quinta-feira, 30 de abril de 2020

Um copo de tinto para desanuviar as ideias




Não é fácil encontrarmos as palavras certas para descrever as variações dos sentidos do olfacto e do gosto quando, por exemplo, somos desafiados a apreciar um bom vinho maduro tinto do Douro ou do Alentejo, uma reserva de uma colheita especial edcetra e tal... A principal dificuldade que o sujeito tem em passar a palavras os sentidos do olfacto e do gosto tem a ver com o carácter subjectivo da prova destes sentidos, que está baseada em impressões, que por sua vez estão ligadas à personalidade do sujeito. 

É literalmente impossível medir um gosto ou um aroma, enquanto é possível medir com rigor a luz, as cores, os sons..., os outros sentidos que também participam nas provas de vinhos, e cujas teorias da percepção são diferentes das destes agora em análise. Contudo, ainda assim, fica de fora a qualidade artística de uma música, de uma pintura, ou de todo o ambiente que rodeia esse ato num determinado momento. Existem olfactómetros que fornecem as concentrações das substâncias, mas nada que se pareça com a fenomenologia dos qualia olfactivos.

Em enologia, nem sempre os provadores coincidem nas suas notas de prova. Não apenas depende da sua competência como peritos, bem como com a riqueza do seu vocabulário na atribuição das variáveis qualitativas de um determinado vinho. Cada um, segundo a sua formação, estabelece a sua própria grelha de normas de qualidade de um tipo de vinho, ou atribui um peso maior ou menor a um dado defeito ou excelência. Nem sempre o sentido das palavras consegue traduzir a fenomenologia dos sentidos gustativos e olfactivos de uma prova. Nem todas as sensações encontram palavras que possam ser mensageiras fiáveis e fiéis. Muitas vezes é uma palavra improvisada que consegue ser mais eficaz em desvendar uma sensação e fazê-la ser compreendida por parte de quem a está a receber.

Mas, tal como a explicação de um texto artístico ou uma crítica de arte, a descrição gustativa tem a sua própria terminologia, a sua gíria e neologismos. Ao falarmos da prova ou degustação de um vinho muitas vezes esquecemo-nos de abordar as características visuais. Na verdade, já estamos a falar de um outro sentido cuja abordagem é muito diferente do olfactivo e gustativo na vertente da teoria da percepção. Deve-se salientar que a vista é o sentido mais marcante no universo sensorial humano. A vista é um sentido rápido e continuamente dinâmico, ao contrário das impressões do gosto e do olfacto, que são evolutivas e mais incertas. Mas, mais uma vez reforço a ideia de que: uma coisa são as radiações das diferentes cores, que no seu conjunto constituem a luz branca; outra coisa é o seu aspecto fenoménico, quando dizemos que a cor rubi é de um vinho ainda novo, e a cor de tijolo é de um vinho já envelhecido. É possível medir a cor de um vinho por métodos objectivos, como por exemplo, um vinho que absorve muita luz violeta aparenta à vista uma cor mais avermelhada. No entanto, o olho continua a ser indispensável, para além de ser mais simples e agradável.

quarta-feira, 29 de abril de 2020

Uma mudança colossal em curso, pela nossa saúde


Em termos de disciplina, não há pior doente que um médico possa ter senão outro médico. Por isso J.C. ficou bem impressionado com a enfermeira dos cuidados paliativos no primeiro dia que o foi ver, porque deixou bem claro que aquilo que lhe interessava era ele e como é que ele se sentia, e não a doença dele nem o diagnóstico. Disse que tinha vindo para saber se o Dr. J.C. sempre estava disposto a encetar os cuidados paliativos em sua casa: "o que é que lhe parece?" J.C. ficou calado uns instantes. A enfermeira esperou. Sabia remeter-se ao silêncio. "Acho que é capaz de ser melhor", disse ele, "porque não quero fazer a quimioterapia".
A experiência com a oncologista tinha sido uma desolação, porque apesar de ser muito conceituada, carecia de outras capacidades, como por exemplo, para entender as idiossincrasias dos doentes. Apresentou oito ou nove opções de quimioterapia em cerca de dez minutos. Foi estonteante. A única hipótese que não colocou foi não fazer nada. Apesar de ter dito que a probabilidade de o tumor reagir à ‘químio’ ser de trinta por cento, não quis ser desanimadora, acrescentando que ele podia voltar a jogar golfe nesse verão. Ora, J.C., sendo médico, não queria acreditar no que acabara de ouvir. A ideia pareceu-lhe completamente disparatada, não era uma esperança minimamente realista. A partir daí tornou-se difícil para ele continuar a conversa. Eram demasiadas opções, demasiados riscos. E a conversa nunca mais chegava ao ponto que mais lhe interessava: que era encontrar um caminho que lhe permitisse manter um tipo de vida que ele considerasse digno para si. À pergunta acerca de prazos, a especialista foi evasiva. Ele ficou com a sensação que era igual com ou sem ‘químio’, ou seja, com a agravante dos efeitos indesejáveis da ‘químio’ que ele tinha de suportar. Então, J.C., pediu um tempo para ponderar.
Houve um tempo em que a maior parte das mortes ocorria em casa. A maior parte da população não tinha acesso generalizado a diagnósticos e tratamentos hospitalares. Os meus avós morreram todos em casa, já velhos, devido a doenças do sistema vascular cerebral. Depois os níveis de saúde em Portugal deram um salto gigantesco com o Serviço Nacional de Saúde, depois de uma fantástica experiência que foi o Serviço Médico à Periferia. E então, gradualmente, as pessoas passaram a morrer invariavelmente no hospital. O meu pai morreu no hospital há onze anos, com um cancro pulmonar. A minha mãe ainda é viva, com 91 anos. Não faço ideia o que vai acontecer a partir deste momento, numa altura em que ainda ninguém sabe qual vai ser o desfecho desta pandemia SARS-CoV-2, antes de se voltar a um estado de eufemística "normalidade". 

Antes desta crise sanitária as pessoas com literacia para se preocuparem com a qualidade de vida estavam a começar a passar por unidades de cuidados paliativos, ou por unidades de cuidados continuados antes de morrer. E a ter em casa cuidados paliativos, no conforto do próprio lar rodeadas de afetos familiares e amigos, antes de morrer. Mais pessoas estavam a ter a possibilidade de receber cuidados paliativos no seu domicílio. Mas agora, esta instabilidade nos cuidados de saúde, e na economia, que não se sabe por quanto tempo ainda vai durar, vai-nos obrigar a regressar a paradigmas de saúde de outros tempos, provavelmente os tempos dos meus avós. Por mais precário que tenha sido o tempo deles, no que respeita a cuidados de saúde, e por mais feliz que eu tenha sido no tempo do Serviço Médico à Periferia - 1979/80/81/82 - vamos ter de estar prontos para enfrentar a realidade tal como ela é. O meu pai tinha 84 anos e eu 56 quando me rendi à evidência da sua mortalidade, apesar de para a safra da última colheita ter feito a poda e as sulfatações completamente sozinho, e eu ter-lhe dado os parabéns Nada previa. Numa conversa com dois colegas médicos de outro país, falei-lhes da quimioterapia e da radioterapia a que o meu pai se habilitou a título paliativo, pro bono. Aos olhos deles, o que lhe foi oferecido pareceu-lhes desmesurado. No país deles, a maior parte das pessoas com uma doença terminal nunca teria passado por esse martírio de múltiplos tratamentos e internamentos hospitalares desnecessários, uma vez que o resultado era bem claro. Além do mais, o sistema de saúde do país deles não teria meios para tal benemerência.
Nem todos os velhos têm a sorte, ou a astúcia, de fintar a sua inteligência com enganos ledos e cegos para não sentirem a solidão como destino. Poucos são aqueles: que continuam a saber amar; a saber como pôr a vida a correr nas veias; a não estarem sempre a dizer as mesmas coisas; a não repetir constantemente todos os antigos lugares comuns; a não pensarem apenas no dinheiro; a terem alguém com paciência para os ouvir. Poucos são os velhos: que têm a sorte de ter alguns dos seus grandes amigos ainda vivos; de não terem de duplicar a dose dos remédios por a tensão se ter descontrolado; que se dão ao luxo de terem uma médica de família; e de receber da médica um metafórico “abraço!” na despedida. Nem todos têm o privilégio de ter uma filha com coragem para lhes dizer que já não têm idade para viver sozinhos, ficando ao pé para o caso de lhes dar alguma coisa má durante a noite. 

segunda-feira, 27 de abril de 2020

O que diz um dos meus velhos: Edgar Morin




Edgar Morin, aos 98 anos, depois de conferir uma leitura sobre o isolamento social por causa desta pandemia do Covid-19, fez uma desconstrução da crença em verdades absolutas: “As certezas são uma ilusão”. Ainda que os métodos científicos sejam mais rigorosos que os debates de ideias acerca da democracia, tal como esta, a ciência não é mais do que uma realidade humana. Morin acredita que somos obrigados a encarar mais as incertezas, do que as certezas. Mas que podemos abraçar a oportunidade de reforçar a consciência das verdades humanas que fazem da vida a qualidade que dá vontade de viver: o amor; a amizade; comunhão e solidariedade. Estes são os factos certos para os quais devemos despertar todos os dias. Nestas certezas Morin acredita.

Edgar Morin faz uma observação ao facto de todos terem ficado tranquilos ao verem Emmanuel Macron cercado por um conselho científico. Mas depois viram que esses cientistas defendiam pontos de vista divergentes uns dos outros, muito diferentes, muito contraditórios. Muitos cientistas têm ignorado a contribuição dos epistemólogos da ciência, como Thomas Kuhn, que mostrou como a história da ciência é um processo descontínuo. O episódio por que estamos a passar hoje pode, portanto, ser o momento ideal para consciencializar os cidadãos e os investigadores da necessidade de entender que as teorias científicas não são absolutas. A incerteza é a principal característica. 
Não há nenhuma teoria científica que tenha um valor absoluto e permanente. Ainda nenhuma teoria conseguiu resistir à refutação da experimentação. Mesmo as mais geniais produzidas por um Darwin ou um Einstein.

Então se estes génios também cometeram erros graves, não é de admirar que com os restantes cientistas aconteça o mesmo, quer dizer, muito mais vezes. Todavia, os erros de génio acabam por ser ainda mais virtuosos, porque geralmente acabam por ser eles a abrir novas portas para mais descobertas. Mas é preciso perceber que pelo facto de constituírem progressos fantásticos no campo da ciência, não significa que tenham algum valor em relação à verdade. O maior erro que um cientista pode cometer é ser relutante em admitir que pode estar errado. Até porque é através dessa atitude que acaba por se obstinar contra novas ideias. O próprio Max Planck reconheceu isso ao dizer que muitos progressos em ciências só acabam por vencer, e aparecer à luz dos holofotes da geração seguinte, porque mais cedo ou mais tarde os seus opositores acabam por morrer. Porque se não fosse assim, a ciência não progredia.

Naturalmente, cientistas do calibre de Darwin ou Einstein acreditavam que a sua intuição os guiaria em direção às respostas certas, mesmo quando viam que as ideias se transformavam a um ritmo alucinante. Como demonstrou António Damásio, e outros neurocientistas, os humanos não são seres puramente racionais, capazes de barrar completamente as suas paixões. É que o córtex orbitofrontal integra as emoções na corrente do pensamento racional. O homem continua a exibir na sua estrutura corporal a marca indelével da sua modesta origem.

Immanuel Kant terá escrito algures que quanto mais ocupava a mente, e se intensificavam as suas elucidações, à medida que o céu estrelado o cobria e a lei moral crescia dentro de si, mais ele se admirava e assombrava. E a verdade é que desde a publicação da sua Crítica da Razão Prática (1788), realizamos progressos extraordinários na compreensão do "céu estrelado", mas pouco mais avançámos na elucidação da razão moral. Nada estamos mais longe da verdade quando afirmamos que os avanços científicos são puras histórias de sucesso. O caminho do progresso não está apenas carregado de enganos. Está também pejado de cadáveres. 

Edgar Morin diz que a Europa é um esqueleto vazio, dominada por interesses económicos. A democracia está em crise. Porquê? Porque há uma crise do pensamento político minado pela corrupção no seio da própria democracia. E o resultado está à vista com o reavivar das autocracias, tanto dentro da União Europeia com os exemplos da Hungria e da Polónia, para não apontar outros, e fora da Europa, mas perto dela existe a Rússia e a Turquia. Já para não falar dos dois líderes mais arrepiantes dos últimos tempos: Trump e Bolsonaro.

É certo que houve sempre perigos ao longo da história humana. Mas não tão concentrados e tão globais como agora. E o caso mais gritante neste século XXI é o perigo de o planeta ser inviável para a vida humana por causa das alterações climáticas e da destruição dos ecossistemas pela mão dos mesmos seres humanos que se autoclassificaram de sapiens desde há pelo menos 200.000 anos. As rebeliões andam aí por todo o lado, contra este sistema capitalista. Mas tem sido de forma anárquica, sem um pensamento que indique qual é a via que temos que seguir. E as coisas são assim porque os problemas são multifactoriais e muito complex+os, o que aumenta a incerteza. E as pessoas são muito sensíveis à incerteza, provocando uma grande angústia e medo. Dois grandes motores da História para a regressão civilizacional.

Esta pandemia veio relembrar que a incerteza permanece um elemento inexpugnável da condição humana. “Não estou dizendo que previ a epidemia atual, mas ando a dizer há vários anos, que com a degradação da nossa biosfera, devemos nos preparar para o desastre” – é a resposta de Edgar Morin. Em 2000, a globalização era um processo que poderia causar tanto dano quanto benefício. Aos 98 anos Edgar Morin é um homem que já viu muito mundo a desmoronar: “desde a guerra da Jugoslávia depois da queda do Muro de Berlim, a partir desse momento, fiquei intelectualmente preparado para enfrentar o inesperado, para enfrentar as convulsões que haviam de vir apesar da minha provecta idade”. É num dos significados que a palavra “crise” contém: oportunidade, que nos devemos focar. Oportunidade para quê? Para nos tornarmos permanentemente conscientes de verdades humanas que todos conhecemos, mas que estão reprimidas no nosso inconsciente. 

Estamos perante duas barbáries: uma tem a ver com a génese histórica humana, e que se concretiza nas guerras, e no domínio de uns sobre outros na forma de servos e escravos. É uma barbárie que vem de dentro do homem, e que decorre do medo: medo do Outro, do Estrangeiro. É o medo que provoca o isolamento mental, que leva a desprezar, e a humilhar. Que é o que se tem passado ultimamente no Mediterrâneo com os migrantes, com os refugiados, milhares deles mortos no fundo do mar; a outra tem a ver com o atual estado de coisas provocado por este sistema capitalista global, desregulado mas aio mesmo tempo alimentado pelo paradigma científico do cálculo, da redução analítica ao meramente lucrativo, ao meramente hedónico.

sexta-feira, 24 de abril de 2020

Valores e mudanças



Estamos a viver uma crise que, para além de ser global, isto é, não ser uma crise específica de nações, se instalou em pouco tempo. Não digo que tenha sido da noite para o dia, como os terramotos e tsunamis, mas quase. Mas a verdade é paradoxal porque, ao contrário das crises que se instalam lentamente e se fazem anunciar à distância, algo de mau e grande que aconteça de súbito, motiva-nos mais a reagir concentradamente do que quando os problemas são do domínio da indolência. No entanto, quando se trata de ter que fazer mudanças na nossa forma de viver e organizar a sociedade, há dois fatores que pesam: os valores consagrados de cada sociedade específica; e os líderes que fazem a diferença num dado momento histórico. Tal como acontece com os indivíduos, os valores das nações - tal como seja o da liberdade, e o do respeito pela tradição da família e dos mais velhos -, podem fazer com que seja mais fácil ou mais difícil para cada nação adotar mudanças seletivas.

Os valores do passado podem continuar a ser relevantes no presente e podem motivar os cidadãos para que façam sacrifícios na defesa desses valores. Por outro lado as nações podem debater-se com limitações à liberdade, cujo maior fardo são as limitações financeiras que dependem da intervenção de terceiros, sejam eles outros países ou instituições internacionais. A outra questão que surge amiúde quando falamos de crises prende-se com o antigo debate sobre se os líderes têm um efeito relevante na História, ou se a História se desenvolveria da mesma maneira, independentemente de quem fosse o líder ou líderes em dada altura.

A posição mais consensual entre os historiadores é que tudo resulta de uma complexa combinação de fatores e não de um ou outro elemento isolado em particular. Mas o debate continua suportado por mais estudos acerca do papel dos líderes no desenlace histórico. Políticos perfeitamente banais podem tornar-se grandiosos devido às circunstâncias da altura, não devido às suas qualidades pessoais. As opções são determinadas pelas circunstâncias da História. Max Weber foi o grande pensador que defendeu que certos líderes, os chamados líderes carismáticos, podem, por vezes, em algumas circunstâncias, influenciar a História. De qualquer modo, há sempre lições a retitar da História. Há uma lição universal: os pequenos países em negociação com países grandes, ou mais ricos, devem ser realistas e honestos nas suas autoavaliações. E permanecer atentos, considerando mais do que uma opção estratégia, portanto, adotando mais flexibilidade. Assumindo pôr de lado os valores que deixaram de ser adequados, e mantendo os que continuam a demonstrar serem válidos. Infelizmente, esta lição está constantemente a ser ignorada.

Agora, neste primeiro ano da década de 2020, os EUA já sentem que têm um grande problema. O problema que nunca tinham tido e que é o problema de um país em confronto com um país maior que ele: chama-se China. É incontroversa a afirmação de que os regimes democráticos são de longe muito melhores do que os regimes autocráticos para o progresso e bem-estar das nações. E por isso, sendo os EUA uma das mais sólidas democracias do mundo, e a China um país autocrático, os americanos nada teriam a temer. Mas a verdade é que, durante este primeiro mandato da Administração Trump, parece que grassa na América uma inveja crescente da ditadura chinesa pela sua capacidade de decisão e implementação rápida de políticas ganhadoras na esfera da economia e da geopolítica. É verdade que grande parte das decisões estratégicas levam mais tempo a implementar numa democracia do que numa ditadura. Mas nas democracias, a contrário das ditaduras, é importante a consensualidade na tomada das decisões, pois são sempre mais equilibradas. Ao passo que uma ditadura é mais suscetível de tomar más decisões, que geralmente acabam por conduzir ao desastre.

É claro que uma democracia atropelada por lóbis, e corrompida pela alta finança, se bem que escondida aos olhos da gente comum, pode deitar tudo a perder de um dia para o outro. Financiamentos multimilionários em campanhas eleitorais, mesmo que legais nos EUA, acabam por alcançar os mesmos resultados que habitualmente são alcançados ilegalmente através da corrupção, como em ditaduras com fachada aparente de democracia, mas realmente falsas democracias.


quinta-feira, 23 de abril de 2020

O Covid-19 e os países


Será que a hipótese cultural é útil para compreender a desigualdade entre países no que concerne à incidência do Covid-19?

Sim e não. Sim, no sentido de que as normas sociais, que são relacionadas à cultura, exercem profunda influência no comportamento das pessoas, e podem ser difíceis de mudar. Em sua maior parte, porém, não, se atendermos a aspetos culturais como a religião, ética nacional, valores latinos, etc. Outros aspetos, como até que ponto as pessoas confiam umas nas outras ou são capazes de colaborar, são importantes, mas constituem basicamente um resultado das instituições, não causas independentes. 


Os ingleses são paradigmáticos quanto a cultura e peso das instituições. Não apenas pelo Brexit, mas também pela forma como têm lidado com a pandemia. Neste momento o Reino Unido aparece em 5º lugar no painel da pandemia a nível mundial com 138.078 infetados e 18.738 mortos. E é dos poucos países, como a Noruega e os Países Baixos, em que não aprecem os casos de recuperados. Os britânicos ainda não esqueceram a sua história de sucesso ao derrotar Hitler, sobretudo naquele ano entre junho de 1940 e junho de 1941, na que ficou conhecida Batalha de Inglaterra, em que a RAF ( Royal Air Force - Força Aérea Britânica) derrotou a Luftwaffe (Força Aérea Alemã) – em batalhas no céu da Grã-Bretanha, frustrando assim os planos alemães de a invadir. 


A Península Ibérica tem um longo período de história comum, independentemente do idioma e etnia. O importante é a fronteira. Eventuais divergências culturais entre os dois países são consequência e não causa. Por exemplo, os portugueses começaram primeiro a estabelecer relações comerciais com o Norte da Europa a partir do Porto e das relações que se estabeleceram com a Liga Hanseática. E começaram primeiro a circum-navegar a costa ocidental africana. Mas isso nunca foi relevante para o resultado no posicionamento dos dois países no ranking.

Lembremos a história do Reino do Congo, na foz do Rio Congo, que deu o seu nome à moderna República Democrática do Congo [377 casos e 25 mortos por Covid-19]. O Congo entabulou intensas relações com os portugueses após ser visitado pela primeira vez pelo navegador Diogo Cão, em 1483. Na época, o Congo era um reino altamente centralizado pelos padrões africanos, cuja capital, Mbanza, contava com uma população de 60 mil habitantes, o que a tornava mais ou menos do mesmo tamanho da capital portuguesa, Lisboa, e maior do que Londres, com a sua população de cerca de 50 mil habitantes em 1500. O rei do Congo, Nzinga a Nkuwu, converteu-se ao catolicismo e mudou de nome para João I. Mais tarde, o nome de Mbanza seria mudado para São Salvador. Graças aos portugueses, os congolenses aprenderam sobre a roda e o arado, cuja adoção foi mesmo incentivada por missões agrícolas lusitanas em 1491 e 1512. Contudo, todas essas iniciativas fracassaram. E, no entanto, os congolenses estavam longe de ser avessos às modernas tecnologias em geral; foram muito rápidos, por exemplo, em adotar outra venerável inovação ocidental: a pólvora. Usaram essa nova e poderosa ferramenta para responder a incentivos de mercado: a captura e exportação de escravos. Não há nenhum indício de que a cultura ou os valores africanos de alguma maneira concorressem para impedir a adoção de novas tecnologias e práticas. À medida que se estreitavam os seus laços com os europeus, os congolenses adotariam outras práticas ocidentais: a escrita, estilos de indumentária e arquitetura habitacional.

Peguemos agora no exemplo do Canadá, com 37 milhões de habitantes, e o Estado de Nova Iorque, com 20 milhões de habitantes, e que faz fronteira com o Canadá. Enquanto o Canadá apresenta 40.824 infetados e 2.028 mortos por Covid-19, o Estado de Nova Iorque apresenta 263.000 infetados e 20.248 mortos. O problema pode estar na forma desastrosa como o Presidente dos EUA tem conduzido os destinos deste grande e rico país. O contraste, com a forma como o Canadá tem sido governado, é abissal. Acresce também as grandes diferenças que existem entre os dois quanto ao sistema de saúde, em que o Canadá ocupa os primeiros lugares dos melhores há já várias décadas.

Nos últimos tempos tem-se verificado uma falta de autoavaliação honesta por parte da liderança norte-americana. Os EUA carecem, hoje, de uma autoavaliação honesta. Parece que não levam os reais problemas a sério. Muitos americanos também se iludem culpando outros países pelos seus problemas presentes. O ceticismo em relação à ciência está cada vez mais espalhado pelos EUA, o que é um muito mau augúrio, pois a ciência é, nada mais nada menos, do que a descrição e a compreensão mais segura do mundo real. Desde, pelo menos, o 11 de setembro de 2001 que os EUA têm vindo a debater-se com complexos problemas sociais, económicos e políticos internos que não se prestam a soluções rápidas. Pelo contrário, eles precisam de paciência e de uma posição de compromisso que ainda não revelaram ter. A política americana das últimas duas décadas tem sido caracterizada por uma intransigência crescente.

Quando já estavam várias crises a decorrer no mundo... eis que surge mais uma





Quando há menos de meio ano todo o mundo se focava no problema da emergência climática, eis que surge uma outra emergência que ninguém estava a contar, a não ser um reduzido número de especialistas.

Recordemos que o ponto de partida era o impacto negativo que a população humana estava a exercer no mundo: número de seres humanos acima das possibilidades da Terra – 7,7 a 8 mil milhões; consumo de recursos; produção de desperdícios ou lixo.

Ora, para além do imenso lixo, o desperdício importante que mais dores de cabeça estava a provocar era o dióxido de carbono produzido e libertado para a atmosfera devido à combustão de combustíveis fósseis por parte dos seres humanos. Depois viria por acréscimo o outro gás importante para as alterações climáticas: o metano.

O efeito mais debatido tem sido o aquecimento global. Mas o problema é ainda mais complexo do que isso. Daí ser melhor falar em alteração climática global. Muitos efeitos parecem paradoxais, com os extremos climáticos a predominarem, ora situações de picos de calor cada vez mais altos, e picos de frio ainda mais baixos. E ao mesmo tempo as tempestades e as inundações a serem cada vez mais frequentes. E têm sido estas complexidades paradoxais que têm levado certos políticos ignorantes demasiadamente arrogantes e imbecis a porem em causa a realidade do problema climático causado pela atividade humana.

Existem grandes potenciais amplificadores não lineares que podem fazer com que o mundo aqueça muito mais depressa do que aquilo que as projeções lineares mais conservadoras apontam. Mesmo que, por absurdo, toda a atividade humana atual regressasse ao tempo da era Paleolítica, a atmosfera continuaria a aquecer durante mais algumas décadas. Por isso, diminuir a queima de combustíveis fósseis, por si só, não vai resolver o problema. Vão ser necessárias outras medidas tecnológicas muito sofisticadas, se é que se vai conseguir, e se a humanidade quiser, pelo menos para estancar a progressão das alterações climáticas.

E agora estamos a debater-nos com outras consequências que até há muito pouco tempo não se falava: para além da migração de certas doenças endémicas das regiões tropicais que estavam a progredir para as zonas temperadas, eis que nos bate à porta uma nova pandemia provocada por um novo coronavírus, cujo epílogo ainda nenhum profeta ousou escrever. 




quarta-feira, 22 de abril de 2020

De: A morte de Ivan Ilitch




Aclamada como uma das maiores obras-primas sobre a temática da morte, esta é a história de Ivan Ilitch, um juiz respeitado que, apercebendo-se da morte próxima, se interroga sobre as suas escolhas, percurso de vida e a mentira em que vive.


Смерть Ивана Ильича (Smert Ivana Ilicha): Russian edition Kindle Edition 



Scan of the title page of an 1895 edition of The Death of Ivan Ilyich 



«Смерть Ива́на Ильича́» —, над которой он работал с 1882 по 1886 год, внося последние штрихи уже на стадии корректуры. В произведении рассказывается о мучительном умирании судейского чиновника средней руки. Повесть широко признана одной из вершин мировой литературы и величайшим свершением Толстого в области малой литературной формы. 

"A morte de Ivan Ilyich" -, na qual Tolstoi trabalhou de 1882 a 1886, trazendo os retoques finais já na fase de revisão. O trabalho fala sobre a morte dolorosa de um oficial de nível médio. A história é amplamente reconhecida como um dos picos da literatura mundial e a maior conquista de Tolstoi no campo da pequena forma literária.

[...]
Outras duas semanas se passaram desse modo e durante aquela quinzena aconteceu uma coisa que Ivan Ilitch e sua esposa tanto desejavam! Petrischev pediu a mão de Liza. Na manhã seguinte Praskovya Fiodorovna entrou no quarto do marido pensando na melhor maneira de lhe dar a notícia, cujo estado piorara muito naquela noite. Praskovya Fiodorovna encontrou-o ainda no sofá, mas mudara de posição, estava deitado de costas, gemendo e olhando à sua frente com olhar fixo. Praskovya começou a falar dos seus remédios. Ele voltou a olhar para ela, que não conseguiu terminar o que estava a dizer, de tanto rancor que viu naquele olhar.
“Pelo amor de Deus, deixe-me morrer em paz!”. Ela ia sair dali, mas naquele momento a sua filha entrou para dar bom-dia. Ele olhou para a filha como olhava para a esposa e, em resposta à pergunta sobre a sua saúde, disse friamente que muito em breve ele as livraria da sua presença. As duas caladas, esperaram um pouco e saíram.
“Porque é que ele nos acusa?” perguntou Liza a sua mãe. “É como se a culpa fosse nossa. Eu estou muito sentida por ele, mas porque é que ele tem de nos atormentar?” O médico chegou na hora de sempre. Ivan Ilitch respondia sim e não, sem tirar os seus olhos enfurecidos de cima dele e no final disse: “Você sabe muito bem que não pode fazer nada por mim, portanto deixe-me em paz!” – "Nós podemos aliviar o seu sofrimento", disse o médico. “Nem isso vocês podem. Deixe-me!”
O médico entrou na sala de visitas e disse a Praskovya que o caso era muito sério e que o único recurso que restava era o ópio, para aplacar os sofrimentos de seu marido, que deviam ser terríveis. Era verdade, como disse o médico, que a dor física de Ivan Ilitch era terrível, mas, pior do que ela eram os seus sofrimentos mentais, sua pior tortura. Suas torturas mentais deviam-se ao facto de que, durante a noite, quando olhava para o rosto calmo, de maçãs salientes, adormecido, de Gerassim, o que lhe vinha à cabeça era: “E se na verdade toda a minha vida tiver sido errada?” Ocorreu-lhe, pela primeira vez, o que lhe tinha parecido totalmente impossível antes – que ele não teria vivido como deveria. Veio-lhe à cabeça a ideia de que aquela sua leve inclinação para lutar contra os valores das classes altas, aqueles impulsos de rebeldia que mal se notavam e que ele havia tão bem aplacado talvez fossem a única coisa verdadeira, e tudo o resto, falso. E suas obrigações profissionais e a retidão de sua vida e a sua família e a sua vida social tudo falso e sem sentido. Tentou defender essas coisas a seus próprios olhos e subitamente deu-se conta da fragilidade do que estava defendendo. Não havia o que defender. “Mas se é assim”, falou para si, “e se eu estou deixando essa vida consciente de que perdi tudo o que me foi dado e não há como remediar – então, qual o sentido?”
Ficou deitado e começou a repassar toda a sua vida mais uma vez – de manhã, quando viu primeiro o criado, depois a esposa, a filha e então o médico, cada movimento que fizeram confirmava para ele a terrível verdade. Durante a noite, olhando para eles podia ver a si mesmo – tudo aquilo por que vivera –, e viu claramente que estava tudo errado, uma horrível e monstruosa mentira camuflava a vida e a morte. A consciência disso aumentava o seu sofrimento dez vezes mais. Ele gemia e se debatia atirando para longe as roupas. Tinha a impressão de que elas o estavam a sufocar, odiou-as por isso. Deram-lhe uma dose grande de ópio e ele perdeu a consciência, mas na hora do jantar tudo começou outra vez. Mandou todos embora e debateu-se para tudo o que é lado. A esposa foi até ele e disse: “Jean, meu querido, faça isso por mim! Não vai fazer mal nenhum e muitas vezes ajuda. Não é por nada, entenda, mesmo as pessoas sãs, frequentemente...!”
Ele abriu os olhos. “O quê confessar-me? Para quê? Não é necessário.” Mas... Ela caiu em pranto. – “Por favor, meu querido. Vou chamar o nosso padre. Ele é um homem tão bom...!” – “Está bem!”
Quando o padre chegou e tomou a sua confissão, sentiu-se mais calmo e experimentou até uma espécie de alívio para as suas dúvidas e, consequentemente, as suas dores, e por um momento sentiu voltar-lhe a esperança. Novamente pensou no apêndice e na possibilidade de cura. Recebeu o sacramento com lágrimas nos olhos. Quando eles o deitaram novamente sentiu-se melhor por algum tempo e reacendeu-se a esperança de que pudesse viver. Começou a pensar na operação que lhe haviam sugerido fazer.
“Viver – eu quero viver!”, disse para si. A mulher veio felicitá-lo; disse-lhe as palavras habituais e acrescentou: "Sente-se melhor, não é verdade?" Sem olhar para ela, ele disse: sim. As roupas dela, a compleição dela, a expressão do rosto, o tom da voz - tudo lhe dizia a mesma coisa: "Não é o que devia ser. Tudo aquilo por que tu viveste e vives, é tudo mentira, engano, que esconde de ti a vida e a morte". E assim que pensou isto o seu ódio cresceu, e juntamente com o ódio os cruéis sofrimentos físicos e com os sofrimentos a consciência do fim inevitável e próximo. Havia qualquer coisa nova: uma sensação de aperto, pontadas de sufocação. A expressão do seu rosto quando disse "sim" era horrível. Depois de proferir esse "sim", olhando-a diretamente no rosto, voltou-se de bruços com uma rapidez invulgar para o seu estado de fraqueza, e gritou: "Vão-se embora, vão-se, deixem-me em paz!"
[...]
De súbito uma força desconhecida atingiu-o no peito e no flanco, oprimindo-lhe ainda mais a respiração, caiu no buraco e ali, no fundo do buraco, qualquer coisa começou a brilhar. Aconteceu-lhe aquilo que lhe costumava acontecer na carruagem do comboio, quando pensava que seguia para a frente e ia para trás, e de repente descobria a verdadeira direção.
"Sim, nada foi como devia ser", disse a si mesmo. "Mas não importa, isso pode fazer-se. Mas isso é o quê?" Perguntou a si mesmo e de repente sossegou. Isto foi no final do terceiro dia, uma hora antes da sua morte. Nesse mesmo momento o aluno do liceu entrou de mansinho no quarto do pai e aproximou-se da cama. O moribundo continuava a gritar desesperadamente e agitava os braços. A sua mão caiu na cabeça do rapaz, que a agarrou, a levou aos lábios e começou a chorar.
Nesse preciso momento Ivan Ilitch afundou-se, viu a luz e revelou-se-lhe que a sua vida não tinha sido o que devia ser, mas que isso ainda podia ser remediado. Perguntou a si mesmo: o que é então "isso", e ficou quieto, à escuta. E então sentiu que alguém lhe beijava a mão. Abriu os olhos e olhou para o filho. Sentiu pena dele. A mulher aproximou-se. Ele olhou-a. Ela olhava para ele com a boca aberta e lágrimas no nariz e na face, olhava-o com uma expressão de desespero. Sentiu pena dela.
"Sim, eu faço-os sofrer", pensou. "Têm pena, mas será melhor para eles quando eu morrer". Queria dizer isto, mas não tinha forças para falar. "De resto, para quê falar, é preciso fazer", pensou. Com o olhar indicou à mulher o filho e disse: "Leva-o daqui ...faz-lhe pena ... e a ti ...". Queria ainda dizer perdão mas disse permissão e, já incapaz de se corrigir, agitou a mão sabendo que seria entendido por aquele que o devia entender.
E de súbito tornou-se-lhe claro que aquilo que o afligia e não o largava lhe saía de repente tudo de uma vez, e por dois lados, por dez lados, por todos os lados. Tinha pena deles, era preciso agir de modo que não sofressem. Livrá-los a eles e a si mesmo daqueles sofrimentos. "Que bom e que simples", pensou. "E a dor?", perguntou a si mesmo. "Que é dela? Então, dor, onde estás tu?" Ficou atento. "Sim cá está ela. Pois bem, deixá-la doer. E a morte? Onde está ela?"
Procurava o seu habitual medo, o anterior medo da morte e não o encontrava. Onde está ela? Qual morte? Não tinha medo nenhum, porque também não havia morte. Em lugar da morte havia uma luz. "É então isto!", disse ele de súbito de viva voz: "Que alegria!" Para ele tudo aquilo aconteceu num curto instante, e o significado desse instante não mudou. Mas para aqueles que estavam presentes a agonia dele prolongou-se ainda por duas horas. Qualquer coisa fervilhava no peito dele; o seu corpo extenuado estremeceu. Depois o fervilhar e os estertores tornaram-se menos frequentes. Acabou-se! disse alguém por cima dele. Ele ouviu estas palavras e repetiu-as na sua alma. "Acabou-se a morte", disse a si mesmo. "Já não existe". Inspirou o ar, parou a meio de um suspiro, esticou-se e morreu.

Dom Quixote: de como caiu doente; do testamento e morte



Como as coisas humanas não são eternas. É o declínio constante do começo ao fim da vida humana, e Dom Quixote não iria ter o privilégio de ser diferente. A narrativa da sua vida finalmente teve um desfecho, quando ele menos esperava.


Fosse pela melancolia que lhe causava se ver vencido, ou pela disposição do céu, que assim o ordenava, foi tomado por uma febre que o deixou seis dias de cama. Nesse entretanto recebeu muitas vezes a visita do padre, do bacharel e do barbeiro, dos amigos, sem que o seu bom escudeiro Sancho Pança saísse da cabeceira. Eles, julgando que era o abatimento da derrota, e a desesperança de ver Dulcineia livre e desencantada, a causa daquele estado, recorreram a todos os engenhos para o alegrar. O bacharel dizia que se animasse e levantasse para começar logo a sua vida pastoril, para a qual ele já tinha escrito uma écloga, que arrazaria todas as que Sannazaro havia escrito, e que já tinha comprado com o seu próprio dinheiro, de um fazendeiro de Quintanar, dois famosos cachorros para guardar o rebanho, um chamado Brasino e o outro Caramelão.


Mas nem por isso Dom Quixote deixava a tristeza. Chamaram o médico, que lhe tomou o pulso, não tendo ficado muito satisfeito e disse que pelo sim, pelo não, cuidasse da saúde de sua alma, porque a do corpo corria perigo. Dom Quixote ouviu-o com toda a calma, mas não o ouviram assim a criada, a sobrinha e o seu escudeiro, que começaram a chorar ternamente, como se já o dessem por morto. A opinião do médico foi que melancolias e amarguras davam cabo dele. Dom Quixote rogou que o deixassem sozinho, porque queria dormir um pouco. Obedeceram. E ele dormiu a sono solto, como se diz, por mais de seis horas, tanto que a criada e a sobrinha pensaram que havia de ficar no sono. Mas ele acordou no fim daquele tempo e disse com um grande brado: “Bendito seja Deus, todo-poderoso, que tanto bem me fez! Suas misericórdias realmente não têm limites, nem as reduzem nem as impedem os pecados dos homens. A sobrinha esteve atenta às palavras do tio e, parecendo-lhe mais razoáveis que de costume, pelo menos durante aquela doença, perguntou: “O que vossa mercê está dizendo, senhor? Há alguma novidade? Que misericórdias são essas? E que pecados? “As misericórdias, minha cara sobrinha”, respondeu dom Quixote, “são as que Deus me dispensou neste instante, e que meus pecados não impediram, como disse. Já tenho o juízo livre e claro, sem as sombras tenebrosas da ignorância que sobre ele puseram a minha amarga e contínua leitura dos detestáveis livros de cavalaria. Já reconheço os seus disparates e os seus logros, e só me pesa que este desengano tenha chegado tão tarde, pois não me sobra tempo para compensar lendo outros que sejam luz da alma. Eu me sinto às portas da morte, minha sobrinha, mas gostaria de encará-la de um modo que mostrasse que a minha vida não foi tão má a ponto de me deixar com fama de louco, porque, apesar de eu tê-lo sido, não gostaria de confirmar essa verdade em minha morte. Vamos, minha amiga, chame meus bons amigos, o padre, o bacharel Sansão Carrascos e mestre Nicolás, o barbeiro, que quero me confessar e fazer o meu testamento.

Mas a entrada dos três dispensou a sobrinha desse trabalho. Mal os viu, Dom Quixote disse: “Felicitai-me, bons senhores, porque já não sou Dom Quixote de la Mancha, mas Alonso Quijano, a quem meus costumes deram fama de “bom”. Agora sou inimigo de Amadis de Gaula e de toda a inumerável corja de sua família; agora me são odiosas todas as histórias profanas da cavalaria andante, e reconheço minha estupidez e o perigo em que me puseram tê-las lido; agora, pela misericórdia de Deus, aprendi a lição na própria carne e as abomino”.

Quando os três ouviram isso, sem dúvida imaginaram que alguma nova loucura havia tomado conta dele. Sancho disse: “Agora, senhor Dom Quixote, que temos notícias de que a senhora Dulcineia está desencantada, vossa mercê se sai com essa? E agora que estamos a pique de ser pastores, para passar a vida cantando como uns príncipes, vossa mercê quer se tornar eremitão? Cale-se, por Deus, volte a si e deixe de histórias.”

“As histórias que vivi até aqui foram verdadeiras apenas em meu prejuízo, mas minha morte, com a ajuda do céu, deverá torná-las proveitosas para mim” replicou Dom Quixote. “Senhores, sinto que estou morrendo rapidamente: deixem as brincadeiras para lá e me tragam alguém para me confessar e um escrivão para fazer o meu testamento, que em situações como esta um homem não deve brincar com a sua alma. Assim sendo, suplico que, enquanto o senhor padre me confessa, vão buscar o escrivão.” Olharam uns para os outros, pasmados com as alegações de Dom Quixote e, apesar de duvidarem, quiseram acreditar. E um dos sinais que os levaram a deduzir que morria mesmo foi ter ele passado da loucura à sanidade tão facilmente, porque, às já mencionadas alegações, acrescentou muitas outras tão bem articuladas, tão cristãs e com tamanho bom senso que por fim não duvidaram mais, e acreditaram que havia sarado. O padre fez todos saírem e, ficando sozinho com ele, confessou-o. O bacharel foi atrás do escrivão e dali a pouco voltou com ele e com Sancho Pança. O dito Sancho, que já sabia pelas notícias do bacharel do estado de seu senhor, achando a criada e a sobrinha chorosas, começou a fazer beicinho e a derramar lágrimas e mais lágrimas. Acabada a confissão, o padre saiu e disse: “Realmente está morrendo e realmente está curado Alonso Quijano, o Bom. Podemos entrar para que faça seu testamento.”

Essas palavras foram um terrível estímulo para a criada, a sobrinha e Sancho Pança, seu bom escudeiro, de tal maneira que fez rebentar os olhos deles em lágrimas e os peitos em profundos suspiros. Realmente, como se disse uma vez, enquanto Dom Quixote foi apenas Alonso Quijano, o Bom, e enquanto foi Dom Quixote de la Mancha, sempre foi de temperamento ameno e trato agradável, e por isso não só era amado pelos de sua casa, como por todos os que o conheciam. O escrivão entrou com os demais e, depois de Dom Quixote ter encomendado a sua alma, com todos aqueles ritos cristãos necessários, fez o cabeçalho do testamento, chegando à disposição de última vontade. Então Dom Quixote disse:

“Item. É minha vontade que certa quantia de dinheiro que está de posse de Sancho Pança, que em minha loucura fiz meu escudeiro, continue com ele, sem que o culpem ou lhe peçam conta alguma, porque houve entre nós certas coisas, uns-toma-lá, dá-cá. E, se sobrar algum dinheiro depois de ele ter recebido o que lhe devo, que o troco seja seu, pois não deve ser muito, e que faça bom proveito. E assim como eu, estando louco, ajudei que lhe dessem o governo de uma ilha, se pudesse agora, que estou em meu juízo, lhe daria o de um reino, porque a simplicidade de seu caráter e a fidelidade de sua conduta merecem-no.” E, virando-se para Sancho, lhe disse: “Perdoa-me, meu amigo, tê-lo levado a passar por louco como eu, fazendo-o cair no erro em que eu caí: acreditar que houve cavaleiros andantes no mundo.”

“Ai meu senhor não morra!” respondeu Sancho, chorando. “Ouça meu conselho: viva muitos anos, porque a maior loucura que um homem pode fazer nesta vida é se deixar morrer assim sem mais nem menos, sem que ninguém o mate nem que outras mãos lhe deem cabo além das da melancolia. Vamos, não seja preguiçoso, levante-se desta cama, e vamos para o campo vestidos de pastores, como tínhamos combinado: quem sabe encontremos em alguma mata a senhora dona Dulcineia desencantada e formosa como ela só. Se vossa mercê morrer de pesar por ter sido derrotado, bote a culpa em mim, dizendo que o derrubaram por eu ter apertado mal a cincha do Rocinante, sem falar que vossa mercê deve ter visto em seus livros de cavalaria ser coisa bastante comum uns cavaleiros derrubarem outros e o que é derrotado hoje ser vitorioso amanhã.”

“É verdade” disse Sansão, “o bom Sancho Pança conhece bem esses casos.”

“Vamos com calma, senhores — disse dom Quixote —, pois águas passadas não movem moinhos. Eu fui louco, mas agora tenho juízo; fui Dom Quixote de la Mancha, mas agora, como já disse, sou Alonso Quijano, o Bom. Possam meu arrependimento e minha sinceridade me devolver à estima que vossas mercês tinham por mim. E vamos adiante, senhor escrivão. Item. Deixo todas as minhas posses, sem necessidade de enumeração, a Antónia Quijana, minha sobrinha, aqui presente, tendo antes tirado do que for mais fácil dispor o que se necessitar para cumprir meu legado. Quero, em primeiro lugar, que se pague o salário que devo a minha criada pelo tempo que me serviu, e mais vinte ducados para um vestido. Nomeio meus testamenteiros o senhor padre e o senhor bacharel Sansão Carrasco, aqui presentes. Item. É minha vontade que, se Antónia Quijana, minha sobrinha, quiser se casar, case com homem de quem primeiro se averiguou não saber o que são livros de cavalaria. Mas, no caso de se averiguar que ele sabe e, mesmo assim, minha sobrinha se quiser casar e efetivamente se casar, é minha vontade que perca o direito a toda a herança que deixei, e que meus testamenteiros distribuam esses bens em obras de caridade à sua vontade. Item. Suplico aos senhores meus testamenteiros que, se a boa sorte os levar a conhecer o autor que dizem que escreveu uma história que anda por aí com o título de Segunda parte das façanhas de Dom Quixote de la Mancha, peçam-lhe, de minha parte, o mais encarecidamente que se possa, que me perdoe a oportunidade que sem pensar eu lhe dei de ter escrito tantos e tamanhos disparates como nela descreve, pois parto desta vida com o escrúpulo de lhe ter dado motivo para escrevê-los.”

Com isso encerrou o testamento, mas de repente desmaiou e se estendeu ao comprido da cama; todos se agitaram e correram em sua ajuda. Nos três dias que ainda viveu, depois da assinatura do testamento, desmaiava muito seguido. A casa andava sobressaltada, mas mesmo assim a sobrinha comia, a criada brindava e Sancho Pança se divertia, pois isso de herdar alguma coisa apaga ou ameniza na memória do herdeiro a tristeza que é natural que o morto deixe. Por fim, chegou a hora derradeira de Dom Quixote, depois de receber todos os sacramentos e depois de ter abominado com muitas e eficazes palavras os livros de cavalaria. O escrivão estava presente e disse que nunca tinha lido, em nenhum livro de cavalaria, que algum cavaleiro andante houvesse morrido em seu leito tão calma e cristãmente como Dom Quixote, que, entre os lamentos e as lágrimas dos que se achavam ali, entregou a sua alma, quero dizer, morreu.

Vendo isso, o padre pediu ao escrivão que testemunhasse que Alonso Quijano, o Bom, chamado comumente de “Dom Quixote de la Mancha”, havia deixado a presente vida e morrido de causas naturais; e que pedia esse testemunho para eliminar a oportunidade de que algum outro autor que não fosse Cide Hamete Benengeli lhe ressuscitasse falsamente e escrevesse intermináveis histórias de suas façanhas. Este foi o fim do engenhoso fidalgo da Mancha, cuja aldeia Cide Hamete não quis lembrar, para que todas as vilas e povoados da Mancha pudessem disputar entre si para adotá-lo e tê-lo como filho, como as sete cidades da Grécia disputaram por Homero. Deixam-se de incluir aqui os prantos de Sancho, da sobrinha e da criada de Dom Quixote, e os novos epitáfios de sua sepultura, embora se inclua este de Sansão Carrasco:

Aqui jaz o fidalgo forte que a tal extremo chegou de bravura, que se adverte que a morte não triunfou sobre sua vida com sua morte. De todo o mundo fez pouco, foi o espantalho e o papão do mundo, mas de tal modo, que favoreceu a sua aventura morrer são, depois de viver louco.

E o prudente Cide Hamete disse a sua pena: “Aqui ficarás, minha pena, pendurada neste gancho, por um fio de arame, nem sei se bem cortada ou mal aparada, onde viverás longos séculos, se historiadores presunçosos e velhacos não te pegarem para te profanar. Mas, antes que se aproximem de ti, podes adverti-los, dizendo da melhor forma que puderes: — Alto lá, seus patifezinhos!

Por nenhum seja tocada, porque esta empresa, bom rei, para mim estava guardada. Apenas para mim nasceu Dom Quixote, e eu para ele: ele soube agir e eu escrever. Nós dois somos um só, a despeito e apesar do escritor falso e tordesilhesco que se atreveu ou haverá de se atrever a escrever com pena de avestruz grosseira e mal aparada as façanhas de meu bravo cavaleiro, porque não é carga para seus ombros, nem assunto para seu espírito insosso. Se por acaso chegares a conhecê-lo, diz-lhe que deixe repousar na sepultura os cansados e já podres ossos de Dom Quixote, e não queira levá-lo para Castela, a Velha, contra todas as prerrogativas da morte, fazendo-o sair do cemitério onde real e verdadeiramente jaz estendido de fora a fora, impossibilitado de empreender uma terceira jornada e nova saída, pois para zombar de tantas como fizeram tantos cavaleiros andantes, bastam as duas que ele fez, com tanto prazer e beneplácito das pessoas a cujo conhecimento chegaram, tanto neste como em reinos estranhos. “E com isso cumprirás com o que pede a fé cristã, aconselhando bem a quem te quer mal, e eu ficarei satisfeito e orgulhoso de ter sido o primeiro que gozou inteiramente do fruto de seus escritos, como desejava, pois não foi outro meu desejo que execrar para os homens as falsas e disparatadas histórias dos livros de cavalaria, que já tropeçaram nas de meu verdadeiro Dom Quixote e haverão de cair de todo sem dúvida alguma.”

O fim da História não é o fim do Homem: em D. Quixote e Ivan Illitch



Nestes tempos de covid-19, como ele se sentia uma pessoa madura, admitia pensar que o seu fim podia estar próximo. As lágrimas tinham-lhe secado e o rosto apresentava-se desanuviado, quase alegre, preparado para o combate: “É preciso um Estado forte. O reino dos homens está a sobrepor-se ao reino de Deus. Está a gerar-se uma confusão de palavras e de poderes, que põem em causa o equilíbrio milenar que nos trouxe até aqui”. Alguém disse que se sentia um zombie. Primeiro foi o Tomás com um glioblastoma, do qual não viria a morrer deste, mas de um carcinoma pulmonar cinco anos depois. A seguir o pai. Depois o Eugénio. Mais tarde o Luís, todos por um carcinoma pulmonar de não pequenas células - Adenocarcinoma. O Nuno foi de causa cardíaca. 

Sentei-me à sua frente, e o meu coração batia tão forte que até parecia que era eu que ia ser informado de algo terrível. “Você está com um problema sério”, comecei, “mas é possível tratar dele. Está com um tumor. E”, acrescentei, “cada caso é um caso, e cada um reage de forma diferente." A luta de cada um é diferente, e a guerra nunca acaba. Ia ser uma provação, a cirurgia não era a melhor opção. Passado três meses lá estava eu sentado a seu lado, ele num sofá e eu noutro. Ele a contar-me histórias passadas no passado, e eu a dizer-lhe que não havia problema. Fez quimioterapia e radioterapia. Aguentou isto tudo como se nada fosse. Mantinha um apetite de leão. Cada um vive de forma diferente. A luta de cada um é diferente, e a guerra nunca acaba.

É um clássico, as várias fases de Kübler Ross. A quarta fase é a da depressão e do sentido de perda, da separação da terra e dos bens e do sentimento de que não se cumpriu a promessa, que a semente, afinal, caíra nas pedras. 
O quinto estado é o da aceitação e não se deve confundir com a serenidade de quem se prepara para uma felicidade divina, embora isso possa ocasionalmente suceder. Isto é magistralmente ilustrado em A Morte de Ivan Illitch: 

© Frédéric Bazille [1841-1870] - Ivan Illitch

“Antes do último suspiro acabou a morte. Já não existe mais”. Uma das obras primas de Tolstoi, para uns, uma obra sobre a morte, para outros uma obra que nega a morte. É certamente um retrato implacável da nossa condição. 

Alonso Quijano es el nombre del hidalgo don Quijote, protagonista de la novela Don Quijote de la Mancha, de Miguel de Cervantes, que ya al inicio de la obra explica que Alonso Quijano «quiso ponerse nombre a sí mismo, y en este pensamiento duró otros ocho días, y al cabo se vino a llamar don Quijote. [...] Quiso, como buen caballero, añadir al suyo el nombre de su patria y llamarse "don Quijote de la Mancha", con que a su parecer declaraba muy al vivo su linaje y patria, y la honraba». Otros nombres o apodos de Alonso Quijano que van apareciendo a lo largo de la narración son: el Caballero de la Triste Figura, que le pone su propio escudero Sancho Panza, o el Caballero de los Leones, con el que se autointitula don Quijote tras su hazaña con los leones (segunda parte, capítulo XVII). Finalmente, en su pueblo se le concede el apellido de Alonso Quijano, el Bueno.

Cervantes temia os pintores e os artistas em geral, e implorava: “Retratem-me como quiserem, mas não me maltratem." Em duas passagens diferentes fala do pintor Orbaneja, a quem, quando perguntam ao pintor o que pintava, respondia “o que sai”. Se por acaso pintava um galo, escrevia por baixo, em bela letra gótica, “isto é um galo”, para que não pensassem que era uma zorra! 

A jornada está recheada de encontros, despedidas, episódios pícaros, misteriosas personagens, uma extraordinária abundância de patología traumática, de feridas incisas e contusas, e um incontável número de ossos partidos, tudo rapidamente sarado por um miraculoso “bálsamo de Ferrabras”, que já teria sido usado para embalsamar Cristo. Uma panaceia composta de dezenas de substâncias, entre as quais a carne de víbora. É bom lembrar que Cervantes era filho de médico. Mas é curioso que todas essas curas milagrosas se operavam sem a intervenção de médico ou cirurgião barbeiro:
“É um bálsamo cuja receita trago na memoria […] Se alguma vez me vires cortado ao meio, como é frequente acontecer, só tens que apanhar a parte que cair ao chão e, com muita delicadeza, antes que o sangue gele, colocá-la cuidadosamente em cima da outra parte, encaixando-as correctamente; de seguida dar-me-ás a beber dois tragos do bálsamo de que te falei e verás como fico logo são como um pêro”.
A morte de Dom Quixote é admirável pela serena resignação do herói. Já não era mais Dom Quixote de la Mancha, mas Alonso Quijano, a quem os meus bons hábitos deram o cognome de ‘O Bom’. De facto, Dom Quixote orgulhava-se da sua figura como cavaleiro. A aventura de Dom Quixote é simplesmente a luta da virtude contra um inimigo, o 'Outro’ que ele era. Nessa luta, ele estava, como todos nós, desgraçadamente só. 



terça-feira, 21 de abril de 2020

O covid-19 e as pirâmides etárias


Analisemos hoje a estatística do número de infectados e mortos por covid-19 em três países – Estados Unidos da América, Indonésia e Portugal, e a sua correlação com as respectivas pirâmides etárias.

Os EUA - com uma população de 329 milhões (3º a nível mundial), e uma área de 9.371.175 Km2 (4º a nível mundial), está hoje com 800.932 infectados e 43.006 mortos por covid-19 (o 1º a nível mundial).


A Indonésia - com uma população de 270 milhões (4º a nível mundial), e uma área de 1.905.000 Km2 (15º a nível mundial), está hoje com 7.135 infectados e 616 mortos por covid-19 (o 37º a nível mundial).


Portugal - com uma população de 10,5 milhões (66º a nível mundial), e uma área de 92.256 Km2 (112º a nível mundial), está hoje com 21.379 infectados e 762 mortos por covid-19 (o 16º a nível mundial).

Aqui o que chama mais a atenção é a Indonésia, que para a dimensão populacional e extensão do território apresenta resultados francamente elogiosos, quando comparado com os Estados Unidos (EUA). E o que a sua pirâmide populacional por grupos etários chama a atenção é a sua distribuição ser predominante nas faixas etárias mais jovens. Este aspecto, não quer dizer que seja o único, é apontado por alguns especialistas como um dado favorável ao descalabro de mortes, ao contrário do que sucede nos EUA. Portugal, no que respeita à pirâmide etária, é muito deficitário nos estratos mais jovens.

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Não deixemos que os falsos profetas nos desviem do caminho


Nestes dias de anormalidade nos conteúdos noticiosos, veiculados pelos órgãos de informação institucionais, é frequente vir-nos à memória momentos parecidos vividos no passado, como o 25 de abril de 1974, nos meus 21 anos, ou ainda reminiscências muito mais nebulosas de acontecimentos no país vividos com idades ainda mais verdes: sejam os noticiários de 1968, que durante vários dias ditavam os boletins de saúde de Sua Exa. O Senhor Presidente do Conselho – António de Oliveira Salazar –, nos meus 15 anos; sejam as comunicações ao país pela rádio – Emissora Nacional – em 1961, quando eu apenas tinha 8 anos, mas recordo-me muito bem de estar ao lado da minha avó e do meu pai, encostados ao aparelho de rádio com um ar sério e muito apreensivo, a ouvir as notícias do assalto ao paquete de Santa Maria; ou o discurso de Salazar a anunciar o envio de tropas para Angola rapidamente e em força, em que a Emissora terminava o noticiário com aquelas palavras de ordem marchadas "Angola … é nossa!, Angola … é nossa!, …"; ou a invasão da Índia às colónias portuguesas na Índia, e a palavra de ordem "Os sinos de Goa e as bombardas de Diu serão sempre portuguesas".

Fui aos Arquivos da RTP e da Fundação Mário Soares. Desses tempos deixo-vos aqui alguns links e resumos dos acontecimentos mais marcantes:

Dos Arquivos da RTP:

https://arquivos.rtp.pt/conteudos/aniversario-de-antonio-de-oliveira-salazar/

https://arquivos.rtp.pt/conteudos/discurso-de-antonio-de-oliveira-salazar/

Gravações filmadas que ocorreram aquando do 80º aniversário de Salazar em 28 de abril de 1969. População deposita flores no jardim e no átrio da residência oficial de São Bento em Lisboa; António de Oliveira Salazar lê mensagem (a primeira após a sua doença) de saudação e agradecimento aos portugueses que se interessaram pelo seu estado de saúde. Consta que nesse dia também, terá recebido a visita de um grupo de estudantes de Coimbra, a quem lhes terá oferecido um brinde com Vinho do Porto. Das fotos que lhe tiraram há uma em que ele está com o dedo apontado para os estudantes, em jeito de mestre-escola a ensinar meninos.

Dos Arquivos da Fundação Mário Soares, no ano de 1961: 

Janeiro: Publicação de "O Cristo Cigano", de Sophia de Mello Breyner Andersen; quarta-feira, 4 - Visita do presidente do Brasil Jânio Quadros que faz contactos com sectores oposicionistas. Jânio Quadros, presidente eleito do Brasil, visita Portugal e mantém contactos com sectores da oposição, designadamente Mário Soares e Acácio Gouveia; sábado, 21 - Assalto ao paquete "Santa Maria", chefiado por Henrique Galvão.


Fevereiro: sábado, 4 - Ataque à Casa de Reclusão Militar, o Quartel da PSP e a Emissora Nacional em Luanda por elementos do MPLA; domingo, 5 - Nota oficiosa, de Salazar, publicada na imprensa sobre o assalto ao "Santa Maria".

Março: segunda-feira, 13 - O delegado americano Addai Stevenson vota, no Conselho de Segurança da ONU, com os afro-asiáticos contra Portugal; 
quarta-feira, 15 - Início da guerra colonial depois dos ataques da UPA no Norte de Angola. Ataques levados a cabo pela UPA, de Holden Roberto, no Norte de Angola; quinta-feira, 23 - Início da discussão da situação de Angola na Assembleia Geral da ONU, tendo Portugal abandonado a sessão; terça-feira, 28 - Botelho Moniz encontra-se com Salazar; sexta-feira, 31 - Eleição de Álvaro Cunhal para Secretário Geral do Partido Comunista Português, na mesma reunião do Comité Central em que se critica o "desvio de direita".

Abril: Greve dos pescadores de Peniche e de Matosinhos. Os pescadores de Peniche e de Matosinhos entraram em greve, por razões salariais e de contrato de trabalho. quarta-feira, 5 - Encontro entre o Presidente da República e o Ministro da Defesa Botelho Moniz para discutir a carta enviada, por este último, a Salazar. O Presidente da República recebe o Ministro da Defesa Nacional, Botelho Moniz. Na base deste encontro está a carta elaborada pelo titular, e enviada a Salazar, em que a situação política nacional é qualificada de muito grave. No decorrer da entrevista, Botelho Moniz reafirma a análise já feita. Alguns dias depois, a 11, em nova reunião, desta vez acompanhado pelo Ministro do Exército, pede a demissão do Chefe do Governo, em nome do interesse nacional. A 12 o Presidente da República informa o ministro da Defesa ter reiterado a sua confiança no Presidente do Conselho; quarta-feira, 12 - Yuri Gagarine é o primeiro cosmonauta satelizado a bordo do Vosiok; quinta-feira, 13 - Tentativa para derrubar Salazar, liderada pelo Ministro da Defesa, Botelho Moniz, conhecida como "Abrilada"; Remodelação governamental passando Salazar a deter a pasta da Defesa e Adriano Moreira e Mário Silva ocupam, respectivamente, o Ultramar e o Exército. Salazar dirige uma «Declaração ao País». "(...) andar rapidamente e em força é o objectivo que vai pôr à prova a nossa capacidade de decisão (...)"; domingo, 16 - Fracassado desembarque anti-castrista na Baía dos Porcos

Maio: Prisão de subscritores do "Programa para a Democratização da República". 
Começam a ser detidos pela policia política os 62 subscritores do Programa para a Democratização da República. Mário Soares cumpre seis meses de prisão; quinta-feira, 4 - Apelo feito no jornal "Avante!" para que os soldados desertem e não embarquem para a guerra em África; Remodelação governamental com a entrada de Santos Júnior, Franco Nogueira, Gonçalves de Proença e Lopes de Almeida, para as pastas do Interior, Negócios Estrangeiros, Corporações e Previdência Social e Educação Nacional; domingo, 28 - Criação da Amnistia Internacional. A criação da Amnistia Internacional prende-se directamente com a vida política portuguesa, já que a sua origem está relacionada com uma notícia no jornal inglês "The Observer", na qual se relatava a prisão de estudantes que tinham gritado "Viva a Liberdade!". O advogado Peter Benenson apelou para que se organizasse ajuda para os homens e mulheres presos por questões políticas, religiosas ou devido a preconceitos raciais ou linguísticos. Este apelo teve sucesso. 

Junho: Imposto sobre consumos tidos como supérfulos ou de luxo, para financiar o esforço de guerra; quinta-feira, 22 - Remodelação governamental com a entrada de Correia de Oliveira para ministro de Estado Adjunto do Presidente do Conselho e Kaúlza de Arriaga para secretário de Estado da Aeronáutica

Julho: segunda-feira, 3 - Concursos de apostas mútuas desportivas organizados e explorados em esclusividade pela Santa Casa da Misericórdia. A Santa Casa da Misericórdia começa a organizar e a explorar, em regime de exclusividade para a metrópole e para os ultramar, os concursos de apostas mútuas desportivas.

Agosto: terça-feira, 1 - A República de Daomé (Benin) exige a retirada de portugueses do Forte de São João Baptista de Ajudá e o representante português incendeia o forte. As autoridades do Daomé exigiram aos dois portugueses residentes o abandono do Forte de São João Baptista de Ajuda. Agostinho Borges e Meneses Ayres incendiaram o forte. O pequeno enclave português do forte de São João Baptista de Ajudá, situado na República do Daomé; sábado, 12 - Construção do muro de Berlim, durante a noite de 12 para 13.

Outubro: sexta-feira, 13 - Carta aberta de Amílcar Cabral ao Governo português, reclamando a independência da Guiné e de Cabo Verde

Novembro: sexta-feira, 10 - Palma Inácio é o responsável pela "Operação Vago", desviando um avião da TAP que sobrevoa Lisboa e outras localidades, lançando panfletos denunciando a "burla das eleições". Durante a campanha para as eleições legislativas, um pequeno "comando" de partidários de Henrique Galvão, chefiado por Hermímo de Palma Inácio desvia em pleno voo um avião da TAP e obriga-o a sobrevoar Lisboa e outras localidades do País, lançando panfletos a denunciar a "burla das eleições".

Dezembro: segunda-feira, 4 - Vários dirigentes comunistas (Francisco Miguel, José Magro, Costa Carvalho, António Gervásio, Domingos Abrantes, Ilídio Esteves) fogem da prisão de Caxias, utilizando um carro blindado, e dias depois, são presos vários membros do PCP. Utilizam um carro blindado que durante a guerra fora oferecido por Hitier a Salazar. Dias depois Pires Jorge, Octávio Pato, Carlos Costa, entre outros membros do Secretariado do Comité Central do PCP são presos; segunda-feira, 18 - Ocupação de Goa, Damão e Diu por tropas da União Indiana; terça-feira, 19 - É morto pela PIDE o escultor e militante comunista, José Dias Coelho numa rua de Alcântara; quinta-feira, 21 - Tschombé aceita pôr termo à secessão do Katanga Congo;  A 24 a ONU manifestara o seu apoio ao governo central e a sua intenção de agir contra a secessão do Katanga; domingo, 31 - Revolta militar falhada em Beja, sendo morto o secretário de Estado do Exército, Filipe Fonseca, comandada por Varela Gomes e com a presença de Humberto Delgado que reentrara clandestinamente no país para comandar a revolta. O malogro da operação faz com que abandone novamente o País. Varela Gomes, no comando dos elementos em revolta, é ferido e preso.


domingo, 19 de abril de 2020

Quem sabe para onde se vai?


Em 19 de abril de 2020 Portugal - 20.206 / 714 / 610; Suécia - 14.385 / 1.540 / ---; Grécia - 2.235 / 113 / 269.


 A Natureza é por natureza não-linear. O vírus não descobriu nada par nos lixar, porque o vírus não tem inteligência. Na realidade, aqui não há inteligência nenhuma. É a Natureza que é assim, matemática, digamos assim, ela não se estrutura linearmente. Mas nós, seres humanos, sapiens sapiens, temos inteligência suficiente para conseguir contrariar a ordem não-linear da Natureza.

As epidemias são matemáticas. E a Economia, que também é matemática, liga-se inextricavelmente às epidemias. Mas a Economia não é tudo: hospitais, escolas, farmácias, máscaras, luvas e viseiras.

Nesta pandemia por covid-19, as pessoas com mais de 75 anos de idade são as mais atingidas. E destas, há mais mulheres atingidas do que homens, numa relação de 3 para 1. É um facto que na população portuguesa a relação de homens /mulheres com mais de 75 anos de idade é de 3 para 5. Mas com este covid-19 são mais os homens do que as mulheres, desse grupo etário, a morrerem. A explicação deve estar na mesma razão porque há mais mulheres que homens com mais de 75 anos de idade, quando à nascença há mais homens que mulheres. Ou seja, os hábitos de vida, que envolve o vício do cigarro e do álcool, deve ser um factor desfavorável à sobrevivência.

sexta-feira, 17 de abril de 2020

Chile - mundo do fim do mundo



A morte de Luís Sepúlveda, ontem, levou-me de novo a revisitar as minhas memórias do ano de 1973, quando a minha monitora das práticas de Anatomia Descritiva me narrou as atrocidades que se estavam a passar no Chile depois do golpe militar sangrento que derrubou Salvador Allende. Luís Sepúlveda, que havia aderido ao Partido Socialista Chileno depois de ter sido expulso da Juventude Comunista, encontrava-se no Palácio de La Moneda, a fazer guarda ao Presidente Allende, aquando dos trágicos acontecimentos que levaram à morte Allende, que segundo dizem, ter-se-á suicidado com uma metralhadora que lhe havia sido oferecida por Fidel Castro. Portanto, membro ativo da Unidade Popular chilena nos anos 70, teve de abandonar o país após o golpe militar que levou ao poder Augusto Pinochet, que havia de durar 17 anos.

Tudo isso obriga-nos a pensar como pôde um país, até então democrático, chegar ao ponto a que chegou. Refiro-me à crueldade e sadismo de muitas pessoas que assassinaram muitos dos seus compatriotas após tortura, sem que se encontre uma explicação para isso. É certo que os desígnios marxistas, e as ligações cubanas de Allende, haviam deixado as Forças Armadas num estado de paranoia incomensurável, marcada pelos acontecimentos dos mísseis com ogivas nucleares soviéticos a servir de ameaça ao poder americano, tendo na altura como presidente John Kennedy, no início dos anos 60.

Seja como for, é muito surpreendente como foi possível, ainda para mais Pinochet tudo fez para fazer passar uma imagem de pessoa de bem, católico e pai de família. Pinochet é o protótipo dos líderes políticos maléficos que marcaram a diferença no rumo da História, sem que muito boa gente se tenha apercebido. Ou, ainda mais do que isso, nunca tenham acreditado que tenha sido o principal ordenador das torturas e mortes, em suma da grande carnificina que vitimou muitos chilenos no início da sua ditadura.

Infelizmente, e a propósito, estou a lembrar-me do recente caso do cidadão Ucraniano que foi assassinado após tortura numa dependência do Aeroporto de Lisboa às mãos dos agentes do SEF português. Isto é para estarmos cientes de que todos os países têm milhares de sociopatas que cometem atos tão tenebrosos, ao ponto de nem sequer termos coragem de os descrever, e sem que esses atos lhes tenham sido ordenados por um qualquer princípio patriótico como aqueles que nos são narrados em cenários de guerra bárbaros. Quem já esteve detido, mesmo em países como o Reino Unido e os Estados Unidos, e não é preciso invocar Guantanamo, pode muitas vezes testemunhar o infortúnio que teve com as experiências de sadismo dos guardas prisionais e dos agentes da Lei, sem que tenham recebido ordens específicas para serem sádicos. Imagine-se com seria o comportamento desses agentes caso recebessem ordens explícitas para serem sádicos. Que foi o que se passou no Chile às ordens de Pinochet.