segunda-feira, 25 de março de 2024

Arthur Koestler, na sua passagem por Lisboa




Arthur Koestler nasceu em Budapeste, na Hungria, em 1905, no seio de uma família judaica. Foi escritor, jornalista e ativista político, tendo passado pela Palestina, pela União Soviética e por Espanha, onde, participando da Guerra Civil, foi condenado à morte pelas tropas de Franco. Com o deflagrar da Segunda Guerra Mundial, radicou-se em Londres e cortou com o Partido Comunista após as purgas estalinistas. Entre mais de duas dezenas de obras publicadas, destaca-se Eclipse do Sol, uma crítica acutilante ao despotismo estalinista, considerado por George Orwell um dos poucos livros que poderão mudar a História. Em 1983, suicida-se na sua casa, em Londres.

Estávamos em 1940, já em plena guerra, quando Arthur Koestler passou umas semanas em Lisboa bem tranquilo, deixado à vontade pela PVDE e agentes alemães que operavam na cidade. Koestler chegara de navio, no dia 17 de setembro de 1940, e ficara sete semanas na cidade. Para a primeira onda de refugiados, pouco se fez no sentido de uma ajuda organizada ou de grupos humanitários para atendê-los. Conforme a guerra prosseguiu, e dada a importância de Lisboa como o último portão de saída da Europa, a organização de grupos de resgate de emergência ganhou velocidade.

A atitude da polícia política - PVDE - foi tática. Era preciso fazer os refugiados estarem o menos tempo possível na capital. Sem intimidação, o que interessava era saírem o mais rápido possível da cidade. Para os refugiados que chegaram mais tarde já havia mais funcionários nos consulados britânico e americano, o que no mínimo reduziu bastante o tempo necessário para resolver a questão dos vistos de entrada. Lisboa ainda era uma experiência difícil, muitas vezes assustadora para os refugiados. Mas pelo menos enfraquecera o choque inicial sentido pelos portugueses, que continuaram a trata-los com uma estranha mistura de hospitalidade cristã, tingida, sempre que possível, com um certo grau de exploração financeira.

Uma vez passado o choque inicial da chegada de milhares de refugiados à capital, a PVDE concluiu que, de modo geral, eles representavam pouca ou nenhuma ameaça ao Estado Novo, e estavam simplesmente em trânsito. Em resumo, não podiam permanecer em Portugal, a não ser que Salazar lhes desse sua bênção pessoal, que reservava para vários membros de famílias reais europeias que continuaram em Lisboa, em exílio permanente.

Ao contrário de muitos refugiados em Lisboa, Koestler não tinha problemas de dinheiro, graças aos pagamentos de direitos de autor regulares do seu editor nos Estados Unidos. Seu problema foi outro: convencer as autoridades britânicas a permitirem que ele voltasse à Grã-Bretanha. Com dinheiro para custear um estilo de vida simples, porém confortável, pouca coisa lhe restava fazer, senão visitas frequentes ao consulado britânico.

Koestler hospedou-se no modesto hotel Frankfort, no Rossio. Mais tarde, conforme a provável extensão de sua estada em Lisboa se tornava mais evidente, ele mudou para a pensão Leiriense, mais barata. A pensão era um lugar bastante degradado, repleto de refugiados. Mas com o preço dos hotéis de Lisboa terrivelmente inflacionados em 1940, a pensão foi a melhor opção para o orçamento de Koestler.

Apesar do aparente bem-estar financeiro, Koestler preocupava-se com a possibilidade de as autoridades portuguesas o entregarem aos espanhóis, e esse medo pairou sobre ele durante toda a sua estada em Lisboa. Num subsequente interrogatório pelas autoridades britânicas, ele declarou ter tido muito medo em Lisboa. Seu evidente temor tinha origem na série de artigos que havia escrito, nos quais se dizia exposto a elementos simpatizantes dos alemães na administração portuguesa: ele temia que as autoridades portuguesas o extraditassem para a Espanha, onde seria torturado e depois executado. Devido ao que acontecera com Berthold Jacob no ano seguinte, em Lisboa, poderia muito bem ter-se tornado realidade.

Com o olhar aguçado de escritor, observando os acontecimentos e personalidades em Lisboa, encetou uma série de pesquisas para o livro Arrival and Departure, que foi publicado em 1943. Um romance baseado nas experiências de Koestler em Lisboa, com o personagem central, Peter Slavek, como uma versão fictícia do próprio Koestler. O romance, bem recebido pela crítica, foi o primeiro que Koestler escreveu em inglês. Arrival and Departure contém muitos personagens pitorescos, mas, na realidade, Koestler era uma espécie de lobo solitário em Lisboa. Ele teve um breve caso amoroso com uma americana, Ellen Hill, mas, fora isso, costumava vagar sozinho pelas ruas no centro de Lisboa e tomar café no Chave d’Ouro, no Rossio. Encontrou muitos colegas intelectuais refugiados na cidade, mas, como muitos dos supostos refugiados políticos, ele era vigiado de perto pela PVDE, caso tentasse encontrar grupos dissidentes locais. Uma atividade normal da PVDE, muito preocupada para que a chegada desses refugiados, que se supunha ser comunistas, não desestabilizasse a situação política de Lisboa.

Em sua maioria, ao chegar a Lisboa, os refugiados políticos estavam exaustos e com frequência muito assustados para criar confusão, mesmo se quisessem. O que aparentemente unia todos era o desejo de sair de Lisboa o mais rápido possível para seu destino final. Quando os britânicos perguntaram a Ricardo Espírito Santo por que é que a PVDE, no início, parecia tratar os refugiados com tanta severidade, ele argumentou que a polícia secreta pensava que os refugiados, em sua maioria, eram comunistas ou simpatizantes dos soviéticos. Observou que o Consulado dos Estados Unidos em Lisboa também havia tratado muitos deles com rispidez pela mesma razão. Até à chegada dos refugiados, Portugal era um país muito fechado.




O Duque de Windsor com Ricardo Espírito Santo lendo as notícias da guerra.

Durante sua estada em Cascais, o duque de Windsor e a duquesa aproveitaram o tempo ao máximo. A PVDE, responsável por sua segurança, apresentava relatórios detalhados ao capitão Lourenço, cujas partes importantes eram transmitidas a Salazar. De início, o duque passava boa parte do seu tempo na embaixada britânica, que retinha seu passaporte. Após um jogo de golfe no Estoril, quando lhe pediram para posar para fotografias e ser filmado, ele recusou, afirmando não querer ser visto a jogar golfe quando a Inglaterra estava em guerra. Mas ele aceitou posar na residência em Cascais, ao lado de Ricardo Espírito Santo.

Ricardo Espírito Santo fez jogo duplo com os dois lados até receber ordens em contrário de Salazar. Muitos dos rumores da suposta tendência a favor da Alemanha, por parte de Espírito Santo, tinham origem em fontes britânicas. O relacionamento de Ricardo Espírito Santo com Salazar era de uma grande amizade pessoal, obviamente para além dos interesses de negócios. O alcance dos negócios de Espírito Santo ia bem além do mundo financeiro e ele queria ficar bem com Salazar a fim de desenvolver o império comercial, em rápida expansão, de sua família.

Os jantares eram as ocasiões sociais mais importantes da época para o duque e a duquesa. Espírito Santo era naturalmente bem relacionado, tanto na sociedade portuguesa como na internacional, e providenciava para cada jantar que oferecia ou organizava em homenagem a seus visitantes com figuras ilustres, como era o caso do barão e a baronesa de Rothschild.  O duque de Windsor num jantar com amigos, no hotel Aviz, anuncia publicamente a decisão de aceitar o posto que Churchill lhe ofereceu nas Bahamas. O duque e a duquesa de Windsor embarcam no SS Excalibur, sem os seus pertences que haviam ficado retidos em Madrid. Foi um alívio para Churchill, na visão de Churchill ele longe da Europa causaria menos danos ao esforço de guerra britânico, uma vez conhecida a sua simpatia pelos nazis, para além das muitas intrigas que se geravam à sua volta. E um alívio para Agostinho Lourenço, o chefe da PVDE encarregue de lhe garantir a segurança em Lisboa.

Koestler desejava ir para a Grã-Bretanha, mas o MI-5 e o Ministério dos Negócios Interiores britânico continuavam insistindo que era um imigrante indesejável e que sua entrada no país estava barrada por questões de segurança. Koestler implorou a vários amigos britânicos e americanos influentes. Jornalistas importantes, editores e Harold Nicolson, do Ministério das Informações, também fizeram lobby, mas de nada adiantou. Cada vez mais desesperado, com a sua saúde mental rapidamente se deteriorando em Lisboa, Koestler descobriu que seu nome estava na lista de importantes intelectuais judeus a serem resgatados de Varian Fry. Apesar dos esforços da equipa de Fry para exercer influência a favor de Koestler, não houve chance na política britânica.

Finalmente, e com alguma ajuda não oficial de Henry King, cônsul-geral britânico em Lisboa, Koestler embarcou no avião da BOAC em Lisboa, sem a documentação correta, no dia 6 de novembro, em direção a um futuro incerto na Inglaterra. Koestler chegou ao aeroporto de Whitchurch, perto de Bristol, às 11:40 da manhã do dia 6 de novembro, e, quando questionado, anunciou que estava com medo de que o mandassem prender por não ter visto. Koestler foi interrogado e narrou a sua história em detalhes e com grande dramaticidade. No final da entrevista, o inquiridor concluiu que Koestler era um terço génio, um terço patife e um terço lunático. O relatório foi encerrado com o comentário de que Koestler era quase certamente judeu, mas que não lhe haviam feito essa pergunta pela possibilidade de haver repercussões legais por parte de seus poderosos patrões no News Chronicle. Mesmo sem conseguir impressionar as autoridades, no início interessadas em mandá-lo de volta para Lisboa, Koestler acabou por se estabelecer em Londres depois de uma estada na prisão de Sua Majestade, em Pentonville.

sexta-feira, 22 de março de 2024

Terapia génica



A edição genética refere-se à técnica de modificar o DNA de um organismo de forma precisa. O sistema CRISPR/Cas9 marca a viragem no campo do tratamento de doenças genéticas e epigenéticas devido à sua versatilidade e simplicidade de manuseamento em laboratório.

A sigla CRISPR - que significa a integração de pequenas porções de material genético externo em regiões de sequências repetitivas - resultou do conhecimento de um mecanismo, que as bactérias possuem, de transferir genes sob a mediação por transdução, transformação ou conjugação com elementos móveis quando sujeitas a infeções por bacteriófagos e outros elementos genéticos.

O "Cas" da sigla, corresponde a uma proteína específica à qual se liga um pequeno fragmento de RNA, que a vai orientar para um local específico do DNA, por exemplo, de um vírus invasor, a fim de o seccionar. Ora, tal sistema tornou-se numa extraordinária ferramenta de edição génica. Ou seja, uma forma de substituir um gene defeituoso por um gene funcional.



As nucleases são enzimas capazes de quebrar as ligações existentes entre bases nucleotídicas em edição genética. São feitos cortes em locais específicos do DNA. Ora, a endonuclease – Cas9 – faz parte do sistema imunitário adaptativo da bactéria streptococus pyogenes. A nucleasse – Cas9 – é direcionada por uma pequena sequência de RNA que reconhece o DNA alvo, por complementaridade, tornando-o acessível à ação da Cas9. Hoje, o melhor método de transporte e entrega às células alvo é feito por ribonucleoproteínas (RNPs).

A introdução dos componentes do CRISPR/Cas9 num zigoto ou numa fase embrionária precoce permite modificar o genoma em todas as células do organismo, incluindo as da linha germinativa.





Há um manancial de problemas na saúde humana, seja ela física, seja psíquica ou mental, em que os cientistas da engenharia genética esperam poder resolver num futuro já não tão longínquo como os filmes de ficção científica nos fariam pensar. Por exemplo, até ao momento, não foi identificado um único gene responsável pela adição a drogas. A tendência à dependência de substâncias é influenciada por uma combinação complexa de fatores genéticos, ambientais e sociais. No entanto, estudos sugerem que há variantes genéticas suscetíveis de poderem contribuir para a dependência química, e sendo assim, é uma questão de tempo, o apetite dos cientistas para resolver problemas é infinito.

O primeiro uso terapêutico da transferência génica, bem como a primeira inserção direta do DNA humano no genoma nuclear, foi realizado por French Anderson em um ensaio iniciado em setembro de 1990. Nem todos os procedimentos médicos que introduzem alterações na composição genética de um paciente podem ser considerados terapia génica. Descobriu-se que o transplante de medula óssea e os transplantes de órgãos em geral introduzem DNA estranho nos pacientes.

Após os primeiros avanços na engenharia genética de bactérias, células e pequenos animais, os cientistas começaram a considerar como aplicá-lo à medicina. Duas abordagens principais foram consideradas: substituir ou interromper genes defeituosos. Os cientistas se concentraram em doenças causadas por defeitos de um único gene, como fibrose cística, hemofilia, distrofia muscular, talassemia e anemia de células falciformes.

O DNA deve ser administrado, atingir as células danificadas, entrar na célula e expressar ou interromper uma proteína. A abordagem inicial incorporou o DNA num vírus projetado para entregar o DNA (a porção de DNA que exprime um gene que faz com que uma proteína necessária seja expressa) no cromossoma. Mais recentemente, o aumento da compreensão da função da nuclease levou a uma edição mais direta do DNA usando a ferramenta CRISPR.


Na terapia génica germinativa, as células germinativas (espermatozoides; óvulos) são modificadas pela introdução de genes funcionais em seus genomas. A modificação de uma célula germinativa faz com que todas as células do organismo contenham o gene modificado. A mudança é, portanto, hereditária e passada para as gerações posteriores. Se, por exemplo, uma mutação em um determinado gene causa a produção de uma proteína disfuncional resultando (geralmente recessivamente) em uma doença hereditária, a terapia génica poderia ser usada para entregar uma cópia desse gene que não contém a mutação deletéria e, assim, produz uma proteína funcional. Essa estratégia é conhecida como terapia de reposição génica.

Em maio de 2019, a FDA aprovou o onasemnogene abeparvovec (Zolgensma) para o tratamento da atrofia muscular espinhal em crianças abaixo dos dois anos de idade. Em maio, a EMA aprovou o betibeglogene autotemcel (Zynteglo) para o tratamento da talassemia beta para pessoas com doze anos de idade ou mais. Em julho, a Allergan e a Editas Medicine anunciaram o ensaio clínico de fase I/II do AGN-151587 para o tratamento da amaurose congénita de Leber10. Este é o primeiro estudo de uma terapia de edição genética humana in vivo utilizando a ferramenta CRISPR onde a edição ocorre dentro do corpo humano. A primeira injeção do Sistema CRISPR-Cas foi confirmada em março de 2020.

Em maio de 2020, o onasemnogene abeparvovec (Zolgensma) foi aprovado pela União Europeia para o tratamento da atrofia muscular espinhal em pessoas que apresentam sintomas clínicos de AME tipo 1 ou que não têm mais de três cópias do gene SMN2, independentemente do peso corporal ou da idade. Em agosto, a Audentes Therapeutics relatou que três de 17 crianças com miopatia miotubular ligada ao X que participaram do ensaio clínico de um tratamento de terapia génica AT132 baseado em AAV8 morreram. Foi sugerido que o tratamento, cuja dosagem é baseada no peso corporal, exerce um efeito desproporcionalmente tóxico em pacientes mais pesados, uma vez que os três pacientes que morreram eram mais pesados do que os outros. Em 15 de outubro, o Comité dos Medicamentos para Uso Humano (CHMP) da Agência Europeia de Medicamentos (EMA) adotou um parecer positivo, recomendando a concessão de uma autorização de introdução no mercado do medicamento Libmeldy (população autóloga enriquecida em células CD34+ que contém células estaminais hematopoéticas e células progenitoras transduzidas ex vivo utilizando um vector lentiviral que codifica o gene da arilsulfatase A humana), uma terapia gênica para o tratamento de crianças com as formas "infantil tardia" (LI) ou "juvenil precoce" (EJ) de leucodistrofia metacromática (DML). A substância ativa do Libmeldy consiste nas próprias células estaminais da criança que foram modificadas para conter cópias funcionais do gene ARSA. Quando as células modificadas são injetadas de volta no paciente como uma infusão única, espera-se que as células comecem a produzir a enzima ARSA que quebra o acúmulo de sulfatidas nas células nervosas e outras células do corpo do paciente. Libmeldy foi aprovado para uso médico na UE em dezembro de 2020. Em 15 de outubro, a Lysogene, uma empresa biotecnológica francesa, relatou a morte de um paciente que recebeu LYS-SAF302, um tratamento experimental de terapia génica para mucopolissacaridose tipo IIIA (síndrome de Sanfilippo tipo A).

Em maio de 2021, um novo método utilizando uma versão alterada do HIV como vetor de lentivirus foi relatado no tratamento de 50 crianças com ADA-SCID, obtendo resultados positivos em 48 delas. Espera-se que esse método seja mais seguro do que os vetores de retrovírus comumente usados em estudos anteriores de SCID, onde o desenvolvimento de leucemia foi geralmente observado e já havia sido usado em 2019, mas em um grupo menor com X-SCID. Em junho, um ensaio clínico em seis pacientes afetados com amiloidose por transtirretina relatou uma redução na concentração da proteína transtirretina perdida (TTR) no soro por meio da inativação do gene TTR em células hepáticas por CRISPR observando reduções médias de 52% e 87% entre os grupos de dose mais baixa e mais alta. Isso foi feito in vivo, sem tirar as células do paciente para editá-las e reinfundi-las mais tarde. Em julho, os resultados de um pequeno estudo de fase I de terapia génica foram publicados relatando a observação da restauração de dopamina em sete pacientes entre 4 e 9 anos de idade afetados pela deficiência de L-aminoácido aromático descarboxilase ou deficiência de AADC.


domingo, 17 de março de 2024

Ideologias


A social-democracia é uma ideologia política que busca combinar princípios democráticos com políticas sociais voltadas para promover a igualdade e a justiça social. Ela defende um sistema económico misto, que inclui uma economia de mercado regulada pelo Estado para garantir o bem-estar social, acesso igualitário a serviços públicos essenciais e proteção social para os cidadãos. Mas, ser social-democrata, geralmente é considerado estar à esquerda do espectro político. Embora a social-democracia compartilhe algumas semelhanças com a ideologia de centro, como a defesa da economia de mercado, ela também enfatiza fortemente políticas sociais redistributivas e intervenção estatal para promover a igualdade e o bem-estar social, o que a coloca mais à esquerda. No entanto, é importante notar que a posição exata de um partido ou indivíduo dentro do espectro político pode variar de acordo com o contexto político e as políticas específicas defendidas.

A ideologia de esquerda se caracteriza por uma ênfase na igualdade social, justiça distributiva, defesa dos direitos das minorias, preocupação com o bem-estar social e uma visão mais favorável à intervenção do Estado na economia para promover igualdade de oportunidades. Isso pode incluir políticas como programas de assistência social, acesso universal à saúde e à educação, proteção dos direitos dos trabalhadores e uma abordagem mais progressista em questões sociais e culturais.

A ideologia de direita se caracteriza por uma ênfase na liberdade individual, na iniciativa privada, na livre empresa, na minimização da intervenção do Estado na economia e na promoção de valores tradicionais e conservadores. Isso pode incluir políticas como redução de impostos, desregulamentação económica, defesa da propriedade privada, ênfase na segurança nacional e uma abordagem mais conservadora em questões sociais e culturais.

Um partido de extrema-direita é um partido político cuja ideologia tende a ser caracterizada por uma ênfase na hierarquia social, nacionalismo étnico, conservadorismo social, autoritarismo e, em alguns casos, xenofobia e racismo. Esses partidos muitas vezes defendem políticas que visam restringir a imigração, promover valores tradicionais e fortalecer o controlo do governo sobre a economia e a sociedade. Abominam multiculturalismo e os direitos das minorias.

É importante realçar que a nossa discordância, em relação à doutrina de um partido político, não significa que tenhamos de o tratar como um inimigo, que implique resistência ou luta armada. Enquanto é aceitável a crítica e oposição às políticas de um partido de extrema-direita, tratá-lo como um inimigo, quando ele é amplamente sufragado em eleições livres e justas, é errado porque além de extremar posições e alimentar a polarização, é suscetível de acicatar o ódio e aumentar ainda mais a balbúrdia social. Em vez disso, é mais construtivo promover o diálogo e buscar entendimento mútuo, mesmo com aqueles com os quais discordamos fortemente.

Em termos políticos, geralmente não se identifica alguém como sendo simultaneamente de direita e de esquerda, pois essas ideologias têm tão diferentes visões sobre questões fundamentais, que em muitos casos são até antagónicas. Outra coisa diferente é um cidadão eleitor umas vezes escolher votar num partido de direita, e outras vezes votar num partido de direita. Ou, também possível, uma pessoa nuns setores da governação preferir políticas de direita, e noutros sectores preferir políticas de esquerda.

Em conclusão: a divisão do eleitorado em direita e esquerda ainda é uma estrutura relevante em muitos sistemas políticos ao redor do mundo. Embora as definições e as características específicas de direita e esquerda possam variar conforme o contexto cultural e histórico, essas ideologias continuam a influenciar a política, a formação de partidos políticos e as preferências dos eleitores. No entanto, é importante notar que a política contemporânea também pode ser influenciada por outras divisões, sejam elas de ordem cultural ou identitária.


sábado, 9 de março de 2024

Como todos os regimes do passado, as democracias também se desfazem



O nacionalismo - que começou por ser uma extraordinária ideia cívica e emancipadora em finais do século XVIII, e durante grande parte do século XIX - tornou-se, gradualmente, uma ideologia destrutiva. As duas grandes guerras europeias da primeira metade do século XX, as quais adquiriram dimensão mundial pela influência europeia, mostram bem isso. Hoje, com distanciamento histórico, sabemos que as sementes dessa engrenagem destrutiva estavam lá desde o início do movimento dos nacionalismos. 

A ideia de nação no início foi boa, pois foi libertadora da opressão do Antigo Regime. Pertencer à nação, ser um cidadão nacional, significava ter direitos fundamentais, poder escolher os seus governantes, não ser propriedade de um monarca absoluto, nem estar sujeito à total arbitrariedade de quem governava. Foi assim que o Império da Áustria, mais tarde Austro-Húngaro, e o Império Otomano, desapareceram. Foi assim que em Portugal se depôs a monarquia. Quanto ao Império, o seu desaparecimento só aconteceu muito mais tarde depois de 13 anos de guerra em África desencadeada pelos movimentos de libertação. Agora não é a nação, nem o nacionalismo radical, ao contrário do que muitos julgam, que está a minar a democracia. O que não significa que não persistam movimentos nacionalistas radicais importantes. Há múltiplas instituições e vários mecanismos criados contra o seu ressurgimento, desde logo a União Europeia.

A questão é saber se a ideia de identidade promovida por movimentos de certa intelectualidade académica - à semelhança do que aconteceu no passado com a ideia de nação, originalmente libertadora e emancipadora, a qual se transformou em nacionalismo agressivo - não estará a transformar-se num movimento radical e destrutivo. 
Em termos de movimentos, a teoria pós-colonial abrange o estudo e a análise das obras produzidas tanto em países que foram colonizadores como colonizados. É o exemplo de Edward Said e a sua análise de Joseph Conrad no âmbito das relações entre ingleses e africanos no século XIX.

Há hoje uma ideologia identitária que corre numa grande vaga pelo mundo a partir da América, onde foi criada. É uma ideologia que exacerba uma determinada identidade social e de grupo. Hoje há uma fratura na direita, espaço ideológico onde trava uma verdadeira luta pelo poder. A tradicional fratura ideológica esquerda/direita está a diluir-se para uma coisa diferente, chamemos-lhes de um lado partidos identitários tribais e do outro partidos de causas emergentes. Está a emergir um novo padrão político no qual a esquerda e a direita se confrontam cada vez menos segundo linhas ideológicas clássicas, normais numa democracia pluralista.

As implicações sociais e políticas são vastas e potencialmente destrutivas da coesão social. Há, assim, demasiados sinais que apontam para que a ênfase na identidade, ideia originalmente emancipadora e libertadora da discriminação social e racial, esteja, gradualmente, a transformar-se numa ideologia destrutiva. A democracia que se estruturou a partir da Revolução Francesa, a qual pressupõe uma identidade nacional partilhada, sem tribalismos identitários, está em crise.


quarta-feira, 6 de março de 2024

A Espanha 1931/36 antes da Guerra Civil 1936/39





A Segunda República na Espanha era de fundação recentíssima, pois datava apenas de abril de 1931. Tinha sido obra da esquerda e era fundamentalmente rejeitada por quase toda a direita, cada vez mais extremada contra o socialismo, visceral e generalizado. A aversão à esquerda se inseria com facilidade na trama de valores católicos ferrenhos que caracterizavam grande parte da Espanha provinciana e que a direita tinha incorporado à sua imagem da nação espanhola. Essa hostilidade era secundada, naturalmente, pelos membros das tradicionais elites dominantes, os que mais tinham a perder no caso da ascensão do temido regime socialista — os proprietários de terras, os grandes industriais, a Igreja católica e, em especial, setores significativos da oficialidade do Exército. O poder dessas elites vinha caindo, mas ainda se mantinha intacto. Derrubar a república usando de força era uma opção. Afinal, a ditadura de Primo de Rivera só acabara alguns anos antes, em janeiro de 1930, e o golpe militar há muito que ocupava o seu lugar na política espanhola. Em março de 1936, os generais espanhóis conspiravam para tentar outra vez derrubar um governo eleito.

O fracasso da esquerda na França começou a ser eclipsado pela tragédia muito maior, que foi a derrota da esquerda na Espanha. Com muito apoio popular e os recursos do Estado à sua disposição, a esquerda espanhola se dispunha a lutar para defender o regime republicano. No entanto, estava seriamente debilitada por terríveis divisões faccionais, conflitos destrutivos e dissensões ideológicas, a que se sobrepunham separatismos regionais mais vigorosos do que em qualquer outra parte da Europa Ocidental (sobretudo na Catalunha e no País Basco, regiões relativamente desenvolvidas do ponto de vista económico). Ainda mais lesiva para a esquerda era a antiga e profunda polarização da sociedade espanhola. Muito mais do que na França, um abismo separava os agrupamentos ideológicos da esquerda e da direita na Espanha. As lealdades republicanas não eram tão arraigadas como na França.

O triunfo da esquerda socialista e republicana nas eleições de 1931 foi um fenómeno efémero. Em novembro de 1933, quando houve novas eleições, a direita tinha recuperado as forças. A esquerda sofreu uma derrota para uma coligação de direita liderada por Alejandro Lerroux, que se tornou primeiro-ministro. Os dois anos seguintes puseram fim, e em muitos casos subverteram, os modestos avanços sociais feitos desde a fundação da república. Para a esquerda, esse período foi o biénio negro, de crescente ameaça fascista e forte repressão.

Desmantelada a coligação de direita governante, derrubada por escândalos financeiros e discórdias políticas, novas eleições foram convocadas para fevereiro de 1936. Nesse intervalo, a esquerda formara uma Frente Popular, coligação eleitoral de republicanos (cujos eleitores pertenciam basicamente à classe média) e socialistas — as duas maiores forças —, apoiada, com graus variados de entusiasmo, por comunistas, separatistas catalães e sindicatos socialistas e anarquistas.

Apuradas as urnas, a Frente Popular obteve uma vitória histórica. O governo, formado apenas por republicanos, era fraco desde o começo. Os socialistas, eles mesmos desunidos, recusaram-se a participar. O partido estava dividido entre sua ala reformista, chefiada pelo moderado Indalecio Prieto, e a Unión General de Trabajadores, cada vez mais revolucionária, liderada por Francisco Largo Caballero, que adorava ser chamado de “o Lenine espanhol”, designação que lhe foi dada pela imprensa soviética. O Movimento Juventude Socialista, assim como a organização sindicalista, também viam o futuro em termos de uma revolução em grande escala, e não de reformismo fragmentário. Eram evidentes os atrativos do Partido Comunista, que ainda era pequeno, mas crescia depressa.

O governo começou a restaurar as mudanças sociais e económicas, libertou presos políticos, expropriou latifúndios e devolveu a autonomia à Catalunha (prometendo o mesmo aos bascos). Entretanto, o controlo do país ia escapando. Camponeses pobres e trabalhadores agrícolas ocuparam grandes propriedades no sul da Espanha. Ocorreram greves em centros urbanos. Os incêndios de igrejas — símbolos da mão opressora da Igreja Católica — tornaram-se mais comuns do que em 1931 e alimentaram a propaganda da direita. Foram numerosos os assassinatos, cometidos tanto pela esquerda como pela direita. As posições iam-se extremando dos dois lados. A Falange, antes uma pequena facção da direita, viu-se de repente ganhando novos filiados, muitos deles pertencentes ao movimento de juventude da Confederação Espanhola da Direita Autónoma (CEDA), que apoiava uma posição antirrepublicana mais agressiva do que a defendida por muitos membros mais velhos do partido. Enquanto isso, sem que o governo percebesse, a conspiração fermentava.

Alguns comandantes do Exército, entre eles Franco, tinham aventado um golpe logo depois da eleição. Entretanto, o momento não era propício, e eles preferiram observar e esperar. Na tentativa de neutralizar possíveis problemas causados pelos militares, o governo afastou Franco da chefia do Estado-Maior e deu-lhe um comando nas ilhas Canárias. O general Emilio Mola, sabidamente hostil à república (e, na verdade, o principal instigador do golpe planeado), também foi posto fora de cena. Surpreendentemente, porém, Mola foi trazido de volta de um comando no Marrocos espanhol e posto à frente de uma guarnição em Pamplona, no norte da Espanha — de onde poderia forjar vínculos fortes com figuras que apoiavam o golpe de forma clandestina. Alguns falangistas foram presos, mas teriam sido capazes de levar adiante seus planos mesmo na cadeia. Mas o governo, em sua fraqueza, tomou poucas medidas além dessa para evitar problemas.

O putsch teve início no Marrocos espanhol e nas Canárias, em 17 de julho de 1936, e se espalhou para o território continental da Espanha nos dois dias seguintes. Os conspiradores contavam com um golpe rápido e a imediata tomada do poder pelos militares, mas logo ficou evidente que isso não iria acontecer. Em algumas áreas, unidades militares e grande parte da população apoiaram os rebeldes. A nomeação de três primeiros-ministros em dois dias foi um sinal claro de que o governo estava em pânico. Mola sentiu-se confiante o suficiente para rejeitar um pedido de trégua. Em outros lugares, porém, o Exército e a polícia se mantiveram leais à república, embora com frequência fizessem jogo duplo. Em Madrid, Barcelona e San Sebastián, no País Basco, trabalhadores pegaram em armas. Em questão de dias, a Espanha estava completamente dividida, tanto quanto estivera na eleição de fevereiro.


O leste e o sul do país mantiveram-se, de modo geral, ao lado dos republicanos. Entretanto, os rebeldes conseguiram avanços rápidos no Sudoeste, no Oeste e em grande parte da área central do país. Do ponto de vista militar, as forças da república e as dos rebeldes eram bastante equivalentes; as mais importantes áreas industriais ainda estavam nas mãos do governo. Até mesmo nas aldeias as pessoas tomavam partido: esquerda ou direita, a república ou o fascismo. A espiral de violência não parava de crescer. Já nos primeiros dias, registaram-se atrocidades infames dos dois lados. Nas áreas que dominaram, os rebeldes mataram ou executaram sumariamente grande número de pessoas. Não há como determinar a quantidade exata de mortes, mas com certeza chegaram a milhares. Do lado republicano foram comuns atos de violência contra partidários da sublevação ou inimigos de classe. Houve acerto de contas. A aplicação da “justiça revolucionária” em tribunais improvisados levou a numerosas execuções. O clero foi alvo de violências hediondas. Mais de 6 mil religiosos — sacerdotes, monges e freiras — foram assassinados, enquanto se queimavam igrejas e se destruíam imagens religiosas. O golpe já se estava transformando numa guerra civil em grande escala, embora não houvesse um vencedor claro à vista.

segunda-feira, 4 de março de 2024

A questão da historicidade bíblica





Do ponto de vista histórico, a historicidade da Bíblia é encarada de um modo diferente das pessoas que, de um ponto de vista religioso, a tomam como uma narrativa verdadeira tal como se se tratasse de um livro histórico. A História 
é uma disciplina que lida com o estudo de vestígios e documentos de épocas pretéritas tendo por vista pensar, interpretar e reconstruir o passado. A Bíblia é um livro considerado sagrado por diversas denominações religiosas. Por séculos foi vista como um documento derivado diretamente da inspiração divina, e por isso o que ela narrava era tido como verdade inquestionável, e mesmo suas narrativas puramente "históricas" eram consideradas relatos fidedignos do que acontecera no passado. Não importava, então, o contexto cultural, político e social em que havia sido escrita, uma vez que o estudo deste livro estava limitado ao debate teológico, moral e doutrinal.

Mas à medida que a civilização ocidental foi caminhando com o desenvolvimento do método científico para se aproximar da verdade de um modo mais fidedigno, certas passagens dos textos, designados como canónicos, a sua veracidade passou a ser questionada. A crítica historiográfica baseada na abordagem científica ganhou força quando uma série de descobertas, entre elas o deciframento da escrita hieroglífica egípcia, em 1822, e o deciframento da escrita cuneiforme acadiana, em 1857, complementado pelas pesquisas sistematizadas dos arqueólogos, passou a vir à luz do dia muta informação que até aí estava escondida do conhecimento moderno. E foi assim que a Bíblia deixou de ser um documento exclusivo das exegeses teológicas para passar a ser estudada segundo o método da ciência histórica das universidades.

Desde então, muito do seu conteúdo histórico passou a ser encarado como fazendo parte do domínio do mito, lenda e alegoria. Além disso, há muitas contradições internas e larga porção está baseada em alegações de milagres e intervenções divinas, aspeto que não tem nada de científico.  Hoje os livros da Bíblia são tratados como documentos iguais a quaisquer outros, devendo ser lidos criticamente e comparados com outras fontes (textuais, arqueológicas, epigráficas, etc.), para distinguir-se o que têm de informação valiosa para elucidar alguns factos e eventos e entender como a tradição religiosa e cultural da região se articulou e desenvolveu, e o que não é confiável, possuindo elementos fantasiosos, tendenciosos e de redação tardia em relação aos factos narrados.

É claro que toda esta abordagem tem implicações mais amplas do que o mero exercício erudito, se considerarmos o que ainda hoje se passa no Médio Oriente por causa das reivindicações que os fundamentalistas religiosos fazem em Israel pela posse de terra na Palestina. Hoje, a história antiga, tem de ser feita com os contributos da crítica textual, dos registos arqueológicos e a comparação de fontes diferentes para a sua reconstrução. Philip Davies, por exemplo, entende que os textos bíblicos são necessários para se reconstruir uma história do pensamento israelita. William G. Dever, Israel Finkelstein e Amihai Mazar fornecem análises sobre os interesses ideológicos e o contexto social, cultural e político que influíram na redação. Para Mario Liverani a história de Israel se divide entre uma história "normal", construída a partir de uma diversidade de fontes, entre elas as arqueológicas, e uma história "inventada", a forma como os redatores bíblicos reinterpretaram o passado.

Por conseguinte, a questão de considerar a Bíblia como um documento histórico é complexa e frequentemente discutida. A Bíblia é certamente um texto antigo que contém relatos de eventos e figuras históricas, mas a sua historicidade varia de acordo com diferentes contextos e relatos. A Bíblia menciona várias figuras e eventos que são corroborados por evidências históricas fora das Escrituras. Por exemplo, figuras como os reis David e Salomão, bem como eventos como o cativeiro da Babilónia, têm confirmação histórica em registros arqueológicos e escritos de outras fontes antigas.
Por seu turno, a interpretação da historicidade bíblica muitas vezes depende do contexto em que os eventos são colocados e das interpretações dos estudiosos. Alguns eventos podem ser interpretados literalmente como históricos, enquanto outros podem ser vistos como mitos, lendas ou parábolas com significados simbólicos.

A Bíblia foi escrita por várias pessoas ao longo de séculos, com diferentes propósitos e perspectivas. Isso pode influenciar a forma como os eventos são relatados e interpretados. Alguns autores podem ter usado linguagem figurativa ou simbólica para transmitir mensagens espirituais ou teológicas, mesmo ao descrever eventos históricos. Ao longo dos séculos, a Bíblia passou por várias edições e traduções, o que pode introduzir variações nos relatos históricos. Erros de tradução ou interpolações podem afetar a precisão histórica de certos textos. Certos eventos e personagens bíblicos é apoiada por evidências arqueológicas e fontes históricas externas, mas nem todos os eventos bíblicos têm confirmação externa.
Ainda que a Bíblia contenha narrativas que envolva figuras que realmente existiram, e eventos históricos que tenham acontecido, a sua historicidade carece sempre de confronto com outros elementos externos que os contextualizem.

Seja como for, é importante notar que a discussão sobre a veracidade da narrativa bíblica é complexa e multifacetada, envolvendo interpretações teológicas, históricas, arqueológicas e científicas. As visões sobre a Bíblia variam significativamente entre diferentes tradições religiosas e indivíduos, e há um amplo espectro de opiniões sobre o assunto. Veja-se, só para dar um exemplo, o caso de Pedro. Há quem defenda que é uma lenda inventada no século III. O que é da narrativa canónica da Igreja é que Pedro, o apóstolo Pedro, viveu em Roma entre 42 e 67 desta era. Por exemplo, Ralph Woodrow, no livro Babilónia, relata que o Novo Testamento diz que ele foi para Antioquia, Samaria, Jope, Cesareia e outros lugares menos Roma. Em 42, no tempo de Herodes Agripa, esteve detido em Jerusalém. Entre 49 e 50 esteve com Paulo em Jerusalém. Pedro exerceria o apostolado entre os judeus e Paulo entre os gentios (Gálatas 2.7,9,10). Depois apareceu em Antioquia, onde Paulo lhe resistiu frontalmente (Gálatas 2.11). E no ano 55 é mencionado como "evangelista itinerante" (1Coríntios 9.5). Neste período, evangelizou o Ponto, a Galácia, a Capadócia, a Ásia, a Bitínia e Babilónia. Anos 61 a 63 - Paulo esteve preso em Roma por 2 anos, mas nunca Pedro o visitou. Na Segunda Epístola a Timóteo, escrita na prisão, no ano 63, Paulo queixou-se dos discípulos e amigos que se ausentaram: "Só Lucas está comigo". Pedro devia estar na Babilónia, de onde escreveu a sua Primeira Epístola (1Pedro 5.13). Em 67 Pedro escreveu as suas epístolas. Não há nenhum sinal da sua presença em Roma.

Por fim, faço aqui uma breve referência, de passagem, aos célebres Apócrifos da Bíblia. Os apócrifos bíblicos são uma coleção de textos religiosos que foram escritos durante o período intertestamentário, entre o Antigo Testamento e o Novo Testamento, e que não foram incluídos no cânone bíblico judaico ou protestante, mas que são reconhecidos por algumas denominações cristãs, como a Igreja Católica, a Igreja Ortodoxa Oriental e algumas denominações protestantes. Esses textos incluem livros como Tobit, Judite, Sabedoria de Salomão, Eclesiástico (também conhecido como Sirácida), Baruque, 1 e 2 Macabeus, além de acréscimos aos livros de Ester e Daniel, entre outros. Os apócrifos são considerados parte do cânon bíblico por algumas tradições cristãs, mas não por outras.

As razões para a exclusão dos apócrifos do cânone judaico e protestante variam, mas geralmente incluem considerações como a falta de reconhecimento pelos líderes religiosos da época, questões doutrinárias e canónicas, além de dúvidas sobre a autenticidade e autoridade desses textos. No entanto, os apócrifos são considerados valiosos por algumas denominações cristãs por sua contribuição para a compreensão da história e teologia judaico-cristãs, bem como por seu valor devocional e espiritual. A Igreja Católica, em particular, considera os apócrifos como parte do cânone bíblico e os inclui em suas versões da Bíblia. É importante notar que o reconhecimento dos apócrifos varia entre as diferentes tradições cristãs, e suas opiniões sobre esses textos podem diferir significativamente.