sexta-feira, 26 de julho de 2024

Os Identitários




A Nova Direita Identitária é um termo utilizado para descrever um conjunto de movimentos políticos contemporâneos que emergiram no final do século XX e início do século XXI, geralmente caracterizados por sua oposição ao status quo político e social estabelecido. Embora suas características variem conforme o contexto nacional, alguns traços comuns podem ser observados: nacionalismo e populismo; ceticismo em relação à globalização; posturas conservadoras; críticas ao multiculturalismo; manipulação da informação nas redes sociais.

A Nova Direita frequentemente enfatiza o nacionalismo e adota uma retórica populista, opondo-se às elites políticas e defendendo os interesses do "povo comum". Há uma forte crítica à globalização económica e cultural, que é vista como prejudicial às identidades e economias nacionais. A Nova Direita promove valores conservadores em questões sociais, como a religião e a família tradicional. A Nova Direita tende a se opor ao multiculturalismo, argumentando que ele enfraquece a coesão social e a identidade nacional. Esses movimentos utilizam extensivamente as redes sociais para mobilização, divulgação de suas ideias e combate ao que chamam de mainstream.

Recentemente, na sequência das últimas eleições para o Parlamento Europeu, a extrema-direita reagrupou-se de uma nova forma com o Patriotas pela Europa - passando a constutuir o teceiro maior agrupamento da 10ª Legislatura do Parlamento Europeu. É um grupo político populista de direita e soberanista, que foi anunciado numa conferência de imprensa em Viena, em 30 de junho de 2024 pelo primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán (Fidesz), pelo antigo primeiro-ministro checo Andrej Babiš, e o ex-ministro do Interior da Áustria, Herbert Kickl e pelo eurodeputado Harald Vilimsky (ambos do Partido da Liberdade da Áustria). O grupo inclui quase todos os ex-membros do Partido Europeu Identidade e Democracia.

Exemplo de outros partidos que se podem incluir sob o guarda-chuva da Nova Direita, que são também designados pelo termo “Identitários”, incluem o atual Rassemblement National na França, a Liga na Itália, o Partido da Independência do Reino Unido (UKIP) e o movimento MAGA nos Estados Unidos, associado a Donald Trump. Esses grupos têm ganhado influência política significativa, refletindo uma reação às mudanças sociais e económicas dos últimos anos. Por conseguinte, os Identitários são um movimento político que faz parte da Nova Direita, com raízes na Europa, particularmente na França, onde surgiu o movimento Génération Identitaire. Eles são conhecidos por suas posições em defesa da identidade étnica e cultural europeia, pela oposição à imigração em massa, e oposição ao multiculturalismo. As principais características dos Identitários incluem: Defesa da Identidade Étnica e Cultural; Anti-Islamismo; Nacionalismo; Rejeição ao Multiculturalismo; Ações Militantes e Simbólicas; Uso Eficaz das Redes Sociais.

Os Identitários promovem a preservação das identidades culturais e étnicas dos povos europeus, argumentando que a imigração em massa ameaça essas identidades. Frequentemente se opõem ao islamismo, vendo-o como uma ameaça à cultura e valores europeus. Advogam por políticas nacionalistas que enfatizam a soberania nacional e a preservação das culturas nacionais. Criticam o multiculturalismo como uma ideologia que dilui as identidades culturais e étnicas, promovendo a assimilação de imigrantes ao invés da integração harmoniosa. Os Identitários realizam protestos simbólicos e campanhas mediáticas para chamar a atenção para as suas causas. Por exemplo, ocupações de mesquitas ou bloqueios de fronteiras para protestar contra a imigração. Assim como outros grupos da Nova Direita, os Identitários utilizam as redes sociais para organizar eventos, disseminar sua mensagem e recrutar novos membros. O movimento Identitário
espalhou-se para outros países europeus e, em menor medida, para outras partes do mundo, adaptando suas mensagens ao contexto local. Eles atraem principalmente jovens que estão insatisfeitos com o status quo político buscando uma identidade clara e um forte sentido de pertença.

Nova Direita busca oferecer uma alternativa ao liberalismo e ao socialismo tradicionais, propondo uma visão de mundo baseada na preservação das identidades culturais e na crítica às forças uniformizadoras da modernidade e da globalização. Há algumas áreas de coincidência entre as ideias da Nova Direita e as "posições defendidas por alguns dos Partidos Comunistas europeus contemporâneos". No entanto não se devem confundir as suas motivações e fundamentos ideológicos. Tanto a Nova Direita como muitos Partidos Comunistas criticam a globalização económica e o neoliberalismo. Ambos veem a globalização como um fenómeno que favorece grandes corporações e elites financeiras à custa dos trabalhadores e das comunidades locais. É comum a crítica ao poder das multinacionais e à destruição das economias locais. Ambos defendem a soberania nacional. 

Os partidos comunistas frequentemente argumentam que a soberania nacional é essencial para proteger os trabalhadores. A proteção das identidades culturais e a resistência à hegemonia cultural do capitalismo fast food norte-americano é essencial. Portanto, Nova Direita e Partidos Comunistas são críticos do liberalismo político e económico. Existe uma valorização das comunidades locais e da descentralização do poder, mas enquanto para a Nova Direita isso está ligado à preservação das culturas locais, para os partidos comunistas a questão está na organização das bases e no empoderamento dos trabalhadores. No entanto, é importante destacar que essas coincidências são mais superficiais do que profundas. As bases ideológicas e os objetivos finais dos dois grupos são bastante divergentes nas suas bases ideológicas e nos seus objetivos finais. 

Por outro lado, não devemos confundir os Partidos Comunistas com o partido de Jean-Luc Mélenchon - La France Insoumise. Este uma posição política distinta que pode ser interpretada de várias maneiras, mas é importante destacar alguns pontos para uma compreensão precisa. Embora La France Insoumise tenha elementos antiautoritários e críticas à centralização do poder, eles não se identificam como anarquistas. O movimento busca uma transformação democrática e social dentro do sistema, ao invés de uma abolição total do Estado, como os anarquistas tradicionalmente defendem. Mélenchon e seu partido promovem a ideia de uma "Revolução Cidadã", que envolve formas mais participativas e diretas de democracia. Isso inclui referendos, assembleias populares e maior poder de decisão para os cidadãos, mas ainda dentro de um quadro institucional. 

Há críticas e controvérsias associadas a alguns membros do partido e suas declarações sobre Israel e o sionismo, que alguns críticos interpretam como antissemitas. Mélenchon e seu partido argumentam que suas críticas são direcionadas à política do Estado de Israel e não aos judeus como grupo religioso ou étnico. La France Insoumise apoia os direitos dos palestinos e critica as políticas do governo de Benjamin Netanyahu. Isso tem levado a tensões com grupos pró-Israel, mas eles insistem que essa posição é uma questão de direitos humanos e justiça internacional. 

O partido de Mélenchon é geralmente classificado como de esquerda radical, com uma plataforma que inclui redistribuição de renda, proteção ambiental, redução da jornada de trabalho, aumento dos direitos dos trabalhadores e reforma das instituições democráticas. Mélenchon é crítico das políticas neoliberais da União Europeia, mas não é um nacionalista no sentido tradicional. Ele advoga por uma Europa dos povos e por políticas que devolvam a soberania aos estados-membros sem romper completamente com a UE. La France Insoumise é um partido complexo, com influências de várias tradições da esquerda, incluindo o socialismo democrático e o ecossocialismo. A sua postura contra o antissemitismo é clara, embora as suas críticas a Israel possam ser controversas. Sua ênfase em formas participativas de democracia distingue-se do anarquismo clássico, posicionando-se mais como uma força reformista radical dentro do sistema democrático.

Nova Direita frequentemente vê o Islão como uma ameaça à identidade cultural e aos valores europeus. Essa crítica se manifesta tanto em termos culturais como políticos, com uma forte oposição à imigração muçulmana. Muitos na Nova Direita consideram o islamismo um inimigo civilizacional que deve ser combatido para preservar a cultura e os valores ocidentais. Essa visão é frequentemente articulada em termos de um choque de civilizações. Ao passo que os partidos comunistas europeus, de modo geral, tendem a adotar uma posição neutra ou até de apoio em relação ao Islão e aos muçulmanos, especialmente no contexto da imigração. Os comunistas veem os trabalhadores muçulmanos como parte do proletariado global, que se deve unir na luta contra o capitalismo. Assim, os comunistas enfatizam a solidariedade de classe acima das divisões religiosas e culturais. Os partidos comunistas geralmente se posicionam contra qualquer forma de discriminação religiosa e racial, opõem-se à islamofobia, vendo isso como uma estratégia das elites para dividir a classe trabalhadora.

 A Nova Direita é movida por uma preocupação com a preservação da identidade cultural e étnica, enquanto os comunistas se focam nas lutas económicas e sociais, com menos ênfase nas identidades culturais e religiosas. É nacionalista, preocupada com a soberania nacional e a identidade cultural específica, enquanto os comunistas são internacionalistas, preocupados com a união dos trabalhadores de todas as nações contra o capitalismo. A Nova Direita frequentemente advoga por políticas de imigração restritivas, especialmente em relação a imigrantes muçulmanos, enquanto os partidos comunistas geralmente defendem políticas de imigração mais abertas e a proteção dos direitos dos imigrantes. O discurso da Nova Direita tende a incluir retórica anti-islâmica, enquanto os partidos comunistas se focam em temas de justiça social e económica, evitando ou condenando retóricas que possam ser vistas como islamofóbicas. Essas diferenças refletem as distintas prioridades e fundamentos ideológicos de cada grupo, apesar de algumas coincidências superficiais em suas críticas à globalização e ao neoliberalismo.

Alain de Benoist é um filósofo e escritor francês, frequentemente associado à Nouvelle Droite (Nova Direita na França). Suas ideias são complexas e abrangem várias áreas da política, filosofia e cultura. Algumas das principais ideias de Alain de Benoist incluem: Crítica à Modernidade e ao Liberalismo; Identidade e Comunidade; Crítica à Globalização. Benoist é crítico da modernidade, especialmente do liberalismo económico e político, que ele vê como promotores de uma cultura homogénea e consumista que destrói as identidades culturais. Ele argumenta que o liberalismo leva à atomização social, à perda de coesão comunitária e à dominação do mercado sobre todas as esferas da vida. Benoist defende a importância das identidades culturais e étnicas, argumentando que a diversidade cultural é uma riqueza que deve ser preservada. Promove uma visão comunitarista da sociedade, onde as comunidades locais e regionais têm um papel central na vida social e política. É um crítico feroz da globalização, que considera uma força destrutiva para as culturas locais e a soberania nacional. A globalização, na visão de Benoist, promove um mundo unidimensional dominado por valores mercantilistas e pela hegemonia cultural ocidental, especialmente americana. 


Benoist opõe-se ao multiculturalismo de Estado e à imigração em massa, argumentando que eles ameaçam a coesão social e a identidade cultural dos países europeus. Defende políticas que promovam a integração dos imigrantes nas culturas locais em vez de promover a coexistência de múltiplas culturas dentro de um mesmo território. Mostra interesse em reviver tradições pagãs e pré-cristãs da Europa, como uma forma de resistir ao que ele vê como a homogeneização cultural imposta pelo cristianismo e pela modernidade. Advoga por uma sociedade secular onde a religião não domine a esfera pública, mas as tradições culturais podem ser celebradas e mantidas. Propõe a substituição da democracia representativa por formas de democracia direta e participativa, onde os cidadãos têm um papel mais ativo na tomada de decisões. Benoist também defende um federalismo integral, onde as regiões têm maior autonomia e poder em relação ao governo central, permitindo uma governança mais próxima das necessidades e desejos das comunidades locais.

Alain de Benoist baseia as suas ideias em um conjunto de valores culturais e identitários que rejeitam o igualitarismo universalista. Ele é fortemente influenciado pelo comunitarismo e pelo paganismo europeu. Os partidos comunistas, por outro lado, são fundamentados no marxismo, que promove o internacionalismo proletário, a abolição das classes sociais e a luta contra o capitalismo. Benoist visa a preservação das identidades culturais europeias e a resistência à homogeneização cultural. Os comunistas buscam a revolução socialista, a abolição da propriedade privada dos meios de produção, e a construção de uma sociedade sem classes. Embora haja pontos de interseção nas críticas à globalização e ao neoliberalismo, as diferenças fundamentais em termos de ideologia e objetivos fazem com que as semelhanças entre Alain de Benoist e os partidos comunistas europeus sejam limitadas e contextuais. Por isso também há diferenças significativas entre a Nova Direita, representada por figuras como Alain de Benoist, e os partidos comunistas europeus.

Guillaume Faye foi um escritor e teórico francês conhecido por suas ideias e publicações sobre temas como identidade europeia, etnopluralismo, e o futuro da Europa. Nascido em 7 de novembro de 1949 e falecido em 6 de março de 2019, Faye foi uma figura controversa associada a movimentos da Nova Direita europeia e fundador da Nouvelle Droite na França.

Um cartaz polaco contra o multiculturalismo, citando Guillaume Faye e seu conceito de "etnomasoquismo".

Faye defendia a preservação da identidade cultural e étnica europeia contra o que ele via como ameaças, incluindo imigração em massa e globalização. Ele promoveu a ideia de etnopluralismo, que sugere que diferentes grupos étnicos e culturais devem ser preservados, mas que devem viver separados para evitar conflitos e preservar suas respetivas identidades. Faye alertou sobre o que ele chamava de "islamização" da Europa, afirmando que a imigração de países muçulmanos poderia transformar significativamente a demografia e a cultura europeias. Entre suas obras mais conhecidas estão "L'Archéofuturisme" (1998) e "La Colonisation de l'Europe" (2000), nas quais expõe suas visões sobre o futuro da Europa e os desafios que ela enfrenta. Faye foi uma figura polarizadora, acusado por críticos de promover ideias racistas e xenófobas. Seus seguidores, no entanto, o consideram um pensador visionário preocupado com a sobrevivência cultural e demográfica da Europa. Guillaume Faye é um exemplo de um pensador cuja obra suscita debates intensos sobre identidade, cultura e política na Europa contemporânea.

Pierre Vial, nascido em 25 de dezembro de 1942, é uma figura destacada nos círculos nacionalistas franceses e europeus. É historiador e medievalista, tendo lecionado em universidades francesas. Sua formação académica deu-lhe uma base sólida para seus escritos e ideias sobre identidade cultural e história europeia. Ele é um dos fundadores do movimento GRECE (Groupement de Recherche et d'Études pour la Civilisation Européenne), uma organização influente da Nova Direita fundada em 1968, que promove uma visão europeísta e etnopluralista da civilização. Vial defende a preservação das identidades culturais e étnicas europeias, argumentando contra a globalização e a imigração em massa. 

Pierre Vial em 2012

Pierre Vial acredita que cada grupo étnico deve preservar sua identidade e viver em seu próprio espaço cultural. Tal como Guillaume Faye, Vial promove a ideia de etnopluralismo, que sustenta que diferentes culturas e etnias devem coexistir separadamente para evitar conflitos e preservar suas respectivas identidades. Vial é associado a várias publicações e organizações de direita e nacionalistas na França. Ele tem escrito extensivamente sobre história europeia, identidade cultural e política. Como outros intelectuais da Nova Direita, Vial é uma figura controversa, acusado por críticos de promover ideias xenófobas e racistas. Seus apoiantes, no entanto, veem suas ideias como uma defesa necessária da identidade e cultura europeias. Pierre Vial continua a ser uma figura influente e polarizadora no panorama político e intelectual europeu, especialmente entre aqueles preocupados com questões de identidade cultural e demográfica.

Terre et Peuple (T&P ou TP) é um grupo de identidade fundada em novembro de 1994 pelo historiador medieval Pierre Vial, uma antiga figura da GRÉCIA4 e ex-membro da Frente Nacional. Foi lançado oficialmente em abril de 1995 com um escritório composto por Vial, Christophe Bordon da Renovação Estudantil e Pierre Giglio, da Frente Nacional. Defendendo reflexões metapolíticas que o tornaram uma estrutura do movimento identitário, ele reivindica o paganismo, "identidades enraizadas" e reivindica a herança intelectual da Revolução Conservadora Alemã, particularmente seu chamado movimento völkisch. A Terre et Peuple pretende atuar principalmente no nível cultural e não participa das eleições. Em 2007, este pequeno grupo reuniu cerca de 200 pessoas na França.

Pierre Vial funda em 1994 a revista "Terre et Peuple", uma publicação francesa associada aos Identitários e à Nova Direita. Os Identitários como corrente de pensamento que enfatiza a preservação das identidades culturais e étnicas europeias. A revista aborda temas como etnopluralismo, identidade europeia, crítica ao multiculturalismo, defesa das tradições e heranças culturais da Europa. "Terre et Peuple" é conhecida por sua posição contra a globalização e a imigração em massa, defendendo a ideia de que cada povo deve preservar e cultivar a sua própria identidade cultural e étnica. A revista também frequentemente critica as políticas de integração e a homogeneização cultural promovidas por governos e instituições supranacionais. A publicação é um ponto de encontro para intelectuais, escritores e ativistas que compartilham essas ideias, oferecendo artigos, ensaios e análises sobre política, história, cultura e sociedade dentro desse contexto ideológico.

Tudo isto são preocupações sobre a identidade biocultural europeia frente ao inverno demográfico e ao aumento da migração de povos islâmicos com altas taxas de natalidade. É a baixa taxa de natalidade em muitos países europeus, acompanhando uma população envelhecida, que preocupa devido ao potencial declínio da Europa como cultura. A imigração seria a única solução para evitar a decadência. Mas o problema é que a imigração é proveniente na sua maioria de países com populações predominantemente islâmicas, com uma cultura não apenas diferente da cultura cristã europeia, mas culturas que são frontalmente hostis. Os europeus que pensam as ideias da Nova Direita, ou dos Identitários, veem que a longo prazo a Europa vai descaracterizar-se na medida das taxas de natalidade mais altas das populações islâmicas. A identidade biocultural sofrerá uma transformação radical inevitavelemente. E essas pessoas com sentimento de nativos europeus não gostam disso. Temem que a imigração e as diferentes taxas de natalidade diluam a cultura europeia tradicional. As discussões sobre como integrar novos imigrantes sem perder aspetos fundamentais da identidade cultural europeia são intensas. O debate - entre o multiculturalismo que preserva as culturas de origem / versus / assimilação por adoção do imigrante da cultura dominante - é o debate entre universalistas e nacionalistas. É um debate de grande complexidade porque reúne pontos de vista contraditórios, que inclui: aspetos económicos, sociais, culturais e políticos, refletindo as diversas perspetivas sobre como vai ser a futura identidade da Europa.

terça-feira, 23 de julho de 2024

Um mundo multipolar


Pequim tem reclamado um papel maior para a China na resolução de questões internacionais. No ano passado, a diplomacia chinesa mediu também as negociações que culminaram num acordo entre Arábia Saudita e Irão para o restabelecimento das relações diplomáticas. De acordo com o Presidente chinês, Xi Jinping, a China deve "participar ativamente na reforma e construção do sistema de governação global" e promover "iniciativas de segurança global". A China avançou também com um plano para a paz na Ucrânia, que os países ocidentais desvalorizaram, por pôr "agressor e vítima" ao mesmo nível. Em particular, a China defende a noção de "comunidade com um futuro partilhado", que visa contrariar a arquitetura de segurança erguida pelo Ocidente depois da Segunda Guerra Mundial. Pequim acusa a doutrina ocidental de estimular o confronto entre blocos e minar a estabilidade em diferentes partes do mundo.


A ideia de um sistema de poder multipolar, onde múltiplas grandes e médias potências compartilham influência e poder global, tem sido um tema recorrente nas relações internacionais. A viabilidade e a eficácia de tal sistema são objeto de debate. Os argumentos a favor de um sistema multipolar veem vantagem por prevenir a dominação de uma única potência, pois os equilíbrios de poder são sempre melhores para prevenir abusos de poder. Um mundo multipolar garante melhor a diversidade de interesses que é o que existe na realidade. Portanto, promove a existência de um mundo mais inclusivo e equitativo. A presença de múltiplas potências pode criar um sistema internacional mais resiliente e flexível, capaz de se adaptar às mudanças que fazem parte do parmenete caminho da História. O sucesso ou fracasso desse sistema dependerá de como os atores internacionais navegam nas suas complexidades em busca de soluções cooperativas para os problemas globais. A História e as circunstâncias contemporâneas sugerem que, com a abordagem correta, um sistema multipolar pode ser mais funcional, logo, benéfico.

Mas há quem considere que no passado, sempre que se caminhava para a multipolaridade, portanto, sem que houvesse uma superpotência a mandar no mundo, os conflitos e as guerras se impunham com mais frequência. A competição intensa por recursos, sem freios, tende a arrastar a ordem para a desordem, anarquia e caos. Multiplicidade de conflitos regionais, como ocorreu nas eras multipolares do passado, as eras das revoluções, do poder na rua. 
A ausência de uma hegemonia clara pode dificultar a coordenação em questões globais, como mudanças climáticas, terrorismo, pandemias e crises económicas. Diferentes potências podem ter agendas conflitantes, dificultando a formulação de políticas coerentes e eficazes. Um sistema multipolar pode aumentar a insegurança global, pois as nações podem sentir a necessidade de aumentar as suas capacidades militares e formar alianças instáveis para proteger seus interesses. Esse ambiente pode resultar em uma corrida armamentista e em uma maior instabilidade. A diplomacia se torna mais complexa e difícil num mundo multipolar, onde cada potência busca maximizar os seus interesses. A formação e a manutenção de alianças e acordos podem ser prejudicadas pela presença de múltiplos atores com interesses divergentes. Assim, a eficácia de um sistema multipolar depende de vários fatores, incluindo a capacidade das potências saberem gerir as suas rivalidades de forma pacífica com a ajuda de instituições internacionais eficazes. Tudo isso está dependente da vontade dos estados cooperarem em questões globais.

A descontinuidade civilizacional a Ocidente, com a queda do Império Romano do Ocidente no século V d.C., deveu-se à perda de contacto com a cultura que já vinha do tempo dos clássicos gregos. Houve um declínio significativo na organização política, económica e cultural que sustentava as instituições de ensino e cultura. Os movimentos migratórios na parte final do Império Romano do Ocidente marcaram o início que a História designou por Idade Média. O colapso das estruturas sociais e económicas interrompeu o fluxo de conhecimentos que sustentavam o Império Romano. Por outro lado, a ascensão do Cristianismo trouxe mudanças na filosofia e na educação. Alguns textos clássicos gregos foram considerados pagãos ou não alinhados com a teologia cristã, o que afetou a sua preservação e estudo. Deixou de haver interesse em preservar os textos clássicos. É importante notar que, por paradoxal que possa parecer à luz da época que estamos agora a atravessar, foi a Oriente que os textos gregos clássicos continuaram a ser preservados e que continuaram a ser estudados pelos islâmicos. E foi assim que de uma forma quase fulminante a civilização islâmica floresceu e se impôs durante alguns séculos à ignorância da Europa Ocidental. 

Por conseguinte, para podermos avaliar as vantagens e desvantagens dos váris tipos de sistemas de poder a nível internacional, é imprecindível consultarmos a História. Que lições importantes podemos retirar do estudo das dinâmicas de poder internacional do passado. O sistema que tem estado em vigor desde a queda do Muro de Berlim é um sistema unipolar liderado por uma única Superpotência - Estados Unidos da América - e ao mesmo tempo algumas potências emergentes a tentrem implantar um sistema multipolar. O exemplo fragrante é o conhecido grupo dos BRICS. Já se percebeu o que é que a China quer. A predominância dos EUA desde o fim da Guerra Fria tem proporcionado um grau de estabilidade, com uma potência dominante capaz de mediar conflitos e influenciar normas e regras internacionais. Os EUA têm desempenhado um papel central em instituições internacionais pela via do seu financiamento. E é sob a máxima "manda quem paga" que os Estados Unidos da América têm argumentado para fazer valer o seu poder ao nível da governança global. O mesmo se passou no tempo do Império Romano, que teve altos níveis de comércio internacional, inovação tecnológica e crescimento económico.

O tempo da Guerra Fria é considerado o paradigma do sistema bipolar. E a verdade é que se verificou um equilíbrio de poder entre EUA e URSS, o que evitou que uma única potência dominasse completamente. E isso foi benéfico para uma certa estabilidade estrutural sobretudo no mundo ocidental ou Norte Global. A existência de alianças claras como a NATO e o Pacto de Varsóvia ajudou a organizar as relações internacionais e a reduzir a incerteza. É claro que esteve muito longe de ser perfeito. Avultaram os conflitos por procuração. A rivalidade entre as superpotências levou a conflitos por procuração em várias partes do mundo (Vietname, Coreia, Afeganistão), causando destruição e instabilidade. A competição incessante resultou na corrida armamentista nuclear perigosa, aumentando o risco de destruição mútua.

O século que precedeu a Pré-Primeira Guerra Mundial é considerado um período mais parecido com o de um sistema multipolar, que enquanto durou foi bom por ter ptomovido um certo tempo de paz. A diversidade de grandes potências europeias promovia uma distribuição mais equilibrada de poder e influência. A diplomacia ativa e a formação de alianças complexas (Tríplice Aliança, Tríplice Entente) buscavam manter o equilíbrio de poder. Mas depois a competição entre múltiplas potências e a complexidade das alianças contribuíram para a eclosão da Primeira Guerra Mundial, um conflito devastador. A multiplicidade de interesses e a falta de uma hegemonia clara dificultaram a cooperação e a coordenação das crises.

Podemos concluir que cada sistema tem as suas próprias vantagens e desvantagens, e nenhum é inerentemente superior aos ouros em todos os aspetos. A eficácia de um sistema de poder depende em grande parte da capacidade das potências envolvidas de gerenciar as suas relações de forma estável e cooperativa. Um sistema multipolar pode funcionar desde que existam mecanismos eficazes de gestão de conflitos e cooperação internacional. Por outro lado, um sistema unipolar ou bipolar pode proporcionar estabilidade, mas também enfrenta desafios únicos que podem levar à instabilidade e ao conflito. A chave para qualquer sistema de poder mundial bem-sucedido é a capacidade de adaptação, a criação de instituições robustas e a promoção de normas e práticas que incentivem a cooperação pacífica e o desenvolvimento sustentável. E cada tempo histórico tem as suas próprias especificidades às quais não são alheias as idiossincrasias da espécie humana.

O poder unipolar nesta altura está a ser muito contestado. A responsabilidade global pode sobrecarregar a potência dominante, levando ao esgotamento de recursos e influenciando o seu declínio relativo ao longo do tempo. Antes dos tempos modernos, o caso do Império Romano deve ter sido o mais estudado em todos os tempos. A Pax Romana é uma espécie de paradigma, em que o Império Romano proporcionou segurança, estabilidade e prosperidade económica em vastas regiões da Europa, Norte da África e Médio Oriente. Roma construiu uma extensa infraestrutura (estradas, aquedutos, cidades) com a difusão e promoção cultural e tecnológica de uma dimensão nunca superável. Mas a incapacidade de sustentar a defesa das fronteiras e as invasões bárbaras contribuíram para o colapso do império.

Algumas teorias históricas sugerem que o declínio de civilizações pode estar ligado à deterioração de valores culturais e sociais que são essenciais para a coesão e o funcionamento saudável da sociedade. Isso pode incluir a perda de ética de trabalho, coesão social, respeito pelas instituições e normas morais. Do ponto de vista evolutivo e adaptativo, as sociedades que conseguem manter valores e práticas que promovem a cooperação, a inovação, a resiliência e a sustentabilidade estão mais aptas a prosperar e se desenvolver. Alguns estudiosos apontam para exemplos históricos onde a corrupção moral, decadência cultural ou a perda de valores fundamentais coincidiram com períodos de declínio ou colapso civilizacional. O Império Romano colapsou por via da corrupção política, causadora de desigualdades sociais. São as tensões internas que enfraquecem a estrutura das instituições. Em contextos contemporâneos, a análise de sociedades e comunidades frequentemente destaca a importância de normas sociais e culturais que promovem a coesão, justiça social, e a sustentabilidade ambiental como fundamental para o bem-estar e a prosperidade a longo prazo.

É claro que este é mais um daqueles assuntos tão complexos que quanto mais se estuda mais se adensa  nevoeiro. A metáfora do nevoeiro é um oxímoro porque diz que quanto mais se vê, menos vemos. O declínio de civilizações geralmente é resultado de múltiplos fatores inter-relacionados, incluindo mudanças climáticas, pressões demográficas, conflitos internos e externos, além de mudanças nas normas culturais e sociais. A corrupção de costumes é apenas um aspecto dentro de um contexto mais amplo. Normas sociais e valores evoluem ao longo do tempo, e as interpretações sobre o que é moralmente aceitável também mudam. Seguindo uma grelha instrumental de análise, como é a grelha da evolução de matriz darwinista, a adptação e a resiliência são critérios fundamentais. Nem todas as mudanças culturais são necessariamente prejudiciais. As sociedades que são capazes de adaptar seus valores e instituições às novas realidades sociais, económicas e ambientais podem demonstrar maior resiliência e capacidade de se adaptar a desafios emergentes.

Mesmo em regimes democráticos de pendor socialista ou social-democrata, quando os cidadãos se juntam para trabalhar em parceria, geralmente acham justo que os trabalhadores mais esforçados sejam mais bem remonerados. Os socialistas querem igualdade de rendimentos, mas partindo do princípio que as contribuições são iguais. Quando as pessoas partilham a recompensa em dinheiro, a igualdade é subordinada ao princípio da proporcionalidade. Quando alguns membros de um grupo contribuem muito mais do que outros, já para não falar de poucos que não contribuíram nada, a maioria não quer que os benefícios sejam igualmente distribuídos, porque isso não é justo.

Faz parte da evolução adaptativa a existência de elementos que desafiam as regras colhendo os frutos da cooperação através da boleia. A cooperação dentro das comunidades é vigiada pelo mexerico. O castigo teve de vir depois. A comunidade tem de se proteger dos batoteiros, dos mandriões, sob pena de não sobreviver. Caso lhes fosse permitido manter esses comportamentos sem serem punidos, os outros iriam fazer o mesmo, e deixar de contribuir. O que levaria ao desmoronamento da sociedade. O fundamento da equidade tem de se apoiar na raiva justa, quando alguém engana outro. 
Os desencadeadores atuais do fundamento da equidade variam em função do tamanho do grupo, bem como de outras circunstâncias históricas e económicas. Numa grande sociedade industrial, e com uma rede social de segurança, os desencadeadores atuais são propensos a incluir pessoas que confiaram na rede de segurança, sem que para isso alguma vez tenham sido salvas por ela. 

segunda-feira, 22 de julho de 2024

As viagens e os livros de Ramon Llull

  

Ramon Llull viajou para a Tunísia para continuar sua missão. É nessa jornada que ele escreveu Liber de Deo et de mundo ("Livro sobre Deus e o mundo") e Liber de maiore fine intellectus amoris et honoris ("Livro sobre o fim maior da inteligência: amor e honra"). Ambos são datados de dezembro de 1315 e seriam suas últimas obras. A data exata de sua morte é desconhecida. Considera-se que morreu entre 1315 e 1316, quando voltava de sua viagem da Tunísia para Maiorca. Alguns cronistas afirmaram que ele foi linchado por uma multidão de muçulmanos furiosos em Bejaia, dos quais não há prova formal, apesar de ter sofrido prisão, espancamentos e insultos. Ele está na Basílica de São Francisco em Palma de Maiorca.



Basílica de São Francisco em Palma de Maiorca.

Ramon Llull nasceu em Palma de Maiorca por volta de 1232. Filósofo, poeta, místico, teólogo e missionário leigo próximo dos franciscanos. Ele é considerado um dos primeiros escritores a usar uma língua neolatina, o catalão, para expressar conhecimento filosófico, científico e técnico. Conhecido em seu tempo pelos apelidos de Doutor Inspiratus (Médico Inspirado), Doutor Illuminatus (Médico Iluminado) ou Arabicus Christianus (Árabe Cristão), Llull foi uma das figuras mais avançadas nos campos espiritual, teológico e literário da Idade Média. Foi de facto um autor e pensador catalão muito importante na Idade Média.

Segundo Umberto Eco, o local de nascimento foi decisivo para Llull, já que Maiorca era uma "encruzilhada na época das três culturas, cristã, islâmica e judaica, a ponto de a maioria de suas 280 obras reconhecidas terem sido inicialmente escritas em catalão e árabe". Antes de se casar, ela entrou para a corte do rei Jaime I de Aragão. Por volta de 1267, aos 30 anos, a vida de Ramon sofreu uma reviravolta importante: ele mesmo descreve como teve uma série de cinco visões de Cristo crucificado em cinco noites consecutivas. A profunda impressão que essas visões lhe causaram levou-o a vender as suas propriedades. Sua fase de nove anos de formação teológica e moral durou até 1275: na cidade de Maiorca, ele conheceu e comprou um escravo muçulmano que usou como professor para aprender árabe.

Em 1274, o infante Jaime (que reinaria como Jaime II de Maiorca), antigo aluno de Llull, chamou-o para o seu castelo em Montpellier, onde, sob o patrocínio do príncipe, o erudito pôde escrever a sua Ars demostrativa ("A Arte Demonstrativa"), obra que lhe valeu dinheiro que investiu de imediato na construção do mosteiro de Miramar em sua ilha natal. O objetivo deste mosteiro era treinar missionários para cristianizar os árabes, ensinando-lhes técnicas missionárias, métodos para repudiar a filosofia islâmica. Decidiu empreender a sua própria cruzada pessoal, que o levaria à Europa (Alemanha, França e Itália), à Terra Santa, à Ásia Menor e ao Magrebe. Ele estava muito interessado em converter os muçulmanos e judeus daquelas regiões, por isso não hesitou em pregar nas portas das mesquitas e sinagogas, o que nem sempre foi recebido com prazer pelos fiéis daqueles templos.

Em 1286, Ramon Llull recebeu seu diploma de professor universitário (magister) da Universidade de Paris. Um ano depois, viajou a Roma para apresentar seus planos de reforma da Igreja a pontífices e dignitários, mas, mais uma vez, ninguém o ouviu, porque ele ia pedir financiamento para a Cruzada que ele aspirava poder converter todos os infiéis da Terra Santa. Vendo que seus apelos não obtiveram o eco que esperava, entrou para a ordem franciscana em 1295. Foi aceito na Ordem Terceira Franciscana.

Em 1307, Ramon Llull viajou para o norte da África para continuar as pregações, mas foi mal recebido, como se costuma dizer, foi corrido à pedrada. Entre 1308 e 1311 deambulou pela Europa ao sabor de Clemente V, consultando a hipótese de uma nova Cruzada e se seria apropriado entregar os Templários ao braço secular para serem executados na fogueira. Ramon Llull foi convocado e esteve presente nas três sessões do Conselho, mas nenhuma notícia chegou até nós sobre como ele votou em cada um dos assuntos sérios que foram discutidos lá. Sabemos que a Cruzada e a reforma eclesiástica lhe interessavam particularmente, pois haviam sido objeto de suas pregações e orações por décadas. No entanto, em relação à punição dos Templários, inúmeras dúvidas permanecem.

 

 Ramon Llull - Monasterio de Santa Maria de la Real
Palma de Maiorca

Seguidor, como bom franciscano, do pensamento de Roger Bacon e São Boaventura, Llull introduziu uma grande inovação. Insistiu na doutrina da Imaculada Conceição de Maria, contra a opinião, então maioritária, de São Tomás de Aquino. A essência divina teve que assumir uma primeira matéria perfeita para formar o corpo de Jesus. Isso era impensável se a própria Maria tivesse nascido sujeita ao pecado original, então ela tinha de ter sido concebida sem pecado. Essas ideias levaram o inquisidor Nicolas Aymerich a perseguir postumamente as obras de Ramon Llull. No entanto, o rei Pedro, o Cerimonioso, protegeu a memória dos beatos e expulsou o inquisidor do reino de Aragão e, finalmente, a Igreja Católica acabou estabelecendo a opinião de Llull como dogma.

Escrevia e falava perfeitamente em catalão, latim e árabe; e ele usou qualquer uma dessas línguas indistintamente para se dirigir a quem a entendesse melhor. Se o público de seu novo livro era de baixa condição, ele não hesitou em expressar os mais altos conceitos filosóficos em versos alegres, e sempre defendeu a conversão dos infiéis. Estudiosos cristãos do século XIII celebraram a descoberta lógica de Llull, embora logo tenham detetado os problemas do raciocínio de Llull. Embora seja verdade que ambas as ciências estão geralmente de acordo – porque o que é verdadeiro na filosofia não pode ser falso para o teólogo – ambas chegam à verdade por caminhos diferentes: a teologia se baseia na razão e na revelação divina, enquanto o filósofo está sozinho diante do problema, provido apenas de sua própria razão. Os árabes foram além: criticaram a Ars Magna dizendo que, segundo eles, o que é falso na filosofia "pode perfeitamente ser verdade na teologia", porque nada é impossível para Deus e Ele pode muito bem ultrapassar as limitações da ciência. Esse conceito é conhecido como "Verdade de Duplo Nível" ou "Teoria da Dupla Verdade".

Em sua ânsia de refutar os muçulmanos, Llull exagerou o conceito no sentido oposto: ele acreditava que a dupla verdade era impossível, já que teologia e filosofia eram de facto a mesma coisa. Dessa forma, ele igualou e identificou a fé com a razão. O incrédulo não era capaz de raciocinar, e o homem de fé aplicava a razão perfeita. Dessa forma, acreditava ter resolvido, graças às provas dos significados lógicos e, claro, ao seu mecanismo, uma das maiores controvérsias da história do conhecimento. O problema com esses postulados era que eles varriam a diferença entre verdades naturais e sobrenaturais. Como Llull era essencialmente um filósofo místico, para ele a razão não pode lidar com as mais altas verdades. Para isso, é necessário, em todas as circunstâncias, fazer uso da fé. Desta forma, afirmou que a fé iluminou a razão, por exemplo, para desvendar o mistério da Santíssima Trindade: só há um Deus verdadeiro representado em três pessoas, que apesar de tudo não são nem podem ser "três deuses". Ele acreditava, por mecanismos semelhantes, que poderia provar o motivo de todos os mistérios e as razões de todos os artigos de fé. Se a razão requer fé para ajudá-la, a segunda também precisa da primeira, porque a fé por si só pode levar ao erro. Llull acreditava que o homem dotado de fé, mas não de razão, era como um cego: ele pode encontrar certas coisas pelo toque, mas não todas as vezes.

A hierarquia católica não via com bons olhos a difusão dessa doutrina, porque imediatamente compreendeu o perigo de dissolver a diferença entre uma verdade natural e um sobrenatural. Dois papas condenaram formalmente o lulianismo: Gregório XI em 1376 e Paulo IV no século xvi. Como resultado, o beato nunca foi canonizado, embora o processo tenha sido reativado recentemente. Não o estudo aprofundado, mas a mera enumeração das obras de Ramon Llull ultrapassa as dimensões e os limites deste artigo. Ele escreveu 243 livros que incluíam assuntos tão diversos como filosofia (Ars magna), ciência (Arbre de sciència, Tractat d'astronomia), educação (Blanquerna, que inclui o Llibre de Amic e Amat), misticismo (Llibre de contemplació), gramática catalã (Retòrica nova), cavalaria (Libro del Orden de Caballería), romances (Llibre de meravelles, que inclui o Llibre de les bèsties), e muitos outros tópicos e recursos (como o provérbio Llibre dels mil proverbis, ou o silogismo (Llibre de la disputa de Pere i de Ramon, el Fantàstic. La ciutat del món), que o mesmo autor traduziu imediatamente para o árabe e o latim.

Blanquerna (Llibre d'Evast e Blaquerna) é um romance idealista, de enorme influência na narrativa da Idade Média e particularmente em certos escritores posteriores. Ele é escrito em catalão. Começou a ser escrito em 1283 e foi concluído em 1286. É uma pintura vívida da vida medieval: o protagonista, conduzindo sua vida através de sua vocação religiosa, tenta alcançar a perfeição espiritual. Para isso, o autor o faz embarcar em uma jornada vital que o levará por todas as etapas do homem na sociedade: do homem casado que costumava ser, ele entrará em um mosteiro, será prelado, se tornará papa e, finalmente, renunciará ao trono pontifício para se dedicar à contemplação e à meditação em um eremitério isolado. A obra inclui ainda o Llibre d'amic e amat, uma peça de prosa poética que combina elementos de fontes muito diversas: o Cântico dos Cânticos, a poesia provençal, a teologia árabe e outras influências que a enriquecem e matizam. Seus 366 versículos expressam o amor da alma humana por Deus e traçam uma delicada filigrana de elevação e sentimento espiritual.

Livro da Ascensão e Descida do Entendimento. Escrito em latim em Montpellier em 1304, o "Livro da Ascensão e Descida do Entendimento" ("Liber de ascensu et descensu intellectus") desenvolve o famoso método de "escala" do pensamento de Llull: existem "escalas místicas" que determinam "escalas de conhecimento" pelas quais se pode subir ou descer como se fossem escadas largas. Para ascender, é preciso passar do sensível (aquilo que é percebido através dos sentidos, isto é, do conhecimento empírico) para o inteligível, e do inteligível para o intelectual. Por meio de outro processo paralelo e simultâneo ao anterior, ascende-se do particular ao geral e do geral ao universal.

Llull dedicou pelo menos três obras para expor com considerável detalhe como seu novo modelo de missão deveria ser posto em prática: o Liber de passagio ("Livro da Cruzada") de 1292 (que, por sua vez, é dividido em duas pequenas obras de origem independente: o Quomodo Terra Sancta recuperi potest ["Como a Terra Santa pode ser restaurada"] e o Tractatus de modo convertendi infideles ["Tratado sobre o caminho da conversão dos mártires" infiéis"]); o Liber de fine ("Livro sobre o Fim/Propósito") de 1305 e o Liber de acquisitione Terra Sanctae ("Livro sobre a Conquista da Terra Santa") de 1309. As três obras tratam dos mesmos temas, embora com algumas variações, bastante estratégicas, que respondem principalmente às mudanças políticas da época.

domingo, 21 de julho de 2024

A motivação para participar em marchas ou paradas



A participação de um homossexual em marchas de orgulho LGBT+ pode ser motivada tanto por razões individuais quanto grupais, e muitas vezes essas motivações se entrelaçam. Participar em marchas pode ser uma forma de afirmar e celebrar a sua própria identidade e orientação sexual em um ambiente acolhedor e afirmativo. Pode ser uma experiência que ajuda o indivíduo a sentir-se mais confiante e incluído.

Promove um sentimento de solidariedade e apoio mútuo, fortalecendo a coesão do grupo. As marchas são oportunidades para construir e reforçar laços dentro da comunidade. É comum que as razões individuais e grupais se sobreponham. Por exemplo, um indivíduo pode participar para afirmar a sua própria identidade (razão individual) enquanto também deseja apoiar a comunidade e lutar por direitos coletivos (razão grupal). As experiências pessoais de um indivíduo frequentemente se conectam com as experiências e desafios enfrentados pelo grupo, criando uma motivação mista para a participação.

Ao longo da evolução a cultura passou a evoluir de parceria com os genes de tal modo que traços que reforçassem a coesão de grupos tribais tinham valor adaptativo. E assim os instintos tribais foram-se reforçando ao ponto de nós adorarmos assinalar a pertença ao grupo. Daí não ser de admirar que cooperemos preferencialmente com os membros do nosso grupo independentemente de considerações de ordem moral racional que diga que não devíamos fazer isso por ser errado o que o nosso grupo está a fazer. Apesar de o grosso da natureza humana ter sido operada por seleção natural ao nível dos genes do indivíduo, há uma parte que nos últimos dez mil anos também foi moldada ao nível do grupo por força da cultura e do meio ambiente. E daí sermos indivíduos egoístas com um toque mais ou menos de altruísmo cuja percentagem em relação ao egoísmo tem uma variação circunstancial histórica.




A ontogénese do ser humano, ou seja, o desenvolvimento do indivíduo desde a concepção até à morte, está profundamente ligada ao grupo social em que ele se insere e à maneira como ele percebe e interage com o "estranho" ou "estrangeiro". Desde a infância, os seres humanos aprendem a se definir em relação aos outros. Essa definição em grupo é fundamental para o desenvolvimento da identidade pessoal e social. A convivência em grupo, com suas normas, valores e tradições, molda o comportamento e o pensamento do indivíduo, criando um sentido de pertencimento. No entanto, a presença do estranho ou do estrangeiro desempenha um papel crucial nesse processo. A interação com o que é diferente ou desconhecido desafia as normas e os valores estabelecidos, promovendo uma reflexão sobre a própria identidade e as próprias crenças. Essa interação pode gerar sentimentos variados, como curiosidade, medo, hostilidade ou admiração, mas é através dela que muitas vezes se reforça a coesão interna do grupo e se redefine a própria identidade. Portanto, a ontogénese do ser humano não ocorre de forma isolada, mas é um processo contínuo de construção em relação ao outro. A diferença com o estranho ou estrangeiro não apenas marca os limites do grupo, mas também promove o crescimento individual e coletivo ao instigar a reflexão e a adaptação a novas realidades.

Platão, na sua obra "A República", Livro II, põe Glaucon a narrar a história do "Anel de Giges". Glaucon utiliza essa narrativa para discutir a natureza da justiça e da moralidade humana. A história é a seguinte: Giges era um pastor que servia ao rei da Lídia. Um dia, após um terramoto, Giges descobriu uma caverna aberta na terra. Dentro dessa caverna, ele encontrou um cadáver que portava um anel de ouro. Giges pegou o anel e, mais tarde, descobriu por acaso que ao girá-lo em seu dedo, ele se tornava invisível. Com o poder da invisibilidade, Giges aproveitou-se da situação para cometer diversos atos injustos sem medo de ser descoberto ou punido. Ele seduziu a rainha, matou o rei e tomou o trono para si, governando a Lídia com o anel mágico.

Glaucon usa essa história para argumentar que a maioria das pessoas praticaria crimes se tivessem a garantia de não serem apanhadas. Ele sugere que as pessoas não praticam crimes não por uma inclinação natural, mas por medo das consequências e da punição. Assim, segundo Glaucon, a justiça é uma pura criação da sociedade enquanto tal, e não uma qualidade intrínseca do ser humano enquanto tal, enquanto entidade isolada. Ou seja não se trata de uma virtude intrínseca ao ser humano. É então quando Platão faz entrar em cena Sócrates.

Sócrates, refuta a perspectiva de Glaucon mais adiante na obra, defendendo que a justiça é uma virtude essencial e que uma vida justa é mais valiosa e satisfatória do que uma vida injusta, mesmo se esta última pudesse ser vivida sem punições. Portanto, já no tempo de Platão as pessoas se preocupavam muito com aquilo que estava mais certo, ou então, mutatis mutandis, o que era considerado errado não se devia fazer. Mas estas questões são as tais questões complexas que se arrastam até aos nossos dias sem uma conclusão definitva, porque tudo o que tem a ver com a subjetividade é complicado. Basta ver o que se passa nas diferentes sociedades. Por exemplo, os valores morais e culturais das sociedades asiáticas orientais são muito distintos dos ocidentais, de que faz parte o presente autor deste texto. Os Direitos Humanos não são entendidos de igual forma em toda a parte do mundo. E o mesmo se passa com a democracia. As instituições e sistemas de governo são moldados por contextos históricos específicos. A democracia liberal que prevalece na Europa é resultado de séculos de desenvolvimento histórico, cultural e político que pode não ser diretamente aplicável a outras regiões.

A pluralidade de perspetivas significa que diferentes modelos podem ter méritos e desvantagens. Por exemplo, a democracia liberal valoriza a liberdade individual e a participação política, enquanto outros sistemas podem enfatizar a estabilidade, a ordem social e o desenvolvimento económico. Sistemas políticos e sociais precisam ser adaptados às necessidades, condições e desejos específicos de suas populações. Um modelo que funciona bem em um contexto pode não ser eficaz em outro.

A interpretação e a implementação desses direitos podem variar. As avaliações de sistemas políticos muitas vezes consideram o bem-estar e a justiça que proporcionam aos seus cidadãos. Isso pode incluir considerações sobre liberdade, igualdade, prosperidade e segurança. O debate aberto e o diálogo entre diferentes culturas e sistemas políticos são cruciais para promover a compreensão mútua e a cooperação. A troca de ideias pode levar à melhoria de todos os sistemas envolvidos. As sociedades devem ter a capacidade de determinar seu próprio caminho de desenvolvimento político e social, respeitando os princípios de autodeterminação e soberania. Em suma, é importante reconhecer a complexidade e evitar julgamentos simplistas de "certo" ou "errado". Em vez disso, é mais produtivo considerar os méritos, desafios e contextos específicos de cada sistema, promovendo um diálogo respeitoso e construtivo que reconheça a diversidade e a multiplicidade de perspectivas humanas.

Democracia e Justiça

 

O sistema judiciário em Portugal tem enfrentado alguns desafios e irregularidades que têm afetado o seu prestígio e a confiança das instituições. Houve vários casos de corrupção envolvendo figuras públicas e instituições, que levantaram dúvidas sobre a imparcialidade e a eficácia do sistema judiciário. Casos como a "Operação Marquês", que envolveu o ex-primeiro-ministro José Sócrates, destacam-se por sua complexidade e pela percepção pública da morosidade e ineficácia. A morosidade judicial é uma crítica constante. Muitos processos demoram anos para serem resolvidos, o que afeta a confiança dos cidadãos na justiça e na capacidade do sistema de garantir um julgamento justo e em tempo adequado.

 A lentidão e a complexidade dos processos muitas vezes criam uma percepção de impunidade, especialmente quando se trata de crimes de colarinho branco. A percepção de que pessoas influentes ou com recursos financeiros conseguem evitar punições contribui para a desconfiança nas instituições judiciais. O sistema judiciário por sua vez queixa-se de falta de recursos humanos e materiais. A sobrecarga de trabalho e a falta de investimento em infraestrutura e tecnologia dificultam o funcionamento eficiente dos tribunais.

 Há uma necessidade crescente de maior transparência e melhor comunicação com o público. A falta de clareza sobre os procedimentos judiciais e as decisões pode aumentar a desconfiança e a sensação de injustiça entre os cidadãos. A perceção da independência do poder judicial é fundamental para a confiança nas instituições. Qualquer suspeita de influência política ou económica sobre as decisões judiciais pode minar essa confiança.

 Em uma democracia, quando juízes derrubam governos com pulsões justicialistas, ocorrem várias questões complexas e preocupantes. A separação de poderes é um princípio fundamental numa democracia. Quando o Judiciário intervém de forma excessiva ou politicamente motivada, isso pode desiquilibar essa separação, colocando em risco a integridade do sistema democrático. A legitimidade dos juízes pode ser questionada. Se a sociedade percebe que os juízes estão agindo com motivação política, a confiança no sistema judicial pode ser erodida. A confiança pública é essencial para a eficácia do Judiciário. A intervenção judicial pode gerar uma crise institucional, com conflitos entre os poderes Judiciário, Executivo e Legislativo. Isso pode levar a instabilidade política e dificuldades na governação.

A interferência judicial excessiva pode abrir precedentes para medidas autoritárias. Governos futuros podem usar o Judiciário para perseguir opositores, minando a democracia. Juízes são esperados para serem imparciais. Atos justicialistas sugerem uma tomada de partido, o que compromete essa imparcialidade e pode ser visto como uma forma de ativismo judicial. Dependendo da percepção pública, a ação dos juízes pode gerar protestos e resistência popular. Em casos extremos, isso pode resultar em manifestações de rua e até violência. Portanto, juízes derrubando governos com pulsões justicialistas representam um desafio sério para a democracia, podendo levar à desestabilização do sistema democrático, perda de confiança pública, e até ao surgimento de práticas autoritárias.

Não é apropriado justificar ou absolver alguém que cometeu um crime apenas por piedade. A justiça deve ser baseada em princípios de responsabilidade, equidade e respeito às leis, e não apenas em sentimentos de compaixão. Quando uma pessoa comete um crime, ela deve ser responsabilizada por suas ações. Isso é essencial para manter a ordem social e dissuadir futuros comportamentos criminosos. A justiça deve ser aplicada de maneira equitativa e consistente. Tratar criminosos de maneira diferente com base em sentimentos de piedade pode resultar em injustiças e desigualdades. Aplicar a lei de forma justa e imparcial ajuda a proteger a sociedade, garantindo que aqueles que cometem crimes enfrentem consequências apropriadas.

 Embora piedade por si só não justifique um crime, os tribunais podem considerar circunstâncias atenuantes que explicam por que um crime foi cometido, como coerção, necessidade extrema ou problemas de saúde mental. No entanto, isso deve ser feito dentro dos parâmetros da lei e não de maneira arbitrária. Sentimentos de compaixão podem influenciar a abordagem à reabilitação dos criminosos. Em vez de focar apenas na punição, o sistema de justiça pode buscar formas de ajudar os infratores a se reformarem e reintegrarem-se na sociedade.

 Sentir piedade por alguém não deve ser confundido com justificar suas ações criminosas. O crime deve ser reconhecido e tratado conforme a lei. Compreender as motivações por trás de um crime pode ser importante para a justiça, mas não deve levar à absolvição automática. Isso pode ajudar a criar soluções mais eficazes e prevenir futuros crimes. É importante manter um equilíbrio entre a aplicação justa da lei e a consideração de fatores humanitários. A piedade e a compaixão podem ter um papel na maneira como abordamos a reabilitação e o tratamento dos criminosos, mas não devem servir como base para justificar ou absolver crimes. A justiça deve sempre buscar ser imparcial, equitativa e focada na responsabilidade, garantindo a proteção e o bem-estar da sociedade.

sexta-feira, 19 de julho de 2024

As viagens - século XIV e XV




Reprodução do Planisfério de al-Idrisi
Museu da Civilização Islâmica, Sharjah, Emirados Árabes Unidos


Por volta de 1138, o rei normando da Sicília, Rogério II, convidou Al-Idrisi, um geógrafo muçulmano, para sua corte em Palermo, em busca de ajuda para prosseguir a sua agenda política. O vibrante ambiente multicultural da Sicília levou al-Idrisi a aceitar o convite do rei Rogério para sua corte. Durante a reunião, Al-Idrisi informou Rogério II sobre sua familiaridade e experiências pessoais das viagens pelo norte da África e Europa Ocidental, o que levou Rogério II a encomendar um atlas de Al-Idrisi. Para produzir o trabalho, Al-Idrisi começou a coletar informações para os mapas, entrevistando viajantes experientes sobre seu conhecimento do mundo, mantendo "apenas a parte sobre a qual havia total concordância e parecia crível, excluindo o que era contraditório".

Muhammad al-Idrisi [Ceuta, 1110 - Sicília, 1165], nascido provavelmente Sebta, atual Ceuta, pertencia a uma nobre família de Andaluz. Cresceu em Córdoba, sob o Império Almorávida. Em 1154 confecionou um grande mapa-múndi, orientado em sentido inverso ao utilizado atualmente, conhecido como a Tabula Rogeriana, acompanhado por um livro, denominado Geografia. O rei Rogério II da Sicília deu a estas obras o nome conjunto de Nuzhat al-Mushtak, ainda que al-Idrisi as tenha batizado como Kitab Rudjar ("O Livro de Rogério"). A obra compreende uma descrição da Itália, da Sicília, do Andaluz, do norte da Europa, da África e do Império Bizantino, beneficiando-se da situação específica do reino normando da Sicília do século X e do sincretismo entre as civilizações bizantina, normanda e árabe que o caracterizava.

al-Idrisi, Ceuta

Em 1161 realizou uma segunda edição ampliada, com o notável título de Os Jardins da Humanidade e o Entretenimento da Alma, a qual teve todas as suas cópias perdidas. Uma versão abreviada desta edição, chamada Jardim dos Gozos, ainda que mais conhecida como Pequeno Idrisi, foi publicada em 1192. Muhammad al-Idrisi divide o mundo em sete faixas paralelas ao equador que chama climas ou zonas. Cada uma delas subdivide em dez secções contadas do Ocidente para o Oriente. Ao prescindir da representação cónica habitual nessas linhas paralelas, realizou uma verdadeira revolução científica, antecipando-se em quatro séculos à cartografia de Mercator. Descreve Lisboa e os principais portos de Portugal desde o rio Guadiana, a que chama "Iana", até à Galiza. Assinala ainda dois itinerários para Compostela, quatro "Caminhos de Santiago" se os definirmos por mar ou por terra, onde no mapa se pode identificar perfeitamente São Jacub como ponto de chegada, em que um deles parte da Baiona francesa e outro de Coimbra.

"Tabula Rogeriana" é um mapa criado pelo geógrafo árabe Al-Idrisi no século XII. Este mapa é um dos mais importantes da Idade Média e representa uma das tentativas mais avançadas da época de descrever o mundo conhecido. O mapa foi encomendado pelo rei normando Rogério II da Sicília e elaborado por Muhammad al-Idrisi, um geógrafo, cartógrafo e viajante árabe. Al-Idrisi nasceu em Ceuta e estudou em Córdoba. A "Tabula Rogeriana" foi concluída em 1154 e é considerada uma das representações mais precisas do mundo conhecido até aí na Europa medieval. Ela descreve detalhadamente a Europa, a Ásia e o Norte da África, com informações sobre cidades, rios, montanhas e rotas comerciais.

Al-Idrisi combinou informações de fontes escritas e orais, incluindo relatos de viajantes e comerciantes. Ele também usou conhecimentos geográficos dos antigos gregos e romanos, bem como de estudiosos islâmicos. O mapa de Al-Idrisi teve uma enorme influência na cartografia medieval e foi utilizado por muitos exploradores e estudiosos europeus. Sua precisão e nível de detalhe eram excecionais para a época. A referência a Carignano no contexto do mapa pode se referir a uma das representações detalhadas das regiões italianas e seus centros urbanos importantes. No entanto, o foco principal do trabalho de Al-Idrisi era criar uma visão abrangente do mundo conhecido, mais do que detalhar a cidade específica de Carignano.



Tabula Rogeriana

Em 1351, o papa Clemente VI emitiu uma bula papal conhecida como "Romanus Pontifex", na qual concedia as Ilhas Canárias como feudo ao nobre castelhano Luís de La Cerda. A concessão das Ilhas Canárias como feudo a Luís de La Cerda pelo papa Clemente VI é um exemplo fascinante das dinâmicas europeias no século XIV à volta das ilhas do Atlântico Norte. Esta concessão foi feita como uma forma de recompensar Luís de La Cerda por seu apoio à Santa Sé. Na época, as Ilhas Canárias eram disputadas pelos reinos cristãos da Península Ibérica, principalmente Castela e Portugal. A concessão papal foi uma tentativa de influenciar e pacificar os conflitos sobre o controlo das ilhas.

A concessão das Ilhas Canárias, como feudo a Luís de La Cerda, como seria de esperar, provocou controvérsias e disputas entre os dois reinos. Tanto Castela como Portugal reivindicaram direitos sobre as ilhas, e naturalmente a bula papal seria contestada por esses dois estados. E, por conseguinte, a concessão papal não resolveu nada. As Ilhas Canárias continuaram a ser um pomo de discórdia. As ilhas acabaram nas mãos da Coroa de Castela após décadas de conflitos e expedições militares. Este episódio revela como na Idade Média o Papa se arvorava não apenas a arbitrar, mas a influenciar a política pela via diplomática. 

Na Idade Média, Europa e África eram dois mundos bastante distintos e separados por grandes barreiras geográficas, culturais e políticas. A interação entre esses dois continentes era limitada e frequentemente indireta. A geografia desempenhava um papel fundamental na separação entre Europa e África. O Mar Mediterrâneo, por exemplo, servia como uma fronteira natural entre o sul da Europa e o norte da África, mas também como uma rota de comércio e interação cultural. O conhecimento mútuo entre Europa e África era limitado. Os europeus tinham informações fragmentadas e muitas vezes imprecisas sobre as terras além do Mediterrâneo, baseadas em relatos de viajantes, missionários, comerciantes e exploradores.

 As rotas comerciais através do Mediterrâneo facilitavam algum contacto entre europeus e africanos, especialmente nas cidades costeiras e nos pontos de comércio como o Egito, o norte da África e mais tarde ao longo da costa oeste da África. A falta de conhecimento direto levava frequentemente a imaginações e estereótipos sobre o outro continente. Por exemplo, o mito do Preste João, um rei cristão fabuloso que supostamente governava um reino poderoso no Oriente ou na África, foi amplamente difundido na Europa medieval. As Cruzadas e as primeiras explorações marítimas, como as dos portugueses ao longo da costa africana, começaram a ampliar lentamente o entendimento europeu sobre a África, mas isso era um processo gradual e muitas vezes motivado por interesses comerciais e religiosos.

Portanto, durante a Idade Média, Europa e África eram de facto mundos separados e distintos, com interações limitadas e um conhecimento mútuo fragmentado. Esse contexto histórico contribuiu para uma percepção de separação e distinção entre os dois continentes até que as explorações e o intercâmbio comercial começaram a ampliar as fronteiras.

A partir do século XV, as explorações portuguesas ao longo da costa africana, lideradas por figuras como Henry, o Navegador, começaram a alterar gradualmente essa dinâmica. As descobertas de ouro, novas rotas comerciais e o impulso para encontrar um caminho marítimo para as Índias aumentaram o interesse europeu pela África. Até o final do século XV, o Oriente, com suas riquezas e rotas comerciais estabelecidas, capturava muito mais a imaginação e o interesse dos europeus do que a África, que permanecia em grande parte desconhecida e inexplorada além das fronteiras do Saara. As explorações marítimas portuguesas marcam um ponto de viragem significativo nessa dinâmica.

Durante a Idade Média e o início da Idade Moderna, houve uma proliferação de livros de viagens fictícios ou semi-fictícios, nos quais os autores frequentemente descreviam lugares exóticos e distantes sem terem realmente visitado esses locais. Esses relatos muitas vezes misturavam elementos de fantasia, mitologia e exagero, alimentando a curiosidade europeia por terras desconhecidas. Autores como John Mandeville (cujo nome era provavelmente fictício) escreveram obras como "A Viagem de John Mandeville", onde descreviam terras distantes como a Índia, China e o Médio Oriente com detalhes fantasiosos. Mandeville afirmava ter viajado extensivamente, mas hoje é amplamente aceite que suas histórias eram em grande parte fictícias.

Esses relatos eram frequentemente criados para entreter e educar os leitores europeus sobre o mundo além de suas fronteiras. Eles capitalizavam o crescente interesse por novas culturas e geografias, mesmo que baseados em informações limitadas ou inexistentes. Os autores desses livros frequentemente incluíam elementos fantásticos, como monstros, cidades de ouro e estranhos costumes, que capturavam a imaginação do público europeu. Essas narrativas ajudavam a construir uma imagem mítica e distorcida de terras distantes. Apesar de sua natureza fictícia, esses relatos contribuíram para a formação do imaginário europeu sobre o mundo além de suas fronteiras. Eles influenciaram a literatura, a arte e até mesmo as explorações reais ao inspirar exploradores a buscar novas rotas e descobertas.

 Com o tempo, muitos desses relatos foram desmascarados como ficções ou exageros, especialmente com o avanço das explorações geográficas e científicas. No entanto, eles continuam a ser estudados como reflexos das atitudes e curiosidades da época.

Ibn Battuta é reconhecido como um dos maiores viajantes da história, e sua obra, "Rihla" (ou "Rihlat Ibn Battuta"), é uma das mais importantes e detalhadas crónicas de viagem já escritas. Ibn Battuta nasceu em Tânger, Marrocos, em 1304, e iniciou a jornada de viagem em 1325, aos 21 anos de idade. Ele viajou extensivamente por mais de 30 anos, visitando territórios que hoje abrangem mais de 40 países, desde o norte da África até ao interior da Ásia, e relatou suas experiências detalhadamente em "Rihla".

Começou a jornada com o objetivo de realizar uma peregrinação a Meca (hajj), um dever religioso para os muçulmanos. No entanto, sua curiosidade e desejo de conhecer novos lugares e culturas o levaram a expandir significativamente suas viagens além da peregrinação inicial. Ao contrário de relatos de viagens fictícios da época, "Rihla" é considerado um testemunho autêntico e detalhado das regiões e pessoas que Ibn Battuta encontrou em suas viagens. Ele descreveu aspectos geográficos, políticos, sociais, econôómicos e culturais dos lugares visitados. "Rihla" teve um impacto duradouro na compreensão do mundo islâmico dessa época. Suas observações e relatos fornecem insights valiosos sobre as condições e interações sociais da época, além de detalhar as rotas comerciais e os centros intelectuais e religiosos.

Ibn Battuta é celebrado por sua coragem, curiosidade intelectual e capacidade de se adaptar a diferentes culturas e ambientes. Sua obra inspirou gerações posteriores de viajantes e exploradores, e continua a ser estudada como um importante registro histórico e cultural. Portanto, Ibn Battuta é considerado um dos maiores viajantes de todos os tempos não apenas por causa da extensão de suas viagens, mas também pela profundidade e precisão de suas observações em "Rihla", que o distinguem de muitos outros viajantes da época.

Durante a Idade Média, os muçulmanos do Magrebe, e do mundo islâmico em geral, estavam significativamente à frente dos cristãos europeus em termos de conhecimento geográfico e científico. Os estudiosos muçulmanos preservaram e expandiram significativamente o conhecimento científico e geográfico da Antiguidade Clássica, herdado dos gregos, romanos e persas. Isso incluiu trabalhos de geógrafos como Ptolomeu, cujas obras foram traduzidas para o árabe e posteriormente desenvolvidas e aprimoradas. O Islão incentivou a peregrinação a Meca (hajj), o que levou muitos estudiosos e viajantes a explorar vastas áreas do mundo conhecido na época. Ibn Battuta é um exemplo proeminente dessa tradição de viajantes muçulmanos que documentaram as suas viagens detalhadamente.

 Centros de estudo, como Bagdade, Córdoba, Cairo e Fez, tornaram-se importantes locais onde o conhecimento geográfico e científico era estudado, ensinado e aprimorado. Universidades e bibliotecas abrigavam vastas coleções de manuscritos e livros que eram consultados por estudiosos de todo o mundo islâmico. Os geógrafos e cartógrafos muçulmanos desenvolveram técnicas avançadas de cartografia, incluindo projeções de mapas e métodos de medição astronómica, que eram superiores aos utilizados na Europa medieval. O mundo islâmico serviu como um ponto de encontro cultural e intelectual entre o Oriente e o Ocidente, facilitando a tradução de obras antigas e a transmissão de conhecimento científico e geográfico para a Europa através da Espanha islâmica (al-Andalus).

 Esses fatores combinados fizeram com que os muçulmanos do Magrebe, e do mundo islâmico em geral, estivessem à frente dos europeus cristãos na época medieval no que diz respeito ao conhecimento geográfico, científico e cultural. Esse legado teve um impacto profundo no desenvolvimento posterior da ciência e da exploração geográfica em todo o mundo. Houve exceções notáveis na cartografia medieval feita por judeus, como o caso da cartografia maiorquina. Durante a Idade Média, alguns judeus na Europa, especialmente na Península Ibérica e nas ilhas do Mediterrâneo, desempenharam um papel significativo no desenvolvimento e na prática da cartografia. A Península Ibérica, sob domínio muçulmano (al-Andalus), proporcionou um ambiente relativamente tolerante onde judeus, cristãos e muçulmanos coexistiam e compartilhavam conhecimentos.

Os judeus, com sua educação em línguas, matemática e astronomia, frequentemente atuavam como tradutores e intermediários culturais entre diferentes comunidades. Isso facilitou a transmissão de conhecimentos geográficos e científicos entre culturas. Maiorca, uma ilha no Mediterrâneo, se destacou como um centro importante para a cartografia medieval. A Escola Cartográfica de Maiorca, que floresceu nos séculos XIII e XIV, produziu mapas que combinavam tradições cartográficas árabes, judaicas e europeias. Os judeus desempenharam papéis chave nesse contexto, contribuindo com seu conhecimento técnico e linguístico.

 A cartografia maiorquina incorporou técnicas avançadas de projeção de mapas, conhecimentos astronómicos e precisão na representação geográfica. Isso influenciou o desenvolvimento da cartografia europeia, especialmente durante a expansão marítima e as descobertas geográficas dos séculos seguintes. O trabalho dos cartógrafos judeus em Maiorca e em outras partes da Península Ibérica deixou um legado duradouro na história da cartografia. Suas contribuições ajudaram a melhorar a precisão e o detalhamento dos mapas medievais, influenciando a forma como o mundo era compreendido e representado na época. Portanto, os cartógrafos judeus, especialmente aqueles associados à Escola Cartográfica de Maiorca, representam uma exceção significativa na história medieval, contribuindo de maneira substancial para o avanço do conhecimento cartográfico na Europa medieval.

quinta-feira, 18 de julho de 2024

Os eunucos


Nos antigos impérios, em que o Império Otomano é paradimático para este tema, os eunucos ocupavam posições de confiança e poder. Mas os eunucos existiam tanto no Império Romano, sobretudo no Bizantino, como nas sucessivas dinastias imperiais chinesas. Como não podiam ter filhos naturais, as questões de herança ou traição dinástica não se colocavam. Além disso, a sua condição física muitas vezes os tornava mais confiáveis em certos papéis, como guardiões de haréns e lugares de confiança próximos de governantes.

O que arrepia em começo de conversa é o método físico utilizado para o efeito. Existiam vários métodos para a castração e formação de eunucos, mas geralmente envolviam a remoção dos testículos ou de ambos os testículos e o pénis. Isso poderia ser feito por cirurgia, mas muitas vezes, para além da castração química, as técnicas eram mais rudimentares. Se do ponto de vista político o objetivo residia na inexistência de descendência, é claro que nos ecossistemas dos haréns trazia conveniências acrescidas. No entanto, a sobrevivência depois dos procedimentos como não estava garantida devido aos efeitos secundários da agressão, tais operações eram acompanhadas de uma ritualidade muito especial. 



O Harém Ağası, eunucos negros do Harém Imperial Otomano

Os otomanos davam-se ao luxo de ter um para cada função: responsável pelas roupas do sultão; serviço de bebidas; serviço de carregamento de armas; ajudante para montar o seu cavalo; um era responsável por fazer o seu turbante; outro fazia de barbeiro. No palácio havia também um grande número de mordomos que levavam comida, água e madeira por todo o palácio e acendiam as lareiras e braseiros. Os porteiros (Kapıcı) contavam com várias centenas e eram responsáveis por abrir as portas em todo o palácio. O porteiro-chefe era responsável por escoltar convidados importantes até ao sultão.

O harém estava sob a administração dos eunucos, dos quais havia duas categorias: eunucos negros; eunucos brancos. Uma figura importante na corte otomana era o Eunuco Negro Chefe (Kızlar Ağası ou Harem Ağası). No controlo do harém havia uma rede perfeita de espiões. O eunuco chefe envolvia-se em quase todas as intrigas palacianas e poderia assim ganhar poder sobre o sultão ou um de seus vizires, ministros ou outros oficiais da corte.


Cariye - concubina imperial

Cariye era uma mulher escravizada. Os direitos da mulher escravizada eram regulados dentro da lei islâmica. E o Kizlar Agha, Kızlarağası, também conhecido como o "Eunuco Negro Chefe" - era responsável pela guarda do harém imperial. Na lei islâmica, pela escravização de uma mulher, era o único caso em que o concubinato era legalmente permitido. Uma mulher tomada como concubina cariye tinha que obedecer ao seu dono masculino como se fosse um marido. No entanto, os filhos, homens ou mulheres, de uma concubina cariye eram legalmente livres. 

O harém imperial otomano, que era o harém do sultão otomano – composto pelas esposas, servos (tanto escravas quanto eunucos), parentes do sexo feminino e concubinas do sultão – ocupava uma grande ala do palácio que ficava isolada (seraglio). O harém era uma instituição. Desempenhou uma importante função social dentro da corte otomana, e exerceu considerável autoridade política nos assuntos otomanos, especialmente durante o longo período conhecido como o Sultanato das Mulheres entre 1533 e 1656. Historiadores afirmam que o sultão era frequentemente pressionado por membros do harém de diferentes origens étnicas ou religiosas quando estavam em causa certas geografias nas guerras otomanas de conquista. 

quarta-feira, 17 de julho de 2024

A família Krupp


A família Krupp é uma das mais proeminentes da Alemanha, conhecida por seu papel na indústria pesada, especialmente na região do Ruhr. Eles eram proprietários da Krupp AG, uma das maiores empresas de produção de aço e armamento do mundo. A família desempenhou um papel significativo na história industrial e política da Alemanha, especialmente durante os séculos XIX e XX.

Gustav Krupp von Bohlen und Halbach (Haia, 7 de agosto de 1870 — Schloss Blühnbach, 16 de janeiro de 1950) - diplomata e empresário alemão, e Wehrwirtschaftsführer no regime nazi. Era o quinto de sete crianças de Gustav von Bohlen und Halbach (1831-1890) e Sophie Bohlen (1837-1915). Foi educado em Karlsruhe antes de ir estudar leis e política. Foi senador da Sociedade Kaiser Wilhelm, desde sua fundação em 1911 até 1937. Processado no Tribunal de Nuremberg, depois da Segunda Guerra Mundial, não chegou a ser condenado, pois na época do julgamento já estava incapaz de responder pelos seus atos.



Gustav Krupp com a família

Helene Amalie Krupp, conhecida como "Tante Amalie", comprou uma fundição de ferro falida em Essen, Alemanha, em 1811. Ela foi uma figura crucial nos estágios iniciais da empresa familiar Krupp, que mais tarde se tornaria uma das maiores e mais influentes empresas siderúrgicas do mundo. Helene Amalie Krupp também investiu em minas de carvão para garantir o suprimento necessário de matéria-prima para as operações siderúrgicas da empresa. Esse investimento estratégico ajudou a consolidar a posição da família Krupp no setor industrial e a garantir um fornecimento estável de carvão, um componente essencial na produção de aço. Faleceu aos 97 anos em 25 de fevereiro de 1850. Ela desempenhou um papel fundamental no estabelecimento e crescimento inicial da empresa siderúrgica Krupp, contribuindo significativamente para o sucesso da dinastia Krupp.

Helene Amalie Krupp deixou uma considerável fortuna para seu neto, Friedrich Krupp, que posteriormente se tornaria uma figura central na expansão e consolidação da empresa siderúrgica Krupp. Essa herança financeira proporcionou a base para o crescimento contínuo da empresa e para a ascensão da dinastia Krupp como uma das mais poderosas da Alemanha. Apesar da herança substancial deixada por sua avó, Friedrich Krupp enfrentou dificuldades financeiras significativas na gestão da empresa. Ele tomou uma série de decisões financeiras arriscadas e investimentos mal-sucedidos, levando a perdas consideráveis e à quase falência da empresa Krupp. Foi um período difícil para a família Krupp e para a empresa, mas a empresa acabou por sobreviver sob o comando de outros membros da família.

Sob a liderança de Alfried Krupp, filho de Friedrich, a empresa recuperou e se tornou um dos principais fornecedores de equipamentos militares para o regime nazi, incluindo armas, munições e maquinaria. Isso determinou a posição da empresa Krupp como potência industrial na Alemanha durante a Alemanha nazi. A empresa foi pioneira em técnicas de produção em larga escala e desenvolveu novos métodos de fabricação de aço, contribuindo assim para o rápido crescimento da indústria metalúrgica durante esse período de transformação económica e tecnológica.

A Revolução Industrial teve um impacto significativo nas economias globais, mas não foi responsável por "destronar" a China e a Índia do domínio mundial. Enquanto a Europa e, mais tarde, os Estados Unidos se industrializavam rapidamente durante esse período, a China e a Índia continuaram a ser importantes centros econômicos e culturais. Foi depois do impacto do imperialismo, colonialismo e a ascensão do capitalismo industrial, que se deram as mudanças nas dinâmicas de poder a nível global, inicialmente da Europa e a seguir dos Estados Unidos. Apesar do avanço da Revolução Industrial na Europa, o poder político e económico estava bastante fragmentado entre as diferentes nações europeias. Durante o século XIX, a Europa estava dividida em várias potências, como o Reino Unido, França, Alemanha, Áustria-Hungria e Rússia. Essa fragmentação levou a competições intensas entre as potências europeias por recursos, mercados e territórios coloniais. No entanto, a industrialização e o desenvolvimento económico acabaram fortalecendo certos estados, como o Reino Unido, França e Alemanha, que se tornaram líderes industriais e políticos dentro do continente europeu.

O capitalismo financeiro desempenhou um papel crucial no financiamento da Revolução Industrial. Durante esse período, houve um aumento significativo na disponibilidade de capital para investimento em novas indústrias, tecnologias e infraestruturas. Os investidores, muitos dos quais eram provenientes da classe mercantil e financeira emergente, direcionaram os seus recursos para empreendimentos industriais, como fábricas, ferrovias, minas e empresas de manufatura. Os mercados financeiros, especialmente na Inglaterra, forneceram o capital necessário para financiar esses empreendimentos, por meio de empréstimos, emissão de ações e outros instrumentos financeiros. O surgimento de bancos comerciais e de investimento também facilitou o acesso ao crédito e ao capital para empresários e empreendedores. Assim, o capitalismo financeiro, juntamente com a acumulação de capital proveniente do comércio, da agricultura e de outras atividades económicas, foi fundamental para impulsionar o crescimento económico e a transformação industrial durante o período da Revolução Industrial.