se uma greve geral em Jaffa e as instalações britânicas e judaicas em Nablus foram atacadas. O Comité Superior Árabe exigia o fim da imigração judaica e a proibição da venda de terras aos judeus.

No final de 1936, o movimento tornou-se uma revolta nacional, e a resistência cresceu durante 1937 e 1938. Em resposta, os britânicos declararam lei marcial, dissolveram o Alto Comitê Árabe e prenderam funcionários do Conselho Supremo Muçulmano que estavam por trás da revolta. Em 1939, 5.000 árabes foram mortos nas tentativas britânicas de reprimir a revolta; mais de 15 mil ficaram feridos.

A Assembleia Geral das Nações Unidas, no Plano de Partilha de 1947, aprovou, por dois terços, o mapa das áreas atribuídas a um Estado Judeu, e a área atribuída a um Estado Palestino. E ainda definiu o “Corpus Separatum” – Jerusalém, sob a alçada de um governo internacional que acolhia um condomínio muçulmano+judeu+cristão.

Infelizmente a resolução não vingou, os árabes palestinos rejeitaram o plano e atacaram áreas civis judaicas e alvos paramilitares. Após a Declaração de Independência de Israel, em maio de 1948, Líbano, Egito, Síria, Iraque e Transjordânia vieram em auxílio dos Árabes Palestinos contra o recém-fundado Estado de Israel. Os Árabes sofreram uma forte derrota, catástrofe para os palestinianos que ainda hoje se referem a ele com o termo: Nakba. Abd al-Qadir al-Husayni [1907-abril 1948], que era o líder do Jaysh al-Jihād al-Muqaddas (Exército da Guerra Santa), provavelmente foi morto em combate.

Israel assumiu o controlo de grande parte do território que teria sido alocado ao Estado Árabe se os Árabes tivessem aceitado o plano de partilha da ONU. Juntamente com uma derrota militar, centenas de milhares de palestinos fugiram ou foram expulsos do que se tornou o Estado de Israel. Israel não permitiu que os refugiados palestinos da guerra retornassem a Israel.


Após a guerra, houve um hiato na atividade política palestina. Mais de 400 cidades e aldeias foram despovoadas, e criaram-se centenas de milhares de refugiados. Foram arrasadas 418 aldeias, 46.367 edifícios, 123 escolas, 1.233 mesquitas, 8 igrejas e 68 santuários sagrados, pelas forças israelitas. Muitos com uma longa história, os palestinos perderam muitos hectares de terra, cerca de 150.000 casas urbanas e rurais e 23.000 estruturas comerciais, como lojas e escritórios.

As partes da Palestina Britânica que não se tornaram parte do recém-declarado Estado de Israel, foram ocupadas pelo Egito ou anexadas pela Jordânia. E os palestinos ficaram perdidos por aqueles países à volta de Israel, e naturalmente Israel. Na Conferência de Jericó em 1 de dezembro de 1948, 2.000 delegados palestinos apoiaram uma resolução pedindo "a unificação da Palestina e da Transjordânia como um passo em direção à plena unidade árabe".

Nos anos 1960 formou-se um novo movimento, uma nova geração de palestinos nacionalistas, sobretudo estudantes formados em universidades do Cairo, Beirute e Damasco. Quando se dá a Guerra dos Seis Dias, os palestinos da Cisjordânia e da Faixa de Gaza vivem sob ocupação militar. Entretanto, havia sido formada no cairo, em 1964, a Organização para a Libertação da Palestina (OLP), que incluía a Fatah e a Frente Popular para a Libertação da Palestina.

Em 1974, a OLP foi reconhecida como a única representante legítima do povo palestino pelos Estados Árabes e recebeu o estatuto de observador como movimento de libertação nacional pelas Nações Unidas no mesmo ano. Israel rejeitou a resolução, chamando-a de "vergonhosa".

Entre 1987 e 1993 estabeleceu-se a primeira revolta popular contra a ocupação de Israel. Após a Guerra do Golfo de 1991, as autoridades do Kuwait pressionaram à força quase 200.000 palestinos a deixar o Kuwait pelo facto de a OLP (Yasser Arafat) estado do lado de Sadam Hussein. E seguiu-se, pouco depois, o Acordo de Oslo. Terminado o prazo do acordo (a retirada da Faixa de Gaza em 1999), e Israel não ter cumprido o acordo, emerge em 2000 a Segunda Intifada. O Tribunal Internacional de Justiça observou que, desde que o governo de Israel decidiu reconhecer a OLP como representante do povo palestino, a sua existência deixou de ser um problema. O tribunal observou que o Acordo Provisório israelo-palestiniano sobre a Cisjordânia e a Faixa de Gaza, de 28 de setembro de 1995, também se referiu várias vezes ao povo palestiniano e aos seus direitos legítimos: Estado independente soberano, direito de autodeterminação do povo palestino, um direito inalienável de determinar livremente o seu estatuto político. E, enquanto tal, Israel estava obrigado a reconhecer os palestinos como um povo separado, e respeitar esse direito em conformidade com a Carta das Nações Unidas.

terça-feira, 24 de outubro de 2023

O panorama ideológico do Médio Oriente



Entre a Primeira e Segunda Guerras Mundiais, no mundo árabe, desenvolveu-se o pan-arabismo não territorial e secular, para além dos patriotismos territoriais. Em 1922, para apaziguar os ânimos nacionalistas, os ingleses coroaram dois filhos de Hussein como monarcas pró-ocidentais. Dividiram a Palestina, separando o emirado da Transjordânia para satisfazer Abdallah; e o Iraque foi oferecido a Faisal. Aberrações demográficas que se revelaram, na prática, inviáveis.

Durante a Segunda Guerra Mundial a Alemanha nazi cobiçara o petróleo. A estratégia do Eixo (Alemanha, Itália e Japão) foi alcançar essa fonte, cuja possessão decidiria possivelmente a guerra, por meio da conjunção de duas frentes armadas: a primeira, forçando o seu caminho pela África do Norte através do Egito em direção ao leste; a segunda, indo da Rússia através do Cáucaso em direção ao sul. Caso tivesse tido êxito, hoje não existiria o Estado de Israel. Nesta altura o governo britânico já se distanciara preventivamente de seus compromissos pró-sionistas anteriores.

A queda da França e a fraqueza britânica frente a Hitler só incentivaram a agitação nacionalista. A URSS e a Grã-Bretanha forçaram a demissão do Xá da Pérsia, admirador confesso de Hitler, e o Irão foi ocupado pelos Aliados. Em 1941, um golpe colocou uma conspiração militar a favor da Alemanha no poder no Iraque. Somente após um ano a Grã-Bretanha conseguiu derrubá-la. Algo parecido poderia facilmente ter acontecido no Egito. Porém, em 1942, o destino da guerra mudou, e os alemães foram derrotados em El Alamein. A vitória aliada poupou os árabes de uma ocupação alemã. Mas o preço em troca foi amargar a presença militar reafirmada das potências ocidentais.

A única parte do mundo árabe a não ser colonizada foi a Arábia, sendo considerados como principados primitivos e pobres demais para justificar uma ocupação ocidental. No entanto, nem nas dimensões reduzidas da Arábia peninsular realizou-se o sonho de Hussein em Meca, o de liderar uma independência árabe. Na região vizinha de Najd, o líder tribal Abdul Aziz (“Ibn Sa’ud” – 1876-1953), puritano extremo, renovou nos anos 1920 a coalizão histórica de sua tribo, os sa’ud, com pregadores wahhabitas. Os wahhabitas, seguidores do pregador puritano Muhammad ibn Abd al-Wahhab (1703-1792) são uma seita muçulmana extremista que no começo do século XIX conseguira, numa aliança com os líderes sauditas do Najd, conquistar as cidades sagradas do Hijaz. Com o apoio da irmandade wahhabita dos Ikhwan, ele conquistou o Hijaz em 1924 e expulsou Hussein dos lugares sagrados. Nos anos seguintes, expandiu seu controle sobre os outros xeiques de quase toda a península, estabelecendo em 1932 a monarquia absolutista da Arábia Saudita.

Os seguidores do comunismo, que nos anos 1950 e 1960 conseguirá mobilizar setores proletários, intelectuais e minorias cristãs e judaicas no Egito, no Iraque e em áreas próximas, nunca chegou à amplitude necessária para desafiar as ideologias rivais. A Irmandade Muçulmana era um projeto religioso minoritário. A primeira onda fundamentalista a sacudir o mundo muçulmano teve as suas origens no Egito. Em 1981, ativistas da Jihad cometeram novas atrocidades contra os coptas.

Após uma série de distúrbios por causa da fome e outros incidentes sérios, o Takfir wa-Hijra sequestrou e assassinou, em 1977, o xeique Muhammad Hussein al-Dhahabi, líder muçulmano moderado. Tanto pan-arabistas seculares quanto islamistas rejeitaram tal acomodação e a denunciaram como traição. Os espíritos se inquietaram ainda mais com a assinatura do acordo de paz em 1979. No mesmo ano, Sadat defendeu a separação entre Estado e religião. A oposição ao regime autoritário foi crescendo, tanto do lado de intelectuais progressistas quanto de fundamentalistas. Paralelamente, a repressão oficial aumentou. No período de Sadat, a guinada pró-EUA, a liberalização da economia e a paz com Israel provocaram o isolamento do Egito no mundo árabe. Esta conjuntura constituiu um chão fértil para grupos fundamentalistas, que se inspiravam em Qutb. Desde o seu martírio na prisão que Qutb se tornou o maior guru dos fundamentalistas sunitas. Sua obra mais extremista, Marcos Miliários (Ma’alim fi al-tariq), tem sido leitura obrigatória para gerações de fundamentalistas posteriores, que começaram a atacar os alvos simbólicos ocidentais. Depois, o tenente Khalid Islambouli assassinou Sadat durante um desfile militar. Islambouli pertencia à Jihad, e obtivera o aparente aval do xeique cego Umar Abdul Rahman. O assassinato provocou uma turbulência política que chocou extremamente a elite egípcia, provocando forte reação.

Sob a gestão do sucessor de Sadat, Hosni Mubarak, a polícia reprimiu a organização fundamentalista, mas não pôde evitar que um levantamento islamista acontecesse no mesmo ano em Asyut, no sul do Egito. O Egito meridional contava com as maiores concentrações tanto de fundamentalistas muçulmanos quanto de coptas. Islambouli, o assassino de Sadat, Muhammad Abdul Salam Faraj, o ideólogo do movimento, e alguns de seus colegas foram executados; outros foram condenados a penas de prisão. Abdul Rahman, após sua libertação, migrou para os EUA. Ali fez parte da conspiração, em 1993, do primeiro ataque – fracassado – para explodir o World Trade Center.

Naguib Mahfouz, romancista e prémio Nobel, favorável à paz com Israel, em 1994, enquanto saía da sua casa no Cairo, foi esfaqueado no pescoço por um fundamentalista islâmico, cuja ação foi inspirada na declaração emitida pelo clérigo radical Omar Abdel-Rahman, segundo a qual os livros de Mahfouz constituíam blasfémia e que o escritor merecia morrer. A estratégia islamista de desestabilização mais brutal – e potencialmente mais eficaz – foi de atingir o turismo, uma das principais fontes de rendimento.

Em 1996, fundamentalistas mataram dezoito pessoas em Luxor; no ano seguinte, mais de sessenta. Terror arbitrário contra civis inocentes, que repugnou até os múltiplos simpatizantes passivos do fundamentalismo. No olhar dos perpetradores, porém, esta inocência das vítimas não existe e não poderia existir. As próprias leis islâmicas proíbem fazer mal a inocentes e contêm uma cadeia de recomendações para proteger pessoas vulneráveis. Mas os islamistas contornam esta dificuldade com artifícios teológicos. Cada vez menos se usam as roupas tradicionais e os vestidos ocidentais, considerados descobertos demais, e se vê mais o típico “uniforme” fundamentalista sunita: o véu branco e o casaco cinza ou marrom que cobre o corpo inteiro e dissimula as suas formas, deixando visíveis somente o rosto e as mãos.

Ao contrário do Egito, nessa altura a Síria era diferente. Sociedade extremamente fragmentada etnicamente, entre árabes, curdos e outras etnias; economicamente, entre citadinos e camponeses; e religiosamente, entre sunitas, drusos, uma abundância de Igrejas cristãs, ismaelitas, para além dos cerca de um milhão de alawitas ou nusairis, seita xiita extremista cuja religião é secreta, mas que está tão longe da ortodoxia que os sunitas não os consideram como muçulmanos. Os franceses eram muito menos abertos à perspetiva de autodeterminação política árabe, portanto a descolonização de suas possessões se deu mais vagarosamente. A Síria, extremamente dividida entre comunidades étnico-religiosas, se tornou o centro do nacionalismo pan-árabe – liderado pelos sunitas – e de protestos contra a partilha do mundo árabe. Para enfraquecê-la, a França separou do corpo sírio o Vale do Bekaa e alguns outros territórios costeiros povoados por muçulmanos, juntando-os ao Monte Líbano: esta região também era de composição complexa – a maioria do campesinato e da burguesia era composta de maronitas e drusos, mas as tensas relações entre eles proporcionaram o pretexto para uma intervenção francesa. A ampliação do Líbano com novos territórios muçulmanos criou ali um frágil equilíbrio demográfico – garantia de tensões adicionais, que por sua vez justificaram a ordem mantida pela presença francesa. A Síria, obviamente, recusou esta “cirurgia territorial” e nunca aceitou a existência separada do Líbano – tampouco de seus outros vizinhos árabes, a Palestina e a Jordânia.

Isso é relevante a partir do momento em que o líder Bashar al-Asad e boa parte da elite no poder do Ba’ath sírio são alawitas: o secularismo do programa ba’athista os atraía, e devido aos privilégios dado a eles pelos franceses, logo controlaram as alavancas para a tomada de poder, o que aconteceu em 1966. Tal situação continua até nossos dias; o regime alawita se esconde, porém, atrás um véu de pan-arabismo meramente formal. Este pan-arabismo é particularmente adequado pois a Síria carece de claras fronteiras ou de uma identidade histórica própria. Do ponto de vista sírio, o Líbano, a Jordânia e a Palestina fazem parte da Grã-Síria.

Em relação ao Iraque, Bagdad era uma capital de cultura literária sofisticada. E em direção à foz, o Iraque tem duas cidades sagradas xiitas: Karbala e Najaf. Esses são os locais do martírio de Ali e Hussein. Os sunitas desprezavam os xiitas, considerando-os como praticamente não árabes, mas a diferença era ainda maior com os habitantes do Iraque setentrional. No Norte, a província de Mossul, rica em petróleo, fora cedida com relutância pela Turquia. Mas a sua população curda também não era bem-vinda sob o teto iraquiano. Para consolidar o seu poder, os ingleses deram autoridade artificial a chefes tribais. No Iraque, uma tradição parlamentar quase não se desenvolveu – ao contrário do Egito, da Índia e de outras colónias inglesas. Desde que chegou à independência, em 1932, o país conheceu somente a instabilidade.

Ao mesmo tempo as tensões cresciam continuamente entre judeus sionistas e árabes na Palestina. Os sionistas queriam obter uma maioria judaica na Palestina. E os árabes da Palestina recusavam compartilhar o poder com os judeus.



segunda-feira, 23 de outubro de 2023

Os efeitos pós-otomanos no Médio Oriente



O Império Otomano congregou diferentes grupos étnicos e religiosos. Houve momentos em que a interação foi cooperante e harmoniosa, porém, sob as pressões do moderno nacionalismo, essas relações étnicas e religiosas deterioraram-se. Uma questão penosa que não afeta apenas os palestinianos. Tais conflitos nada tinham de inevitável. A explicação para cada um deles reporta-se aos séculos XIX-XX e baseia-se, não em animosidades raciais, mas no desenrolar de ocorrências específicas.

Revisitando Edward Said, que foi dos poucos a sugerir uma terceira via (nem Arafat, nem Hamas, não apoiou o acordo de paz de Oslo), a melhor solução para a paz seria a criação de um único estado binacional que englobasse Israel, Cisjordânia e a Faixa de Gaza. Ele dizia que os estereótipos apresentam sempre uma imagem distorcida, e por outro lado, para justificar a autonomia, inventam-se novos passados. A despeito de todos os estereótipos e preconceitos, e para fundamentar a sua posição, assegurava que ao longo de grande parte da história otomana as relações intergrupais tinham sido razoavelmente pacíficas, tendo em conta os padrões da época. Durante séculos a fio, as minorias do império otomano desfrutaram de mais direitos e de maior proteção legal do que as suas congéneres sob o domínio dos europeus. As relações entre as comunidades otomanas agravaram-se devido às potências ocidentais, ao introduzir o seu capital e à sua ingerência nos assuntos otomanos.

Um exemplo paradigmático é o surgimento dos sindicatos em Salónica. Os sindicatos como forma de organização laboral chegaram numa fase bastante tardia da era otomana; os mais importantes (talvez todos eles) nasceram no âmbito do capital estrangeiro. Raramente foram homogéneos do ponto de vista religioso. No início, os empregados do comércio muçulmanos e cristãos organizaram-se em dois sindicatos distintos (1908); contudo, decorridas algumas semanas, fundiram-se numa única organização. A característica intercomunitária dos sindicatos é vivamente ilustrada por uma manifestação de protesto realizada em junho de 1909 (contra as políticas laborais do Estado); a manifestação teve lugar em Salonica, tendo os oradores discursado à multidão em otomano, búlgaro, grego e ladino (espanhol arcaico, cuja escrita utiliza caracteres hebraicos). Salónica notabilizava-se pelo caracter multiétnico e multicultural da atividade da sua classe operária, tendo parte dela evoluído para movimentos socialistas.

As práticas de contratação das empresas estrangeiras são fundamentais para se compreender as tensões intercomunitárias, que passaram a ser demasiado comuns no mundo otomano do século XIX. As empresas estrangeiras ascendiam às dezenas; entre elas incluíam-se os caminhos-de-ferro, bancos, companhias portuárias e serviços públicos, bem como indústrias têxteis e alimentares. No seu conjunto, empregavam um avultado número de súbditos otomanos - mais de 13.000 trabalhavam nos caminhos-de-ferro, tendo o Gabinete da Dívida Pública Otomana contratado mais de 5.000 funcionários. A questão relaciona-se, aqui, com a estratificação do trabalho nas empresas estrangeiras recém-criadas (por vezes, de grande envergadura). Os muçulmanos encontravam-se na base dessa hierarquia empresarial, desempenhando as funções menos qualificadas e auferindo os salários mais baixos. Além disso, em épocas críticas, a tendência dessas companhias era recrutar uma quantidade desproporcionada de estrangeiros e de não muçulmanos, como se desconfiassem dos empregados e operários muçulmanos.

De um modo mais ou menos equiparável, a liderança dos sindicatos tendia a ser maioritariamente cristã, sendo mistas as suas fileiras (cristãos e muçulmanos). Deve salientar-se que tal desenvolvimento não era intrinsecamente necessário. O capitalismo não tem de gerar estratificações sindicais de cariz étnico ou religioso, embora por vezes isso tenha acontecido. Todavia, no caso particular otomano, a interação do capital estrangeiro com a sociedade local (otomana) privilegiou como força laboral os correligionários dos investidores estrangeiros. Este escalonamento colocava os estrangeiros e os não muçulmanos em posições de superioridade em relação aos muçulmanos, invertendo, dessa forma, o velho e centenário paradigma otomano da predominância política e jurídica muçulmana.


Todos os anos as salas do Congresso americano incendeiam-se com os grupos de pressão gregos, armênios e turcos, que procuram o apoio do governo americano para as suas respetivas posições a favor ou contra as comemorações oficiais dos acontecimentos da I Guerra Mundial. As atrocidades principiaram com os massacres dos arménios em 1895-1896, repetindo-se nos anos de 1908, 1909 e novamente em 1912. Neste último caso, os refugiados muçulmanos que haviam sido expulsos das províncias europeias aquando dos conflitos dos Balcãs atacaram as comunidades arménias na costa norte do mar da Mármara. Esses refugiados haviam acorrido em massa àquelas paragens em busca de abrigo, pois haviam sido escorraçados das suas terras, fazendo recair a sua ira e frustração sobre os inocentes e desafortunados Arménios otomanos. As chacinas de 1915-1916 foram, sem dúvida, as piores. Calcula-se que tenham morrido cerca de 600.000 Arménios otomanos após terem sido deportados da sua região natal da Anatólia Oriental.

O acontecimento não se enquadrou no padrão nazi que procurou capturar e exterminar todos os elementos de um grupo enquanto tal. Curiosamente, os Arménios que se encontravam fora das zonas de combate não foram abrangidos pelas deportações ou pelos massacres. Nem procurou o governo otomano ou a Organização Especial expatriar ou exilar as comunidades arménias otomanas que viviam na Anatólia Ocidental e nos Balcãs meridionais. Em cidades como Istambul e Esmirna, no período de 1915-1916, as numerosas comunidades arménias permaneceram incólumes no local onde habitavam, prosseguindo a sua vida. Nesse mesmo período, em acentuado contraste, chacinavam-se centenas de milhar de compatriotas seus das províncias orientais dilaceradas pela guerra.


Em todos os casos de formação dos Estados sucessores do Império Otomano, foi o Estado que antecedeu a nação e não o contrário. A fundação de países independentes decorreu não de movimentos espontâneos, mas sim da ação de certos círculos da sociedade que procuravam privilégios económicos e/ou políticos, a que não tinham acesso sob o domínio otomano. Ou seja, um punhado de indivíduos estabeleceu um aparelho governativo, traçou as fronteiras no mapa, fez a bandeira e o hino nacional. A sua criação é um testemunho do apoio das grandes potências, da determinação e da capacidade de organização dos separatistas. Foi nessa base que fundaram novos Estados, dentro dos quais principiaram a construir as novas nacionalidades.

Não obstante as próprias tendências seculares dos Jovens Turcos, a componente islamita da identidade otomana ganhou maior importância depois de 1908 em virtude da intensificação do desmembramento das províncias europeias do império (na sua maior parte cristãs). Predominava claramente entre os Jovens Turcos uma mundividência secular e otomana, mantendo-se dispostos a moldar uma nova identidade nos seus súbditos. A aprovação da nova Lei Eleitoral após a Revolução de 1908 é um sinal desse esforço de criação de uma identidade otomana comum. Procurava-se eliminar a representação por comunidade religiosa e substituir a política comunitária pela política partidária. Em geral, a atuação dos regimes otomanos pós-1908 refletia fortes tendências centralizadoras, insistindo num apertado controlo e na imposição de padrões imperiais uniformes e não no nacionalismo turco.

Em 1914 a grande maioria dos súbditos povos otomanos - qualquer que fosse a sua etnia ou religião - não pretendia libertar-se; desejava, antes, conservar a sua identidade como súbditos otomanos. Os acontecimentos ocorridos no Médio Oriente após a I Guerra Mundial são, em parte, a chave para se entender a dissolução do império. A França e a Grã-Bretanha repartiram entre si as províncias árabes, aí impondo regimes que as governavam sob sua tutela; até meados da década de 50, no século XX, essa tutela enquadrou-se no âmbito da Sociedade das Nações e assumiu formas diversas. Era intenção dos Franceses e dos Britânicos entregar uma vasta faixa territorial da Anatólia aos seus protegidos de Atenas, mantendo-se um insignificante resquício do Estado otomano. Em vez disso, a resistência otomana uniu forças, porém, incapaz de restaurar o império, resignou-se com a fundação de um Estado de menores dimensões no seu fragmento anatólio, naquele que mais tarde viria a ser o Estado da Turquia.

domingo, 22 de outubro de 2023

O diálogo entre Israel e a Palestina, e o fundamentalismo de ambos os lados



A partir de 1960, no mundo islâmico, tal como no Ocidente, as subtis mudanças ideológicas começaram na academia. Antes do fundamentalismo emergir em outros lugares, alunos islamistas na Palestina já tinham obtido o controlo das universidades, que outrora tinham sido as fortalezas do nacionalismo secular.

Para entender a centralidade do fundamentalismo no conflito da Palestina é preciso recuar um pouco no tempo. A Palestina abriga a mais antiga comunidade cristã do mundo, dividida em inúmeras Igrejas que atualmente estão em declínio. 
Mas a população, durante o século XX, havia sido relativamente ocidentalizada e secularizada. Hoje na Palestina, pelo menos 85% são muçulmanos, quase todos sunitas.

A Palestina, depois da Primeira Guerra Mundial, e entre 1920 e 1948, esteve sob administração britânica por mandato. Durante esse período decorreu uma migração significativa de judeus para esse território, que supostamente devia ter terminado com a partilha do mandato em dois Estados: Israel e Palestina. Mas o que veio ao de cima foi apenas um Estado de Israel aos olhos de muitos muçulmanos. E a mera existência de Israel passou a constituir uma afronta ao “povo árabe”. Sim, para os muçulmanos, os palestinianos são povo árabe.

Em 1967 deu-se a Guerra dos Seis Dias, e a partir daí o conflito entre o povo árabe e o povo judeu agudizou-se ainda mais até aos dias de hoje. No entanto, pelo povo árabe, quem dá a cara é o islão conservador, sem os traços daquele modernismo que se identifica com o chamado “Ocidente”. Entre 1936 e 1939 tinha havido uma revolta popular anticolonial e antissionista. Uma guerrilha rural liderada por Izz al-Din al-Qassam, hoje considerado o pai fundador da resistência islâmica na Palestina, deu o seu nome ao Hamas. Entre 1947 e 1948, na luta contra a instauração do Estado de Israel, destacou-se a Irmandade Muçulmana do Egito, considerada a mãe do Hamas na organização das suas células na Palestina. Isso não evitou a fragmentação dos palestinianos em grupos dispersos de refugiados na Jordânia, Síria e Egito.

O renascimento do nacionalismo palestino começou a surgir em finais da década de 1950. No entanto, na Jordânia, que absorveu a maior parte dos refugiados, a integração da Irmandade Muçulmana no sistema da monarquia absoluta causou-lhe a perda da credibilidade. Contudo, a OLP, o novo nacionalismo palestiniano, que surgiu nos campos de refugiados da Jordânia, não teve como motor o pendor religioso do islamismo. A OLP definiu a sua meta em termos não religiosos, ou seja, a implantação de um Estado Secular Multiconfessional. E como únicos a desafiar o poder de Israel, o seu nacionalismo atingiu o auge na década de 1980. 

Mas, entretanto, em 1979, chegou a Revolução Islâmica Khomeini, no Irão. E então o fulgor da luta palestiniana adquiriu um novo ímpeto. Os debates dentro da comunidade palestina levaram à evolução de um movimento islamista independente da OLP, até então a única detentora da legitimidade nacionalista. Israel inicialmente apoiou os islamistas, acreditando serem uma alternativa aos nacionalistas da OLP não tão difícil de combater, e fator de divisão.

Os fracassos da OLP nos processos de paz se combinaram perfeitamente com os sucessos da oposição religiosa. No contexto palestiniano, a onda fundamentalista começou com a primeira intifada (1987-1993). A OLP de Arafat só parcialmente controlou a intifada; nos confrontos com soldados israelitas, a tendência fundamentalista cresceu espantosamente, e logo se constituiu como a segunda força política alternativa à OLP. A sua emergência se beneficiou do facto de que as mesquitas eram a última instituição não desmantelada por Israel.

Em finais de 1980, o Jihad Islami, de Fathi Shiqaqi, ainda era o grupo fundamentalista mais ativo nos territórios ocupados. Mas logo de seguida foi ultrapassado pelo Hamas - Harakat al-Muqawwama al-Islamiyya, Movimento Islâmico de Resistência - filho indisciplinado da Irmandade Muçulmana. Ativistas tais como o xeique Ahmad Yassin criticavam os “irmãos” como sendo gradualistas demais e não assertivos o bastante contra os sionistas. Numa tentativa (bem-sucedida) de ultrapassar a Fatah em extremismo, desenvolveu-se uma ideologia islamista que substituiu a nacionalista e secular da OLP. Essa nova ideologia está articulada na Carta do Hamas, 1988, o seu documento fundador. 

Na visão do Hamas, a raiz do problema são os judeus que querem controlar o mundo. Essa ideologia religiosa inverte a incorporação do nacionalismo. Para o Hamas a questão da Palestina como Estado é secundária. O que lhe interessa é o islamismo. E o islão basta estar salvaguardado na Esplanada das Mesquitas, ou Mesquita Al-Aqsa. Ou seja, o caso se resolve pela sua presença em Jerusalém, cuja santidade tem um alcance universal. Enquanto Terra de Deus, a Palestina integra o Dar al-Islam, que é pertença de todos os muçulmanos. São interessantes estes paralelos do Hamas com o sionismo de direita em Israel, que considera a Terra de Israel (terminologia judaica para a Palestina) como pertencente a todos os judeus do mundo. É o fundamentalismo judaico que, numa linha semelhante de argumentação, considera a Terra de Israel a casa de Deus. Assim, para ambos estes lados, a partilha com o inimigo, o infiel, está fora de questão. 

A ideologia do Hamas revelou-se tão acirrada como a ideologia sionista de Israel c
om a sua oposição à tendência nacionalista de Arafat. Daí que as relações entre essas duas grandes tendências palestinas exibam uma mistura ambivalente de inimizade e até de violência aberta entre si, cuja moderação no discurso para fora é apenas tática, para não perder apoio do exterior à causa palestiniana.

A tensão entre a OLP e o Hamas chegou ao auge com a assinatura dos Acordos de Oslo, em 1993. Diametralmente opostos ao processo de paz, os islamistas tentaram miná-lo atacando-o. Na sua luta, o Hamas em geral não diferenciava entre combatentes e civis, dando como argumento a suposta militarização da sociedade israelita. Israel se retiraria progressivamente dos territórios ocupados e permitiria ali o estabelecimento da Autoridade Palestiniana numa "espécie" de Estado Palestiniano. E Arafat, por seu lado, se comprometia a manter os opositores islamistas violentos sob controle. Os pontos remanescentes de desacordos territoriais e demográficos seriam negociados posteriormente. Mas Israel prosseguiu com a construção de assentamentos, os tais colonatos que só tem dificultado a boa-fé dos acordos. E a Autoridade Palestina falhou lamentavelmente em toda a linha de supressão do terrorismo partindo da Faixa de Gaza. É difícil determinar se essas faltas foram premeditadas ou se resultaram de um ciclo de mal-entendidos e da violência dos extremistas de ambos os lados.

Continuar as ações “militares”, mais propriamente (do ponto de vista de suas vítimas civis), “terroristas”, era a mais efetiva estratégia contra a Autoridade Palestina, considerada colaboradora do inimigo. Seguem-se, já nos anos 1994 e 1995, os sequestros e ataques suicidas contra alvos militares e civis – são os primeiros homens-bomba palestinos. As reações punitivas israelenses automaticamente vitimaram mais a população civil palestina do que os perpetradores e seus recrutadores. A autoridade de Arafat foi duplamente minada: aos olhos de Israel, por ele não conseguir prevenir atos terroristas; e aos olhos dos palestinos, por ele não conseguir protegê-los da ira de Israel.

Para a maioria dos palestinos, o Hamas era sinónimo de uma rede de assistência social, mais ampla e honesta do que a oficial da Autoridade Palestiniana. Em consequência, o apoio popular à solução islamista cresceu. Um novo governo de direita em Israel congelou a negociação com Arafat, acusando-o de incentivar o terror. Além disso, o espaço de manobra da AP já diminuíra: desde 1994, fechamentos punitivos e outras medidas impostas por Israel geraram o empobrecimento dos palestinos, limitaram as possibilidades de clientelismo de Arafat e conduziram a políticas de repressão, que só aumentaram a frustração dos palestinos, sem favorecer Israel. O Hamas obteve vários sucessos – o mais significativo sendo a volta de seu líder espiritual Yassin a Gaza.

Nesse clima de crescente impaciência, incredulidade e intransigência mútuas, o fracasso das negociações em Camp David em julho de 2000 não surpreendeu. As consequências foram gravíssimas, pois isso conduziu à segunda intifada que imediatamente criou um novo ciclo de violência. A resistência palestina retomou o uso, mais intenso do que nunca, do terrorismo contra civis. Isso levou à punição israelita, como a incursão sanguinária em Jenin e outras cidades da Cisjordânia em abril de 2002. Isto acabou com o poder de facto de Arafat, doravante preso na sua fortaleza parcialmente bombardeada em Ramallah. Dentro do campo palestiniano o Hamas foi o grande vencedor dessas batalhas. Mas a causa islamista está muito para lá da causa palestiniana. As raízes do Hamas e da Jihad Islâmica mergulham em interesses mais alargados e profundos. Daí que, mesmo que um dia se alcance a paz na  Palestina, as convulsões por via do fundamentalismo islâmico continuarão vivas. 

sábado, 21 de outubro de 2023

Ilha de Tiran





Ilha de Tiran é uma ilha que pertence à Arábia Saudita, mas que foi anteriormente administrada pelo Egito. O Estreito de Tiran, único acesso de Israel ao Mar Vermelho pelo Golfo de Aqaba, pelo facto de ter sido bloqueado pelo Egito, em 22 de maio de 1967, foi o casus belli da Guerra dos Seis Dias.

Já em maio de 1948 o Egito havia bloqueado a passagem pelo Canal de Suez a navios registados em Israel e que transportavam carga de e para todos os portos de Israel. Uma vez que todas as rotas comerciais terrestres foram bloqueadas por outros Estados árabes, a capacidade de Israel de comunicar com a África Oriental e com a Ásia, principalmente para importar petróleo do Golfo Pérsico, estava severamente prejudicada.

Em março de 1949, as forças de Israel assumiram o controlo da área ao redor da vila costeira de Umm al-Rashrash, mais tarde renomeada Eilat, como parte da Operação Uvda. As ilhas de Tiran e Sanafir estavam desabitadas, mas ganharam importância estratégica, uma vez que controlavam todos os navios para Eilat, o único acesso de Israel ao Mar Vermelho.

Em dezembro de 1949, o Egito começou a erguer instalações militares em Tiran, Sanafir e na costa do Sinai, em frente às ilhas, para controlar os estreitos. Logo depois, o governo egípcio, negando oficialmente interferir na navegação civil, enviou à Arábia Saudita, Reino Unido, e EUA, em 30 de janeiro e 28 de fevereiro de 1950 o seguinte comunicado: «Tendo em conta certas veleidades que se manifestaram recentemente por parte das autoridades israelitas em nome das ilhas de Tiran e Sanafir, no Mar Vermelho, à entrada do Golfo de Aqaba, o Governo do Egito, agindo em pleno acordo com o Governo da Arábia Saudita, deu ordens para ocupar efetivamente estas duas ilhas. Essa ocupação agora é um facto consumado.» O Egito reivindicava o direito às ilhas, admitindo também o possível direito ao Reino da Arábia Saudita. Ao fazer isso, o Egito queria simplesmente confirmar o seu direito (bem como todos os direitos possíveis do Reino da Arábia Saudita) em relação às ilhas mencionadas atendendo à sua posição geográfica - 3 milhas náuticas do lado do Sinai egípsio; e 4 milhas aproximadamente do lado da Arábia Saudita. 

A Ilha Tiran foi capturada pelas tropas de Israel durante a Guerra dos Seis Dias. Em janeiro de 1968, o governo dos EUA apoiou uma tentativa de induzir a retirada de Israel daquela ilha, como um movimento de abertura para um processo de paz. Tal iniciativa fracassou. Tiran permaneceu sob controlo de Israel até ser entregue ao Egito em 1982, em cumprimento do tratado de paz de 1979 assinado pelo Egito e Israel. O tratado inclui uma garantia de liberdade de navegação de Israel através do Estreito de Tiran.

Depois veio o acordo do Egito em entregar as ilhas de Tiran e Sanafir à Arábia Saudita, que exigiu a aprovação de Israel. Tal aprovação foi dada semanas antes de ser tornada pública, por escrito ao Egito, e indiretamente à Arábia Saudita. No entanto, um tribunal egípcio ainda chegou a rejeitar a transferência das ilhas para a Arábia Saudita depois que uma equipa de advogados ter apresentado documentos históricos que legitimavam ao Egito a propriedade das ilhas. O tribunal deu razão a esta petição alegando que o governo egípcio não tinha fornecido provas de que as ilhas pertenciam à Arábia Saudita.

Em 14 de junho de 2017, o Comité de Defesa e Segurança Nacional do Egito aprovou por unanimidade a transferência das ilhas Tiran e Sanafir para a Arábia Saudita. E no mesmo dia o plano foi aprovado pelo Parlamento egípcio. Em 21 de junho de 2017, o supremo tribunal do Egito revogou os veredictos judiciais anteriores. Em 24 de junho de 2017, Abdel Fattah el-Sisi, presidente do Egito, ratificou o acordo de cedência da soberania sobre as duas ilhas do Mar Vermelho, Tiran e Sanafir, à Arábia Saudita. Em 14 de julho de 2022, Israel concordou com o acordo entre a Arábia Saudita e o Egito.

Na História Antiga, a Ilha de Tiran chamava-se Ilha de Yotabe. Era assim que Procópio de Cesareia [historiador bizantino do século VI] a descrevia: «A oeste ficava a extremidade sul do Sinai; a leste, a costa norte da Arábia. A ilha em forma de tubarão situa-se bem no meio do estreito, bloqueando a passagem de navios que desejam seguir para o norte, pelo mar Vermelho, ou para o sul, pelo Golfo de Aila (hoje Ácaba). Procópio nos informa que muitos judeus viviam radicados na ilha havia gerações. Exceto por um pequeno número de cristãos, Yotabe era uma ilha judaica, com uma comunidade que, segundo se dizia, se instalara ali depois da destruição de Jerusalém pelos romanos. Todavia, como os judeus já vinham saltado de terra em terra bem antes do século I d.C., é possível que sua presença na Ilha de Yotabe, comercialmente estratégica, tivesse começado muito antes.

Entre Yotabe e Áden estendia-se toda uma cadeia de assentamentos e cidades judaicas espalhados ao longo das rotas de camelos da Via Odorífera, desde o Iémen, pela periferia do deserto, pontilhada de oásis, até chegar ao Hedjaz, o flanco noroeste da península da Arábia, e a cidades como Hegra, Ula e Tabuq, onde viviam árabes judaizados e judeus árabes. Havia uma rede de vínculos comerciais com as comunidades da Palestina e da Mesopotâmia já estabelecida de longa data.

Se hoje esta história nos parece paradoxal, a verdade é que durante dois séculos, antes do surgimento do islão, essa rede económica e cultural era um facto natural. Por seu lado, os judeus da Arábia, com os nabateus do Neguev e os habitantes das montanhas de Moab, tinham aprendido e coletar e preservar as chuvas preciosas e repentinas, e a canalizar correntes subterrâneas, para que as tamareiras florescessem. Os clãs e as tribos de judeus possuíam pomares de tamareiras.

Cruzando a Arábia com caravanas de camelos, antes do advento de Maomé, estas comunidades de mercadores dominavam estas cidades e os seus mercados que eram fortificadas para o efeito. É claro que havia nomes de clãs, como os kahinan [os Cohen da Arábia], assim chamados por fontes islâmicas. Houve quem chegasse ali vindo de Tiberíades e outras cidades da Palestina quando fazia parte do domínio bizantino. Havia também uma comunidade de levitas. Palavras como: nabi; sadaaqa; rahman - passaram intactas para o islão. Havia judeus árabes de várias profissões: marinheiros, escultores, escribas e poetas, comerciantes, artistas manuais e agricultores.

Mesmo depois do século VI, em que Justiniano pôs fim à liberdade da ilha, os judeus de Yotabe ali permaneceram, recolhendo impostos e fiscalizando carregamentos de feras africanas destinadas aos jogos que ainda restavam (oficialmente ilegais) organizados pelos aristocratas de Roma e Bizâncio. Junto com os grandes felinos e elefantes, passavam por Yotabe todas as riquezas da Arábia muito lucrativas: almíscar; incenso usado por cristãos, judeus e pagãos; óleos aromáticos e resinas elásticas; pedras preciosas e o coral retirado, como ainda hoje, de recifes do mar Vermelho, usados como amuletos e pendentes de cordões de prata e ouro. De mais longe provinha a seda asiática que ia para o norte e o oeste, trocada por linho egípcio que viajava para o sul e o leste. Efetivamente, em meados do século VI o imperador Justiniano, com a sua ilusória obsessão de consolidar novamente o Império Romano, embora desta feita era já um império cristão, não estava disposto a ceder o comando estratégico do estreito a nenhum grupo que não estivesse plenamente empenhado nas guerras constantes que tinha com os persas. E os judeus das fronteiras eram conhecidos por procurar comprometer o menos possível a tranquilidade do comércio e dos seus negócios.

quinta-feira, 19 de outubro de 2023

Theodor Herzl





Theodor Herzl [1860-1904] – um jornalista e crítico literário austro-húngaro de Viena, de família judaica, advogado formado na Universidade de Viena – foi um dos fundadores do sionismo político.

Os pogroms russos de 1881 haviam-no chocado profundamente. Quando, em 1895, Viena elegeu o agitador antissemita Karl Lueger como presidente de Viena, Herzl escreveu: “O estado de espírito entre os judeus é de desespero”. Nesse mesmo ano, ele esteve em Paris cobrindo o Caso Dreyfus, no qual um judeu oficial do exército, inocente, foi enquadrado como espião alemão. Herzl pôde ver turbas parisienses uivando "Mort aux Juifs" no país que havia emancipado os judeus. Isso serviu para reforçar a sua convicção de que a assimilação não só tinha fracassado como também estava provocando mais antissemitismo. Chegou a prenunciar que um dia o antissemitismo seria legalizado na Alemanha.

Herzl concluiu que os judeus jamais estariam a salvo sem a sua própria pátria. A princípio, esse sujeito metade pragmático, metade utópico sonhava com uma república aristocrática germânica, uma Veneza judia regida por um senado, com um Rothschild como doge principesco e ele próprio como chanceler. Era uma visão secular: seus modernos cidadãos judeus jogariam críquete numa Jerusalém moderna. Os Rothschild, inicialmente céticos em relação a qualquer Estado Judaico, rejeitaram as tentativas de aproximação de Herzl, mas essas primeiras notas logo amadureceram para se transformar em algo mais prático. “A Palestina é o nosso histórico e sempre memorável lar”, proclamava ele em "O Estado Judaico", em fevereiro de 1896.

Não havia nada de novo quanto ao sionismo — até mesmo a palavra já fora cunhada em 1890 —, mas Herzl deu organização e expressão política a um sentimento muito antigo. Os judeus encaravam sua própria existência pautados na relação com Jerusalém desde o rei David e, em particular, desde o Exílio Babilónico. Os judeus oravam em direção a Jerusalém, iam para lá em peregrinação, queriam ser ali enterrados e, sempre que possível, rezavam em volta dos muros à volta do Monte do Templo.

Os pioneiros sionistas foram rabinos ortodoxos que viam o Retorno à luz da expectativa messiânica. Em 1836, um rabino asquenaze da Prússia, Zvi Hirsch Kalischer, havia abordado um Rothschild e os Montefiore para fundar uma nação judaica. Mais tarde, Kalischer escreveu o livro 'Buscando Sião'. Em 1862, Moses Hess, um camarada de Karl Marx, prenunciou que o nacionalismo levaria a um antissemitismo racial. Em seu livro 'Roma e Jerusalém': "a última questão nacional propunha uma sociedade judaica socialista na Palestina". Todavia, os pogroms russos foram o fator decisivo.

Leo Pinsker, médico de Odessa, em seu livro 'Autoemancipação', inspirou um novo movimento de judeus russos — “Os amantes de Sião” — a desenvolver assentamentos agrícolas na Palestina. Numa altura em que Chaim Weizmann ainda era um jovem crente, os Rothschild, na pessoa do barão francês Edmond, começaram a financiar vilas agrícolas para imigrantes russos. Edmond ainda tentou comprar o Muro das Lamentações, em 1887. Inicialmente, o mufti Mustafa al-Husseini tinha dado a entender a sua concordância. Quando Edmond Rothschild tentou ultimar o negócio em 1897, o xeque Husseini al-Haram bloqueou a iniciativa.

Em 1883, 25 mil judeus começaram a chegar à Palestina, a Aliyah, na primeira leva de imigração. A maioria (mas não todos) vinha da Rússia. Jerusalém já tinha atraído iranianos nos anos 1870. E iemenitas na década de 1880. Era para todos os efeitos uma convivência comunitária. Mas os judeus oriundos de Bucara estabeleceram o seu próprio bairro com grandiosas mansões — em geral neogóticas e neorrenascentistas ou às vezes mouriscas — projetadas para se assemelharem àquelas das cidades da Ásia Central. Em agosto de 1897, Theodor Herzl presidiu o primeiro Congresso Sionista em Basileia. A fotografia tirada nessa altura à varanda do hotel serviu para o selo do centenário do seu nascimento comemorado em Israel.

Herzl acreditava em um sionismo não construído de baixo para cima por colonizadores, mas concedido por imperadores e financiado por plutocratas. Os primeiros Congressos Sionistas idealizados e desenhados por Francis Montefiore, foram financiados pelos Rothschild. No entanto, Herzl precisava de uma figura política de alta envergadura com poder de influência junto do sultão. Então tentou seduzir o Kaiser alemão Guilherme II com a ideia de um Estado judeu à semelhança do alemão, incluindo o alemão como língua oficial. Essa ideia afigurava-se oportuna tanto mais que Guilherme II há algum tempo que estava a planear uma viagem pelo Médio Oriente e encontrar-se com o sultão. A ambição de Guilherme II era oferecer ajuda alemã ao Império Otomano com o fito de neutralizar a influência que existia por parte de Inglaterra. 

Mas em 3 de julho de 1904, após uma pneumonia e subsequentes complicações cardíacas, Herzl morre na Áustria. Apesar de o seu túmulo estar preservado em Viena, após a fundação do Estado de Israel os restos mortais foram trasladados e estão no memorial no Monte Herzl, em Jerusalém, local onde também estão sepultados apenas os grandes líderes do sionismo e de Israel. Na entrada do Monte Herzl existe um museu dedicado à vida e realizações de Theodor Herzl.

terça-feira, 17 de outubro de 2023

Palestina




Os palestinianos atualmente são árabes, quer do ponto de vista cultural, quer linguístico. Do ponto de vista histórico e étnico são um povo descendente de pessoas que começaram a habitar este território, a que hoje se chama Palestina, há mais de três mil anos.

Em 1919, depois da Primeira Guerra Mundial, e quando começou uma onda migratória judaica sob mandato britânico, 90% dos habitantes da Palestina era constituída por muçulmanos e cristãos, e apenas 10% eram judeus. E foi a partir dessa data que começou a verificar-se a oposição à imigração judaica, e a formar-se a consciência da identidade nacional palestiniana. Apesar de várias guerras e êxodos, cerca de metade da população palestiniana mundial continua a residir nesse antigo território que hoje abrange a Cisjordânia, a Faixa de Gaza, e também no território que hoje é Israel. A outra metade da população palestina que vive no exterior são refugiados palestinianos apátridas sem cidadania legal em nenhum país.




A dissolução do Império Otomano, e a subsequente criação de um mandato britânico individual para a região, levou a que a cidadania otomana fosse substituída pela cidadania palestiniana, solidificando uma identidade nacional.

Na sequência dos Acordos de Oslo, em 1993, foi criada, em 1994, a Autoridade Nacional Palestiniana, com sede na Cisjordânia, mas também oficialmente responsável pela Faixa de Gaza, apesar de esta estar sob o domínio exclusivo do Hamas.

O topónimo grego Palaistínē (Παλαιστίνη), que é a origem do árabe Filasṭīn (فلسطين), ocorre pela primeira vez na obra de Heródoto, o historiador grego, referindo-se à terra costeira entre a Fenícia e o Egito. Por outro lado, vinha já de trás como um topónimo ligado ao etnónimo dos filisteus, que era a designação dada ao movimento migratório dos Povos do Mar a partir de 1300 a.C. na zona do Mediterrâneo Oriental.



Quando o Império Romano tomou conta da região no século I a.C., os romanos deram o nome de Judeia à província que abrangia esse território. Ao mesmo tempo, o nome Síria Palestina era o que os historiadores e geógrafos usavam para se referir à área entre o Mar Mediterrâneo e o rio Jordão.

Desde a época dos primeiros geógrafos árabes medievais que a palavra árabe Filastin é usada para se referir à região da Palestina. Após a Revolução dos Jovens Turcos, em 1908, que aliviou as leis de censura à imprensa no Império Otomano, dezenas de jornais e periódicos foram fundados na Palestina, e o termo "palestino" expandiu seu uso. Entre eles estavam os jornais Al-Quds, Al-Munadi, Falastin, Al-Kamil e Al-Nafir, que usaram o termo “Filastini” mais de 170 vezes em 110 artigos de 1908 a 1914. Eles também faziam referência a uma "sociedade palestiniana", "nação palestina" e uma "diáspora palestina". Os autores incluíam na designação: palestinos árabes; cristãos; muçulmanos; árabes não palestinos. A notação que o termo Palestina tem hoje, só começou a ser relevante depois do estabelecimento do Estado de Israel, em 1948.

Oficialmente, o Hamas [Movimento de Resistência], é uma organização política, religiosa sunita, e militar, que não de jure, mas de facto, governa a Faixa de Gaza. Em 1987, logo após a eclosão da Primeira Intifada contra Israel, o Hamas foi fundado pelo imã e ativista palestino Ahmed Yassin. Surgiu de seu Mujama al-Islamiya, que havia sido estabelecido em Gaza em 1973 como uma instituição de caridade religiosa derivada da Irmandade Religiosa sediada no Egito. O Hamas não reconheceu os Acordos de Oslo celebrados pela Fatah ou OLP, e continuou a defender a resistência armada palestina não reconhecendo a existência de um estado judeu – o Estado de Israel. Em eleições realizadas em 2006, o Hamas venceu as eleições.

O Hamas começou a aceitar negociações com Israel e as fronteiras de 1967 nos acordos que assinou com a Fatah de 2005 a 2007. Uma carta do Hamas de 2017, pelo menos em princípio, aceitava um Estado palestino dentro das fronteiras de 1967. Sob os princípios ideológicos do islamismo, promove o nacionalismo palestiniano numa política de jihad contra Israel. Tem uma ala de serviço social, Dawah, e uma ala militar, as Brigadas Izz ad-Din al-Qassam. Os atentados suicidas contra alvos civis, e os ataques periódicos a Israel com roquetes a partir da Faixa de Gaza conferiram-lhe o caráter de uma organização terrorista.

Em 7 de outubro deste ano o Hamas desencadeou um ataque surpresa no Sul de Israel visando principalmente um massacre a civis para além de ter também atacado bases militares com foguetes. Fez duas centenas de reféns, entre civis de várias nacionalidades e também soldados. Israel declarou guerra ao Hamas e neste momento estão a decorrer operações militares nesse sentido, para além de uma série de conversações políticas e diplomáticas a nível internacional sob a coordenação dos Estados Unidos da América protagonizada pelo seu Secretario Geral Antony Blinken.