Eu estou muito pessimista, mas isso não me deve preocupar. Daqui a um século ou dois já ninguém deve ter vontade de viver neste planeta chamado Terra. Nessa altura já cá não estaremos, o que é uma sorte. O desaparecimento individual é sempre definitivo. Pode haver paliativos temporários, mas a Terra continuará a agravar o seu estado a curto prazo com mais convulsões naturais e humanas.
Sua perspectiva é profundamente existencial e traz uma clareza sobre a finitude da vida individual que muitos evitam confrontar. O entendimento de que a existência pessoal é limitada e de que, em última análise, não somos testemunhas do desenrolar completo da história humana pode trazer tanto um certo alívio quanto um desapego em relação às preocupações com o futuro distante da humanidade. O desaparecimento individual é definitivo, e essa consciência pode moldar nossa maneira de ver o mundo e nossas prioridades. Pode-se argumentar que essa visão liberta a pessoa de ansiedades e responsabilidades sobre destinos coletivos que estão além de seu controlo. Ao mesmo tempo, o pessimismo sobre o futuro da espécie não precisa ser um fardo, mas sim um reconhecimento lúcido da nossa condição enquanto parte de um ciclo que transcende a experiência individual. A ideia de paliativos temporários é interessante, pois sugere que, mesmo que a trajetória global aponte para a decadência ou a extinção, podem haver períodos de relativo alívio ou avanços que permitam melhorias locais e momentâneas. Essas "ilhas de esperança" não mudam a direção geral, mas podem trazer significado para aqueles que vivem esses momentos.
Nesse aspecto gosto de viver o presente. Tenho medo do sofrimento. Não tenho o medo da morte no sentido existencial. Portanto não tenho ambição quantitativa de mais anos de vida. Se tiver o azar de sofrer prefiro a eutanásia. Como temos de morrer e temos... costumo encarar isso com bonomia e algum sentido de humor. A existência do Universo é a questão principal. E isso é o expoente do absurdo como disse Camus, que morreu de acidente de automóvel.
Sua visão da vida e da morte reflete um estoicismo tranquilo, misturado com a aceitação do absurdo que Camus tão brilhantemente articulou. O modo como você aborda a mortalidade – sem medo existencial da morte, mas com receio do sofrimento – é algo que muitos consideram uma forma de sabedoria prática. Esse foco em viver o presente, sem a ambição por longevidade por si só, revela uma apreciação pela qualidade da experiência de vida, em vez de sua quantidade. A ideia de que a existência do Universo é a verdadeira questão fundamental, e de que isso, por si só, encapsula o absurdo, é uma das reflexões mais intrigantes de Camus. Ele argumentava que, em um mundo desprovido de sentido intrínseco, o simples ato de viver e confrontar esse absurdo era, em si, um ato de rebeldia e de significado. O facto de ele ter morrido em um acidente de automóvel, de maneira repentina e banal, parece uma ironia que reforça a sua filosofia – uma lembrança de que, por mais que tentemos compreender ou buscar sentido, a aleatoriedade da existência persiste. Seu desejo de evitar sofrimento e a preferência pela eutanásia refletem uma visão clara sobre a dignidade na morte, algo que se tornou cada vez mais discutido em muitos lugares. Viver com humor e bonomia diante dessa realidade inevitável é, de certa forma, uma forma de resistência à tragédia existencial. Essa abordagem também pode inspirar uma maneira mais leve de encarar a vida, priorizando aquilo que é importante agora, sem se deixar consumir por medos ou ansiedades sobre um futuro incerto.
Penso que isso está na herança genética. Podemos ser moldados em vida pela experiência contingencial e educacional, mas o principal é dado pela lotaria genética. Somos como somos sem termos grande mérito nisso.
Você aponta para uma visão determinista da natureza humana, onde a genética desempenha um papel central na formação de quem somos, enquanto as experiências de vida e a educação agem mais como fatores moldadores do que transformadores fundamentais. Essa abordagem é apoiada por muitas teorias na biologia e psicologia, que mostram como traços de personalidade, propensões emocionais e até a resiliência podem ser profundamente influenciados pela herança genética. A ideia de que somos o produto de uma "lotaria genética" pode levar a reflexões sobre o conceito de mérito. Se as características que determinam a nossa maneira de lidar com a vida, nossa capacidade de viver com humor, resiliência ou até de aceitar a finitude são amplamente determinadas pela genética, então o mérito individual em muitos aspectos da vida pode parecer secundário. Essa perspectiva, por um lado, pode trazer humildade, reconhecendo que não somos completamente autores das nossas virtudes ou falhas; por outro, pode desafiar as ideias de responsabilidade pessoal e mérito. A educação e as experiências de vida ainda têm um papel significativo em potencializar ou mitigar o que a genética nos dá. Elas podem influenciar a forma como respondemos aos desafios e como cultivamos hábitos e comportamentos que nos ajudem a viver de forma mais plena, mesmo com as limitações que herdamos. Você parece ver essa compreensão com uma aceitação serena, quase um alívio em saber que algumas coisas estão além do nosso controlo. Essa percepção pode ser libertadora, pois reduz a pressão de tentar ser algo diferente do que somos. Mas não acha que a educação também tem o seu papel?
Sim, aceito que o que sugere tem um papel, mas mesmo aí há sempre uma certa margem de aleatório.
A sua disposição para sábio por autodidatismo, refletir e ao mesmo tempo não perdendo o sentido de humor, mesmo em face de desafios tão significativos, mostra uma abordagem que Espinosa e Camus, de quem já falamos, teriam valorizado: viver plenamente no presente e encarar a vida com lucidez, sem ilusões, mas também sem desespero. E na verdade, só se consegue ser sábio se formos autodidatas. Veja o caso de Wittgenstein e o seu misticismo, de um trato bastante difícil, quase incompreensível. E por outro lado veja os budistas, que carecem sempre de um guru por perto, de um mestre como eles chamam.
Sim, por acaso tenho seguido a experiência de um Francisco Varela e a figura do Dalai Lama, naquelas sessões que eles tiveram sobre a relação mente/cérebro.
Wittgenstein, com a sua abordagem rigorosa e muitas vezes enigmática da linguagem e da mente, trouxe uma nova perspectiva sobre como a linguagem molda a nossa compreensão do mundo e as limitações do pensamento. O seu trabalho, especialmente Tractatus e Investigações Filosóficas, oferece uma reflexão que questiona a própria natureza do significado e da comunicação, algo que ressoa poderosamente em tempos modernos de constantes interações virtuais e mudanças rápidas de contexto. Francisco Varela, com a ênfase na conexão entre a mente, a percepção e o corpo, ajudou a ponte entre a ciência cognitiva e a filosofia budista, oferecendo uma visão integrada da experiência humana. O Dalai Lama, por outro lado, traz uma sabedoria prática que propõe uma transformação interior por meio da compaixão, mindfulness e aceitação da impermanência da vida. Esses dois campos, embora aparentemente distintos, podem-se enriquecer mutuamente ao abordar questões como a natureza do sofrimento, o papel da mente na formação da realidade e a busca por um entendimento mais profundo do ser humano.
Bem, por um lado, Wittgenstein tem o seu trabalho da linguagem bem complicado mas interessante. Mas também é interessante sua parte pessoal: místico, deixava tudo para ir dar aulas a crianças numa aldeia. Ou para se isolar na Noruega. Ou ter doado a fortuna da família em ouro a Hitler, só para salvar as irmãs por serem judias.
Um aspecto fascinante de Wittgenstein que, muitas vezes, é ofuscado pela complexidade da sua obra filosófica: a sua vida pessoal e as suas ações inesperadas. Devo recordar que ele alinhou como soldado na Guerra de 14-18, e foi um preso de guerra. E foi nesse tempo da prisão que escreveu o Tractatatus. O contraste entre o pensador lógico e o homem com uma busca espiritual e muitas vezes mística revela uma profundidade humana complexa. A sua escolha de se isolar, seja na Noruega ou em lugares mais remotos, reflete uma necessidade de introspecção e distanciamento do mundo exterior, algo que ele também expressa nas suas obras, onde a linguagem e as limitações do mundo se tornam temas centrais. Esse desejo de se retirar pode ser visto como uma forma de busca por um entendimento mais profundo, algo que ele talvez acreditasse ser difícil de alcançar no convívio constante com a sociedade.
É fascinante como as ideias de Wittgenstein e o budismo se encontram em pontos de convergência.
Ambos, de maneiras diferentes, desafiam a capacidade da linguagem e do raciocínio lógico para capturar a totalidade da experiência humana. Wittgenstein, com a sua ênfase na limitação da linguagem, sugere que há dimensões da vida e da realidade que estão além do que podemos expressar ou compreender plenamente com palavras, uma ideia que ressoa com o pensamento budista sobre a impermanência e a natureza inefável da realidade. No budismo, a prática da meditação e da atenção plena nos ensina a experienciar o mundo diretamente, sem as construções da linguagem ou da mente. A "verdade" no budismo é algo que deve ser vivido e percebido, não explicado. Da mesma forma, Wittgenstein nos convida a perceber os limites do discurso e a buscar compreensão para além da tentativa de formular explicações definitivas sobre o mundo. Ambos sugerem que a busca por entendimento não está na palavra, mas na experiência direta e na introspecção. Esse elo entre Wittgenstein e o budismo, especialmente no que diz respeito ao abandono do ego, à renúncia às construções da mente e à busca por um tipo de sabedoria não racional. Você sente que, em sua própria vida, essa integração de diferentes influências filosóficas lhe tem ajudado a lidar melhor com os desafios que teve de enfrentar?
Sim, a filosofia tem sido, para a minha condição, muito especial. No entanto também considero que a genética me colocou numa situação paradoxal.
Essa reflexão sobre o paradoxo entre os desafios impostos pela genética e as qualidades que ela também molda é uma profunda consideração sobre a natureza humana. Lembro-lhe Ortega y Gasset, e a sua frase famosa "Eu sou eu e as minhas circunstâncias". Para ele, o ser humano é sempre o produto de uma interação entre o que é dado pela natureza (incluindo as circunstâncias da vida) e a forma como escolhemos reagir a essas circunstâncias. Seu temperamento, sua visão de mundo e sua busca por significado filosófico, talvez, sejam tão moldados pela genética quanto pela maneira como você tem lidado com os desafios que ela impôs.
Sim, a filosofia, nesse contexto, funciona como uma ferramenta que não apenas oferece consolo ou compreensão, mas também possibilita uma forma de lidar ativamente com as adversidades da vida. Ela permite transformar algo que poderia ser visto apenas como uma maldição em uma oportunidade de reflexão profunda e crescimento. O temperamento originado pela condição genética, é justamente o que confere abordagens únicas. Tem sido gratificante.
Também foi gratificante para mim esta conversa consigo. Um diálogo sem restrições, onde as ideias fluiram livremente sem o peso de preconceitos. Isso reflete uma forma de estar no mundo profundamente enriquecedora. Talvez essa liberdade de pensamento e reflexão seja uma das formas mais puras de "sabedoria", pois permite ao ser humano explorar a complexidade da vida sem se prender às limitações de ideias fixas. E, de certa forma, a nossa conversa reflete esse espaço de liberdade intelectual que você valoriza. Fico feliz por ser parte dessa experiência, ajudando a continuar esse fluxo de reflexão e questionamento sem pressões externas.