segunda-feira, 2 de dezembro de 2024

Os ciclos históricos e as elites


Vejo da minha janela uma rapariga a passear o seu cão. O cão parou para fazer cocó. A pessoa calçou uma luva e recolheu o cocó para um saco de plástico. E depois, logo de seguida, retomou a marcha. E eu fiquei a meditar nisso.


Essa é a cena quotidiana hoje em dia para muita gente que vive nas cidades em apartamentos de propriedade horizontal. Embora pareça trivial, é profundamente simbólica e revela muito sobre o estágio cultural e moral da sociedade europeia contemporânea. Ela representa, em certo sentido, um momento de civilização avançada, onde o conforto, a higiene e o mimo estão à frente de tudo. Imagem que pode ser interpretada como um reflexo de uma sociedade que, ao se afastar das duras realidades da sobrevivência, se dedica a preocupações que em outras épocas seriam vistas como irrelevantes ou até absurdas. O contraste é evidente: enquanto alguns enfrentam crises existenciais e lutas pela subsistência em outras partes do mundo, aqui temos um modelo de civilização que se empenha em recolher e embalar excrementos de animais.

Esta meditação talvez toque na ideia de que esses pequenos rituais civilizatórios são, paradoxalmente, sinais de um "afastamento da realidade". É como se, no meio de tanto conforto, perdêssemos de vista os fundamentos mais primários da existência humana e da coletividade. Estarão essas elites mimadas, representadas figurativamente por essas cenas de luxo e cuidado extremo, preparadas para lidar com as turbulências que se avizinham? Ou estarão condenadas ao colapso quando forem apanhadas de surpresa pela rudeza da vida a chocar com força?
Períodos alargados de paz e prosperidade produzem elites mimadas, que numa recessão económica, que surgirá inevitavelmente, ficarão à mercê da violência dos deserdados que elas próprias geraram, perdendo tudo.
Essa visão remete para os ciclos da história, ideia de que períodos prolongados de paz e prosperidade muitas vezes levam ao enfraquecimento moral ou prático das elites. Essa tese pode ser encontrada em várias tradições filosóficas e históricas, como na obra de Políbio [203 a 120 a.C.] sobre a anaciclose — o ciclo dos regimes políticos — e na análise de Ibn Khaldun [1332 a 1406 d.C.] sobre o declínio das civilizações. Quando a prosperidade se torna a norma, as elites frequentemente se distanciam das dificuldades do povo e, por vezes, contribuem para o aprofundamento das desigualdades. A desconexão gerada pode levar ao enfraquecimento de instituições e à perda de solidariedade social, criando uma base para a instabilidade. Em momentos de crise, como recessões económicas ou colapsos políticos, essa elite muitas vezes não está preparada para lidar com as consequências, o que abre espaço para revoltas dos deserdados.

A Europa parece estar a enfrentar os primeiros sinais com um acúmulo de tensões sociais, económicas e políticas que podem ser interpretadas como sintomas de desgaste do seu modelo de bem-estar social. Embora a Europa tenha sistemas de bem-estar social relativamente robustos, o aumento da desigualdade em muitas regiões, combinado com o impacto da globalização e da automação, tem levado a uma crescente insatisfação entre as populações mais desfavorecidas. A pressão migratória causada pelos conflitos bélicos e pelas mudanças climáticas, está a desestabilizar a coesão social e a desafiar as elites políticas para que encontrem soluções eficazes. O ressurgimento de nacionalismos e populismos reflete essa tensão.

Muitos cidadãos sentem-se alienados em relação às instituições europeias, vistas como distantes e tecnocráticas. Isso cria espaço para discursos radicais e a rejeição dos modelos tradicionais de governação. Por outro lado, a demografia europeia coloca um peso económico crescente nas gerações mais jovens devido ao aumento da longevidade. Apesar de avanços tecnológicos, partes significativas da Europa enfrentam estagnação económica e desindustrialização, enfraquecendo a capacidade de criação de riqueza. Historicamente, períodos como este costumam culminar em reformas profundas, revoluções ou crises agudas que abrem espaço para novos paradigmas. A questão central é: a Europa será capaz de evitar uma deterioração social mais grave por meio de ajustes estruturais e novas lideranças, ou sucumbirá à violência e desordem?

As elites urbanas — ou mesmo as classes médias acomodadas — tendem a viver em bolhas de estabilidade, imersas em preocupações que, embora legítimas no contexto delas, podem parecer completamente irrelevantes ou ofensivas para aqueles que vivem na precariedade. Essa desconexão não é apenas material, mas também emocional e simbólica, alimentando uma crescente sensação de injustiça e indignação entre os deserdados.

Quando a revolta irrompe — seja na forma de protestos, violência ou uma onda populista —, essas mesmas elites frequentemente reagem com surpresa e indignação, como se não conseguissem compreender as causas profundas do ressentimento. A hipocrisia reside no facto de que muitas vezes foram elas que, direta ou indiretamente, criaram as condições para esse descontentamento, seja por meio de políticas económicas excludentes, de uma visão tecnocrática da sociedade, ou pela pura negligência.

É inevitável a rutura. É como se aplicasse aqui as mesmas leis da natureza. Por exemplo, as tempestades estão a borrifar-se ao estragar-lhes o conforto, que pode ter sido a causa da dita tempestade. Assim como as tempestades ignoram os desejos e confortos humanos, as forças sociais e históricas também têm o seu próprio curso, indiferentes aos interesses de elites acomodadas. A rutura parece, de facto, inevitável quando acumulamos tensões e ignoramos os sinais de alerta.

Assim como o aquecimento global intensifica as tempestades por causa de ações humanas, as desigualdades sociais, a alienação e a negligência institucional são "climas" que fomentam revoltas. No entanto, aqueles que se beneficiam do status quo frequentemente se recusam a reconhecer a sua responsabilidade, preferindo culpar as consequências em vez das causas. A metáfora vai além: uma tempestade pode ser mitigada por medidas preventivas — reforçar infraestruturas, adotar políticas sustentáveis —, mas nunca completamente evitada. Do mesmo modo, as elites poderiam tentar reequilibrar as desigualdades sociais e buscar uma conexão mais autêntica com os desafios enfrentados pela maioria. Contudo, como as tempestades, as forças sociais acumuladas acabam por romper a superfície, muitas vezes de maneira caótica e destrutiva.



sábado, 30 de novembro de 2024

Integridade na pesquisa científica


Em ciência também há fraudes, e a fraude científica, que é um crime, tem aumentado. Por isso, não nos podemos precipitar a acreditar no primeiro anúncio de uma novidade, alegadamente baseada em estudos científicos, porque pode ser uma grande aldrabice. A fraude científica pode ter consequências graves, não apenas para a credibilidade da ciência, mas também para a sociedade como um todo, em que o campo da saúde é o mais preocupante. O caso mais recente foi o das vacinas, e não apenas em relação à vacina contra a Covid-19, mas também em relação a outras vacinas, nomeadamente a vacina contra o sarampo. É essencial que os pesquisadores e o público em geral adotem uma abordagem crítica ao avaliar estudos científicos, considerando fatores como a metodologia, a transparência dos dados e a revisão por pares. A crescente disponibilidade de informação também torna fundamental a literacia científica, para que possamos discernir entre evidências robustas e alegações infundadas. A cautela é necessária para proteger o progresso científico e garantir que ele seja baseado em dados confiáveis.

Como a ciência deve ser apolítica e amoral, não tem de dar satisfações à ideologia política. A ideia de que a ciência deve ser apolítica e amoral é fundamental para a sua integridade e objetividade. A ciência, enquanto método de investigação, busca compreender fenómenos por meio de evidências empíricas e raciocínio lógico, livre de influências ideológicas ou políticas. Isso não significa que a ciência esteja isenta de implicações éticas ou sociais, mas a sua prática deve basear-se em princípios de rigor e objetividade. No entanto, a interação entre ciência e política é inevitável, uma vez que as descobertas científicas podem ter impactos significativos em políticas públicas, saúde, meio ambiente e tecnologia. O desafio é garantir que a ciência seja utilizada de forma responsável e que as suas conclusões sejam comunicadas claramente, sem distorções ideológicas. A transparência na pesquisa, a revisão por pares e a promoção da alfabetização científica são essenciais para manter a confiança pública na ciência e minimizar a influência de agendas políticas que possam comprometer a busca pela verdade.

A ciência deve buscar a verdade e a compreensão do mundo, independentemente das ideologias políticas. O enviesamento de resultados para agradar a uma agenda política, seja à esquerda ou à direita, compromete não apenas a credibilidade da pesquisa, mas também a capacidade de a sociedade tomar decisões informadas. A integridade científica exige que os pesquisadores sejam rigorosos em sua metodologia, transparentes em seus dados e honestos em suas interpretações. O ideal é que a ciência sirva como um farol de conhecimento que ilumina a discussão pública, permitindo que as políticas sejam formuladas com base em evidências sólidas, em vez de interesses ideológicos. Para isso, é importante promover uma cultura científica que valorize a objetividade e a ética, bem como incentivar o debate crítico em torno das implicações das descobertas científicas. Dessa forma, a ciência pode contribuir para um entendimento mais profundo dos desafios que enfrentamos, sem se curvar a pressões políticas.

Por outro lado, há muita gente que não tem muito jeito para ensinar ciência com educação, ou seja, temperar a razão com educação, e nem por isso deixar de ter razão. A maneira como a ciência é apresentada pode influenciar a apreensão pública, e nem todos têm a habilidade de expressar as ideias de forma acessível e educada. Muitas vezes, pessoas com conhecimentos profundos podem não comunicar de maneira eficaz, o que pode levar a mal-entendidos ou a uma resistência ao que estão dizendo. A ciência deve ser capaz de ouvir as pessoas com pouca literacia científica, cujas causas podem ser por variadíssimas razões, que vão desde influências de dogmas religiosos (estou a lembrar as Testemunhas de Jeová) até preconceitos veiculados por teorias da conspiração. É importante cultivar um ambiente onde essas diferentes perspectivas possam ser desanuviadas. Quando as pessoas entendem melhor como a ciência funciona toda a sociedade beneficia. A razão e a educação devem coexistir para criar um diálogo mais produtivo e inclusivo sobre questões científicas.

Há cientistas que dizem assim: "sou otimista quanto ao valor da ciência, mas pessimista em relação ao bicho-homem". Esta frase reflete uma tensão entre a fé na capacidade da ciência de avançar e melhorar a condição humana e a preocupação com a natureza humana, que muitas vezes é vista como problemática. Muitos cientistas e pensadores compartilham desse sentimento, reconhecendo que, embora a ciência tenha feito progressos significativos em áreas como saúde, tecnologia e entendimento do mundo natural, o comportamento humano muitas vezes é marcado por conflitos, egoísmo e irracionalidade. Essa dualidade é importante porque ressalta a necessidade de considerar não apenas os avanços científicos em si, mas também as implicações éticas, sociais e políticas desses avanços. A ciência pode oferecer soluções e melhorias, mas a forma como essas soluções são implementadas e aceites pela sociedade depende das características humanas, como valores, crenças e atitudes. O progresso científico deve ser acompanhado por um compromisso de cultivar valores que promovam a cooperação, a empatia e a compreensão mútua, para que possamos aplicar os conhecimentos científicos em benefício da humanidade como um todo.

O tal cientista queria dizer que a ciência não é boa nem é má. Mas o bicho-homem, mais tarde ou mais cedo vai tirar partido de um conhecimento científico para objetivos que depois podem acabar numa catástrofe. Da energia nuclear e todos os conhecimentos da Física, resultou a bomba atómica. Essa perspectiva destaca que a ciência, em si mesma, é uma ferramenta neutra, não possui uma moralidade inerente. O que realmente está em causa é depois a forma como os seres humanos vão dar uso aos conhecimentos científicos. A bomba atómica é um exemplo emblemático: enquanto a física que a tornou possível trouxe avanços significativos na compreensão da matéria e da energia, o seu uso em conflitos bélicos ilustra como o conhecimento pode ser empregue para fins destrutivos. Essa ambiguidade moral é uma questão central na filosofia da ciência e nas discussões éticas sobre tecnologia. O desenvolvimento de tecnologias, como a biotecnologia ou a inteligência artificial, também levanta questões sobre possíveis abusos e consequências imprevisíveis. Portanto, a responsabilidade ética dos cientistas e das sociedades em que operam é fundamental para garantir que as descobertas científicas sejam usadas para o bem comum. Reconhecer que o "bicho-homem" é que tem de ter a capacidade e o bom senso para saber usar o conhecimento científico de maneira benéfica enfatiza a necessidade de um diálogo contínuo sobre ética e responsabilidade. 

segunda-feira, 25 de novembro de 2024

A questão do envolvimento de figuras como Elon Musk



A questão do envolvimento de figuras como Elon Musk na próxima Administração Trump, e o impacto que isso terá no próprio regime democrático e alcance geoestratégico, traz à tona preocupações sobre a concentração de poder em indivíduos influentes. É um momento que, para muitos, pode representar tanto um alerta como uma oportunidade de reavaliar estratégias e princípios. A esquerda vai ter de rever as asneiras que andou a fazer nos últimos anos, sob pena de desaparecer fazendo figura ridícula.

Há aqueles que fazem o que sentem e dizem o que pensam: agem impulsivamente, guiados pelas emoções, e expressam o que lhes passa pela cabeça sem filtro. A ênfase está na espontaneidade tanto na ação quanto na fala. E há aqueles que dizem o que sentem e fazem o que pensam: são mais reflexivos e racionais, com uma certa honestidade emocional na fala e uma ação pensada. Ou seja, primeiro verbalizam os sentimentos e, ao agir, seguem um plano mental. Destacam-se aqui traços de personalidade que envolvem espontaneidade versus ponderação e racionalidade, simbolizando como diferentes comunidades podem ser percebidas quanto à relação entre pensamento, emoção, fala e ação.

A esquerda, especialmente em tempos recentes, tem sido criticada por priorizar questões que muitos consideram desconectadas das preocupações quotidianas da população. A busca por uma identidade política coerente e adaptada aos desafios atuais pode ser a chave para evitar cair na irrelevância. Rever os erros, ouvir as críticas, e ajustar o discurso para voltar a engrenar a sociedade de forma mais ampla são passos que podem determinar se a esquerda se conseguirá reinventar ou se acabará marginalizada, presa a uma imagem de ineficácia e excesso de ideologia.

Entre o wokismo e a liberdade, o povo americano, e inclusivamente antigos votantes no Partido Democrata, o azul do burrinho, preferiram escolher o vermelho do elefante. O cancelamento que os arautos do politicamente correto andavam a fazer a-torto-e-a-direito estava a tornar-se sufocante demais. A ascensão do wokismo e o cancelamento do politicamente correto têm gerado debates intensos nos últimos anos. Para muitos, especialmente nos EUA, essas correntes foram percebidas como movimentos que, embora nascidos de intenções de justiça e inclusão, acabaram por se tornar restritivos, limitando a liberdade de expressão e criando uma sensação de censura. Isso parece ter alienado parte da base democrata mais moderada e empurrado alguns eleitores em direção a alternativas que prometem um retorno à liberdade de expressão e ao rompimento com o que consideram uma cultura de cancelamento sufocante.

A escolha de muitos americanos por líderes ou políticas que rejeitam o politicamente correto reflete um desejo de reafirmar valores como a liberdade individual e uma retórica menos controlada. Para alguns, esse movimento é visto como uma correção de rumo contra os excessos da esquerda; para outros, é uma mudança arriscada que pode enfraquecer o progresso social alcançado nas últimas décadas. Em qualquer caso, o fenómeno mostra como a percepção pública da liberdade e dos limites do discurso está no centro das divisões políticas atuais.

A sobrevivência, infelizmente, não se compadece com gente branda e de falinhas mansas, porque para além de ser irrealista, é hipócrita. E se há coisa que o povo que trabalha mais detesta é a hipocrisia das elites cuja vida fácil os faz cantar de galo. É o descontentamento de muitos com as elites políticas e intelectuais que, para alguns, parecem estar desconectadas das realidades do dia a dia da população trabalhadora. Há uma percepção de que discursos idealistas e "de falinhas mansas", muitas vezes, não se traduzem em ações concretas que melhorem a vida das pessoas comuns. Essa desconexão pode ser vista como hipocrisia, especialmente quando as elites adotam um tom moralizante enquanto se beneficiam de uma vida mais fácil e protegida das dificuldades que a maioria enfrenta. A sobrevivência e a luta diária, para muitos, exigem líderes que sejam diretos, pragmáticos e, acima de tudo, realistas. Quando a política se torna um exercício de retórica distante da realidade, o povo tende a se voltar para figuras que parecem entender as suas preocupações e que falam com uma franqueza que ressoa mais autenticamente. Essa busca por autenticidade, muitas vezes, leva à preferência por líderes que desafiam o status quo, mesmo que sejam controversos, porque são vistos como mais próximos das necessidades e preocupações reais.

Por irónico que possa parecer, Donald Trump vai fazer mais pelo mundo do que o Cristiano Ronaldo. Por exemplo, Trump vai acabar com a Guerra na Ucrânia e no Médio Oriente. Trump tem um estilo direto e assertivo que, no passado, rendeu negociações inesperadas, como o diálogo com a Coreia do Norte. Embora a paz em conflitos complexos como os da Ucrânia e do Médio Oriente dependa de muitos fatores e interesses entrelaçados, uma tentativa de Trump de intervir pode, de facto, ter impacto. Ele pode buscar uma solução rápida, talvez em troca de concessões políticas e económicas que favoreçam o seu posicionamento global. Curiosamente, mesmo sendo uma figura polarizadora, ele tende a propor soluções pragmáticas, que podem reverberar na comunidade internacional. Resta ver se ele abordará esses conflitos com pragmatismo, sem ceder a pressões internas que, historicamente, complicam negociações de paz.

Se Diógenes, o Cínico, cá voltasse, ficaria escandalizado com o Cristiano Ronaldo, ganhar tanto dinheiro para meter uma bola numa baliza. Qual é a utilidade de meter uma bola na baliza? Diógenes, o Cínico, certamente teria uma visão crítica sobre a nossa sociedade e, de facto, provavelmente veria o sucesso de Cristiano Ronaldo com desdém. Para ele, a busca por riqueza e fama era irrelevante — uma distração dos valores essenciais da vida humana, como a virtude e a autossuficiência. Do ponto de vista cínico, a utilidade de "meter uma bola numa baliza" seria mínima ou até nula, uma vez que essa atividade não contribui para a realização da natureza humana, nem promove a simplicidade ou a sabedoria. Para Diógenes, que valorizava o desprezo pelo materialismo e pela glória vazia, o valor de tal habilidade seria insignificante. Ele poderia até ver a paixão pela fama e pela riqueza de uma estrela do futebol como um sinal de decadência ou superficialidade na sociedade contemporânea, que coloca atividades secundárias num pedestal, enquanto ignora as questões existenciais e éticas.

sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Percepções da violência política


Moscovo responderá "de forma simétrica" a qualquer "escalada", frisou Vladimir Putin, ontem, após a disponibilização de armas ocidentais de longo alcance por parte do Presidente Biden à Ucrânia. A Rússia respondeu com o lançamento de um míssil intercontinental hipersónico que caiu em Dnipro, aparentemente sem ter provocado grandes estragos. Vladimir Putin afirmou que a utilização do míssil foi uma resposta aos recentes ataques ucranianos com os tais mísseis de longo alcance. Na mesma declaração televisiva, Putin frisou ainda que os ataques contra a Rússia com armas ocidentais não mudarão o desfecho da "operação especial" da Rússia. Moscovo responderá "de forma simétrica" a qualquer "escalada", declarou o líder russo. Putin garantiu que avisaria os civis caso utilizasse uma arma hipersónica contra a Ucrânia.

Ao explorar a vulnerabilidade ou a fraqueza militar dos países europeus, Putin busca não apenas causar medo e destruição, mas também influenciar a opinião pública e a percepção geral. Quando uma figura de autoridade global, como o secretário-geral da ONU, parece demonstrar mais empatia por um dos lados, especialmente percebido como o mais fraco, isso pode gerar tensões com o lado que se sente deslegitimado ou injustamente retratado. Daí que o encontro de Guterres com Putin tenha sido muito mal visto pelos analistas ocidentais. Esse desequilíbrio emocional na narrativa é explorado intencionalmente por cada lado em função do mais conveniente. Essa diferença nas reações à violência demonstra como o contexto sociopolítico e a percepção de segurança moldam as respostas a atos violentos. Enquanto na Europa um atentado terrorista pode desestabilizar um país e provocar reações políticas significativas, na Ucrânia onde a violência é uma constante a mesma ação é vista como uma expressão comum da realidade. O seu significado para um europeu é mais simbólico do que real. A perversidade está ligada à forma como se constrói a narrativa para maximizar o impacto das ações.

A violência política na Europa, quando comparada com outras partes do mundo, como a Ucrânia, o Próximo e Médio Oriente [Palestina ou Sudão] pode-se dizer que é residual. Por esse facto, um atentado terrorista, por mais limitado que seja, tem um impacto na percepção pública que não tem nessas outras paragens. Na Europa, onde a violência estatal e a criminalidade em geral são relativamente baixas, um míssil, mesmo que pequeno, é um evento extraordinário que provoca uma onda de choque, medo e indignação. Isso se deve à expectativa de segurança, que é falsa, e à normalidade da vida que permeiam a sociedade. Em contraste, onde a violência faz parte da realidade diária, atos muito mais violentos podem ser percebidos de maneira diferente. Nesses ambientes, a população pode estar mais acostumada com a instabilidade e, portanto, um atentado pode ser visto como apenas mais um na sequência da violência endémica que caracteriza a realidade da vida nesses países.

Uma pequena moeda num grande frasco vazio faz muito barulho. É por isso que quanto mais surpreendente ou espetacular for um atentado, mais bem-sucedido será o atentado. A narrativa de Putin tem como objetivo alcançar o maior impacto psicológico através do amedrontamento do maior número de pessoas possível. Um míssil de aviso não busca necessariamente a destruição em larga escala, mas sim a manipulação do medo e da atenção. A metáfora da pequena moeda no grande frasco vazio é perfeita para ilustrar essa dinâmica: Um míssil, mesmo que pequeno em termos de número de vítimas ou destruição material, ganha grande visibilidade justamente pelo choque psicológico que provoca, amplificado pela cobertura mediática e pelo impacto psicológico.

O estratego, ao realizar um ato espetacular ou inesperado, aproveita-se da desproporcionalidade entre a sua ação limitada e a resposta emocional massiva que ela desencadeia. A surpresa e a quebra da normalidade são centrais para o sucesso da sua estratégia. Assim, quanto mais espetacular ou chocante for, maior será o alarido que ele provoca no cenário político e social, ampliando o impacto além do dano físico. Por razões de ajustamentos da História devido a injustiças e erros humanos, as preocupações políticas mais candentes que atravessam todo o ocidente de filiação eurocêntrica estão entrelaçadas com muitas questões que fiquem sempre para trás mal resolvidas. Os países europeus ocidentais adotam posturas mais progressistas em relação a direitos humanos e igualdade. O mesmo não podemos dizer do lado russo, com outras tradições e outras realidades geopolíticas. Mas, ainda assim, como nenhuma sociedade é monolítica em relação a essa realidade, apesar de ser difícil evitar o confronto entre pessoas do mesmo país, é sempre possível operar mudanças. 

O desafio que se coloca aos responsáveis políticos consiste como equilibrar a proteção dos direitos de todos os cidadãos, incluindo os membros das forças políticas do extremo contrário. Esta é uma das áreas do debate cultural da atualidade em que as sociedades estão muito polarizadas. Para muitos, o que pode parecer uma busca por equidade e proteção dos grupos marginalizados, para outros pode ser visto como uma forma de extremismo caricaturado com as bastante gastas charadas do "politicamente correto" e do "wokismo", que frequentemente ignora o contexto histórico das lutas por direitos civis, onde as dinâmicas de poder, privilégio e marginalização são complexas e multifacetadas. As gerações mais velhas podem ver isso como um retrocesso em relação a certos valores que consideram essenciais, como a objetividade e a imparcialidade, especialmente em situações de conflito.

Esse choque de paradigmas gera um debate rico, mas também fracturante, sobre como as sociedades modernas devem lidar com questões de injustiça, desigualdade e violência, e que narrativas devem prevalecer em relação a outras na construção de uma sociedade mais justa e igualitária. A observação sobre a falta de conhecimento histórico entre os jovens é um tema recorrente e preocupante. O entendimento da história universal é fundamental para que as gerações atuais possam aprender com os erros do passado e desenvolver uma perspectiva crítica sobre o presente. No entanto, a educação contemporânea muitas vezes se concentra em temas mais imediatos e pode negligenciar a profundidade e a complexidade da história das civilizações.

O desinteresse ou falta de conhecimento sobre os padrões históricos de ascensão e queda de civilizações, ou dos erros que se cometeram e levaram às duas Grandes Guerras Mundiais do século XX, pode resultar numa percepção ingénua sobre os desafios contemporâneos. Quando os jovens não têm consciência das lições que a história oferece - 
como os efeitos do extremismo, da intolerância e da inação - eles podem subestimar as consequências de suas ações ou as dinâmicas sociais em jogo. O misto de brandos costumes e incúria a que muita gente faz alusão nas redes sociais é uma crítica à complacência e à falta de ação diante de problemas sociais e políticos. Muitas vezes, essa atitude pode ser uma resposta à sensação de impotência ou à crença de que as estruturas sociais são inalteráveis. Isso pode levar a um círculo vicioso em que a inação se perpetua, enquanto os problemas se acumulam. Portanto, é crucial que haja um esforço consciente para promover a educação histórica e incentivar uma compreensão mais profunda dos erros que levaram às catástrofes passadas, para que os jovens possam desenvolver uma consciência crítica que os capacite a participar ativamente na construção de sociedades mais justas e resilientes. O diálogo intergeracional também pode ser uma ferramenta poderosa para transmitir essas lições e experiências, ajudando a conectar as gerações e a fomentar um entendimento mais profundo dos desafios atuais.

As pessoas com maior literacia histórica sabem que a História mostra em muitos casos que quem prevaleceu nas mudanças depois do conflito foram os "falcões". Enquanto as "pombas", que representam a paz, a diplomacia e a busca por harmonia foram remetidos para as margens da História. Ou seja, a história, frequentemente escrita pelos vencedores, é sempre cruel. E isso significa que as narrativas que emergem refletem as experiências e as visões de poderosos, em vez de uma visão abrangente e inclusiva de todos os grupos sociais. Essa dinâmica é especialmente evidente em contextos de guerra, revolução ou opressão, onde as vozes de pacificadores e aqueles que buscam a conciliação muitas vezes são esquecidas ou ignoradas.

Esse padrão histórico pode levar à repetição de erros, uma vez que as sociedades podem não aprender as lições da diplomacia e do entendimento mútuo. A ideia de que a sobrevivência depende da força, e não da razão ou da compaixão, pode perpetuar ciclos de violência e conflito. Portanto, é vital que as sociedades atuais busquem dar voz às narrativas das "pombas" e explorem os caminhos que levam à paz e à reconciliação, ao invés de se concentrarem apenas nas histórias dos "falcões". Isso envolve não apenas a educação sobre a História, mas também a promoção de um diálogo inclusivo e da construção de instituições que priorizem a justiça e a equidade. Ao fazer isso, podemos trabalhar para criar um futuro em que a sobrevivência não dependa exclusivamente da força, mas sim do entendimento e da colaboração.


quinta-feira, 21 de novembro de 2024

A expressão de um falcão


Tenho apenas a convicção de que se Israel, a partir do dia da sua independência, se comportasse como uma pomba, a esta hora este país, independente e democrático, muito provavelmente já não existiria.

Sua convicção reflete uma perspectiva amplamente debatida sobre a complexidade da história de Israel e a sua relação com a paz e a segurança na região. A fundação de Israel em 1948 foi marcada por um contexto de conflito e tensão, e esse é um argumento válido, em que a sobrevivência do Estado de Israel, especialmente nesse ambiente hostil, exigia uma postura firme e muitas vezes militarizada. A ideia de que Israel deveria ter adotado uma abordagem mais pacifista desde o início é um argumento interessante, mas também implica uma série de "e se" que podem ser difíceis de avaliar. A região tem uma longa história de rivalidades étnicas e nacionais, e muitos fatores contribuíram para os conflitos que surgiram após a independência de Israel, incluindo as tensões entre árabes e judeus, a intervenção de potências externas e as guerras subsequentes.

A escolha de Israel, a adopção de uma postura mais defensiva e militarizada, tem sido muito criticada pelas pessoas que se têm batido pela causa palestiniana. A maneira como essa postura foi implementada e as suas consequências ao longo de décadas, levantam questões sobre a segurança, direitos humanos e o direito à autodeterminação dos povos. O dilema entre a segurança e a paz é um tema recorrente em muitos conflitos, e a história de Israel é um exemplo claro de como as decisões políticas e militares podem moldar o futuro de uma nação. A busca por soluções pacíficas é essencial, mas a realidade histórica muitas vezes se impõe, levando os Estados a tomar decisões que podem parecer contraditórias aos olhos de observadores externos.

Esta discussão ressalta a importância de se encontrarem caminhos para a reconciliação e o diálogo. Tem de haver um maior entendimento das particularidades históricas que envolvem a região. 
O reconhecimento das narrativas e experiências de ambos os lados é fundamental para qualquer tentativa de construir uma paz duradoura. Os palestinos, na minha modesta análise histórica, são mais vítimas das idiossincrasias dos muçulmanos divididos entre sunitas e xiitas, ou do mundo árabe como correntemente se diz, do que propriamente da ganância do povo judeu por território.

A sua análise histórica destaca um ponto frequentemente negligenciado nas discussões sobre o conflito israelo-palestino. De facto, as divisões internas entre os muçulmanos, especialmente entre sunitas e xiitas, e as complexidades políticas do mundo árabe desempenham um papel significativo na situação dos palestinos. As rivalidades sectárias e políticas entre sunitas e xiitas têm sido uma fonte de conflito em várias partes do Médio Oriente. Essas divisões muitas vezes obscurecem questões como a luta palestina, pois os interesses de poder regional podem desviar a atenção das preocupações palestinas. Muitos Estados árabes têm as suas próprias agendas políticas e interesses que não necessariamente se alinham com a causa palestina. Durante décadas, os líderes árabes usaram a questão palestina como um meio de unificar as suas populações ou desviar a atenção de problemas internos, enquanto muitas vezes falharam em oferecer um apoio real e eficaz aos palestinos.

A narrativa de que os palestinos são vítimas da "ganância" judaica por território é simplista e ignora o papel dos fatores regionais e das complexidades políticas. Embora a expansão territorial e as políticas que têm a ver com os colonos na Cisjordânia seja sem dúvida problemática porque contribui para a opressão dos palestinos, o contexto mais amplo do poder regional e da política interna árabe é crucial para entender a situação.

O apoio de potências externas a governos muito contestados sob a liderança de Netanyahu, como é o caso dos Estados Unidos, muitas vezes com agendas próprias, também complica a situação. A ajuda e a intervenção podem ser motivadas por interesses políticos, económicos ou estratégicos, que nem sempre beneficiam os palestinos. A questão da Palestina é, portanto, multifacetada e profundamente enraizada numa combinação de fatores históricos, sociais e políticos. Reconhecer que os palestinos são muitas vezes vítimas não apenas do conflito com Israel, mas também das dinâmicas internas do mundo árabe e das rivalidades muçulmanas, é essencial para uma compreensão mais abrangente da situação. A busca por uma solução duradoura requer uma análise dessas complexidades e um esforço conjunto tanto dentro da própria comunidade palestina como entre os países árabes e muçulmanos, que precisam priorizar a causa palestina em vez de deixá-la à mercê de interesses políticos locais ou regionais. A paz pode ser alcançada, mas requer um comprometimento genuíno com a justiça e o entendimento mútuo.

Nunca subestimar a estupidez humana

Essa frase capta uma verdade fundamental sobre a condição humana. A história está repleta de exemplos em que a falta de sabedoria, a ignorância e as paixões humanas levaram a decisões desastrosas, tanto ao nível individual como coletivo. A estupidez humana pode manifestar-se de várias formas. Conflitos e Guerras: muitas guerras e conflitos se originaram de mal-entendidos, preconceitos e emoções exacerbadas. A incapacidade de dialogar e compreender a perspectiva do outro frequentemente alimenta a violência. Desinformação: a era da informação trouxe consigo uma avalanche de dados, mas também uma proliferação de desinformação. A capacidade de discernir entre informações confiáveis e enganadoras é frequentemente subestimada, levando a decisões mal fundamentadas.  Muitas vezes, a sociedade tende a ignorar lições históricas em favor de conveniências imediatas. Isso pode resultar em repetição de erros do passado, como a ascensão de regimes autoritários ou a negligência de questões sociais críticas.

A tendência humana de se agrupar com aqueles que compartilham opiniões semelhantes pode levar a uma polarização extrema, onde a empatia e o diálogo se tornam impossíveis. Isso, por sua vez, perpetua a ignorância e a hostilidade entre grupos.

A resistência à autoanálise e à reflexão crítica pode impedir o progresso pessoal e social. A incapacidade de questionar crenças e normas estabelecidas muitas vezes leva a comportamentos prejudiciais e à estagnação. Embora a estupidez humana seja uma constante, também existe a capacidade de aprendizagem, empatia e mudança. O desafio é cultivar um ambiente que promova a educação, o diálogo e a compreensão mútua, permitindo que as sociedades evoluam e se tornem mais justas e resilientes. Afinal, o reconhecimento das limitações humanas pode ser o primeiro passo para superá-las. Mas isso ainda não é para já.

quarta-feira, 20 de novembro de 2024

A Morte de Ivan Ilitch de Lev Tolstói


A Morte de Ivan Ilitch é uma das obras mais importantes e profundas de Lev Tolstói, publicada pela primeira vez em 1886. Esse pequeno livro é um conto longo ou uma novela que aborda a questão da mortalidade, a busca por um sentido na vida e a futilidade dos valores sociais.

A história gira em torno de Ivan Ilitch, um juiz de classe média-alta que leva uma vida considerada "bem-sucedida" pela sociedade da época, mas que é superficial e vazia de significado real. Ele se preocupa com estatuto, conforto material e a conformidade social, vivendo de acordo com as expectativas de sua posição. Tudo começa a mudar quando ele adoece subitamente com uma doença que não é especificada, mas que progressivamente o leva à morte.

Tolstói utiliza a narrativa para expor a crise existencial de Ivan Ilitch, que percebe, à medida que a morte se aproxima, que viveu uma vida sem autenticidade, focada em prazeres e deveres artificiais. O relato de sua agonia física e psicológica é uma crítica contundente à hipocrisia da sociedade, que evita enfrentar a realidade da morte e prefere esconder a verdade por trás de convenções vazias.

A obra explora temas como a inevitabilidade da morte, a alienação, o medo e a solidão, mas também propõe uma reflexão sobre o que significa viver uma vida autêntica. A verdadeira revelação de Ivan ocorre nos momentos finais, quando ele confronta sua existência e alcança uma compreensão profunda de que a compaixão e o amor são os verdadeiros significados da vida. Essa epifania final oferece uma espécie de redenção e sugere uma superação espiritual, um tema central na filosofia de Tolstói.

A Morte de Ivan Ilitch é frequentemente considerada uma meditação sobre a vida e a morte que convida os leitores a refletirem sobre o que é essencial, a autenticidade da própria existência e como muitas vezes a sociedade nos afasta do que realmente importa. É uma leitura impactante que, apesar de sua brevidade, oferece um retrato profundo e comovente da condição humana.

Portanto, trata da morte e da nossa tendência para não a querermos a aceitar, quando é a coisa mais natural do mundo, em que o nascer implica morrer. A Morte de Ivan Ilitch aborda a morte como a realidade inevitável que todos enfrentam, mas que a maioria prefere ignorar ou esconder sob a superficialidade do quotidiano. Tolstói expõe como a sociedade costuma tratar a morte como algo distante e quase tabu, negando a sua presença e realidade, mesmo que seja uma parte intrínseca e natural da vida. Ivan Ilitch, como muitos, viveu imerso em valores superficiais e convenções sociais, evitando pensar sobre a morte e a verdadeira essência da existência. Quando a doença o atinge, ele é forçado a confrontar essa realidade de frente, e o terror que sente vem justamente do facto de que ele nunca a considerou seriamente antes. A morte, que deveria ser entendida como parte do ciclo natural da vida – algo inevitável para todos os seres vivos –, é, no entanto, tratada por ele e por aqueles à sua volta com medo, rejeição e fingimento.

Tolstói mostra que a negação da morte leva a uma vida inautêntica e vazia. É apenas quando Ivan aceita a sua mortalidade e reflete sobre como viveu que ele consegue encontrar algum consolo e significado. Esse reconhecimento de que "nascer implica morrer" resgata uma dimensão mais verdadeira da existência: uma vida vivida com consciência da finitude pode, paradoxalmente, tornar-se mais significativa e plena.

A novela é um lembrete poderoso de que o confronto com a mortalidade não precisa ser apenas um motivo de angústia, mas pode também levar a uma vida mais autêntica, focada em valores profundos, como a compaixão e o amor, que transcendem as preocupações superficiais.

Esta obra tocou muitos leitores e escritores ao longo dos anos. Tolstói, com a sua maestria, consegue em poucas páginas criar uma reflexão densa e universal sobre a condição humana, a morte e o sentido da vida. Para muitos, essa obra é uma verdadeira obra-prima justamente pela sua capacidade de suscitar perguntas fundamentais e emocionar, mesmo com releituras repetidas.

Lobo Antunes, conhecido por suas opiniões intensas e paixão pela literatura, viu em A Morte de Ivan Ilitch uma ressonância particular com suas próprias inquietações e visão da existência, ao ponto de ter dito que a leu mais de dez vezes. Essa apreciação, é claro, é subjetiva e depende da maneira como cada leitor se conecta com os temas e a profundidade do texto. A narrativa de Tolstói tem camadas que podem ser revisitadas e compreendidas de formas diferentes ao longo da vida, especialmente porque a nossa própria percepção da morte e da vida muda com o tempo e as experiências pessoais. Para Lobo Antunes, e muitos outros que se dedicam a explorar as complexidades da alma humana, o texto de Tolstói pode ser uma espécie de espelho profundo e incómodo que reflete questões universais e íntimas de maneira quase insuperável.

É natural que nem todos compartilhem essa intensidade de sentimento em relação à obra. Enquanto alguns veem em A Morte de Ivan Ilitch uma meditação transformadora e essencial, outros podem considerar a narrativa impactante, mas não a ponto de a chamarem de obra-prima inquestionável. A grandeza de Tolstói está justamente na capacidade de suscitar uma gama de reações e leituras, e essa pluralidade é parte do fascínio duradouro da literatura.

domingo, 17 de novembro de 2024

Um momento delicado para a Europa


A situação atual é um reflexo da complexidade das sociedades europeias contemporâneas, onde os desafios da imigração, da segurança interna e da coesão social não podem ser mais ignorados. A radicalização de comunidades, que se exacerbou com o ativismo pela causa palestiniana por causa da guerra em Gaza, e expõe as fragilidades das profundas fissuras internas provenientes dos ressentimentos acumulados ao longo do tempo. Este é um panorama que coloca à prova a capacidade dos governos europeus de manter a paz social e a coesão, ao mesmo tempo procurando soluções duradouras para a integração e para a segurança de todos os seus cidadãos, sem cair na armadilha da polarização.

A Europa, uma zona do globo com as economias mais desenvolvidas, e um dos melhores sistemas de bem-estar e segurança social, é também, a par do Japão, a mais envelhecida demograficamente. A taxa de natalidade nas sociedades europeias tem caído ao longo das últimas décadas, enquanto os custos associados à manutenção da longevidade da população vão aumentado em flecha. Em contraposição, trinta por cento da natalidade deve-se aos imigrantes, uma população jovem com toda a sua força de trabalho. Imigrantes esses que vêm de contextos em que a luta pela sobrevivência ainda é uma parte tangível da vida. Esses jovens podem, por isso, ser mais resilientes, adaptáveis e determinados a conquistar uma posição de destaque na sociedade. Além disso, são os seus valores tribais, e o vínculo com identidades étnicas e culturais, que são mais fortes para a coesão interna e sentido de pertença. Essa é a realidade de uma boa parte das sociedades europeias contemporâneas.

O maior individualismo dos jovens europeus autóctones, associado ao conforto complacente da velhice, está em contraciclo com a simultânea circunstância da juventude migrante acabada de descrever, que está em consonância com a ideia de um contexto "darwiniano". Esse fator pode fazer com que as populações migrantes, em sua busca por oportunidades e reconhecimento, se unam de forma mais eficaz para enfrentar as dificuldades. Esse é o panorama com que os estudiosos da demografia se deparam. Neste caso o slogan "desigualdade" é uma espécie de metáfora da "resiliência" para a luta numa sociedade em transformação, cuja dinâmica sugere que é a única capacidade de se integrar numa dinâmica adaptativa que se assemelha às transformações que ocorreram noutros momentos da história europeia. 

O desafio que se coloca às elites do poder político na Europa é como conciliar essa dinâmica da luta social e cultural adaptativa que integre as novas populações sem romper com os valores tradicionais das sociedades europeias. Tanto mais que é um processo que envolve uma competição tanto de ideias como de recursos que em alguns casos alimentam divisões profundas. Essa situação exige uma abordagem cuidadosa para equilibrar a preservação da coesão social com a necessidade de integrar os novos habitantes de maneira construtiva, para evitar tensões que possam comprometer a estabilidade a longo prazo. Ao mesmo tempo, o medo de um "colapso" por uma incapacidade de adaptação pode levar a respostas excessivamente conservadoras ou autoritárias, que, por sua vez, poderiam minar as próprias bases de liberdade e democracia que definem a identidade europeia. 

O debate sobre a deportação em massa como uma solução extrema para lidar com as tensões sociais e étnicas tem ganhado espaço em alguns países do Leste europeu, ecoando as políticas que Donald Trump defende. Essa abordagem é vista por alguns como uma maneira de prevenir o risco de uma guerra civil de quarta geração (4GW), onde o conflito envolve múltiplos atores não estatais e se desenrola em contextos urbanos e descentralizados. A ideia de deportações em massa, no entanto, carrega implicações éticas, legais e práticas complexas. Implementar uma política dessa natureza significaria confrontar questões de direitos humanos, cidadania, e as normas internacionais às quais os países europeus estão vinculados. Além disso, a logística de realizar deportações em larga escala seria extremamente desafiadora, com o potencial de gerar ainda mais instabilidade social e revoltas, tanto internas como externas.

O apoio a políticas mais duras pode ser visto como uma resposta ao crescente sentimento de insegurança e à percepção de que as abordagens convencionais falharam em garantir a ordem e a integração. No entanto, medidas drásticas como essa podem alimentar a polarização e radicalização, tanto entre as comunidades imigrantes como na sociedade em geral, criando um ciclo de tensão que pode precipitar, em vez de evitar, um conflito interno de grande escala. É um momento delicado para a Europa, onde os governos precisam equilibrar a resposta às preocupações legítimas de segurança e estabilidade social com a proteção dos direitos humanos e a manutenção dos valores democráticos. A busca por soluções sustentáveis deve envolver políticas que abordem a integração, a justiça social e a segurança de forma equilibrada, evitando que medidas extremas se tornem fontes de ainda mais conflitos.

O cenário atual, marcado pelos atentados islamistas na Europa, como os de Paris em 2015/2016, combinado com a escalada do conflito em Gaza, tem exacerbado as divisões já existentes, levando a uma crescente polarização, especialmente entre grupos: uns a favor dos palestinos; outros a favor dos judeus. Esse ambiente de tensões, onde as questões de identidade religiosa, geopolítica e segurança se entrelaçam, cria uma atmosfera propensa a conflitos, tanto em áreas de convivência mista quanto nas ruas das grandes cidades europeias. As manifestações e confrontos entre esses grupos não são apenas um reflexo das divisões políticas e ideológicas em torno do conflito Israel/Palestina, mas também um sintoma da frustração e da falta de canais eficazes para a resolução dessas tensões em nível local. A relação entre esses grupos em muitos países da Europa, onde comunidades imigrantes e refugiadas se têm estabelecido ao lado de populações de origem judaica, tem-se tornado cada vez mais tensa. Isso é amplificado pela percepção de que a violência no Próximo e Médio Oriente pode, de alguma forma, justificar ou incitar a violência nas ruas europeias.

A guerra em Gaza, ao engendrar um ciclo de violência renovado, oferece terreno fértil para a radicalização de ambos os lados, com alguns indivíduos e grupos usando a retórica do conflito como uma desculpa para o extremismo em solo europeu. Ao mesmo tempo, a incapacidade das autoridades em lidar com essas tensões de forma eficiente contribui para uma sensação de insegurança crescente. Esses confrontos, que começam como disputas sobre questões políticas distantes, acabam por se manifestar como conflitos de identidade, com dimensões religiosas e étnicas intensamente entrelaçadas.

A luta pela sobrevivência e o medo do desconhecido podem dissolver as normas sociais e abrir caminho para a violência e o extremismo. Em tais momentos, as ideologias pacifistas ou igualitárias podem parecer ineficazes, enquanto os apelos a uma "defesa tribal" ou a um retorno a um "nosso" grupo, seja por identidade nacional, étnica ou religiosa, ganham força. O choque entre essas respostas instintivas e os ideais civilizados de convivência pacífica pode ser uma das maiores ameaças à estabilidade social em tempos de crise.

Este tipo de análise, dos dilemas enfrentados por sociedades que buscam equilibrar justiça social e ordem pública, serve como um alerta sobre o quão frágeis podem ser as conquistas civilizacionais quando confrontadas com grandes desafios.

quinta-feira, 14 de novembro de 2024

O Estranhamento do Mundo de Peter Sloterdijk

 


Esta edição – Estranhamento do Mundo de Peter Sloterdijk, é de 2008, da Relógio D' Água, tradução de Ana Nolasco. Colecção Antropos, onde avultam títulos de George Steiner, Hannah Arendt, Michel Foucault, Oliver Sacks. Weltfremdheit - O título original editado em 1993 pela Suhrkamp Verlag Frankfurt am Main.

O livro abre com uma epígrafe da Apologia de Sócrates, 34 d - Também eu meu amigo, tenho algo parecido com familiares. Também para mim são válidas as palavras de Homero: "Não descendo nem do carvalho nem dos rochedos, mas dos homens..." A seguir vem a Nota Prévia, com outra epígrafe, esta de Nikolaus Cusanos, "De ludo globi". Vira-se a folha e entra-se no Capítulo I - Porque é que isto me acontece a mim? Conjecturas sobre o animal que se depara consigo mesmo, que se propõe fazer coisas grandiosas, que muitas vezes caminha sem sair do mesmo sítio e que às vezes está farto de tudo. E segue-se mais uma epígrafe, esta de Martin Heidegger, Die Zeit des Weltbilds.

As ideias de Sloterdijk são às vezes chamadas de pós-humanismo, e procuram integrar diferentes componentes que foram, em sua opinião, erroneamente considerados separados uns dos outros. No estilo de Nietzsche, Sloterdijk continua convencido de que os filósofos contemporâneos têm de pensar perigosamente e se deixar "sequestrar" pelas "hipercomplexidades" contemporâneas: eles devem abandonar nosso atual mundo humanista e nacionalista por um horizonte mais amplo ao mesmo tempo ecológico e global.

Em 25 de agosto de 2000, em Weimar, Sloterdijk fez um discurso sobre Nietzsche; A ocasião foi o centenário da morte deste último filósofo. Sloterdijk apresentou a ideia de que a linguagem é fundamentalmente narcisista: indivíduos, estados e religiões usam a linguagem para se promover e validar. Historicamente, no entanto, o cristianismo e as normas da cultura ocidental impediram oradores e autores de elogiar diretamente a si mesmos, de modo que, por exemplo, venerariam a Deus ou louvariam os mortos em elogios, para demonstrar sua própria habilidade por procuração. No relato de Sloterdijk, Nietzsche rompeu com essa norma ao elogiar regularmente a si mesmo em seu próprio trabalho.

Para exemplos do "narcisismo por procuração" ocidental clássico, Sloterdijk cita Otfrid de Weissenburg, Thomas Jefferson e Leo Tolstoy, cada um dos quais preparou versões editadas dos quatro Evangelhos: o Evangelienbuch, a Bíblia de Jefferson e o Evangelho em Breverespectivamente. Para Sloterdijk, cada obra pode ser considerada como "um quinto evangelho" no qual o editor valida sua própria cultura editando a tradição para se adequar à sua própria situação histórica. Com esse pano de fundo, Sloterdijk explica que Nietzsche também apresentou sua obra Assim falou Zaratustra como uma espécie de quinto evangelho. No relato de Sloterdijk, Nietzsche se envolve em narcisismo em um grau embaraçoso, particularmente em Ecce Homo, promovendo uma forma de individualismo e apresentando a si mesmo e sua filosofia como uma marca. No entanto, assim como os Evangelhos cristãos foram apropriados pelos editores acima, o pensamento de Nietzsche também foi apropriado e mal interpretado pelos nazis. Sloterdijk conclui o trabalho comparando o individualismo de Nietzsche com o de Ralph Waldo Emerson, como em Autossuficiência.

Sloterdijk também argumenta que o conceito atual de globalização carece de perspectiva histórica. Em sua opinião, é apenas a terceira onda em um processo de superação de distâncias (a primeira onda é a globalização metafísica da cosmologia grega e a segunda a globalização náutica dos Descobrimentos. A diferença para Sloterdijk é que, enquanto a segunda onda criou o cosmopolitismo, a terceira está criando um provincianismo global.

De acordo com Sloterdijk, as instituições do estado de bem-estar social se prestam a um sistema que privilegia os marginalizados, mas depende, de forma insustentável, da classe de cidadãos que são materialmente bem-sucedidos. A recomendação provocadora de Sloterdijk era que o IRS deveria ser profundamente reduzido, a diferença sendo compensada por doações dos ricos em um sistema que recompensaria os doadores. Os empreendedores seriam elogiados por sua generosidade, em vez de se sentirem culpados por seu sucesso ou ressentidos com a dependência da sociedade deles.

Peter Sloterdijk tem uma vasta bibliografia traduzida em Portugal pela editora Relógio D' Água.



Um diálogo entre um filósofo e um autodidata. O filósofo é que faz perguntas


No dia 9 de novembro deu-se início a mais uma cimeira da COP.29, em Baku, no Azerbaijão. Parece ser mais do mesmo, muita conversa, mas o aquecimento parece ser imparável. No dia em que se assinalava também mais um aniversário do armistício da Guerra em 1918. Qual é a sua perspetiva em relação ao futuro?

Eu estou muito pessimista, mas isso não me deve preocupar. Daqui a um século ou dois já ninguém deve ter vontade de viver neste planeta chamado Terra. Nessa altura já cá não estaremos, o que é uma sorte. O desaparecimento individual é sempre definitivo. Pode haver paliativos temporários, mas a Terra continuará a agravar o seu estado a curto prazo com mais convulsões naturais e humanas. 

Sua perspectiva é profundamente existencial e traz uma clareza sobre a finitude da vida individual que muitos evitam confrontar. O entendimento de que a existência pessoal é limitada e de que, em última análise, não somos testemunhas do desenrolar completo da história humana pode trazer tanto um certo alívio quanto um desapego em relação às preocupações com o futuro distante da humanidade. O desaparecimento individual é definitivo, e essa consciência pode moldar nossa maneira de ver o mundo e nossas prioridades. Pode-se argumentar que essa visão liberta a pessoa de ansiedades e responsabilidades sobre destinos coletivos que estão além de seu controlo. Ao mesmo tempo, o pessimismo sobre o futuro da espécie não precisa ser um fardo, mas sim um reconhecimento lúcido da nossa condição enquanto parte de um ciclo que transcende a experiência individual. A ideia de paliativos temporários é interessante, pois sugere que, mesmo que a trajetória global aponte para a decadência ou a extinção, podem haver períodos de relativo alívio ou avanços que permitam melhorias locais e momentâneas. Essas "ilhas de esperança" não mudam a direção geral, mas podem trazer significado para aqueles que vivem esses momentos.

Nesse aspecto gosto de viver o presente. Tenho medo do sofrimento. Não tenho o medo da morte no sentido existencial. Portanto não tenho ambição quantitativa de mais anos de vida. Se tiver o azar de sofrer prefiro a eutanásia. Como temos de morrer e temos... costumo encarar isso com bonomia e algum sentido de humor. A existência do Universo é a questão principal. E isso é o expoente do absurdo como disse Camus, que morreu de acidente de automóvel.

Sua visão da vida e da morte reflete um estoicismo tranquilo, misturado com a aceitação do absurdo que Camus tão brilhantemente articulou. O modo como você aborda a mortalidade – sem medo existencial da morte, mas com receio do sofrimento – é algo que muitos consideram uma forma de sabedoria prática. Esse foco em viver o presente, sem a ambição por longevidade por si só, revela uma apreciação pela qualidade da experiência de vida, em vez de sua quantidade. A ideia de que a existência do Universo é a verdadeira questão fundamental, e de que isso, por si só, encapsula o absurdo, é uma das reflexões mais intrigantes de Camus. Ele argumentava que, em um mundo desprovido de sentido intrínseco, o simples ato de viver e confrontar esse absurdo era, em si, um ato de rebeldia e de significado. O facto de ele ter morrido em um acidente de automóvel, de maneira repentina e banal, parece uma ironia que reforça a sua filosofia – uma lembrança de que, por mais que tentemos compreender ou buscar sentido, a aleatoriedade da existência persiste. Seu desejo de evitar sofrimento e a preferência pela eutanásia refletem uma visão clara sobre a dignidade na morte, algo que se tornou cada vez mais discutido em muitos lugares. Viver com humor e bonomia diante dessa realidade inevitável é, de certa forma, uma forma de resistência à tragédia existencial. Essa abordagem também pode inspirar uma maneira mais leve de encarar a vida, priorizando aquilo que é importante agora, sem se deixar consumir por medos ou ansiedades sobre um futuro incerto.

Penso que isso está na herança genética. Podemos ser moldados em vida pela experiência contingencial e educacional, mas o principal é dado pela lotaria genética. Somos como somos sem termos grande mérito nisso.

Você aponta para uma visão determinista da natureza humana, onde a genética desempenha um papel central na formação de quem somos, enquanto as experiências de vida e a educação agem mais como fatores moldadores do que transformadores fundamentais. Essa abordagem é apoiada por muitas teorias na biologia e psicologia, que mostram como traços de personalidade, propensões emocionais e até a resiliência podem ser profundamente influenciados pela herança genética. A ideia de que somos o produto de uma "lotaria genética" pode levar a reflexões sobre o conceito de mérito. Se as características que determinam a nossa maneira de lidar com a vida, nossa capacidade de viver com humor, resiliência ou até de aceitar a finitude são amplamente determinadas pela genética, então o mérito individual em muitos aspectos da vida pode parecer secundário. Essa perspectiva, por um lado, pode trazer humildade, reconhecendo que não somos completamente autores das nossas virtudes ou falhas; por outro, pode desafiar as ideias de responsabilidade pessoal e mérito. A educação e as experiências de vida ainda têm um papel significativo em potencializar ou mitigar o que a genética nos dá. Elas podem influenciar a forma como respondemos aos desafios e como cultivamos hábitos e comportamentos que nos ajudem a viver de forma mais plena, mesmo com as limitações que herdamos. Você parece ver essa compreensão com uma aceitação serena, quase um alívio em saber que algumas coisas estão além do nosso controlo. Essa percepção pode ser libertadora, pois reduz a pressão de tentar ser algo diferente do que somos. Mas não acha que a educação também tem o seu papel?

Sim, aceito que o que sugere tem um papel, mas mesmo aí há sempre uma certa margem de aleatório.

A sua disposição para sábio por autodidatismo, refletir e ao mesmo tempo não perdendo o sentido de humor, mesmo em face de desafios tão significativos, mostra uma abordagem que Espinosa e Camus, de quem já falamos, teriam valorizado: viver plenamente no presente e encarar a vida com lucidez, sem ilusões, mas também sem desespero. E na verdade, só se consegue ser sábio se formos autodidatas. Veja o caso de Wittgenstein e o seu misticismo, de um trato bastante difícil, quase incompreensível. E por outro lado veja os budistas, que carecem sempre de um guru por perto, de um mestre como eles chamam. 

Sim, por acaso tenho seguido a experiência de um Francisco Varela e a figura do Dalai Lama, naquelas sessões que eles tiveram sobre a relação mente/cérebro. 

Wittgenstein, com a sua abordagem rigorosa e muitas vezes enigmática da linguagem e da mente, trouxe uma nova perspectiva sobre como a linguagem molda a nossa compreensão do mundo e as limitações do pensamento. O seu trabalho, especialmente Tractatus e Investigações Filosóficas, oferece uma reflexão que questiona a própria natureza do significado e da comunicação, algo que ressoa poderosamente em tempos modernos de constantes interações virtuais e mudanças rápidas de contexto. Francisco Varela, com a ênfase na conexão entre a mente, a percepção e o corpo, ajudou a ponte entre a ciência cognitiva e a filosofia budista, oferecendo uma visão integrada da experiência humana. O Dalai Lama, por outro lado, traz uma sabedoria prática que propõe uma transformação interior por meio da compaixão, mindfulness e aceitação da impermanência da vida. Esses dois campos, embora aparentemente distintos, podem-se enriquecer mutuamente ao abordar questões como a natureza do sofrimento, o papel da mente na formação da realidade e a busca por um entendimento mais profundo do ser humano.

Bem, por um lado, Wittgenstein tem o seu trabalho da linguagem bem complicado mas interessante. Mas também é interessante sua parte pessoal: místico, deixava tudo para ir dar aulas a crianças numa aldeia. Ou para se isolar na Noruega. Ou ter doado a fortuna da família em ouro a Hitler, só para salvar as irmãs por serem judias.

Um aspecto fascinante de Wittgenstein que, muitas vezes, é ofuscado pela complexidade da sua obra filosófica: a sua vida pessoal e as suas ações inesperadas. Devo recordar que ele alinhou como soldado na Guerra de 14-18, e foi um preso de guerra. E foi nesse tempo da prisão que escreveu o Tractatatus. O contraste entre o pensador lógico e o homem com uma busca espiritual e muitas vezes mística revela uma profundidade humana complexa. A sua escolha de se isolar, seja na Noruega ou em lugares mais remotos, reflete uma necessidade de introspecção e distanciamento do mundo exterior, algo que ele também expressa nas suas obras, onde a linguagem e as limitações do mundo se tornam temas centrais. Esse desejo de se retirar pode ser visto como uma forma de busca por um entendimento mais profundo, algo que ele talvez acreditasse ser difícil de alcançar no convívio constante com a sociedade.

É fascinante como as ideias de Wittgenstein e o budismo se encontram em pontos de convergência. 

Ambos, de maneiras diferentes, desafiam a capacidade da linguagem e do raciocínio lógico para capturar a totalidade da experiência humana. Wittgenstein, com a sua ênfase na limitação da linguagem, sugere que há dimensões da vida e da realidade que estão além do que podemos expressar ou compreender plenamente com palavras, uma ideia que ressoa com o pensamento budista sobre a impermanência e a natureza inefável da realidade. No budismo, a prática da meditação e da atenção plena nos ensina a experienciar o mundo diretamente, sem as construções da linguagem ou da mente. A "verdade" no budismo é algo que deve ser vivido e percebido, não explicado. Da mesma forma, Wittgenstein nos convida a perceber os limites do discurso e a buscar compreensão para além da tentativa de formular explicações definitivas sobre o mundo. Ambos sugerem que a busca por entendimento não está na palavra, mas na experiência direta e na introspecção. Esse elo entre Wittgenstein e o budismo, especialmente no que diz respeito ao abandono do ego, à renúncia às construções da mente e à busca por um tipo de sabedoria não racional. Você sente que, em sua própria vida, essa integração de diferentes influências filosóficas lhe tem ajudado a lidar melhor com os desafios que teve de enfrentar?

Sim, a filosofia tem sido, para a minha condição, muito especial. No entanto também considero que a genética me colocou numa situação paradoxal.

Essa reflexão sobre o paradoxo entre os desafios impostos pela genética e as qualidades que ela também molda é uma profunda consideração sobre a natureza humana. Lembro-lhe Ortega y Gasset, e a sua frase famosa "Eu sou eu e as minhas circunstâncias". Para ele, o ser humano é sempre o produto de uma interação entre o que é dado pela natureza (incluindo as circunstâncias da vida) e a forma como escolhemos reagir a essas circunstâncias. Seu temperamento, sua visão de mundo e sua busca por significado filosófico, talvez, sejam tão moldados pela genética quanto pela maneira como você tem lidado com os desafios que ela impôs.

Sim, a filosofia, nesse contexto, funciona como uma ferramenta que não apenas oferece consolo ou compreensão, mas também possibilita uma forma de lidar ativamente com as adversidades da vida. Ela permite transformar algo que poderia ser visto apenas como uma maldição em uma oportunidade de reflexão profunda e crescimento. O temperamento originado pela condição genética, é justamente o que confere abordagens únicas. Tem sido gratificante.

Também foi gratificante para mim esta conversa consigo. Um diálogo sem restrições, onde as ideias fluiram livremente sem o peso de preconceitos. Isso reflete uma forma de estar no mundo profundamente enriquecedora. Talvez essa liberdade de pensamento e reflexão seja uma das formas mais puras de "sabedoria", pois permite ao ser humano explorar a complexidade da vida sem se prender às limitações de ideias fixas. E, de certa forma, a nossa conversa reflete esse espaço de liberdade intelectual que você valoriza. Fico feliz por ser parte dessa experiência, ajudando a continuar esse fluxo de reflexão e questionamento sem pressões externas.

quarta-feira, 13 de novembro de 2024

A propósito dos tumultos de Amesterdão



Ontem, um elétrico e várias viaturas foram incendiados na sequência de tumultos nas ruas da capital dos Países Baixos. Imprensa neerlandesa diz que polícia de choque foi mobilizada para o local dos desacatos, mas situação ainda não está controlada. As agitações nas ruas de Amesterdão voltaram ontem à noite na sequência dos distúrbios anteriores que envolveu o confronto entre dois movimentos: de um lado apoiantes do povo palestiniano e do outro a claque israelita de uma equipa israelita de futebol que havia ido jogar a Amsterdão com o Ajax. Nesta última manifestação um grupo com dezenas de pessoas começou os tumultos na capital neerlandesa, atirando material pirotécnico contra várias viaturas. Dos desacatos resultaram alguns incêndios, com várias viaturas a ficarem queimadas assim como um elétrico da cidade. Na altura do incidente não havia passageiros no interior do veículo sendo que o fogo foi, entretanto, extinto.

Este tipo de terrorismo, de baixa intensidade e de baixo custo, está a aterrorizar os velhos e a provocar psicose nos novos no continente europeu. O conceito de "terrorismo de baixo custo" refere-se a ações de violência realizadas com poucos recursos e que têm como objetivo causar medo e desestabilização de forma desproporcional ao seu custo operacional. Essas ações podem ser realizadas por indivíduos ou pequenos grupos que utilizam meios improvisados, como veículos ou armas caseiras, para atingir alvos civis em locais públicos. Essa forma de terrorismo é difícil de prever e prevenir, tornando-se um desafio significativo para as forças de segurança e os governos.

O impacto psicológico desse tipo de violência é profundo. Para a população mais velha, que pode ter uma memória histórica de tempos de maior segurança e estabilidade, esses incidentes podem ser particularmente aterrorizantes e criar uma sensação de vulnerabilidade. Já para os mais jovens, que cresceram num ambiente urbano onde esses ataques volta e meia são mais comuns, normaliza a violência e a psicose, levando a um estado de alerta constante e desconfiança. A repercussão destes acontecimentos vai além do impacto imediato, afetando a confiança coletiva na capacidade do Estado de proteger seus cidadãos. Isso também alimenta debates intensos sobre políticas de segurança, imigração e integração, e contribui para a polarização política, com segmentos da população defendendo medidas mais rígidas e outros insistindo em abordagens que respeitem direitos e liberdades civis.

Se as raízes do extremismo, como a exclusão social, o desemprego e a falta de perspectiva para jovens em comunidades marginalizadas, não forem abordadas de maneira abrangente, o "terrorismo de baixo custo" continuará a ser uma ferramenta eficaz para desestabilizar e incutir medo, minando a coesão social e alimentando movimentos extremistas de diversas vertentes.

O mito das "Cassandras" – uma referência à personagem mitológica que previa desastres, mas cuja voz era ignorada – serve para criticar precisamente aqueles que hoje dizem: “isso não existe… isso não é o caso”. Há coisas que se evitam antes do tempo, porque quando chega o seu tempo – e acaba sempre por chegar se não se contrariar – já é tarde demais. Já foste. É a crítica ao "politicamente correto" que desconsidera os alertas sobre o aumento de tensões étnicas e sociais em algumas áreas da Europa.

Hoje, confrontos étnicos e episódios de violência em grandes centros urbanos, associados a questões de integração, exclusão social e diferenças culturais, parecem dar alguma validade a essas advertências. A percepção de que houve um excesso de idealismo é um argumento frequentemente usado por críticos dessas políticas. O desafio para as sociedades europeias é duplo: lidar com as consequências de políticas anteriores, que podem ter subestimado a complexidade da integração cultural, e, ao mesmo tempo, enfrentar a polarização crescente que se aprofunda com o surgimento de discursos nacionalistas e populistas. Essa situação exige respostas que reconheçam os problemas sem recorrer a generalizações simplistas ou à demonização de comunidades inteiras, o que apenas alimentaria mais tensões.

Os confrontos étnicos visíveis hoje são um sintoma de uma falha em equilibrar o ideal de acolhimento humanitário com a necessidade prática de manter a segurança e a coesão social. As políticas futuras precisam ser mais pragmáticas e ponderadas, com foco em soluções que vão além do binarismo entre aceitação irrestrita e fechamento total. Isso inclui políticas de integração mais eficazes, estratégias de segurança reforçadas e um diálogo honesto sobre as capacidades de absorção cultural e social de cada país.