sábado, 29 de julho de 2023

A Batalha de Sekigahara




A Batalha de Sekigahara, ou popularmente conhecida como a "Divisão do Reino", foi o conflito decisivo ocorrido em 15 de setembro de 1600 (data do antigo calendário chinês, que corresponde a 21 de outubro do atual calendário gregoriano), que abriu caminho para a ascensão do Xogum Tokugawa ao poder do Japão. Após o seu desfecho, demorariam apenas 3 anos para Tokugawa consolidar o seu poder sobre o clã Toyotomi, da casa de Osaka, e os outros daymios contrários à casa de Edo dos Tokugawa. A Batalha de Sekigahara é amplamente considerada como o começo não oficial do Xogunato Tokugawa - o último xogunato que exerceu controlo sobre o Japão. Após o conflito, o Japão viveu um longo período de paz.

É a partir deste acontecimento que James Clavell, escritor e diretor de cinema britânico de origem australiana, que escreve o romance Shōgun publicado em 1975, e que depois passou a uma série televisiva de 5 horas, vista pelos olhos de um piloto inglês - John Blackthorne - cujos atos heroicos lembram as façanhas de William Adams
John Blackthorne é capitão do Erasmus, um navio holandês que naufragou na costa do Japão. Ele e poucos dos sobreviventes da embarcação holandesa foram capturados por ordem do samurai Omi-san que os manteve aprisionados vários dias no buraco, até que os marinheiros soubessem se comportar de forma civilizada (pelos olhos dos japoneses). O daymio de Omi-san, Yabu-san, chega e resolve executar aleatoriamente um dos navegadores cozinhando-o vivo. Por sugestão de Omi, Yabu, decide guardar as armas e o dinheiro que estavam a bordo do Erasmus em favor próprio, mas é traído por um de seus samurais que o denuncia a Toranaga (futuramente senhor e daymio, mais poderoso que Yabu), o que faz com que Yabu dê todos os bens para o seu senhor. Como os japoneses não conseguiam pronunciar seu nome, Blackthorne foi chamado de Anjin, que significa piloto.

Por lá anda um padre jesuíta português, que faz o papel de tradutor quando o piloto é interrogado por Toranaga. 
Blackthorne, sendo originário de um país protestante, joga com isso para deixar ficar mal o padre jesuíta junto do daymioToranaga fica surpreendido ao saber que há dois tipos de cristianismo entre os países europeus que se odeiam. A entrevista acaba quando chega Ishido, o principal rival de Toranaga, que quer saber o que se passa com o "bárbaro" piloto.

Toranaga então manda o piloto para a cadeia acusado de pirataria para mantê-lo afastado de Ishido. Na prisão, Blackthorne conhece um padre franciscano que lhe conta detalhes sobre as conquistas jesuíticas e as trocas com o Navio Negro. Os japoneses necessitavam da seda chinesa, porém eles não podiam negociar com os chineses diretamente. Os portugueses atuavam como intermediários, embarcando as mercadorias no Navio Negro, e assim obtendo muito lucro. Com a ajuda do padre, Blackthorne começa a aprender o japonês básico. Após quatro dias de cativeiro, Blackthorne é tirado da prisão pelos homens de Ishido. Toranaga volta a capturar o piloto das mãos de seu rival. Em sua próxima entrevista, Toranaga utiliza Mariko como tradutora, uma japonesa convertida ao cristianismo que se sente dividida entre a nova fé e a sua lealdade a Toranagapor ser samurai.

Aos poucos Blackthorne vai-se adaptando aos japoneses e sua cultura, e muitas vezes aprendendo a respeitá-la. Os japoneses, por outro lado, se sentem cada vez mais incomodados com a presença de Blackthorne, mas ao mesmo tempo ele é de valor inestimável devido ao seu conhecimento do mundo. Algo que faz com que os japoneses comecem a pensar de outra forma. Blackthorne mostrou coragem de ter tentado suicídio para não perder a honra, o que deixou os japoneses impressionados. A partir daí os japoneses começaram a respeitá-lo mais e ele recebeu o estatuto de samurai e hatamoto. Quanto mais tempo Blackthorne passava com Mariko, mais ele a admirava. O piloto fica dividido entre sua afeição por Mariko (que é casada com um poderoso samurai, Buntaro), sua crescente lealdade para com Toranaga, e seu desejo de voltar a navegar a bordo do Erasmus para capturar o Navio Negro.

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William Adams, também conhecido no Japão como Anjin-sama, foi o primeiro navegador inglês a chegar ao Japão e aí morreu em 16 de maio de 1620 aos 55 anos de idade. 
Logo após chegar ao Japão, se tornou um importante conselheiro do xogum Tokugawa Ieyasu para a construção dos primeiros navios japoneses segundo as técnicas do Ocidente.

Na sua ascensão do Xogunato, Tokugawa Ieyasu redistribuiu as terras e feudos dos participantes, geralmente recompensando os que o ajudaram e desapropriando, punindo, ou exilando os que lutaram contra ele. Ao fazê-lo, ele ganhou controlo de muitos territórios que eram de Toyotomi.

Na época, a batalha fora considerada apenas como um conflito interno entre vassalos de Toyotomi. Entretanto, após Ieyasu se tornar Xogum, uma posição deixada vaga desde a queda do Xogunato Ashikaga 27 anos antes, a batalha foi vista como um evento de maior importância. Em 1664, Hayashi Gahö, historiador de Tokugawa e reitor de Yushima Seido, resumiu as consequências da batalha: "Malfeitores e bandidos foram expurgados e todo o território entregue ao Senhor Ieyasu, louvando o estabelecimento da paz e exaltando sua virtude marcial." Esta mudança na hierarquia oficial também inverteu a posição de subordinação do clã Tokugawa, tornando assim o clã Toyotomi subordinado do clã Tokugawa.

terça-feira, 25 de julho de 2023

Utensílio encontrado na garganta de Olduvai, Tanzânia, com 2 milhões de anos





Esta pedra trabalhada, que está no Museu Britânico, era uma ferramenta de corte, um dos objetos mais antigos que os seres humanos produziram de forma consciente. Esta pedra lascada da África — onde hoje fica a Tanzânia — é o começo de tudo.

Em 1931, um jovem arqueólogo, chamado Louis Leakey, partiu numa expedição patrocinada pelo British Museum com destino à garganta de Olduvai, uma fenda profunda na savana do norte da Tanzânia, não muito longe da fronteira do Quénia. Ela faz parte do vale do Rift, no Leste da África, um imenso rasgão na superfície da Terra com milhares de quilómetros de comprimento. Foi em Olduvai que Leakey examinou camadas de rochas expostas que agem como uma série de cápsulas do tempo. Leakey alcançou uma camada em que as pedras eram moldadas também por algo mais: mãos humanas. Elas foram encontradas ao lado de ossos, e era óbvio que tinham sido transformadas em utensílios para cortar carne e quebrar ossos de animais mortos na savana. Em seguida, indícios geológicos estabeleceram, sem sombra de dúvida, que a camada em que os utensílios foram encontrados tinha mais ou menos dois milhões de anos.

As escavações de Leakey apresentaram os mais antigos objetos produzidos pelo homem de que se tem notícia em qualquer parte do mundo, em qualquer época, e demonstraram que não apenas os seres humanos tinham origem na África, mas a cultura humana também. Esta ferramenta de corte feita de pedra foi um dos objetos que Leakey encontrou. Ao pegá-lo, a primeira reação é achá-lo muito pesado, e é claro que o peso dá potência ao golpe. A segunda é perceber que cabe sem dificuldade na palma da mão, e numa posição em que um ângulo afiado vai do dedo indicador ao punho. Os primeiros humanos a usarem utensílios de corte como este provavelmente não eram caçadores, mas oportunistas brilhantes: esperavam que leões, leopardos ou outros animais matassem suas presas e então entravam em cena com suas ferramentas de corte, garantiam a carne e o tutano e levavam como prémio a proteína. Gordura de tutano é bastante nutritiva — combustível não apenas para a força física, mas também para um grande cérebro. O cérebro é um mecanismo extremamente faminto de energia. Embora corresponda a apenas 2% do peso do corpo, consome 20% de toda a energia que ingerimos e requer alimentação constante.

Nossos ancestrais de quase dois milhões de anos atrás garantiam o futuro dando ao cérebro o alimento de que ele precisava para crescer. Quando predadores mais fortes, mais rápidos e mais ferozes descansavam à sombra depois de matar suas presas, os humanos primitivos podiam sair à procura de comida. Usando ferramentas como esta para obter tutano, a parte mais nutritiva da carcaça, deram início a um antigo círculo virtuoso. Esse alimento para o corpo e para a mente significava que os indivíduos mais astutos, de maior cérebro, sobreviveriam para gerar crianças de cérebro maior, capazes, por sua vez, de fabricar utensílios mais complexos.

O cérebro humano continuou a evoluir durante milhões de anos. Um dos mais importantes avanços foi ficar assimétrico à medida que passava a lidar com todo um novo conjunto de diferentes funções: lógica, língua, os movimentos coordenados necessários para fabricar ferramentas, imaginação e pensamento criativo. Os hemisférios esquerdo e direito do cérebro humano adaptaram-se para se especializar em diferentes habilidades e tarefas — bem diferente do que ocorreu com o cérebro dos macacos, que continua não apenas menor, mas simétrico. Esta ferramenta de corte representa o momento em que nos tornamos distintamente mais espertos, movidos por um impulso não só de fazer coisas, mas também de imaginar como “melhorar” as coisas.

Este objeto está na base de um processo que se tornou quase obsessivo entre os seres humanos. É algo criado a partir de uma substância natural com um propósito específico, e, de certa maneira, quem fez o objeto tinha uma noção do que era preciso fazer. Aquelas lascas extras no gume da ferramenta de corte revelam que, desde o início, nós — ao contrário de outros animais — sentimos o desejo de fazer coisas mais sofisticadas do que o necessário. Objetos transmitem poderosas mensagens sobre quem os produz, e a ferramenta de corte é o começo de uma relação entre os seres humanos e as coisas que criaram.

A partir do momento em que nossos ancestrais começaram a fabricar ferramentas como esta, ficou impossível para as pessoas sobreviver sem os objetos que produzem; nesse sentido, fabricar coisas é o que nos torna humanos. As descobertas de Leakey na terra quente do vale do Rift tiveram como resultado mais do que simplesmente obrigar os humanos a recuar no tempo: deixaram claro que todos nós descendemos desses ancestrais africanos e que cada um de nós é parte de uma gigantesca diáspora africana — todos trazemos a África nos genes, e todas as nossas culturas começaram ali.

As informações de que dispomos nos dizem que viemos de algum ponto no Leste da África. De tão acostumados que estamos a ser divididos por fronteiras étnicas, seguindo fronteiras raciais, e a procurar razões para sermos diferentes uns dos outros, deve ser surpreendente para alguns perceber que o que nos diferencia é quase sempre muito superficial, como a cor da pele, a cor dos olhos, a textura do cabelo, mas que, essencialmente, todos viemos do mesmo tronco, temos a mesma origem.


quinta-feira, 20 de julho de 2023

O tempo em que Roma passou a Império com pirataria à mistura


A pirataria foi traço marcante da vida no Mediterrâneo durante a maior parte da Antiguidade Clássica. Quando havia reinos com poderosas marinhas, os piratas eram normalmente reduzidos a um mínimo e até, por curto período, erradicados. Contudo, quando Roma derrotou a Macedónia e o Império Selêucida, aliado ao inexorável declínio do Egito Ptolemaico, deu fim às armadas que tinham controlado a pirataria no Mediterrâneo. Muitas das comunidades costeiras da Ásia Menor, especialmente na Cilícia, em Creta e em ilhas menores, começaram a fazer incursões marítimas que propiciavam altos lucros no saque e no pagamento de resgates, uma adição bem compensatória dada as magras receitas da pesca e da agricultura. 
A propagação da pirataria foi estimulada quando Mitrídates, do Ponto, deu aos chefes piratas dinheiro e navios de guerra para auxiliá-lo na sua guerra contra Roma. Apesar de virem de muitas comunidades diferentes, e de não possuírem hierarquia política, os piratas raramente lutaram entre si e, quase sempre, enviavam forças ou dinheiro para auxiliar seus pares sob ameaça. 

Em 74 a.C., o Senado de Roma enviou o pai de Marco António para combater os piratas. Para isso, recebeu amplos poderes e consideráveis recursos. Mas dada a sua inabilidade foi malsucedido, tendo sido derrotado numa batalha naval travada nas costas de Creta em 72 a.C.. Ele morreu pouco depois da sua derrota, e, em 69 a.C., o cônsul Quinto Cecílio Metelo foi enviado para derrubar as fortalezas de Creta. Ele demonstrou ser um comandante competente, mas a campanha envolvia sitiar uma cidade murada após outra, e o progresso foi lento. Apesar do seu sucesso, o problema provocado pelos piratas tornou-se ainda pior, e, uma ocasião, dois pretores foram sequestrados juntamente com os seus lictores. Toda a sua escolta foi atacada quando viajavam pela região costeira da Itália, ao passarem pela cidade de Ostia.

Júlio César (100 a.C. - 44 a.C.) enquanto jovem foi apenas um dos romanos proeminentes a ser tomado como refém e a ter de pagar resgaste aos piratas. Viajar tornava-se difícil. O comércio começou a ser afetado. A população da Itália e, em especial, da cidade de Roma, precisava de mais produtos para além do que produzia localmente. Dependia maciçamente da importação de cereais da Sicília, do Egito e do norte da África. As atividades dos piratas começaram a afetar essa linha de abastecimento, o que tornava os preços dos produtos incomportáveis.

Em meados da década de 60 a.C., Pompeu (106 a.C. - 48 a.C.) juntou-se a Crasso e a Júlio César na aliança político/militar extraoficial conhecida como Primeiro Triunvirato. Esta aliança foi selada com o casamento de Pompeu com Júlia, a filha de Júlio César. A aliança entre Pompeu e Crasso não durou muito, e o mandato de ambos não produziu nada de significativo. Pompeu cumpriu a promessa de restaurar o poder dos tribunos, retirando as restrições que Sula havia estabelecido durante o seu mandato. Como os dois cônsules tinham concluído uma guerra bem-sucedida, nenhum demonstrou desejo de tomar uma província após a conclusão do seu ano no cargo. Pompeu havia, agora, conferido legitimidade política à sua riqueza e ao seu prestígio e estava satisfeito, naquele momento, com a posição que conquistara, a de um dos membros mais proeminentes do Senado. Logo descobriu, como havia acontecido com Cipião Africano, que a juventude passada no campo de batalha e à frente do exército não lhe tinha dado tempo para adquirir uma educação formal necessária para lidar com a política em Roma.

No começo do seu consulado, Pompeu pedira a Marco Terêncio Varro, descendente do homem que perdera a Batalha de Canas, sábio notável que escrevera vários estudos abrangentes, que lhe preparasse um manual sobre os procedimentos e convenções senatoriais. Agora que não podia mais exigir obediência nem derrotar seus oponentes em batalha, Pompeu encontrou dificuldades em conseguir o que queria ao transformar o seu prestígio e riqueza em influência política real. Crasso usou o seu dinheiro, com grande habilidade, emprestando-o a muitos senadores que lutavam para atingir os altos cargos da carreira política, e, com o tempo, conseguiu que a imensa maioria do Senado lhe ficasse nas mãos. 

Pompeu não tinha nem experiência, nem instinto para o uso de estratagemas a fim de subir as escadas da elite. Sua oratória era medíocre e, conforme o tempo corria, ele ficava cada vez menos no Senado e raramente intervinha a favor de quem quer que fosse nos tribunais. Muito sensível a críticas e hostilidades, preferiu evitar qualquer dano ao seu prestígio afastando-se da vida pública. Entretanto, os anos iam passando e alimentando o ritmo da sua frustração. Os grandes feitos que realizara não lhe garantiram a proeminência que acreditava merecer. Como Mário, percebeu que a adulação do povo apenas durava enquanto voltasse periodicamente à cidade vitorioso do campo de batalha. Enquanto estivesse travando uma grande guerra conseguia eclipsar verdadeiramente o restante Senado. Assim, Pompeu teve de procurar outra guerra importante a travar. A oportunidade surgiu em 67 a.C. A escassez de trigo tornou-se crítica e o tribuno Aulo Gabínio propôs a recriação da grande província. De início, Gabínio não pensou em Pompeu, a pessoa obviamente mais qualificada para receber tal comando. Mas já havia uma forte ligação entre os dois homens. Segundo Cícero, Gabínio estava muito endividado, e Pompeu aproveitou para conquistar o apoio de Gabínio ajudando-o financeiramente. A Lex Gabinia foi aprovada pela Assembleia Popular e Pompeu recebeu o imperium proconsular não apenas do Mediterrâneo, mas também de uma margem de 80 Km da costa até ao interior. Não está bem claro se seu imperium era igual ou superior ao dos outros procônsul, mas era provavelmente superior.

Para assisti-lo, Pompeu recebeu 24 legados. Todos tinham exercido um comando militar no passado ou, pelo menos, haviam sido pretores. Cada qual auxiliado por dois questores. Suas forças viriam a constituir uma armada de 500 navios de guerra, apoiada por um exército composto por uma infantaria de 120 mil homens e uma cavalaria de 5 mil cavaleiros, além de dinheiro e recursos em alimentos e outros materiais essenciais para manter tal força. Muitas dessas tropas não eram, provavelmente, bem treinadas e disciplinadas, mas arregimentadas à pressa entre a população local. Apesar da vasta escala, essa seria uma ação essencialmente policial. Pompeu precisava de grande quantidade de soldados de modo a poder pressionar os piratas em todas as direções simultaneamente. Apenas uma pequena fração das suas forças deveria enfrentar combates árduos.

Foi o prestígio de Pompeu que garantiu que tantos recursos fossem colocados à sua disposição, um comando sem precedentes em termos daquela escala. De maneira surpreendente, os tribunos conferiram-lhe poderes de cônsul durante este mandato. Apenas uma minoria de generais tinham tal apoio popular suficiente para subverter o comum processo senatorial de alocação de províncias e recursos, como foi dado a Pompeu. A fé que o povo tinha nele era tanta que o preço dos cereais no Fórum caiu logo que ele foi nomeado. Mesmo os muitos senadores - que eram relutantes em conceder tantos poderes a um único homem, tanto mais um homem cujo prestígio e riqueza suplantavam o de todos os seus rivais - parecem ter reconhecido que essa era a melhor maneira de enfrentar o flagelo da pirataria. Os legados de Pompeu formavam um grupo muito distinto, constituído basicamente de homens vindos de famílias nobres, tradicionais e estabelecidas.

segunda-feira, 17 de julho de 2023

A Batalha de Adrianópolis





A Segunda Batalha de Adrianópolis (atualmente Edirne na Turquia) foi travada entre os romanos liderados pelo imperador Valente e tribos germânicas, em agosto de 378, em que os romanos saíram derrotados. Foi uma estrondosa derrota em que o próprio imperador Valente perdeu a vida numa província romana semiárida do Oriente, na Trácia. Este acontecimento encorajou os godos mais tarde, em 410, a saquearem Roma, prenunciando o colapso final do Império Romano do Ocidente.

Muitos historiadores concordam que boa parte da culpa pela trágica derrota se deveu à má liderança do imperador Valente, e não à inépcia do exército romano. Em sua História Romana, o historiador do século IV d.C. Amiano Marcelino disse: "Os anais não registam outro massacre em batalha como esse, à exceção daquele em Canas, embora mais de uma vez os romanos, enganados pelos ventos adversos da fortuna, tenham adentrado numa época de insucessos nas suas guerras...".

As hostilidades entre os godos e os romanos começaram de maneira bem inofensiva. À medida que os hunos se moviam pela Ásia em direção a Oeste causando destruição, os visigodos, que somavam mais de 200.000 indivíduos, saíram do atual território da Ucrânia em direção à fronteira do Império Romano e, em 376 d.C., cruzaram o rio Danúbio e se estabeleceram na Trácia. Como os hunos continuaram a avançar, as lideranças godas e romanas fizeram uma aliança, de modo que às tribos fosse, enfim, dada a permissão de aí se estabelecerem permanentemente. Era uma aliança impopular entre muitos romanos. No entanto, a permissão foi dada com uma condição: em troca de terras e provisões, os godos comprometiam-se a enviar soldados ao exército romano. Outras exigências foram feitas logo depois por inescrupulosos comandantes romanos (Lupicino e Máximo): enviar as crianças para trabalharem como escravos e entregar todas as armas.

Encarando as provisões inadequadas que levou à fome generalizada, os godos se insurgiram contra os romanos. Após a malograda tentativa de assassinar os líderes godos Fritigerno e Alavivo, o dito Fritigerno e seus companheiros tervíngios entregaram-se a pilhar os campos. Conforme as incursões continuavam, os romanos e os godos acabaram por se enfrentar na Batalha de Marcianópolis em 376 d.C. e na Batalha Ad Salices (ou Batalha dos Salgueiros) em 377 d.C. Em 378 d.C., os contínuos reveses se mostraram demasiado embaraçosos para os líderes romanos, em especial para o imperador Valente, que estava envolvido em batalhas mais a leste contra os persas. Porém, quando os godos se aproximaram de Constantinopla, Valente atendeu aos apelos desesperados dos seus cidadãos regressando à cidade para marchar contra Fritigerno.

A derrota em Adrianópolis viria a ser o capítulo final de um reinado turbulento. Em 364 d.C., o imperador romano Valentiniano I (r. 364-375 d.C.) havia indicado o seu irmão mais novo para ser imperador em dueto, e governar o Oriente em Constantinopla. A impopularidade de Valente advinha, sobretudo, do seu apoio aos cristãos arianos que enfureceu tanto os não cristãos como os cristãos tradicionais. Com a morte de Valentiniano em 375 d.C., quem lhe sucedeu foi Graciano, seu filho com 16 anos de idade. Embora fosse considerado de início muito jovem e inexperiente, Graciano provaria ser um líder hábil e, ao lado de hábeis comandantes, obteve considerável sucesso na Gália. Infelizmente para Valente, ele não conseguira enviar ajuda contra os godos em Adrianópolis.

Assim, convergiram para a derrota vários fatores entre os quais: baixo moral - o exército romano estava cansado, faminto e sedento quando chegou a Adrianópolis; reconhecimento insuficiente e inadequado - Valente não tinha qualquer apetência para avaliar o potencial dos 10.000 cavaleiros que se juntariam depois a Fritigerno; a inadequadamente treinada cavalaria romana - a cavalaria romana realizou uma série de ataques desorganizados e malogrados contra os godos. Esses ataques malogrados deixaram o flanco esquerdo romano desprotegido. Quando Fritigerno e seus homens atacaram os romanos pela frente e pelo lado, o caos se instalou. Os esmagadores números das forças dos godos fizeram com que os soldados romanos fugissem do campo de batalha. Valente foi deixado sozinho com apenas um punhado de homens; seu corpo jamais foi encontrado.

Em 382 d.C., o imperador Teodósio I e os godos acordaram a paz por meio de uma aliança que garantia terras em troca de soldados para servirem no exército romano. A derrota em Adrianópolis demonstrou a fraqueza militar dos romanos, de modo que nas décadas seguintes o Império Romano Ocidental prosseguiu numa espiral descendente até que Alarico, líder visigodo e ex-comandante romano, viu que tinha o caminho aberto para saquear Roma em 410 d.C. O último imperador do Ocidente, Rómulo Augusto, abriu mão do trono em 476 d.C. Mas o Império Oriental persistiu até ser tomado pelos turcos otomanos em 1453.

A partir do século III em diante Roma foi declinando lenta e progressivamente, de modo que o ano de 476 representa o epílogo de uma morte anunciada confirmada pelo último imperador ocidental, Rómulo Augusto. Para o dia-a-dia da maioria da população o evento em si teve pouco impacto. Os imperadores vinham perdendo o seu poder real. Este acontecimento do lado ocidental do império não pode ser o verdadeiro acontecimento responsável pelas grandes transformações que se verificaram no Império Romano a partir dessa data. Roma é saqueada pelos godos em 410 d.C., guerreiros germânicos que já tinham entrado no exército romano. De modo que o contexto era mais de uma guerra civil do que de uma invasão estrangeira. Durante o século V, as províncias ocidentais do império, como, por exemplo, a Britânia, já haviam seguido o seu próprio rumo. Ou foram invadidas e transformadas em reinos liderados por chefes guerreiros germânicos, muitos dos quais que tinham estado ao serviço de Roma. Dessa forma, foi assim que: os visigodos tomaram conta da Hispânia; os francos da Gália; os ostrogodos da Itália; os vândalos da Sicília e do Norte de África. Enquanto o Império Romano do Ocidente ruía, o do Oriente continuava com a sua capital em Constantinopla a administrar um território que incluía os Bálcãs, a Grécia, a Ásia Menor, o Egito e a Síria. De diversas maneiras, passava a ser uma unidade mais coerente.

O Império Romano do Oriente (normalmente chamado, pela convenção moderna, de Império Bizantino) veio a ter de novo a estabilidade política que faltara durante muito tempo. Por volta do século VI era raro que um imperador comandasse em pessoa uma campanha, e sua preocupação em outorgar o comando de seus exércitos a outros é uma indicação da maior segurança pessoal de que gozavam. As atividades dos generais eram observadas de perto em busca do menor sinal de deslealdade. Os imperadores orientais eram capazes de conduzir ativamente a guerra em mais de um palco simultaneamente, de uma maneira que dificilmente fora possível durante séculos.

Os recursos militares disponíveis tinham diminuído, mas ainda eram consideráveis. Em termos de território, o Império do Oriente era mais ou menos equivalente ao seu maior rival, a Pérsia sassânida, embora os romanos – pois era assim que os bizantinos se viam e se chamavam – fossem mais populosos e provavelmente mais ricos. A redução do seu território alterou a atitude dos imperadores romanos em relação ao mundo exterior, e havia certamente uma tendência a dirigirem-se ao rei persa como um igual. Tal disposição fazia contraste marcante com a diplomacia de séculos anteriores, a qual sempre buscara enfatizar a enorme superioridade de Roma sobre as outras nações. Contudo, pelo menos alguns imperadores orientais continuaram a nutrir a ambição de reviver o antigo poderio do império, e, durante o reinado de Justiniano (527-565 d.C.), um esforço concentrado foi feito no sentido de reconquistar os territórios perdidos no Mediterrâneo ocidental. O Norte de África, a Sicília e a Itália foram reconquistados numa série de campanhas, embora tais conquistas não tenham sido duradouras. Um dos comandantes mais proeminentes dessas operações foi Belisário, que teve a sua primeira experiência como general nas guerras da fronteira oriental.

segunda-feira, 10 de julho de 2023

Entre o Cáucaso e a Anatólia - desde os protoindo-europeus






O nome protoindo-europeus que foi dado aos povos que no início do século XX foi designado por caucasianos, é filiado no trabalho dos linguistas ou filólogos que se basearam no estudo etimológico das línguas faladas para os delimitar à cultura e etnia dos povos. Assim, a língua indo-europeia foi a língua derivada de um povo pré-histórico da Idade do Cobre e do Bronze que emergiu de uma área incerta à volta da região a que foi dado o nome de Cáucaso.




No entanto, hoje admite-se que a reconstrução linguística está repleta de tantas incertezas significativas que se presta para uma larga margem de especulação. De acordo com alguns arqueólogos, os falantes de protoindo-europeu não podem ser considerados como sendo um povo ou tribo, única e identificável, mas antes um grupo impreciso de populações ancestrais ainda parcialmente pré-históricas, distintas dos indo-europeus da Idade do Bronze. Os protoindo-europeus terão vivido há 6.000 anos no extremo da estepe para lá do Mar Negro e do Mar Cáspio. Há cerca de 4.000 anos os seus descendentes desdobrados em várias tribos atravessaram o Mar Cáspio, desceram o Cáucaso, atravessaram a Anatólia e chegaram à Grécia. De muita coisa que pensamos saber hoje recebemo-lo da civilização da Grécia Clássica ou Antiga.




Por volta de 1300 a.C., os Cimérios, que viviam a norte do Cáucaso, chegaram à Anatólia empurrados pelos Citas. Os Cimérios provavelmente saquearam Urartu, por volta de 714 a.C. Porém, em 705 a.C., após serem repelidos por Sargão II da Assíria, rumaram para a Anatólia, onde, cerca de 695 a.C. conquistaram a Frígia. Em 652 a.C., após conquistar Sárdis, capital da Lídia, atingiram o seu apogeu. Seguiu-se então um período de rápido declínio, até à sua derrota final, na década de 630 a.C., quando foram derrotados pelo rei lídio Aliates. Deixam então de ser mencionados pelas fontes históricas, tendo-se fixado, provavelmente por esta altura, na Capadócia.




 Há um outro povo que merece ser aqui falado, que é o povo eslavo. Os eslavos são um outro povo que se ramificou do povo de língua indo-europeia que se estendeu por toda a Europa Oriental até aos Balcãs, e que posteriormente também migrou até à Sibéria. Os povos eslavos são classificados geográfica e linguisticamente em eslavos ocidentais [checos, eslovacos, morávios, polacos, silesianos e sórbios]; eslavos orientais [bielorrussos, russos, rutenos e ucranianos]. De acordo com um estudo genético feito em 2007 baseado nos haplogrupos do cromossoma Y, o grupo de homens eslavos se divide em dois grupos principais; um abrange todos os eslavos ocidentais, eslavos orientais e duas populações eslavas meridionais masculinas (croatas ocidentais e eslovenos), enquanto que o outro grupo abrange todos os homens eslavos meridionais restantes.

Ora, acontece que esta região, ocupada pelos eslavos, é mais tarde, entre os séculos X e XII, invadida pelos Víquingues, também conhecidos por Varegues, o povo da Escandinávia que seguindo o curso dos rios atravessou o leste europeu até chegarem a Constantinopla e Bagdade. Entretanto acabaram por se fixar onde hoje é a Bielorrússia, a Ucrânia e parte da Rússia ocidental. 




De acordo com a Primeira Crónica da Rússia de Kiev compilada por volta de 1113 os Rus' eram viquingues que haviam partido de Uplândia, que fica onde hoje é a Suécia. Rurik deu início à dinastia que do qual resultou o nome Rus'. Envolvendo-se em atividades de comércio e pirataria com recurso a mercenários, os varegues desciam os rios da Gardarícia, nome que eles davam às terras do Rus' nas sagas nórdicas. Controlavam a rota comercial do rio Volga - que ligava o Mar Báltico ao Mar Cáspio. E a rota comercial do rio Dniepre que levava a Constantinopla e o Mar Negro. Coincidindo com o declínio geral da Era Viquingue, o influxo dos nórdicos foi diminuindo até serem assimilados pelos russos. Na Rússia, o termo 'varegue' continuou a ser um sinônimo para sueco até ao fim do século XVI. Contrastando com a intensa influência escandinava na Normandia e nas Ilhas Britânicas, a cultura varegue não sobreviveu no Leste. Ao contrário, as classes dominantes varegues das duas poderosas cidades-estado de Kiev e Novogárdia sofreram um intenso processo de aculturação eslávica no fim do século X. O nórdico antigo ainda foi falado num determinado distrito de Novgorod até ao século XIII.

Depois veio a invasão empreendida por um vasto exército de nómadas mongóis iniciada em 1223 contra os Estados de Rus'. Tal invasão precipitou a sua fragmentação e influenciou o desenvolvimento e ascensão do principado de Moscovo, a partir do qual se constrói a História da Rússia. A campanha começou pela Batalha do Rio Calca em maio de 1223, que resultou na vitória dos mongóis sobre as forças de diversos principados da Rus'. Os mongóis recuaram, mesmo assim. Uma invasão completa da Rus' por Batu Cã aconteceu de 1237 a 1242. A invasão acabou com o processo de sucessão após a morte de Oguedai Cã. Todos os principados de Rus' foram forçados a se submeter e fazer parte do Império da Horda de Ouro. Em alguns desses principados a dominação durou até 1480.

segunda-feira, 3 de julho de 2023

O choque da expansão dos russos com os cultos xamânicos da Sibéria

 


Vasili Surikov
A Conquista da Sibéria por Iermak

Depois de os russos terem derrotado o kanato da Sibéria, em 1582, primeiro foram os caçadores de peles a entrar pela Sibéria dentro. Atrás deles foram mercenários, como os cossacos, comandados pelo herói russo Iermak, que foram tomando as ricas minas dos Urais para o seu patrono Stroganov. Só depois é que os soldados do czar se atreveram a construir fortalezas para cobrar tributos às tribos nativas. E mais tarde apareceram os missionários da igreja ortodoxa para catequizar o cristianismo aos siberianos, privando-os dos seus ancestrais cultos xamanísticos.

A Conquista da Sibéria por Iermak, do pintor Surikov, 1885, é uma movimentada cena de batalha entre os cossacos, com mosquetes e ícones, e os pagãos das tribos siberianas, com arco e flecha, a que não faltam os seus xamãs pra tocar os tambores. Esta obra de arte terá sido a que mais contribuiu para firmar essa imagem mítica do Império na consciência do povo russo. Inicialmente, o verdadeiro propósito era mais a conversão dos xamãs do que a conquista de terras. À semelhança dos missionários católicos em África e no Novo Mundo, essa conquista religiosa da estepe asiática foi muito importante para o Império russo.

Os Montes Urais, que oficialmente dividiam a estepe europeia da asiática, fisicamente não passavam de uma série de grandes colinas com extensas terras de estepe a separá-las. E o viajante que as atravessasse teria de perguntar onde ficava a cordilheira dos tão famosos Montes Urais. Isso se tornou muito importante no século XVIII, quando a Rússia se apresentou ao Ocidente como império europeu. Se queria intitular-se "Estado ocidental", a Rússia precisava construir uma fronteira cultural clara para se destacar do seu “outro asiático oriental”. A religião era a mais fácil dessas categorias. Todas as outras tribos não cristãs eram para todos os efeitos os "Tártaros", fosse qual fosse a sua origem e a sua fé (muçulmana, xamânica, budista). 

Em termos mais gerais, Sibéria, Cáucaso, e Ásia Central, eram conotadas como as terras dos  "bárbaros", segundo a nómina grega, que era sinónimo de “atraso”. A imagem do Cáucaso foi orientalizada, com as histórias que os viajantes contavam acerca das suas tribos selvagens. Os mapas do século XVIII consignavam o Cáucaso ao oriente muçulmano, embora em termos geográficos ficasse ao sul e em termos históricos fosse parte da antiga Arménia e Geórgia. O Cáucaso continha civilizações cristãs que datavam do século IV, quinhentos anos antes de os russos se converterem ao cristianismo. Foram os primeiros a adotar a fé cristã, mesmo antes de Constantino converter o nome da cidade Bizâncio ao nome de Constantinopla, em sua honra, que doravante passaria a ser a capital do Império Romano do Oriente.

Na imaginação do século XVIII, os Urais eram vistos como uma vasta cadeia de montanhas, como se criadas por Deus no meio da estepe para marcar o limite do mundo civilizado com o Oriente. Os russos do lado oeste dessas montanhas eram cristãos nos seus costumes, enquanto os asiáticos do lado leste eram descritos pelos viajantes russos como “selvagens”. Nos atlas russos do século XVIII a Sibéria era “Sibir” e se referiam a ela como “Grande Tartária”, título tomado emprestado do léxico geográfico ocidental. Os escritores sobre viagens falavam das suas tribos como os tungus, iacutos e buriatos, sem sequer mencionar a população russa instalada na Sibéria, embora já fosse considerável.  
Essa visão da Sibéria foi reforçada pela sua transformação num vasto campo de prisioneiros, os Gulag. Em expressões coloquiais, a palavra “Sibéria” tornou-se sinónimo de servidão penal. Onde quer que ocorresse, só havia crueldade e vida dura.

Os próprios russos de São Petersburgo mais instruídos amaldiçoavam o “atraso asiático” do seu país. Ansiavam por serem aceites como iguais pelo Ocidente, por entrar e fazer parte da linha principal da vida europeia. Mas, quando rejeitados ou quando sentiam que os valores da Rússia tinham sido subestimados pelo Ocidente, até o mais ocidentalizado intelectual russo tendia a se ressentir e a dar uma guinada para o orgulho chauvinista, asiático e ameaçador. Pushkin, por exemplo, era totalmente europeu na sua criação e, como todos os homens do Iluminismo, via o Ocidente como o destino da Rússia. Mas, quando a Europa condenou a Rússia por sufocar a insurreição polaca de 1831, ele escreveu um poema nacionalista, “Aos caluniadores da Rússia”, em que enfatizava a natureza asiática da sua terra natal, “dos penhascos frios da Finlândia aos penhascos fogosos de Colchis” (nome grego do Cáucaso).

No entanto, havia muito mais do que simples ressentimento com o Ocidente nessa orientação asiática. O Império Russo cresceu pela colonização, e os russos que foram para as zonas de fronteira, alguns para plantar ou comerciar, outros para fugir do domínio czar, tinham tanta probabilidade de adotar a cultura nativa quanto de impor o seu modo de vida russo às tribos locais. Os Aksakov, por exemplo, que se instalaram na estepe perto de Oremburgo, no século XVIII, usavam remédios tártaros quando adoeciam. Eles guardavam koumis, umas ervas especiais, numa bolsa de couro de cavalo, que consumiam acompanhado de uma dieta de gordura de carneiro. O comércio e o casamento eram formas universais de intercâmbio cultural na estepe siberiana, mas quanto mais se deslocavam para leste, mais os russos mudavam o seu modo de vida. Em Iakutsk, por exemplo, no nordeste da Sibéria, todos os russos falam a língua iacuta.

 Mikhail Volkonski, filho do dezembrista que teve papel importante na conquista e povoamento russo da bacia do Amur nos anos 1850, recorda ter estacionado um destacamento de cossacos numa aldeia local para ensinar russo aos buriatas. Um ano depois Volkonski voltou para ver como os cossacos estavam se saindo. Nenhum buriata conseguia conversar em russo, mas todos os duzentos cossacos falavam buriata fluentemente. O Império Russo se foi desenvolvendo pela imposição da cultura russa à estepe asiática, mas nesse mesmo processo muitos colonizadores também se tornaram asiáticos. Uma das consequências desse encontro foi uma solidariedade cultural com as colónias.

Potenkin, príncipe de Tauride, por exemplo, deliciava-se com a mistura étnica da Crimeia, que a Rússia arrancou das mãos do último kanato mongol em 1783. Para comemorar a vitória, o príncipe de Tauride construiu para si um palácio no estilo turco-moldavo, com cúpula e quatro minaretes, como uma mesquita. Na verdade, era típico que, exatamente naquele momento em que os soldados russos marchavam para leste e esmagavam os infiéis, os arquitetos de Catarina construíssem em Tsarskoie Selo aldeias e pagodes chineses, grutas orientais e pavilhões em estilo turco.

Grigori Volkonski, pai do famoso dezembrista, reformou-se como herói da cavalaria de Suvorov e foi para governador de Oremburgo, de 1803 a 1816. Na época, Oremburgo era um baluarte importante do Império Russo. Aninhada no sopé sul dos Montes Urais, era a porta de entrada na Rússia para todas as principais rotas comerciais entre a Ásia central e a Sibéria. Caravanas de camelos com mercadorias preciosas da Ásia, gado, tapetes, algodões, sedas e joias, passavam por Oremburgo a caminho dos mercados da Europa. Era dever do governador tributar, proteger e promover esse comércio. Ali Volkonski foi extremamente bem-sucedido, desenvolvendo novas rotas para Khiva e Bukhara, reinos algodoeiros importantes, que abriram caminho para a Pérsia e a Índia. Mas Oremburgo também era o último posto avançado do Estado imperial, uma fortaleza para defender os agricultores russos nas estepes do Volga das tribos nómadas: nogais e basquírios; calmuques e quirguizes. 

No decorrer do século XVIII, os pastores basquírios rebelaram-se numa série de revoltas contra o Estado czar quando colonos russos começaram a invadir os seus antigos pastos. Muitos basquírios se uniram ao líder cossaco Pugachev na rebelião contra o duro regime de Catarina, a Grande, em 1773–74. Sitiaram Oremburgo (história contada por Pushkin em "A filha do capitão") e capturaram todas as outras cidades entre o Volga e os Urais, saqueando propriedades e aterrorizando os habitantes. Depois de suprimida a rebelião, as autoridades czaristas reforçaram a cidade de Oremburgo. A partir dessa fortaleza, realizaram uma campanha violenta de pacificação contra as tribos da estepe. Essa campanha foi continuada por Volkonski, que também teve de lidar com um grave levantamento dos cossacos dos Urais. No trato com os dois, foi duríssimo. Por ordem de Volkonski, várias centenas de líderes rebeldes basquírios e cossacos foram publicamente açoitados, marcados na testa, e mandados para campos de prisioneiros no Extremo Oriente. Entre os basquírios, o governador passou a ser conhecido como “Volkonski o Severo”.