sexta-feira, 31 de julho de 2020

O consumido(r) na Gramatologia de Jacques Derrida


Estava no restaurante Atena a beber um mazagrã (*) com o Carlos, enquanto esperávamos que chegassem os outros para almoçarmos, quando a certa altura ouvi da mesa ao lado - um fulano de meia idade, que conversava com outro um pouco mais novo, dizer: "Só a felicidade geral importa. A morte de um cientista a poucos dias de terminar uma investigação que traria a solução para o tratamento desta nova doença - a Covid-19 - seria sem dúvida uma morte pior do que a morte do maior corrupto da banca."

Resumindo: Enquanto o cientista prometeria trazer uma maior felicidade geral, o banqueiro, com um fartar vilanagem para luxúria pessoal, trouxe grande infelicidade para muitos. E eu pensei, ora aqui está um filósofo com uma perspetiva comparativista a avaliar o mérito pessoal da morte. A natureza do mérito levanta questões complexas. Será que a morte é mesmo um mal em termos absolutos? Ou será apenas em termos relativos? 

Há quem defenda que a morte nunca é um mal para quem morreu. É o repouso de um estado de potência. É um regresso ao estado antes de ter nascido. No entanto, quase toda a gente se comporta como sendo um mal. Na nossa inocência, ninguém quer morrer, e faz tudo o que esteja ao seu alcance para não morrer. Já para não falar que para muitos, a negação do mal da morte tem implicações morais. Porque se a morte não fosse um mal, estaria aberta a impunidade para matar. Nesse caso a sorte dos homicidas ficaria ao sabor: ou da impunidade; ou então também não haveria nenhum mal condená-los à forca. Mas estou a ser irónico.

Por causa do chamado "distanciamento social", já há alguns metodólogos a avaliar o aperto de mão: o efeito de não apertar a mão numa entrevista para a seleção de emprego; ou o não aperto de mão num encontro entre duas pessoas para fechar um negócio. E a forma como a outra pessoa nos aperta a mão antes de mais nada, pode fornecer-nos muita informação sobre essa pessoa e muitas vezes sobre o desfecho de um contrato ou um negócio. Sabe-se que nas entrevistas para selecionar pessoas, por exemplo, para uma determinada função profissional, as primeiras impressões contam muito. As razões para haver tantas frases feitas como "nunca terás uma segunda oportunidade de causar uma primeira impressão" é que isto é geralmente reconhecido como verdadeiro.


Dando uma vista de olhos na Gramatologia  de Jacques Derrida (**) – O advento da máquina e da técnica, reproduzindo processos que inicialmente começaram por ser uma sequência de gestos repetitivos do homem na transformação da matéria - chego à conclusão que é um dos exemplos, para Jacques Derrida,  da sua gramatização para a extrapolar à motricidade corporal em geral. Há que lembrar que no âmbito da gramatização de Jacques Derrida, a 'palavra' faz parte  dessa gramatização da motricidade corporal, na medida da utilização do sistema dos órgãos da fala – maxilares, língua, faringe e sopro pulmonar – para falarmos. A 'palavra' ocupa em Aristóteles um primeiro lugar naquilo a que ele chama o primeiro motor no seu sistema das quatro causas: material; formal; eficiente; final. Seria a quintessência. 

Derrida joga com conceitos de 'diferença' e 'desconstrução' para recorrer às metáforas da Física, o que lhe causou alguns dissabores quando os físicos perderam a paciência e resolveram ridicularizá-lo. Mas polémicas à parte entre académicos barricados na guerra das duas culturas: físicas e humanísticasQuintessência (quinta essência) é uma alusão a Aristóteles, que considerava que o Universo era composto de quatro elementos principais - terra, água, ar e fogo -, mais um quinto elemento, uma substância etérea que permeava tudo e impedia os corpos celestes de caírem sobre a Terra. Em 1998, três astrofísicos da Universidade de Pensilvânia - Robert Caldwell, Rahul Dave e Paul Steinhardt - reintroduziram o termo para designar um campo dinâmico quântico que é gravitacionalmente repulsivo.
A dinamicidade é a propriedade mais atraente da quintessência. O maior desafio de qualquer teoria de energia escura é explicar o facto de ela existir na medida exata.

O tempo passou, Aristóteles ficou para trás, até que no século XIX a gramatização mnemotécnica prosseguiu o desenvolvimento hipomnésico do Ocidente no modo industrial, a máquina a reproduzir a motricidade do corpo humano que o produtor fazia com as mãos, abria o mundo com as mãos desde o tempo do homo habilis. E de produtor e artesão passou a operário. E assim se proletarizou. E no século XX a caminho do XXI, a digitalização transformou-o completamente num consumidor da época hiperindustrial do capitalismo. O que teve por consequência agora também na proletarização do próprio consumidor. Um consumidor que, na sua própria subsistência, prefere comprar barato, ainda que esse barato seja à custa da escravização de Uigures forçados a trabalhar em campos de concentração.

Os filósofos franceses, os que se reclamam descendentes de Edmund Husserl, como é o caso de Jaques Derrida, malgré a linguagem deles ser uma 'linguagem de pássaros', que usa termos como o termo que agora vou usar – epoché – há muito que preconizam que o devir do sistema técnico necessita de um duplo redobramento epocal. Uma dupla interrupção do curso vulgar das coisas. Trata-se de uma mutação técnica em que é suspenso o estado de coisas que tem vigorado até aqui. E o aqui, e agora, pode designar-se por tempo pós-pós-moderno, que ainda não tem nome verdadeiro. Tal coisa, passaria por uma primeira epoché (uma primeira suspensão da ordem estabelecida); e seria preciso que a sociedade efetuasse depois uma segunda suspensão, para que se constituísse uma época propriamente dita, e esta sim, teria um nome verdadeiro.

No jargão da fenomenologia husserliana, epoché significa suspensão do juízo, que Husserl dizia: ‘pôr entre parênteses’. Seria a atitude de não aceitar nem negar uma determinada proposição ou juízo, no sentido de se opor ao dogmatismo que a aceita sem mais. Chamo a atenção que, ao contrário da epoché dos sofistas gregos, que chegavam a negar a existência, a epoché fenomenológica implica a "contemplação desinteressada" de quaisquer pressupostos naturais ou psicológicos da existência. Em outras palavras, a suspensão de juízo fenomenológica não põe em dúvida a existência. Os antigos céticos gregos emitiam juízos sobre a existência, ao ponto de duvidarem da nossa existência, ceticismo esse que serviu de mote a Descartes, do qual resultou a a tal sentença: "Penso, logo existo".

Assim, pelo que pensam estes filósofos franceses, das duas uma: ou se processa na sociedade ocidental este redobramento (duplo dobramento), e assim se afirmará uma nova vontade de futuro, que estabelecerá, portanto, uma nova ordem que se traduz num novo modo de vida; ou a não se verificar, será a decadência das democracias industriais desacreditadas. Segundo essas teses, o modelo industrial assente na divisão produção/consumo levou à ‘cretinização’ dos consumidores deliberadamente organizada pelo capitalismo, cujo pináculo da perfeição se concretizou na propaganda dos canais televisivos. É segundo esta doutrina que os que se reconhecem como os mais esclarecidos dos millennials, também conhecidos por geração Y, fazem questão de afirmar que não veem televisão.

Segundo tais doutrinas, a democracia hoje é uma farsa, em que os cidadãos subsistem, mas não existem. Mas até essa subsistência não será duradoura, porque a psyché do demos (o espírito do povo), que sobrepôs o pathos ao eros no movimento demencial das massas, conduziu inexoravelmente à liquidação do narcisismo primordial. E por sua vez, essa liquidação conduz à liquidação da lei, isto é, daquilo que constitui a condição de um demos: a diferença entre o facto e o direito. O modelo industrial caduco liquida assim o político e faz da democracia uma farsa da qual só podem surgir descrença e descrédito.

É viajando - não apenas pelo nosso pé, mas também pelo pé de outros que escrevem ou fazem reportagens filmadas, para depois as lermos ou as vermos através da Internet, ou na TV - que ficamos a saber que afinal não somos só nós os desenrascados, ou a dar a volta por cima. Por exemplo, basta passear pelas ruas de Quito, no Equador, para constatar a imaginação e a esperteza dos equadorenhos para ganhar algumas moedas e encher a barriga no fim do dia. Eu pergunto: como é possível viver com tão pouco? Mas, se calhar, eles perguntariam como podemos viver nós com tanto. Para quê? Nas ruas de Quito um massagista espera por clientes ao ar livre. Tem uma cadeira de plástico para os sentar ali, no meio do passeio a atrapalhar os transeuntes, e tratar-lhes dos entorses e torcicolos. Em janeiro, um dos meses mais quentes e húmidos do ano no Equador, rapazes e raparigas vendem limonadas, com o garrafão numa mão e os copos de plástico na outra. Questões de higiene à parte, miúdos indígenas, provavelmente descendentes dos Incas, sentam-se na berma da estrada de um lado e do outro com uma corda de sisal a atravessar a estrada, a fazer de portagem. Os carros param, eles pedem dinheiro, e sempre acabam por receber alguma coisa. Quito é património da UNESCO desde 1978.

Muitas pessoas estão preparadas para tudo. Esse é o paradoxo dos preparativos. Preparamo-nos, quer para viver o dia-a-dia, quer para não viver. De um dos lados temos aqueles para quem o mundo é essencialmente seguro e ordenado. Do outro temos aqueles para quem o mundo é o caos, regulado pelo Acaso, onde o perigo espreita na próxima esquina da vida. Lucrécio, no De Rerum Natura, descreve que o Universo é formado por milhões de átomos em movimento, e que o comportamento desses átomos é suscetível de saltos bruscos. É assim que o mundo funciona, previsível só até certo ponto, mas profundamente imprevisível a partir daí. Um pouquinho de negligência de Deus, para com as criaturas, não foi mau de todo, porque senão, como havíamos de ter livre arbítrio?

(*) Mazagrã, nome masculino, é uma bebida fria de café adoçado que teve origem na Argélia. Na versão portuguesa: gelo picado, açúcar, limão, um café expresso e água das pedras. Jacques Derrida nasceu na Argélia. Fica ao critério do leitor decidir se foi coincidência ou não.

(**)  Gramatologia  de Jacques DerridaObra de referência no debate crítico sobre o conjunto do pensamento ocidental – o 'logocentrismo' – a Gramatologia (ou ciência de possibilidade de ciência) visa o rompimento dessa condição 'logocêntrica', mantida e alimentada dentro de uma conceção estrita de 'escritura'. À procura de uma conceção mais ampla, que abarque um sistema total, aberto a todas as cargas de sentidos possíveis, Derrida coloca em questão mais uma vez a discutível oposição forma/conteúdo, examinando-a tal como ressurge dentro da linguística a partir de Saussure.

quarta-feira, 29 de julho de 2020

Um diálogo sobre a morte


Álvaro Siza Vieira está ao balcão do Bar da Eternidade. Eduardo Lourenço chega e Álvaro Siza fica encantado com a visita.


Olá Eduardo! Vou-lhe fazer uma pergunta impertinente: o que ficará de nós, homens e mulheres, se é que alguma coisa fica, quando partimos ... em férias?




Quem dera que a resposta à sua pergunta fosse essa, tão lírica e tão futurante como partir em férias. A nossa própria morte é-nos tão hostil que nós nem em sonhos morremos. Agora, a morte verdadeira é do outro. A do outro que existiu para nós. Que foi tudo para nós, que foi o absoluto para nós. E essa é que é a morte real. As outras mortes são ilusórias, mesmo a nossa, sobretudo a nossa.


Nós não sabemos nada sobre o nascimento, sobre a vida, também não podemos saber nada sobre a morte. Para mim a única coisa em que penso às vezes é que há uma continuidade de vida, e quando um de nós morre há filhos, netos, música para os músicos, arte, escrita, literatura ... Não desaparecemos completamente. O mundo continua. A História, no fundo, tem esse papel de sugerir ou de fazer real uma continuidade. Agora a morte não.


O problema é que nós, inconscientemente ou conscientemente, escrevemos como se fossemos eternos. Sem essa ilusão de eternidade como coisa nossa, nós não escreveríamos nada de realmente grandioso. O que os homens querem é que aquilo se transfigure numa espécie de estátua, que se pode tocar, viver e permanecer através dos séculos. Tenho a sorte de ter à minha frente um verdadeiro criador. Ainda por cima a obra dele é das obras que estão aqui por muitos séculos.


Eu faço os meus projetos com a ideia de que ... Essa ideia de que é para ficar. Mas pensando francamente, não é bem assim. Também a construção, muitas vezes, é não durável. É vulnerável ...


Hiroxima existia e foi destruída em nove segundos. É como se fossem feridas que a humanidade faz a si mesmo, não é? E essas sem reparação. Porque foram destruídas e não podem ser reconstruídas de nenhuma maneira. Aquilo que de mais belo há na humanidade é que nós somos submersos às mesmas forças que regem realmente o mundo. Porque é que nós escaparíamos, quando tudo o que foi criado está condenado a desaparecer?


E se não fosse assim talvez se tornasse insuportável.

Ouve-se uma voz feminina vinda do Além, chamando: Eduardo ... Eduardo ...



domingo, 26 de julho de 2020

A razão porque não seria boa ideia querermos ser Matusalém


Quando o vírus Corona o atingiu, na verdade fez-lhe um grande favor. O nosso Matusalém, já levava na bagagem 99 anos. É claro, este nosso Matusalém não chegou aos calcanhares do velho Matusalém, isto é, não chegou a ser um centenário por uma unha negra. Pois, Matusalém, terá vivido novecentos e sessenta e nove anos, passe o exagero.
Os exegetas da Bíblia dão várias explicações do significado de Matusalém. Essas explicações não importam para aqui, basta saber que de acordo com o Génesis, Matusalém bate todos os recordes da longevidade com 969 anos – filho de Enoque, pai de Lameque e avô de Noé. Segundo a Enciclopédia Católica, o nome "Matusalém" tornou-se sinónimo de longevidade. Dizer que alguém é "tão velho como Matusalém" é uma maneira bem-humorada de dizer que alguém é muito velho, e não idoso, porque idoso é um eufemismo pretensioso. Uma árvore de 4.851 anos de idade da espécie Pinus longaeva, que cresce no alto das Montanhas Brancas do Condado de Inyo, no leste da Califórnia, é chamada Matusalém. O personagem Flint do episódio "Requiem for Methuselah", da série Star Trek: Série original, é um homem quase imortal que nasceu na antiga Mesopotâmia. Flint fica sozinho depois de viver um tempo num planeta deserto e cria um ginoide imortal para fazer-lhe companhia. Ele finalmente começa a morrer lentamente porque deixou a atmosfera da Terra. Sendo assim, dedica o resto dos seus dias à melhoria da dita espécie sem nome que habita a Terra. 

Bom, a morte do nosso amigo epigrafado, o que importa, é que foi uma morte boa. Que teria ganhado ele se tivesse mais uma vez fintado um vírus, e continuasse, digamos, por mais dez anos, e logo se veria? Não é preciso deitarmo-nos a adivinhar: continuaria a envelhecer, a adoecer, a definhar. 
Reparem, não é só a decrepitude física. É também a erosão da memória, cada vez mais esparsa e fragmentada. Com o avanço da demência, aliás, toda a personalidade se vai dissipando, todo o sentimento de si. Ponderadas todas as vantagens e desvantagens, dos oitenta aos noventa e nove teria tido uma vida nem boa nem má. É uma suposição realista! Por conseguinte, daí em diante, se continuasse vivo, iria ter uma vida sempre miserável, às tantas horrivelmente miserável. Se calhar, o mais certo, é que terá passado as passas do inferno dos 90 aos 99. Portanto, não foi um mal, ter morrido.

Mas, morrermos hoje seria muito inconveniente, logo no dia dos avós. Então aqui vai uma historinha para netos, as Viagens de Guliver:
Swift era altamente cético em relação à confiabilidade das narrativas dos Livros de Viagens, famosos na Idade Média. Daí as improváveis ​​descrições geográficas nas Viagens de Gulliver, que parodia esses Livros de Viagens. Em As Viagens de Gulliver, um romance satírico de Swift, Lilliput é uma ilha fictícia, em que a personagem principal se deparou com uma população de pessoas minúsculas, e os chamados liliputianos o tomaram por um gigante. Mas Brobdingnag é uma outra ilha ocupada por gigantes. O adjetivo "Brobdingnagian" passou a descrever qualquer coisa de tamanho colossal. Swift pretende retirar daqui uma lição de ordem moral, para os ingleses, com a descrição destes povos.  O rei de Brobdingnag é baseado em Sir William Steele, estadista e escritor, para quem Swift trabalhou no início de sua carreira. O exército de Brobdingnag é reivindicado ser grande, com 207.000 soldados, incluindo 32.000 de cavalaria, embora a sociedade não tenha inimigos conhecidos. A nobreza local comanda as forças; armas de fogo e pólvora são desconhecidas para eles. O rei repreende Gulliver quando ele tenta interessar o estadista no uso da pólvora. As leis de Brobdingnag são simples e fáceis de seguir. Há pouco litígio civil. Assassinos são decapitados. 

O povo de Brobdingnag é um sítio de gigantes, com uma altura de 60 pés e cujo passo é de dez jardas. O rei de Brobdingnag argumenta que a corrida se deteriorou, no passado eles eram muito maiores.  Swift descreve a localização de Brobdingnag, e a sua geografia, no texto da Parte II, e fornece um mapa mostrando onde está. No entanto, essas contas são um tanto contraditórias. O mapa impresso no início da Parte II indica que Brobdingnag está localizado na costa noroeste da América do Norte, provavelmente no que hoje é a Colúmbia Britânica. Mostra todos os locais na costa do Pacífico da América do Norte, e descreve Brobdingnag como uma península estendendo-se para o oeste, no Pacífico, ao norte do Estreito. Após o inverno, no Cabo da Boa Esperança, o navio alcançou uma latitude de cinco graus ao sul, ao norte de Madagáscar em março de 1703, e as Molucas, "cerca de três graus ao norte da linha" em abril. A partir daí, o navio é impulsionado por uma tempestade "cerca de quinhentas léguas a leste" (isso colocaria o navio ainda na Micronésia), após o que a tripulação decide "manter o mesmo rumo em vez de virar mais ao norte”. Eles avistaram terras, que Gulliver mais tarde descobre ser Brobdingnag, em 16 de junho de 1703. Brobdingnag é uma península do tamanho de um continente de 6.000 milhas (9.700 km) de comprimento e 3.000 a 5.000 milhas (4.800 a 8.000 km) de largura, o que, com base na localização fornecida por Gulliver, sugere que ela cobre a maior parte doo Pacífico Norte. Por outro lado, o mapa mostra Brobdingnag do tamanho e extensão do atual estado de Washington, e a sua descrição da viagem o coloca num périplo de seis semanas nas Molucas.

A língua de Brobdingnag é descrita como sendo de um caráter distintamente diferente da de Lilliput. Todos os outros animais e plantas, e até características naturais como rios e até granizo, são proporcionais. Os ratos são do tamanho de mastins, com caudas de "dois metros de comprimento”. Enquanto os mastins são iguais em massa a quatro elefantes. Gulliver descreve moscas "do tamanho de uma cotovia de Dunstable, e vespas do tamanho de perdizes, com picadas "de uma polegada e meia de comprimento e afiadas como agulhas". Isso também significa que o país é muito mais perigoso para pessoas de tamanho humano normal, como evidenciado por Gulliver.

Os struldbrug são os habitantes da nação de Luggnagg, em que os irmãos durões, aparentemente  normais, não morrem, mas continuam a envelhecer. Swift, no entanto, descreve o mal da imortalidade sem a eterna juventude. O termo struldbrug tem sido usado na ficção científica, mais prolificamente por Larry Niven e Robert Silverberg, para descrever centenários como Matusalém. Os struldbrug são facilmente reconhecidos por um ponto vermelho acima da sobrancelha esquerda. Eles são normais até atingirem a idade de oitenta anos. A partir dessa idade são desalmados, isto é, ao atingirem os oitenta anos, para todos os efeitos civis, é como se morressem. Legalmente mortos, e passam a sofrer de doenças, incluindo a perda da visão e a perda de cabelo. Aos oitenta anos, são vistos como mortos na lei. Os seus herdeiros imediatamente lhe sucedem na posse das propriedades; apenas uma pequena ninharia é reservada para o seu sustento; e os pobres são mantidos à custa da comunidade. Após esse período, são mantidos incapazes de qualquer trabalho de confiança ou responsabilidade; não podem comprar terras ou fazer arrendamentos; nem podem ser testemunhas em tribunal; Como consequência necessária da velhice, esses imortais são avarentos. Logo, se tornariam proprietários de toda a nação e absorveriam todo o poder, se lhes fosse mantida a liberdade  e os antigos direitos civis. Tudo ficaria arruinado, e todos acabariam na miséria. 

sexta-feira, 24 de julho de 2020

Liberdade de pensamento e liberdade de ação no Ocidente


Parto de uma noção de Ocidente mais no seu contexto político e cultural, não tanto como geografia. Digamos que geograficamente, para simplificar, este ocidente é como se fosse um hemisfério côncavo tendo como centro a que calote pertence – o Atlântico, símbolo de uma aliança política que se selou depois da Segunda Guerra Mundial, e enlaçou democracias liberais dos dois lados do Atlântico contra os dois totalitarismos – fascismo e comunismo. Entretanto deu-se o fim do sistema soviético, a guerra fria acabou e o globalismo acelerou em força no sentido do Oriente. E ao mesmo tempo, a partilha daquele conjunto de valores das democracias liberais e do estado de direito que parecia estarem consolidados nos finais do século XX, começou a abrir brechas com as crises financeiras que, entretanto, surgiram neste século XXI.

Em suma, as sociedades democráticas e liberais ocidentais permitiram à generalidade dos indivíduos realizar o melhor possível as suas aspirações, garantindo-lhes a igualdade de oportunidades para alcançá-las, que não encontrou paralelo em qualquer outra forma de organização das sociedades humanas. Deu-lhes a oportunidade de serem cidadãos com a capacidade única de corrigirem erros e injustiças através do debate livre entre ideias diferentes e a livre escolha de quem os governa em cada momento. Com todos os seus enormes defeitos, continuam a ser as sociedades mais livres, mas também mais justas, à escala global.

Na génese das divergências que hoje existem nos extremos do espectro político está a noção de identidade (cor da pele, classe, género, etc.). E o problema das ideologias é que em nome dos indivíduos, o indivíduo não conta. Ou se conta, é para aceitar que a sua identidade determina a sua individualidade. É, portanto, a negação do liberalismo que nasceu das Luzes e que faz de cada indivíduo, desde que nasce, um ser simultaneamente autónomo e igual a todos os outros. Este princípio definidor das democracias liberais não foi uma revelação divina (embora tenha algumas das suas raízes no cristianismo). Foi obra do pensamento dos homens e, por consequência, a sua aplicação ao longo de mais de dois séculos foi evolutiva e esteve longe da perfeição. Houve, não deve custar admitir, por parte deste liberalismo a aceitação pacífica de impérios europeus racistas, colonialistas, com a desculpa do bom governo a quem não se sabia governar. E do outro lado do Atlântico, os pais-fundadores dos EUA excluíram os escravos do direito de cada um à felicidade a partir da liberdade.

Ora, não é pelo facto de se reconhecer toda essa fileira de abusos no passado nos iniba de continuar a defender a democracia liberal dos ataques de que é alvo actualmente, e que não vêm apenas dos movimentos nacionalistas e populistas da direita e da extrema-direita. Há um radicalismo ideológico filiado no velho alinhamento à esquerda do espetro ideológico político conotado com o marxismo lato senso, cuja visão do mundo é, na sua essência, igualmente autoritária e discriminatória sob o manto diáfano das boas intenções. Por exemplo, para estas correntes, um branco é, por natureza, racista, mesmo que se declare anti-racista. Tal como, no tempo do apogeu marxista soixante-huitard, um intelectual seria sempre um “burguês”, por melhor que quisesse servir a classe operária.

É neste contexto que vale a pena ler Isabel Moreira, constitucionalista:
«A nossa Constituição, enquanto expressão de uma sociedade aberta, não impõe um modelo de tolerância virtuosa, porque, se assim fosse, a lei fundamental negaria o núcleo fundamental da liberdade de expressão e teria de consentir a censura, evidentemente proibida pelo artigo 37º, nº 2. Isto para dizer que o artigo 46º, nº 4, proíbe as organizações, mas não proíbe a expressão individual do pensamento racista ou fascista, por mais condenável que ele possa ser. Temos de distinguir os planos do pensamento, da palavra e da ação. Por vezes, quando se explica o alcance necessariamente limitado do artigo 46º da Constituição, é-se confrontado com alguma perplexidade, como se estivéssemos a proteger os inimigos da democracia. Acontece que faz parte do Estado de direito democrático e, portanto, de uma Constituição democrática, assumir o risco de acolher os intolerantes. As restrições à liberdade de associação e as restrições à liberdade de organização previstas no artigo 46º da Constituição devem ser lidas tendo em conta que as primeiras, introduzidas em 1976, constam de um preceito referente à liberdade de associação, enquanto que as segundas foram introduzidas em 1997 no mesmo preceito, ou seja, sem que o artigo relativo à liberdade de expressão (artigo 37º) fosse beliscado. O artigo 46º da Constituição deve, evidentemente, ser levado a sério, mas não pode ser pretexto político para pretender ilegalizar a livre expressão do pensamento e mesmo da organização política dos nossos adversários políticos quando não estão em causa os reais significados das restrições constitucionais aqui referidas.»

quinta-feira, 23 de julho de 2020

Por veredas que não eram assim



Mas agora é assim, temos de estar atentos para qualquer objeto de entendimento, não entretenimento, sejamos adultos ou infantis, seja o Dumbo, ou o Tristão e Isolda, para não cometermos anacronismos raciais. Sendo assim, é melhor tomarmos atalhos e irmos por carreiros até à próxima estação. E então partirmos daí com papeis colados numa mala, porque a idade já resvala, e o coveiro já se encostou à enxada, para não cair na cova, que ele próprio cavou. 

Em 2018, centenas de professores universitários em Inglaterra tiveram de assistir a workshops para aprender a reconhecer o seu privilégio branco, a sua branquitude carregada de esterco do passado. Ou seja, lavar a sua pele com HOMO, porque HOMO lava mais branco a sujidade do racismo. Até aqui, até estes workshops, brancos muito brancos ainda não se tinham dado conta que era racistas de nascença. Disse o orador: "As pessoas brancas no Reino Unido têm desfrutado de vantagens únicas, única e exclusivamente por serem brancas. O que seria diferente se tivessem outra cor da pele." 

Lembro a controvérsia que emergiu em torno da campeã de ténis, em 2018, Serena Williams, durante a final do Open dos Estados Unidos. Williams perdeu completamente a cabeça com o árbitro, quando partiu a raquete. A tenista foi multada em 17 mil dólares. Recordo que se habilitava a dois ou quatro milhões, conforme ficasse em segundo ou primeiro lugar. Mas o caso não ficou por aqui. Sendo Serena uma mulher, e negra, a Associação Feminina de Ténis, apelidou o árbitro de sexista e racista.
Entre outros, a BBC alegou que as críticas feitas a Serena, pela sua explosão no court, fizeram eco de um longo estereótipo racial de "mulheres negras zangadas". Como? Bem, Carys Afoko, no The Guardian, explicou quão difícil é ser uma mulher negra no trabalho. Já não pode ter um dia menos bom. O que acontece, agora já não é raro, ver-se um homem branco chorar, após uma altercação com uma mulher de cor, por medo de ser acusado de racismo e perder o emprego. Para quem não sabe o que é a interseccionalidade - é um conceito que nos permite compreender que as pessoas vivem vidas multidimensionais.

Hoje vemos com alguma frequência líderes ou responsáveis de instituições anteciparem-se a pedir perdão, e a corrigir os paradigmas do passado que agora envergonham a instituição. Por exemplo, a maioria das pessoas não vê a National Geographic como uma revista particularmente racista. E, todavia, Susan Goldberg, a editora adjunta, disse: “Há coisas que se encontram nos nossos arquivos que nos deixam sem palavras." A revista declarou que as suas edições passadas eram culpadas de muitas coisas. Não deixa de ser caricato, que um artigo de uma Revista publicado em 1916, seja avaliada e auto-criticada, quanto a racismos, por critérios critérios editoriais de 2018. Só por aqui podemos avaliar como está tudo maluco, apetecendo parafrasear dizendo: “O passado é um país estrangeiro e muito esquisito – onde é que os nossos pais e avós tinham a cabeça para fazer coisas daquelas? Valha-me deus . . .” Em 1916 as mulheres na Grã-Bretanha e na América não tinham direito de voto. Os homossexuais masculinos eram presos; lésbicas ainda não havia; o trabalho infantil era a torto e a direito; e ainda havia sentenças judiciais a trabalhos forçados. E diz o inteligente: "Nessa altura as coisas eram diferentes."

Ironia das ironias, não obstante as desculpas apresentadas pela National Geographic, por uma infâmia cometida no passdo e que ninguém tinha dado por isso, a partir do momento em que a Revista o deu a  conhecer de livre vontade, nada iria ficar como antes. Virou-se o feitiço contra o feiticeiro: "As desculpas não foram suficientes". No The Guardian, um articulista sofrendo de paranoia, disse que as desculpas pecaram por tardias. Mas outro articulista de um outro jornal escreveu a páginas tantas: “Mas se é assim, se as melhores pessoas daquela época fizeram coisas tão erradas, como podemos ter a certeza que as melhores pessoas de hoje não serão vistas, pelos olhos dos que hão de vir, como gente infame que só fez porcaria?”

Portland no Oregon, tem estado a ferro e fogo com manifestações antirracistas, ao ponto de as forças policiais Trump terem entrado por ali dentro jorrando gás lacrimogéneo, à revelia do Governador, para pôr ordem na casa. Isto teve por parte do governador, que é do partido Democrata, forte protesto e grande indignação. O Presidente excedeu largamente as suas competências numa questão estadual. Mas Portland não é inédita neste tipo de questões. Já há uns anos a esta parte tem sido notícia pelas diversas manifestações contra todo o tipo de apropriações culturais, sobretudo no campo da comida. Por exemplo, um não-mexicano não se pôde dar ao luxo de abrir um restaurante de comida mexicana;  um não-jamaicano não pôde fazer propaganda nas redes sociais de uma receita de galinha jerck jamaicana. E muitas outras coisas do génro.

O lançar de um simples olhar crítico sobre este fenómeno, confessando que tudo isto são ideias malucas totalmente disparatadas, e dizê-lo na imprensa, televisão ou redes sociais, está sujeito a um dilúvio de acusações e queixas de ofensas identitárias e outras suscetibilidades. E a verdade é que a suscetibilidade a este tipo de críticas infames está a alastrar por todo o mundo. Hoje em dia, humoristas e livres pensadores têm de pensar duas vezes sobre aquilo que podem dizer ao abrigo da liberdade de expressão. Se um romancista tiver o azar de criar personagens que possam colidir com este tipo de suscetibilidades, e responder às críticas dos descontentes assim: “Bem, ser asiático não é uma identidade; ser gay não é uma identidade; assim como também ser portador de uma caixa de óculos, um aparelho auditivo para surdos, ou circular numa cadeira de rodas, não é ser portador de uma determinada identidade” – certamente que nunca mais o vão largar até ele desistir de publicar o romance com esse tipo de personagens. Isto faz-me lembrar o caso de Salman Rushdie quando o Aiatolá Khomeini lhe lançou uma fatwa por causa do seu romance “Versículos Satânicos”, porque ofendia a religião.

A maior parte das pessoas que vivem do lado de fora dos portões das academias podem não fazer ideia do que está por baixo do ruído que passa na retórica dos meios de comunicação social, os média, e dos insultos nas redes sociais. Algumas pessoas num espírito de ressentimento, outras num espírito de afrontamento soberbo, andam aos pulos num terreno de minas. Depois de um período de anomia ideológica, eis que regressam, e em força, as guerras culturais. O campo do jogo está de novo ocupado pelas extremas militantes numa insania que em ocasiões parecidas, em tempos que se pensa sempre que já foram, pré-anunciaram: ou guerra; ou revolução.

quarta-feira, 22 de julho de 2020

Judith Butler e a teoria 'queer'



Judith Butler é uma filósofa norte-americana pós-estruturalista do departamento de retórica e literatura comparada da Universidade da Califórnia em Berkeley. Butler aponta a falsa estabilidade da categoria mulher e propõe a busca por um modo de interrogação da constituição do sujeito que não requeira uma identificação normativa com o sexo binário. Os seus trabalhos mais recentes, na senda de Hannah Arendt, focam a filosofia judaica, centrando-se em particular nas "críticas pré-sionistas da violência estatal”.

O trabalho de Butler tem influenciado as teorias queer. A sua teoria da performatividade de género, bem como a sua concepção do "criticamente queer", não apenas transformaram os entendimentos de género e identidade queer no mundo académico, mas também moldaram e mobilizaram vários tipos de ativismo político, particularmente o ativismo queer em todo o mundo. O trabalho de Butler também entrou em debates contemporâneos sobre o ensino de género, homoparentalidade e despatologização de pessoas transgénero. Ratzinger, antes de ser papa Bento XVI, desafiou Buttler a explicar-se o que queria dizer como conceito de “género”. Butler, para os conservadores reaccionários, tornou-se o símbolo da destruição de papéis tradicionais de género. Este foi particularmente o caso em França durante os protestos contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo.

O trabalho de Butler sobre género, sexo, sexualidade, queer, feminismo, corpos, discurso político e ética mudou a forma como estudiosos de todo o mundo pensam, falam e escrevem sobre identidade, subjetividade, poder e política. Também mudou a vida de inúmeras pessoas cujos corpos, géneros, sexualidades e desejos os tornaram sujeitos a violência, exclusão e opressão. Alguns críticos acusaram Butler de elitismo devido ao seu estilo de prosa difícil, enquanto outros afirmam que ela reduz o género ao discurso ou promove uma forma de voluntarismo de género.

Críticas foram-lhe também feitas por Martha Nussbaum, que argumentou que Butler interpreta de forma errada a ideia de enunciação performativa de Austin. E não fornece uma teoria ética normativa para dirigir os desempenhos subversivos que Butler endossa. Nancy Fraser sugeriu que o foco de Butler na performatividade a distancia das "maneiras quotidianas de falar e pensar sobre nós mesmos". Porque é que devemos usar uma linguagem de auto-distanciamento? Butler respondeu às críticas no prefácio da edição de 1999 do seu livro – Gender Trouble, cuja primeira publicação data de 1990. Este livro só foi publicado em Portugal em 2017, edição Orfeu Negro, com a tradução de Nuno Quintas, com o título: Problemas de Género. Trata-se de um dos textos mais importantes da teoria feminista, dos estudos de género e da teoria queer. Ao definir o conceito de género como performatividade - isto é, como algo que se constrói e que é, em última análise uma performance - Problemas de Género repensou conceitos do feminismo e lançou os alicerces para a teoria queer, revolucionando a linguagem dos activismos.

A teoria queer é uma teoria sobre o género que afirma que a orientação sexual e a identidade sexual ou de género dos indivíduos são o resultado de uma construção social e que, portanto, não existem papeis definidores pela biologia conforme o sexo no género humano. Tal é definido pela sociedade. Mas não há uma definição genericamente aceite para esta corrente de pesquisa académica e forma particular de política pós-identitária. Os estudos queer constituem um corpus de investigação disperso por várias áreas da Sociologia: antropologia cultural; psicologia social; sexologia; filosofia; artes performativas; estudos culturais ... entre outras.

De uma forma geral, é possível afirmar que a teoria queer busca ir além das teorias baseadas na oposição "homens - mulheres" e também aprofundar os estudos sobre minorias sexuais LGBTQ. 
A teoria queer propõe explicitar e analisar esses processos a partir de uma perspectiva comprometida com aqueles socialmente estigmatizados, portanto dando maior atenção à formação de identidades sociais normais ou "desviantes" e nos processos de formação de sujeitos do desejo classificados em legítimos e ilegítimos. Neste sentido, a teoria queer é bem distinta dos estudos gays e lésbicos, pois considera que estas culturas sexuais foram normalizadas e não apontam para a mudança social. Daí o interesse em estudar a travestilidade, a transgeneridade, e a intersexualidade. Mas também culturas sexuais não-hegemónicas caracterizadas pela subversão ou rompimento com normas socialmente prescritas de comportamento sexual e/ou amoroso.

terça-feira, 21 de julho de 2020

Mais Europa, não menos





A idade dos impérios desapareceu. Teremos de encontrar outra forma de organizar o mundo globalizado. Apesar de ainda serem o maior poder militar no mundo, os Estados Unidos destruíram as suas fundações desde o 11 de setembro de 2001, ao ponto de estarem cada vez mais isolados e voltados para dentro.

Depois de 1918, desde o norte da Europa aos Balcãs, uma série de países adotou a democracia parlamentar. E James Joyce, na sua obra Democracias Modernas, fala da aceitação universal da Democracia como a forma normal e natural de governo. No entanto, vinte anos depois a Europa passou pelo pior jamais passado. E três países, cinquenta anos depois ainda não tinham abraçado a Democracia: em 1968 Portugal tinha Salazar; Espanha tinha Franco; e a Grécia tinha uma ditadura militar. Depois veio 1989, e a natureza da Europa transformou-se por completo: os países de leste libertavam-se do totalitarismo comunista. E não falando agora na guerra dos Balcãs, as forças que produziram 1989 e a queda da União Soviética, depararam-se com um conjunto de mudanças estruturais decorrentes da globalização crescente. Entretanto o comunismo chinês sobreviveria porque entraria numa economia de mercado sob o controlo do Estado. 


E a Alemanha reunificada renunciava a quaisquer ambições imperiais ao aceitar fazer parte de uma entidade maior chamada União Europeia (UE). Assim, o modelo social europeu seria a parte básica da razão de ser da UE. É neste ponto que um filósofo da Escola da Teoria Crítica de Frankfurt, Jürgen Habermas faz o seu caminho de oráculo da Esquerda Democrática, na proteção dos cidadãos dos abalos do mercado. O mais importante princípio legitimador da UE fazia-se pela cooperação e acumulação de recursos que daria aos estados-membros mais soberania real e não formal. E foi nesse sentido que Portugal, Espanha e Grécia quiseram fazer parte, para ter acesso ao mercado europeu alargado, beneficiando dos fundos disponibilizados, para além de fazerem parte de uma organização com influência mundial, e garantirem uma política e estado de direito mais estável.

E quando se estava a desenhar uma globalização já sem a guerra-fria a pairar no ar sobre as cabeças dos cidadãos europeus, com os Estados Unidos a prometerem a segurança de todos, e finalmente concretizado o espaço da moeda única, o euro, eis o 11 de setembro de 2001 a estragar tudo. A UE entrou primeiro na sua crise constitucional; a seguir na crise dos atentados terroristas islâmicos; e por fim na crise do euro.

Que fazer? A situação é muito difícil de resolver. A constituição havia sido uma ideia errada. A introdução do euro não resultou num impulso para o crescimento. O modelo social colocou em contradição entre mercados e justiça social. Tensão entre estados grandes e pequenos; entre estados ricos e pobres; entre Norte e Sul. E como os cidadãos europeus não quiseram gastar dinheiro na segurança militar por via da sua ideologia pacifista, agora o cidadão europeu passou a sentir-se inseguro quando Trump resolveu fazer chantagem: "ou pagas às tropas ou não tens seguro!"

Entretanto a Turquia esteve para entrar, mas agora é que não entra. Na altura houve quem dissesse: "se a Turquia entra, então porque não entra também a Rússia?" E na verdade quem tem mais identidades com a Europa é a Rússia. Desde logo pelo cristianismo; e ao longo dos dois últimos séculos assimilou na sua quase totalidade uma cultura mais europeia do que asiática. Ao passo que a Turquia tinha tudo ao contrário, a começar pela religião e a acabar pelas velhas rivalidades desde o tempo do império Otomano, ainda que Atatürk tenha feito tudo para europeizar os turcos, acabou por ser efémera, uma Istambul subalternizada a Ancara.

Jürgen Habermas procurou definir a identidade europeia em termos de um conjunto de princípios abstratos que designou de patriotismo constitucional, alicerçado em valores de liberdade, democracia, respeito pelos direitos humanos e pela lei. Muito bem! Mas foi largamente criticado. Habermas passado algum tempo, mudou um pouco a sua posição. Uma das chaves para criar uma identidade europeia mais integrada de futuro seria por mais educação de um outro nível. Faltava saber que nível era esse.

A presente situação mundial é de facto inédita. Vivemos num mundo integrado e completamente interligado. A atual interrupção das viagens, por causa da pandemia da Covid-19 provocou uma tal disrupção no sistema mundial que ninguém é capaz de avaliar. E apesar de a tecnologia estar a minimizar mais graves consequências, representa uma gota no oceano da globalização. Mesmo na economia norte-americana, apesar de se apoiar na sua indústria doméstica e no seu mercado potencialmente gigantesco. Mas a sua política actual é de tal modo demencial que é difícil entender qual é realmente o rumo. Uma frivolidade que já vinha de trás com o exemplo da guerra no Iraque. Isso foi tão mau que até viraram do avesso os seus interesses, ao virá-los agora exclusivamente para dentro.

Bons vizinhos são tão vizinhos como os maus vizinhos são. Mas que princípios de exclusão deveria a UE aplicar? Daí a atual estupefação de muita gente ao ver a Europa ser mais criticada do que elogiada. A União Europeia é a experiência mais original e bem-sucedida de todas as experiências políticas alguma vez tentadas. As suas inovações económicas permitiram uma maior contribuição para a melhoria de vida de milhões de pessoas. Ainda que o seu crescimento económico tenha ficado abaixo das expectativas. Portanto o que parece incomodar algumas pessoas não é o seu insucesso, mas o contrário. Muitas das influências malignas que haviam tido o seu clímax no meio do século XX, foram eliminadas pela positiva: Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. Portanto, se a UE fosse eliminada da noite para o dia, as identidades nacionais e culturais, ficariam mais em perigo e não o contrário. Por isso, não se compreende como o Reino Unido caiu na aventura de sair da UE.

Intellectual Dark Web





Intellectual Dark Web ( IDW) é um termo usado por um grupo informal que se opõe ao que eles acreditam ser o domínio da política de identidade, correcção política, política partidária, e quejandos. 
O termo foi cunhado por Eric Weinstein, e popularizado num editorial de 2018 por Bari Weiss. As fontes diferem na natureza da IDW, com algumas descrevendo-a como de esquerda, e outras como ideologicamente diversa, mas, no entanto, unidas contra adversários conotados com o pós-modernismo, pós-estruturalismo e marxismo.

Eric Weinstein, director de uma empresa americana de capital de risco, afirmou que, quando cunhou o termo, estava a brincar. Isso ocorreu depois de o irmão - o biólogo Bret Weinstein - ter sido forçado a renunciar, em 2017, do seu lugar de professor de biologia no Evergreen State College. A Universidade Estadual de Evergreen, em Olympia, Washington, viveu durante décadas uma conhecida tradição conhecida como "O Dia da Ausência". Um dia por ano os estudantes e docentes de cor saiam do campus para discutirem assuntos importantes. Mas em 2017 os estudantes decidira que nesse ano o Dia da Ausência era celebrado ao contrário, ou seja, eram os brancos que saíam. E então Bret Weinstein foi contra. E explicou a sua ideia numa mensagem de e-mail, dizendo que uma coisa era fazer-se isso a título voluntário; outra coisa era fazer-se isso por imposição de consciência alheia, o que cheirava a um acto de opressão. para abreviar caminho, os estudantes revoltaram-se e a Faculdade de Biologia não teve outro remédio senão dispensar Bret Weinstein.

O site Big Think argumentou que outras controvérsias, que remontam a 2014, também devem ser vistas como antecedentes da IDW. Isso inclui um debate entre Sam Harris e Ben Affleck  em tempo real com Bill Maher em outubro de 2014;  aentrevista de Cathy Newman de Jordan Peterson no Channel 4 News em janeiro de 2018 , cada um deles relacionado a tópicos polémicos, como extremismo islâmico e diversidades no local e trabalho. O termo ganhou força depois de um artigo de opinião de maio de 2018 do então editor da equipe Bari Weiss no The New York Times intitulado "Conheça os renegados da intelectual Dark Web". Weiss caracterizou que eram indivíduos com um pensamento iconoclasta renegados académicos ou dos média expurgados de instituições que se tornaram cada vez mais hostis ao pensamento heterodoxo. 

O artigo de Weiss provocou uma série de críticas. Jonah Goldberg, escrevendo na National Review, disse que o rótulo era uma operação de marketing - e não necessariamente um bom rótulo. Era gente que curtia um certo desdém pelo politicamente correto. David A. French argumentou que muitos dos críticos estavam a perde argumentos, e que isso só confirmava que era preciso um movimento de livres pensadores. De acordo com Bari Wiss, fazem parte Intelectual Dark Web pessoas como: Ayaan Hirsi Ali; Carl Benjamin; Yaron Brook; Jonathan Haidt; Sam Harris;  Heather Heying; Claire Lehmann; Douglas Murray; Maajid Nawaz; Jordan Peterson; Steven Pinker; Joe Rogan; Dave Rubin; Ben Shapiro; Lindsay Shepherd; Michael Shermer; Debra W. Soh; Christina Hoff Sommers; Bret Weinstein e Eic Weinstein. Embora os associados à IDW critiquem principalmente a ala marxista, uns afirmam se inclina para a esquerda; outros para a direita. Os críticos à IDW são oriundos sobretudo da esquerda. O Guardian caracterizou o IDW como estranhos companheiros de cama que, no entanto, compunham a suposta ala pensante da "alt-right", apesar de muitos indivíduos associados expressarem repetidamente desprezo pela "alt-right", incluindo Ben Shapiro, que é frequentemente alvo de anti-semitismo da "alt-right", mas cujos argumentos frequentemente sustentam o ideal de que a cultura negra, em vez do racismo sistémico, é a causa da riqueza massiça e da desigualdade de vida nos Estados Unidos. A Los Angeles Review os Books descreveu os membros como se identificando com a esquerda e a direita, mas unidos contra "adversários primários" vindos predominantemente da esquerda, incluindo pós-modernismo, pós-estruturalismo, marxismo e politicamente correto em geral, além de estarem unidos contra "a alt-right" neofascista. Além disso, os membros costumam falar contra a política de identidade, seja da esquerda progressista ou da "alt-right"

Caracterizações à direita, como a de The Guardian, foram rejeitadas por outras pessoas da IDW, como Quillette, fundada por Claire Lehmann. Citando Sam Harris e Daniel Miessler, eles afirmaram que a maioria dos membros mais proeminentes da IDW tende a se inclinar para a esquerda na maioria das questões políticas, apesar de incluir também vários conservadores importantes que não o fazem. Com relação à organização da IDW, Daniel W. Drezner observou que ela essencialmente não tem liderança e pode ser individualizada com o público e incapaz de progredir numa agenda coerente. Alguns escritores, incluindo Cathy Young, expressaram incerteza sobre se pertencem à teia negra intelectual. Por seu lado, a historiadora da medicina e da ciência Alice Dreger expressou surpresa ao saber que ela era membro da IDW. Ela não conhecia metade das pessoas que faziam parte da IDW: "As poucas pessoas que conheci na Web da Dark Web não conhecia muito bem. Como pude fazer parte de uma poderosa aliança intelectual quando não conheci essas pessoas?"

PORTUGA[L]: Quanto do PIB roubado?



Só para termos uma pequena ideia de quanto do PIB foi roubado a Portugal com a brincadeira do BES, e se fizermos de conta que as oito letras da palavra “Portugal” fazem o PIB total, a perda em dinheiro é equivalente à perda de uma letra. Ou seja, roubaram o “L” a Portugal, um oitavo do PIB. É por isso que fica Portuga. É essa a estimativa das perdas totais da resolução do Banco Espírito Santo (BES), para a economia portuguesa, calculado em percentagem do PIB (Produto Interno Bruto), entre 2015 e 2021.

De casos semelhantes na história, para equiparar, só regressando aos anos 20 e 30 do século XX, para lembrar o caso Alves Reis, em que o impacto no PIB, à época, foi de 2,6%. Alves Reis é um dos poucos que, a título individual, criou tanto impacto numa crise financeira que se aproxima das três crises financeiras em que Portugal, já em tempo de Democracia, teve de ser regatado: 1979; 1983; 2011. Portugal pediu em 2011 um empréstimo de 78 mil milhões de euros à Troika composta pelo FMI, Banco Central Europeu (BCE) e Comissão Europeia. Dos 78 mil milhões de euros, o empréstimo concedido pelo FMI foi de 26,3 mil milhões.

Com Alves Reis, tudo começou de forma simples: uma falsificação que assumiu escala industrial, e daí degenerou em algo muito maior, devido às dificuldades práticas que a solução encontrada gerou. Alves Reis formou e capitalizou um banco - Angola e Metrópole - cujo projeto se desenrolou e desdobrou com a ideia de desenvolver Angola, e outros tantos empreendimentos. Assim o embuste se foi diluindo no meio de tantas iniciativas, negócios e projetos, que foram assumindo uma dinâmica virtuosa e própria, a tal ponto que fez desaparecer o crime original.

Nem mesmo tomando os maiores vigaristas da última crise financeira, como Bernard Madoffe, encontramos maior génio do que Alves Reis. O maior deles, Jerome Kerviel, da Société Générale, provocou um prejuízo de cerca de 7 mil milhões de dólares em França, em 2007, quantia equivalente a 0,28% do PIB francês desse ano. Nada há de surpreendente no facto de Alves Reis ter deixado uma forte impressão naquela época. Com efeito, enquanto prosseguia o julgamento em 1930, a que Fernando Pessoa assistiu da plateia, e da qual fez várias anotações, a "revolução keynesiana" espalhava-se pelo mundo, embora ainda sem esse cunho que viria a proporcionar. 
Não é possível imaginar por que razão útil (se é que existiu), o poeta consumiu três dias da sua vida na sala acanhada de Santa Clara, a não ser a curiosidade de ver e ouvir de perto o principal ator da tragicomédia financeira que abalou os últimos anos da República e se propagou em ondas de choque, aos primeiros tempos da ditadura. O conteúdo das notas não diverge do que parece ter sido a reação mais comum do público português aos eventos: um deslumbramento contido, prudentemente distante, mas não estranho à admiração. 

Em toda a parte autoridades económicas experimentavam esquemas fiscais e monetários criativos, até então tomados como heréticos, mas que as circunstâncias excecionais da Grande Depressão justificavam. Apesar de no início da sua apresentação, 1936, a teoria geral de Keynes ter sido muito criticada, a verdade é que Keynes tornou-se uma autoridade intelectual pelo sucesso que teve. Mas esta reviravolta keynesiana não foi suficiente para resgatar Alves Reis das prisões de Salazar, um "antikeynesiano".

Portanto, em 1931, com 34 anos de idade era um keynesiano em potencial, sem ainda o saber. Alves Reis publicou três livros, onde escreve esta passagem no terceiro: «Voltaire ... ensinou-me que "os fins intrinsecamente bons justificam os meios intrinsecamente maus". Por isso, os fins da emissão clandestina de notas de 500 escudos efígie Vasco da Gama eram intrinsecamente bons. Dentro dos princípios materialistas, que me orientavam, tinha o direito de usar meios intrinsecamente maus para auxiliar Angola ... Angola precisava de muito dinheiro.» O caso ganhou outra dimensão quando se iniciou em Londres o processo, ajuizado pelo Banco de Portugal, contra os fabricantes das "
notas de 500 escudos efígie Vasco da Gama", a reputada casa Waterlow & Sons, por quebra de contrato e negligência, ao aceitar a encomenda feita por supostos representantes do Banco de Portugal.

Julgado, aos 32 anos de idade, em Lisboa, no Tribunal de Santa Clara, em maio de 1930, e condenado a 20 anos (8 de prisão e 12 de degredo) ou, em alternativa, a 25 anos de degredo. Durante o julgamento, alegou que o seu objectivo era simplesmente desenvolver Angola. Foi preso 3 anos antes do começo da era do Estado Novo. Na prisão, converteu-se ao protestantismo. Em maio de 1945 foi libertado. Quando saiu, a mulher já tinha falecido. Foi-lhe oferecido emprego num Banco, mas recusou. E ainda veio a ser condenado por uma burla de venda de café vindo de Angola. Mas já não cumpre pena. Morre de enfarte do miocárdio a 9 de Junho de 1955, com 58 anos de idade. 

A maioria dos grandes criminosos de colarinho branco da era moderna opera de dentro, como insider numa grande organização, valendo-se de uma posição de confiança para perpetrar fraudes e desfalques. Falsários e falsificadores bem-sucedidos, actuam de fora e se fiam em habilidades refinadas, no zelo desmedido pelos detalhes, e com comparsas bem treinados para obter as condições favoráveis à sua atividade. Artur Virgílio Alves Reis, o amador que concebeu o crime, não possuía nenhuma dessas vantagens. Em relação ao Banco de Portugal, e ao mundo dos impressores de papel-moeda, ele era um completo estranho e, àquela altura, em 1924, encontrava-se praticamente sem dinheiro. Além de não se destacar por nenhuma habilidade criminosa, com frequência negligenciava os detalhes. Além disso, os três homens que escolhera para auxiliá-lo não podiam conhecer toda a verdade, pois qualquer um com um mínimo de bom senso veria que aquele esquema delirante não tinha a menor hipótese de sucesso. A despeito da sua evidente desqualificação, Alves Reis foi bem-sucedido. Triunfou porque tinha a imaginação fértil dos ignorantes, a segurança dos desinformados e a sorte absurda dos principiantes.

A enorme repercussão do seu êxito deu a Portugal o pior choque económico desde o grande terramoto de 1755. E deu origem à mais duradoura ditadura do século XX na Europa. O brilhante esquema de Alves Reis teve reflexos duradouros, que por décadas interferiram na vida da mais prestigiosa atriz holandesa, na prosperidade de várias famílias portuguesas, na afluência de um fabricante francês de aparelhos elétricos e, até mesmo, nos ásperos debates nas Nações Unidas sobre a Angola portuguesa.

Quase todos os criminosos são imitadores sem imaginação. Fazem o que outros criminosos fizeram antes deles. Os mais espertos trazem alguma inovação técnica, planeiam de modo mais elaborado, calculam com maior cuidado. Apesar disso, durante o século XIX, os comboios que transportavam valores foram assaltados centenas de vezes. E caixas-fortes de bancos aparentemente inexpugnáveis foram rotineiramente violadas, nos fins de semana. Desde que os chineses inventaram o papel-moeda, não há sequer uma matriz que não tenha sido falsificada. E, numa rotina similar, falsificam-se milhares de cheques todas as semanas. O crime de Alves Reis, todavia, além de jamais ter sido feito antes, apresentava também uma limitação intrínseca: não poderia ser repetido. Era - e é - o crime único, algo tão raro que ocorre apenas uma vez na história de uma civilização. Ele concebeu e executou um plano perfeito de falsificação.

Matrizes grosseiras resultam em notas grosseiras. Qualquer caixa de banco atento identifica as notas falsas. Tome-se o segundo grande obstáculo: quem se pode recrutar para correr o risco de passar as notas falsas em pequenos estabelecimentos comerciais e restaurantes? Para isso, só se pode contar com os marginais do submundo. cuja própria aparência é suficiente para que o mais negligente comerciante examine com redobrada atenção uma nota que lhe caia nas mãos. Há ainda os criminosos que adquirem as notas no atacado, ao custo de grandes descontos, os quais colocam em risco o próprio falsificador devido à sua natural ansiedade para se livrar o mais rápido possível das notas, e assim despertam de imediato a atenção dos bancos e do governo.

No fim, há a inevitabilidade do inquérito, prisão e condenação. A falsificação de dinheiro representa para o Estado uma ameaça só comparável ao crime de traição. Aos falsificadores se aplicam penas severas e rápidas. Bem além de uma questão restrita à justiça, e muito mais do que um problema de imagem para o Estado, trata-se de autodefesa. O funcionário que se corrompe, o homem que mata o amante da esposa ou o escroque que aplica um golpe na empresa, todos podem esperar e, até mesmo, comprar a indulgência. No entanto, nenhum Estado admitirá qualquer indulgência em casos de falsificação, quer de um punhado de moedas, quer de um milhão de notas de banco.

Esses três obstáculos são bastante óbvios, e muitos dos melhores profissionais do crime ousaram enfrentá-los no passado. Todavia, Artur Virgílio Alves Reis foi o primeiro a encontrar uma solução eficaz. Elaborou um esquema de falsificação perfeitamente lógico. Até mesmo os seus concorrentes, naturalmente, havia muitos, foram obrigados a reconhecer o brilho desconcertante e a lógica luminosa do seu plano. O Estado, na condição de seu principal inimigo, assim se manifestaria, muito mais tarde, por intermédio de um dos seus mais eloquentes representantes: «Para Alves Reis não havia o que se costuma chamar de dificuldade lógica. Nele, a conceção precede imediatamente a execução. ... Dotado de imaginação extremamente fértil e de atividade mental assombrosa e quase febril ... jamais se perguntou se uma ideia que lhe passava pela cabeça era exequível. Tudo o que imaginava parecia-lhe possível e, até mesmo, fácil.»

sexta-feira, 17 de julho de 2020

O sal da metáfora no post do Salgado


Nos tempos Antigos, e em determinadas regiões da Terra, o sal chegou a ser utilizado como moeda. As mercadorias tinham o valor de moeda nas trocas comerciais quando eram, numa dada região, um bem escasso. Nas trocas comerciais em certos países de África na fronteira com o deserto do Saara, e também no tempo do Império Romano, o sal era utilizado como meio de pagamento. Bem, foi daí que herdamos a palavra salário. O comércio do sal teve um importante papel na história africana, movimentou economias, fundou cidades, enriqueceu reis e provocou guerras entre nações. 



Taudeni é um remoto centro de mineração de sal situado num oásis na região desértica do norte do Mali, 664 Km a norte de Tombuctu. O sal, explorado secularmente, é cavado à mão do leito de um antigo lago salgado, cortado em lajes e transportado de camião ou por camelo para Tombuctu.

Numa região desértica, noutros tempos, ali trabalhavam milhares de escravos extraindo sal para abastecer as caravanas. Ainda hoje, o sal continua a ser extraído das suas minas. O sal era transportado no lombo de camelos e descarregado em Tombuctu, onde passava para embarcações que subiam o rio Níger até Djené. Ali era trocado por ouro e levado à cabeça por escravos e distribuído pela savana chegando até às florestas. Nos mercados os mercadores deviam pagar um dinar em ouro (cerca de 4g) ao entrar nos seus territórios, e dois, à saída. O sal também era trocado por ouro.

A menção mais antiga a Taudeni está presente na História do Sudão de Al-Sadi que escreveu que em 1586, quando 200 mosqueteiros marroquinos atacaram o centro de mineração de sal de Tagaza, a 150 Km a noroeste de Taudeni, alguns dos mineiros mudaram-se para Taudani. Em 1906, o soldado francês Édouard Cortier visitou Taudeni com uma unidade soldados montados em camelos mearistas  e publicou a primeira descrição das minas. À época o único edifício era o alcàcer de Smida que possuía uma muralha circundante com uma única entrada pequena no lado ocidental. As ruínas do alcácer estão 600 metros a norte do edifício da prisão. Actualmente milhares de poços espalham-se por uma ampla área. 

Em 2008, havia aproximadamente 350 grupos de mineiros, num total aproximado de 1000 homens. Os homens vivem em cabanas primitivas construídas de blocos de sal de qualidade inferior e trabalham nas minas de outubro a abril, evitando os meses mais quentes do ano. As lajes são transportadas através do deserto via oásis de Arauane para Tombuctu. No passado, elas foram sempre carregadas por camelos, mas recentemente algumas delas são removidas por camiões. A jornada com camelos para Tombuctu leva cerca de três semanas, cada camelo carregando quatro a cinco lajes. O acordo tradicional é que para cada quatro lajes levadas a Tombuctu uma é dos mineiros e as outras três são para pagar ao proprietário dos camelos. Até meados do século XX, o sal foi transportado em duas grandes caravanas de camelos: uma dirigida a Tombuctu no começo de novembro; e uma segunda deixando Tombuctu no final de março, no fim da estação.


A economia comercial do Gana atingiu seu auge no século VIII, ao interligar as regiões do Norte de África, Egito e Sudão. Entre os principais produtos comercializados estavam: o sal, tecidos, cavalos, tâmaras, escravos e ouro. Esses dois últimos itens eram de fundamental importância para a expansão económica do reino do Gana e o considerável aumento da força de trabalho disponível. Entre os mais importantes centros urbano-comerciais desse período destacava-se a cidade de Bambuque. O ouro era escoado principalmente para a região do Mar Mediterrâneo, onde os árabes utilizavam na cunhagem de moedas. Para controlar as regiões de exploração aurífera, o rei era o responsável directo pelo controlo da produção. Para proteger a região aurífera, o uso de lendas sobre criaturas fantásticas era utilizado para afastar a cobiça de outros povos. 

O sal também tinha grande valor pela sua importância na conservação de alimentos e na retenção de líquidos naqueles que atravessavam o deserto nas caravanas. O Reino do Gana começou a sentir os primeiros sinais da sua crise com o esgotamento das minas de ouro que sustentavam a sua economia. Além disso, após o século VIII, a expansão islâmica ameaçou a estrutura centralizada do governo. Os chamados Almorávidas foram os principais responsáveis pelos conflitos que, em nome de Alá, desestruturaram o Reino do Gana. A partir de então, seriam os reinos de Mali, Sosso e Songai a disputar a região.

Ó Salgado, quanto do teu sal são lágrimas de Portugal!


Um verso quase pessoano a propósito do caso quase clínico, de um homem que andou a roubar os portugueses, tempo demais, sem que ninguém tivesse o descaramento de o parar antes que fosse tarde. É agora outra vez notícia, ocupando intensivamente os comentários na imprensa escrita e falada, uma vez que acabou de sair a acusação por parte do Ministério Público, em que Ricardo Salgado é acusado de 65 crimes, 
juntamente com mais 18 pessoas e 7 empresas de crimes económico-financeiros. 

Ricardo Salgado chegou a ser apelidado em tom de chalaça: "o dono disto tudo". E não é que foi mesmo!? Esteve mais de 20 anos não apenas na liderança de um banco, mas de um império, a que alguns chamam “Polvo”, sendo ele a cabeça, il cappo della famiglia

Sabe-se quase tudo sobre a família materna de Ricardo Salgado, os Espírito Santo, e quase nada sobre as origens da família paterna, os Salgado. O seu pai foi durante três décadas administrador da Companhia de Seguros Bonança, onde Marcello Caetano trabalhou antes de assumir a Presidência do Conselho depois de Salazar cair da cadeira. Um tio, José Manuel Salgado, foi o director do Serviço de Informações da Legião Portuguesa, gerindo uma vasta rede de informadores, ou bufos na nomenclatura popular. Outro tio, Francisco Cardoso Salgado, trabalhou 25 anos na censura, no lápis azul na nomenclatura jornalística. Foi ele que analisou Seara de Vento, de Manuel da Fonseca, e proibiu a reedição do livro, incomodado com a falta de uma lição moral ou de um arrependimento do protagonista, Palma: "Cometendo aqueles crimes de morte por vingança e resistindo em luta armada auxiliado pela sogra, contra os elementos da ordem, tem um fim de exaltação subversiva criando um mito a heróis, pela causa justa da luta de classes e reivindicações sociais e porque no final da obra não apresenta nenhuma justificação ou arrependimento moral, mas antes sim uma confirmação das directivas comunistas".

Sobrinho-neto do fundador do Banco Espírito Santo (BES), Salgado foi escolhido para liderar a área financeira do Grupo Espírito Santo (GES), em 1991, chegando a essa posição pouco antes da primeira fase de privatização do BES, em que a família queria recuperar o banco depois de ter perdido quase tudo com as nacionalizações de 1975. Ao longo de duas décadas, foi sob a liderança de Ricardo Salgado que o banco da Família Espírito Santo se tornou o terceiro maior de Portugal, com o banqueiro a concentrar em si cada vez mais poder, decidindo os negócios da família, mas também influenciando a vida nacional: política, artística e científica. Tanto era assim que em julho de 2013, Ricardo Salgado teve a sua última honraria, ao ser distinguido com o doutoramento 'honoris causa' por serviços prestados à economia, cultura, ciência e à universidade, pela Universidade Técnica de Lisboa. 

Pois, mas em julho de 2014, Ricardo Salgado é detido pela primeira vez no âmbito da operação Monte Branco, que investiga a maior rede de branqueamento de capitais descoberta em Portugal. Desde então, foi uma avalanche de casos e processos que desabaram não apenas em Portugal, como um pouco por todo o mundo, vários outros processos não só criminais, mas também de índole administrativa, com contra-ordenações umas atrás das outras. Não faltaram processos instaurados contra Ricardo Salgado, mas também a vários antigos gestores do BES, e mais alguns cúmplices. Tudo indica que este é o primeiro de outros que hão de vir.



Na original Cosa Nostra siciliana, cada grupo é denominado famiglia ou Cosca. No topo da hierarquia está o Capo, coloquialmente conhecido como Don. Por ele passam todas as decisões acerca da família, e para ele deve chegar uma percentagem dos lucros de todas as operações dos seus membros. Logo abaixo do Don, está o Sottocapo (Subchefe), que substitui temporariamente o Capo na sua ausência, e também como intermediário entre este e os outros membros abaixo na hierarquia. O Consigliere é o conselheiro do Don, o único que de facto pode ponderar as acções do boss, servindo como uma segunda opinião. Normalmente é um posto ocupado por alguém de muita experiência e perícia para intermediar conflitos e negociações. Subordinados diretamente ao Sottocapo estão os Caporegimes (Capitães). Cada um destes comanda um regimento de Soldatos e Associados. Uma percentagem de todo o lucro obtido pela equipa é passada diretamente ao Capo em forma de tributo. Os Soldatos são a base da pirâmide. São membros efetivos da organização, conhecidos como "homens feitos". São os operacionais no terreno, e executantes dos serviços mais delicados. O requisito básico para se tornar um membro efetivo da família é possuir ascendência italiana. No caso da Cosa Nostra siciliana, é ser siciliano. Os Associados não pertencem à famiglia, são membros externos à organização. Embora não façam oficialmente parte da família, actuam como se membros efetivos fossem. Dependendo da sua influência e poder, um Associado pode influenciar os postos mais altos da hierarquia da famiglia caso seja um primeiro-ministro ou coisa assim.

Na época medieval os seus membros eram agricultores proprietários de suas pequenas terras. Com o passar do tempo viram que eram vulneráveis aos poderosos senhores feudais donos de grandes terras, os quais usavam de actos criminosos para obter as terras dos demais. Vários camponeses se uniram e lutaram juntos para vencer os poderosos donos de terras. Com o passar do tempo outras  pessoas se juntaram aos camponeses, com o mesmo fito de se protegerem. Da Itália, este esquema de "protecção forçada" espalhou-se principalmente para os Estados Unidos da América. A palavra "mafia" foi tirada do siciliano mafiusu, de origem árabe mahyas, que significa "alarde agressivo, jactância" ou marfud, que significa "rejeitado". Um homem mafiusu, no século XIX, significava alguém ambíguo, arrogante, mas destemido; empreendedor; orgulhoso. A associação da palavra com a sociedade criminosa foi feita em 1863 com a peça, I mafiusi di la Vicaria (O Belo Povo da Vicaria) de Giuseppe Rizzotto e Gaetano Mosca, que trata de gangues presos na prisão de Palermo. 
As palavras mafiusu ou  mafiusi (plural) não são mencionadas na peça.

O uso do termo "máfia" foi posteriormente apropriado pelos relatórios do governo italiano a respeito do fenómeno da criminalidade. A palavra "mafia" apareceu oficialmente pela primeira vez em 1865 num relatório do prefeito de Palermo, Filippo Antonio Gualterio. Leopoldo Franchetti, um deputado italiano que viajou à Sicília e que escreveu um dos primeiros relatórios oficiais sobre a "máfia" em 1876, descreveu a designação do termo "Mafia": "o termo máfia encontrou uma classe de criminosos violentos pronta e esperando um nome para defini-la e, dado ao caráter e importância especial na sociedade siciliana, eles tinham o direito a um nome diferente do utilizado para definir criminosos comuns em outros países."