quarta-feira, 30 de outubro de 2019

O Ártico e as Sombras do Passado



Ninguém mais tem presença tão marcante na região do Ártico nem está tão bem preparado para enfrentar a severidade das condições do clima como os Russos. Todos os outros países estão a ficar para trás e, no caso dos Americanos, nem parecem tentar recuperar esse atraso: os Estados Unidos são uma nação ártica desprovida de estratégia numa região que está a descongelar. Os efeitos do aquecimento global estão a manifestar-se como nunca no Ártico. Com o degelo há um acesso mais fácil à região, o que coincide com a descoberta de depósitos de fontes de energia e de tecnologia para chegar a eles.

A palavra “Ártico” vem do grego artikos, que significa “perto da ursa”, e é uma referência à constelação da Ursa Maior, em que as duas últimas estrelas apontam para a estrela polar. O Oceano Ártico tem 14 milhões de quilómetros quadrados; isso pode fazer dele o menor oceano do mundo, mas é do tamanho da Rússia, e tem uma vez e meia o tamanho dos Estados Unidos. As plataformas continentais no seu leito oceânico ocupam mais espaço quando comparado com qualquer outro oceano. Este dado não ajuda a que se chegue a um acordo sobre as áreas de soberania. A região Ártica inclui territórios pertencentes ao Canadá, Finlândia, Gronelândia, Islândia, Noruega, Rússia, Suécia e Estados Unidos (Alasca).

Há 2,8 milhões de anos, no tempo do homo habilis, começaram a aparecer oscilações climáticas a cada 41 mil anos, de tal modo que nos períodos frios se acumularam grandes massas de gelo em torno dos Polos, que se retraíam em períodos temperados. Estes gelos e degelos periódicos do Planeta tiveram um enorme impacto ambiental, incluindo nas regiões africanas onde viviam os hominídeos. A  chuva nos trópicos diminuiu drasticamente, e os ecossistemas abertos estenderam-se até às costas marítimas. Ora, o homo habilis quando surgiu na História, já vinha geneticamente adaptado ao novo meio ambiente, que era o ambiente de savana africana no lado oriental. Então, é no momento do homo habilis que se dá a transição de hábitos alimentares, mais à base de frutos e vegetais, para se introduzir a alimentação animal, primeiramente de insetos, e paulatinamente tudo o que mexesse. Pela primeira vez a carne e as gorduras animais passam a constituir uma parte importante da dieta dos hominídeos. Foi neste lance adaptativo, num ramo dos hominídeos, o homo habilis, que o cérebro passou a crescer graças a este tipo de alimentação. Ora, isso permitiu à espécie humana enfrentar cenários de vida não apenas mais imprevisíveis, como mais hostis. Mas o seu cérebro mais inteligente proporcionou ao homem rasgos de génio como a produção de todo o tipo de artefactos que lhe permitiu sair desse habitat que é a savana africana e migrar para norte, tendo que enfrentar as temperaturas cada vez mais frias até às zonas geladas. Os artefactos mais antigos que persistiram até aos dias de hoje são de pedra, mas é natural que os instrumentos perecíveis, como os feitos de madeira, fossem muito mais abundantes do que os de pedra.  


Depois deste desvio pelo paleolítico para contextualizarmos o "homem das neves", dou novamente um salto no tempo para ir dar a Píteas. Já aqui neste blogue falei de Píteas, o mercador, geógrafo e explorador grego que por volta de 325 a.C. fez uma viagem de exploração ao Noroeste da Europa circunavegando as Ilhas Britânicas. Píteas foi o primeiro autor greco-romano a descrever o "sol da meia noite", a aurora boreal e os gelos polares. Num dos seus relatos, Píteas informou ter visitado uma ilha a seis dias de viagem do norte da Escócia, próxima ao mar congelado, a que deu o nome de Thule. Píteas menciona que nestas regiões havia uma substância que não era nem terra propriamente dita, nem mar, nem ar, mas uma substância formada dos três elementos, a que chamou "pulmões marinhos". Muitos historiadores acreditam que esta ilha seja a Islândia, enquanto outros supõem que ele na verdade se referia à costa da Noruega.

Edward Parry tentou em 1827 chegar ao Polo Norte. Mas o gelo movia-se para Sul mais depressa do que ele se movia para Norte. Parry acabou por voltar para trás. Mas pelo menos sobreviveu, ao contrário de muitos outros que não tivera a mesma sorte ao tentar cometer a mesma façanha. John Franklin teve menos sorte quando tentou atravessar a última extensão não navegada da chamada "Passagem do Noroeste" em 1845. Os dois navios ficaram presos no gelo perto da ilha do Rei Guilherme, num arquipélago pertencente ao Canadá. dos 129 expedicionários, morreram todos. Uns haviam ficado a bordo; outros morreram no gelo, depois de abandonarem as embarcações e tentarem andar para Sul. Foram enviadas várias expedições, na tentativa de encontrar sobreviventes. Mas só muito mais tarde encontraram os esqueletos de alguns. Nessa altura ouviram da boca de caçadores inuítes a história de dezenas de homens brancos terem morrido a caminhar pelo grande deserto congelado. Dos navios nenhum vestígio encontraram. 
Em 1987, o japonês Shinji Kazama tornou-se a primeira pessoa a conseguir chegar ao Polo Norte numa motocicleta. É claro que nesta altura já havia menos gelo para atravessar. Foi em 2014, graças a novas tecnologias, que uma equipa de pesquisa canadense, usando um sonar, localizou um dos navios daquela expedição em 1845 -o HMS Erebus - no fundo da "Passagem do Noroeste". Conseguiram trazer à superfície  o sino do barco.

Que o gelo está a recuar é inquestionável – imagens de satélite captadas ao longo da primeira década deste século já mostravam claramente que ele encolheu. A maior parte dos cientistas está convencida de que o homem é o responsável, e não são os meros ciclos climáticos naturais a estarem em causa. E os efeitos do derretimento do gelo não serão sentidos apenas no Ártico: países tão distantes como as Maldivas, Bangladesh, ou a Holanda, são os que maior risco correm de inundações à medida que o gelo derrete e o nível do mar sobe. Esses efeitos colaterais mostram porque é que o Ártico é uma questão que diz respeito a tido o mundo, e não apenas aos países que contornam o Ártico
À medida que o gelo derrete e a tundra fica exposta, é provável que duas coisas aconteçam para acelerar o processo: por um lado o resultado da atividade humana nessas zonas, bem como de outros fenómenos naturais como os incêndios; enquanto o gelo reflete o calor, o terreno escuro absorve, e assim se alimenta o círculo vicioso do aumento da temperatura terrestre. 

O primeiro navio de carga a atravessar a Passagem Noroeste do arquipélago canadense sem precisar de ser escoltado por um quebra-gelo aconteceu em 2014. O Nunavik transportava 23 mil toneladas de minério de níquel do Canadá para a China. A rota polar foi 40% mais curta que a habitual, atravessando inclusivamente águas mais profundas do que se tivesse passado pelo canal do Panamá. Isso permitiu ao navio levar mais carga, poupou dezenas de milhares de dólares em custo de combustível e reduziu as emissões de gases de efeito estufa em 1.300 toneladas métricas. 


Em 2040 espera-se que a rota esteja aberta dois meses no ano. Esta passagem no extremo Norte representará uma grande alteração nas relações comerciais, indo provocar efeitos colaterais em lugares tão distantes como o Egito e o Panamá, em termos das receitas proporcionadas pelos canais de Suez e do Panamá. A rota norte-leste do litoral siberiano também fica aberta por vários meses no ano, o que também reproduz o mesmo significado.  Rússia e Noruega têm uma dificuldade particular no mar de Barents. A Noruega reivindica a cordilheira de Gakkel, no mar de Barents, como uma extensão da sua zona económica exclusiva, que os russos contestam. Estes por seu lado disputam as ilhas Svalbard, o ponto mais setentrional da Terra que é habitado. A maior parte dos países e organizações internacionais reconhece que a Noruega tem soberania limitada sobre as ilhas, mas a maior delas, a ilha Spitsbergen, tem uma crescente população de migrantes russos que foram para ali devido à indústria de mineração de carvão. As minas não são lucrativas, mas a comunidade russa serviu como instrumento de Moscovo para as suas reivindicações em relação às ilhas Svalbard na sua totalidade.

Ártico deveria estar aberto a todos. O derretimento do gelo revela outras riquezas potenciais. Julga-se que vastas quantidades de reservas de gás natural e petróleo, ainda não descobertas, podem estar situadas esta região, em áreas a que agora é possível ter acesso. Hoje há pelo menos nove disputas legais e reivindicações de soberania no oceano Ártico, todas legalmente complexas e algumas com potencial de causar séria tensão entre as nações. Em 2007 o governo russo enviou dois submarinos tripulados para o leito do mar no Polo Norte, 4.261 metros abaixo das ondas, e colocou ali uma bandeira russa de titânio inoxidável como declaração de presença. A intenção militar foi depois sublinhada politicamente, quando o presidente Putin, pela primeira vez, na sua doutrina oficial de política externa, acrescentou o Ártico à esfera de influência russa.

Em 2012, os Estados Unidos precisaram da ajuda de um navio russo para reabastecer a sua base de pesquisa na Antártida, um aspeto a assinalar na cooperação entre as grandes potências, mas simultaneamente uma demonstração de que os Estados Unidos estão a ficar para trás em relação à Rússia. O Canadá tem seis quebra-gelos, a Finlândia tem oito, a Suécia, sete, e a Dinamarca, quatro. China, Alemanha e Noruega têm um quebra-gelo cada. No outono de 2015, o presidente Barak Obama fez a primeira visita de um presidente em exercício ao Alasca, e de facto falou que era preciso construir mais quebra-gelos nos Estados Unidos. Mas esse foi um comentário quase de passagem numa viagem organizada em torno da questão do clima. Os aspetos da segurança energética do Ártico mal foram mencionados. Washington continua muito atrasada, o que não se alterou com Trump, muito pelo contrário, os Estados Unidos não ratificaram o tratado CNUDM, cedendo efetivamente 200 mil milhas quadradas de território submarino no Ártico. Apesar disso, eles estão em disputa com o Canadá pelo direito ao petróleo offshore em potencial e pelo acesso às águas no arquipélago canadense. O Canadá diz que elas são “vias navegáveis internas”, ao passo que os Estados Unidos dizem que são um estreito para a navegação internacional não coberta pela lei canadense.

Para animar o circo, recentemente  Trump desafiou a Dinamarca ao anunciar que queria comprar a Gronelândia. Com uma população de 56 mil habitantes, tem governo próprio, mas continua sob soberania dinamarquesa. Um acordo de 1953 entre a Dinamarca e o Canadá deixou a ilha ainda em disputa, e desde então os dois países se deram ao trabalho de navegar até lá e colocar as suas bandeiras nacionais. Todas as questões de soberania emanam dos mesmos desejos e temores – o desejo de salvaguardar rotas para transporte militar e comercial, o desejo de possuir as riquezas naturais da região e o temor de que "outros" possam ganhar onde "nós" perdemos. Até recentemente as riquezas eram teóricas, mas o derretimento do gelo tornou o imaginário, real, e em alguns casos seguro. Os Estados que contornam o Ártico  e as gigantescas empresas de energia têm agora decisões a tomar sobre como lidar com essas mudanças e quanta atenção dedicam ao ambiente e aos povos do Ártico. Haverá muito mais navios no Extremo Norte, muito mais torres de perfuração e plataformas de gás – na realidade, muito mais de tudo.

terça-feira, 29 de outubro de 2019

Transnístria ou Pridnestróvia




A Transnístria, que significa "para lá do rio Dniestre”, é Pridnestróvia para os russos, porque é a terra que fica logo antes de se chegar ao Dniestre. Com capital em Tiraspol, é uma região situada dentro das fronteiras internacionalmente reconhecidas como pertencentes à Moldávia. No entanto, declarou unilateralmente a independência em 1990 com a ajuda de contingentes russos e cossacos. A região mantém-se, de facto, independente com o auxílio de forças russas. O Conselho da Europa considera a questão da Transnístria um “conflito congelado”. 

É um país, mas não é reconhecido por ninguém. É como se não existisse. Mas funciona com completa autonomia, apesar do desproporcionado apoio de Moscovo. Tem postos fronteiriços tanto do lado moldavo como ucraniano. Tem moeda própria, mas desde 2016 que não é cambiável. As pessoas vivem ali no seu próprio mundo. Algumas das moedas são feitas de plástico e apresentam a efígie de Catarina a Grande e outros grandes heróis da expansão imperial russa do século XVIII.

É uma região separatista da recém independente Moldávia sob proteção de dois mil soldados mandados por Moscovo, em permanência desde o recente conflito com a Moldávia há cerca de 25 anos. A Rússia não quer ter ali uma segunda Kaliningrado. Por isso continua assim. As tropas russas estão estacionadas perto da capital – Tiraspol, nas encostas da velha Fortaleza de Bender, construída pelo sultão otomano Solimão, o Magnífico, depois de este ter conquistado a cidade em 1538 e a ter transformado numa praça-forte na fronteira com a cristandade. A Transnístria não tem acesso ao mar, mas tem fronteiras com a Bessarábia (isto é, o resto da Moldávia) a oeste (411 km) e com a Ucrânia (405 km) a leste. É um vale estreito que corre de norte a sul ao longo da margem do rio Dniester, que forma uma fronteira natural ao longo da maior parte adjacente ao (resto da) Moldávia. Tiraspol, a maior cidade da Transnístria, tem cerca de 160.000 habitantes. 



O território controlado pela Transnístria é em grande parte (mas não totalmente) coincidente com a margem esquerda (leste) do rio Dniester. Inclui dez cidades e vilas e 69 comunas, com um total de 147 localidades (sem essa forma legal definida como tal). Seis municípios da margem esquerda (Cocieri, Molovata Noua, Corjova, Pirita, Cosnita e Dorotcaia) permaneceu sob o controlo do governo da Moldávia após a Guerra em 1992, como parte de Dubăsari. Eles estão localizados ao norte e ao sul da cidade de Dubăsari, que por sua vez está sob o controlo da Transnístria. A cidade de Roghi de Molovata Noua também é controlada por Tiraspol (a Moldávia controla as outras nove das dez aldeias dos seis municípios).

A partir dos séculos X e XI, a história da Transnístria esteve sempre ligada à história da Ucrânia, que estabeleceu a base das identidades nacionais das nações eslavas orientais nos séculos subsequentes. A capital do principado ucraniano já nessa altura era Kiev. Após a extinção desse principado, em consequência das invasões mongóis no século XIII, o território passou por diversas mãos, até que, no final do século XVIII foi incorporado no Império Russo. 


Ante de Solimão a Transnistria e o Dniestre eram a fronteira entre a Europa e as estepes, um espaço geográfico contínuo desde ali até às fronteira chinesa. As pessoas na Transnistria sentem-se como cossacos. O centro do poder político da Transnistria está em Moscovo.

Durante a ocupação romena entre 1941 e 1944, cerca de 150.000 a 250.000 judeus ucranianos e romenos foram deportados para a Transnístria; a maioria foi executada, ou morreu de outras causas em guetos e campos de concentração. Depois que o Exército Vermelho reconquistou a área em 1944, as autoridades soviéticas executaram, exilaram ou prenderam centenas de habitantes da SSR da Moldávia nos meses seguintes, sob a acusação de colaboração com os "ocupantes germano-fascistas". Uma campanha posterior foi dirigida contra as famílias camponesas ricas, que foram deportadas para o Cazaquistão e a Sibéria.

A partir de 1989 as tensões na região aumentaram. As minorias étnicas sentiam-se ameaçadas pelas perspetivas de o russo ser removido como língua oficial, que servia de meio de comunicação interétnica, e pela possível futura reunificação da Moldávia e da Roménia. A composição étnica e linguística da Transnístria diferiu significativamente da maioria do resto da Moldávia. A proporção de russos e ucranianos étnicos era especialmente alta e a maioria da população, alguns deles de etnia moldava, falavam russo como língua materna. Os moldavos étnicos representavam menos de 40% da população da Transnístria em 1989. A Frente Popular nacionalista ganhou as primeiras eleições parlamentares livres na República Socialista da Moldávia na primavera de 1990, e a sua agenda começou lentamente a ser implementada. Em 2 de setembro de 1990, a República Socialista Soviética da Moldávia Pridnestroviana foi proclamada como república soviética por uma assembleia ad hoc: o Segundo Congresso dos Representantes dos Povos da Transnístria. A violência aumentou quando, em outubro de 1990, a Frente Popular pediu que voluntários formassem milícias armadas para impedir um referendo sobre a autonomia em Gagauzia, que tinha uma parcela ainda maior de minorias étnicas. Em resposta, milícias voluntárias foram formadas na Transnístria. Em abril de 1990, multidões nacionalistas atacaram membros do parlamento russo, enquanto a polícia moldava se recusou a intervir e restaurar a ordem. A fim de preservar a RSS da Moldávia na URSS e evitar que a situação se agravasse, o presidente soviético Mikhail Gorbachev, citando a restrição dos direitos civis das minorias étnicas da Moldávia como causa da disputa, declarou que a proclamação da Transnístria era sem base legal e anulou-a por decreto presidencial em 22 de Dezembro de 1990. No entanto, nenhuma ação significativa foi tomada contra a Transnístria e as novas autoridades foram lentamente capazes de estabelecer o controle da região.

Assim, em novembro de 1990 iniciaram-se confrontos armados em escala limitada, entre os separatistas da Transnístria e a Moldávia. Voluntários, incluindo cossacos, vieram da Rússia para ajudar o lado separatista. Em 1992, em consequência da divisão do equipamento militar depois do fim da União Soviética negociados entre as antigas 15 repúblicas, a Moldávia criou o seu próprio Ministério da Defesa. De acordo com o decreto de sua criação, a maior parte do equipamento militar do 14º Exército Soviético seria mantida pela Moldávia. A partir de 2 de março de 1992, houve uma ação militar conjunta entre a Moldávia e a Transnístria. Os combates se intensificaram ao longo do início de 1992. O Exército de Guardas da 14ª da ex-União Soviética entrou no conflito em sua fase final, abrindo fogo contra as forças moldavas; aproximadamente 700 pessoas foram mortas. Desde então, a Moldávia não exerceu nenhum controlo ou influência efetiva sobre as autoridades da Transnístria. Um acordo de cessar-fogo, assinado em 21 de julho de 1992, mantém-se até aos dias de hoje.

Em novembro de 2003, Dmitry Kozak, um conselheiro do presidente russo Vladimir Putin, propôs um memorando sobre a criação de um estado federado assimétrico da Moldávia, com a Moldávia mantendo uma maioria e a Transnístria sendo uma parte minoritária da federação. Conhecido como "o memorando de Kozak", não coincidia com a posição da Transnístria, que procurava um estatuto de igualdade entre a Transnístria e a Moldávia, mas conferia à Transnístria poderes de veto sobre futuras alterações constitucionais; isto encorajou a Transnístria a assiná-lo. Mas não chegou a ser assinado por causa da posição interna e da pressão internacional da OSCE e dos EUA depois que a Rússia endossou a exigência da Transnístria manter uma presença militar russa pelos próximos 20 anos como garantia para a Rússia.

Em 3 de Março de 2006, a Ucrânia introduziu novos regulamentos aduaneiros na sua fronteira com a Pridnestróvia. A Ucrânia declarou que iria importar mercadorias da Pridnestróvia apenas com documentos processados pelas estâncias aduaneiras moldavas, como parte da implementação do protocolo aduaneiro conjunto acordado entre a Ucrânia e a Moldávia em 30 de dezembro de 2005. A Pridnestróvia e a Rússia qualificaram o ato de "bloqueio económico". Os Estados Unidos, a União Europeia e a OSCE aprovaram a medida ucraniana, enquanto a Rússia a via como um meio de pressão política. Em 4 de março, a Transnístria respondeu bloqueando o transporte moldavo e ucraniano nas fronteiras da Pridnestróvia. O bloqueio da Pridnestróvia foi levantado após duas semanas. No entanto, o bloco ucraniano/moldavo permanece em vigor e mantém o progresso nas negociações entre os lados. Nos meses seguintes as exportações da Transnístria diminuíram drasticamente. A Transnístria declarou uma "catástrofe humanitária" na região, enquanto a Moldávia chamou a declaração de "deliberada desinformação". Cargas de ajuda humanitária foram enviadas da Rússia em resposta.

Cerca de 62% da população da Transnístria pertence a um grupo étnico eslavo. Estatísticas oficiais do governo mostram que 91% da população seguem o culto do Cristianismo Ortodoxo, e outros 4% são católicos. Os católicos são encontrados, em sua maioria, no norte do país, onde vive aí uma considerável maioria polaca. O governo da Transnístria apoiou a restauração e construção de novas igrejas ortodoxas. Afirma que a república tem liberdade de religião e afirma que 114 crenças religiosas e congregações são oficialmente registadas. Apenas ultimamente tem sido postos obstáculos ao registo das Testemunhas de Jeová. 


Este caso da Transnístria, bem como o conflito na Ucrânia oriental, são o espelho do que representa falar da ordem política entre a Europa e a Rússia, no que respeita à fronteira numa Eurásia cada vez mais escura e caótica. Isto interessa à Rússia na medida dos seus planos de redesenho das fronteiras na região. Primeiro a desordem para depois vir a ordem.

segunda-feira, 28 de outubro de 2019

Humanismo - 1, Maquinismo - zero


Há dias, no programa televisivo Fronteiras XXI, da RTP3 - dedicado ao tema do envelhecimento - a dada altura entrou no debate por videoconferência o Presidente da Fundação Europeia de Pessoas Idosas - O alemão Dirk Jarré - que defendia com grande convicção a utilidade dos robôs (leia-se tecnologias) no auxílio das pessoas idosas para melhor enfrentarem as dificuldades do seu processo de envelhecimento. Ele adorava ter, daqui a poucos anos com mais idade, já não é um jovem, um robô para cuidar dele. Sabe que não vamos ter humanos suficientes para prestar os cuidados necessários a toda a gente idosa do seu tempo. É claro, um robô com inteligência artificial de última geração.

Esta introdução é uma espécie de slogan (frases feitas de uma história batida): “Em vez de nos pormos à conversa com um fascista, é preferível pressupor que já aprendemos o que tínhamos para aprender a levar uma vida antifascista. Agora o que importa é enredarmo-nos de novo em política de organização e teoria marxista, para num esforço sustentado, determos a cavalgada deste tipo de mercado capitalista, pelo menos, caso não o consigamos derrubar mesmo, e substitui-lo por um de outro tipo. As pessoas devem estar prontas para o que der e vier, porque de outro modo vamos cair num estado de torpor (fadiga e resignação). As pessoas quando cansadas de desespero, ficam mais vulneráveis, mas também dispostas a tudo. Até que vem alguém que manda, e se eleve acima da lógica racional.”

Precisamos: de uma teoria da realidade que coloque a informação digital dentro do mundo físico; de uma teoria da história em que são os seres humanos, e não os algoritmos, que determinam os resultados; e de uma teoria da natureza humana, colocada dentro do mundo físico, e resistente ao controlo das máquinas criadas pelo homo sapiens sapiens. Pelos vistos, para o bem e para o mal, as próximas gerações vão ter de se adaptar à chegada das máquinas pensantes e do homo sacer, de uma vez por todas, a era Antropocénica.

Antropocénico é um termo usado por alguns cientistas para descrever o período mais recente na história da Terra. Ainda não há data de início precisa e oficialmente apontada, mas muitos consideram que começa com a 1ª Revolução Industrial no final do século XVIII, quando as atividades humanas começaram a ter um impacto global significativo no clima da Terra e no funcionamento dos seus ecossistemas. Havendo sempre que tentar o necessário distanciamento histórico na ponderação de eventos e grandezas relevantes para a escala do tempo histórico, em todo o caso estas balizas têm utilidade heurística. Um hipotético observador distanciado milhões de anos no futuro poderá, munido de suficiente informação, melhor determinar uma data e uma tipologia para o Antropocénico. 


Homo sacer é uma expressão latina que, literalmente significa  homem sagrado, isto é, homem a ser julgado pelos deuses. Trata-se de uma figura obscura do direito romano arcaico, a qual se refere à condição de quem cometia um delito contra a divindade, colocando em risco a pax deorum, a amizade entre a coletividade e os deuses, que era a garantia de paz e prosperidade da civitas; ou seja, tal delito era uma ameaça ao próprio Estado. Em consequência disso, o indivíduo era "consagrado" à divindade, isto é, deixado à mercê da vingança dos deuses. Expulso do grupo social, excluído de todos os direitos civis, a sua vida passava a ser considerada "sagrada" em sentido negativo. O indivíduo podia também ser morto por qualquer um - mas não em rituais religiosos. Caim, personagem bíblica, é a figura que se aproxima mais do conceito de homo sacer. Esta é uma expressão que tem sido explorada recentemente por filósofos/sociólogos dos mais prolíficos a publicar, como Slavoj Zizek, Giorgio Agamben e Zygmunt Bauman, para designar a condição de alguns povos da história recente. Zizek aproxima o conceito daqueles que, como o povo do Afeganistão, adquirem essa espécie de existência sagrada e, paradoxalmente, negativa. Ele utiliza a imagem do avião distribuindo alimentos para uma população que acabara de ser atacada por um bombardeio aéreo.

Hoje, os projetos que têm como fito a liberdade humana através do progresso tecnológico, recebem o epíteto, por parte dos que se intitulam defensores do humanismo, de anti-humanistas ofensivos, num contexto político neoliberal mais amplo, também chamado transumanismo pós-humano. Modificámos o nosso meio ambiente de forma tão radical que temos agora de nos modificarmos a nós mesmos, se quisermos continuar a existir neste novo ambiente. Sim, podemos não querer continuar! Porque a solução poderá ter de passar por uma profunda modificação genética por via das novas tecnologias de engenharia genética. E muitos de nós não quer isso. As Nações Unidas através da UNESCO, tentaram repetidamente formular uma declaração autorizada sobre a clonagem humana no seguimento da ética médica que pede a proibição da clonagem de seres humanos. Costuma dizer-se que os agentes do crime estão sempre um passo à frente dos agentes da polícia; e que os cientistas se costumam inspirar na ficção científica para inovar. Por exemplo, em Blade Runner, podemos constatar quão insuficientes são os nossos  sistemas éticos, quando temos de enfrentar qualquer inteligência artificial. Criamos máquinas com a intenção de maximizar o nosso prazer, mas depois o que elas nos fazem é aumentar ainda mais o sofrimento físico e moral.

Embora o novo humanismo - anti-pós-humanista - se apresente como uma forma de rebelião ética à nossa submissão à lógica das máquinas, e ao poder dos algoritmos, pelo que tenho lido, parece que já fomos mudados pelas redes sociais digitais, e já não há humanismo que nos valha. Mas, tanto quanto posso perscrutar o cérebro humano, o resultado no painel do jogo entre o Humanismo e o Maquinismo, para já o humanismo ainda está a ganhar por um a zero. Por isso devemos querer rejeitar, enquanto estamos vivos, a ditadura dos algoritmos que interferem nas múltiplas escolhas e opções que temos de tomar no dia-a-dia para dar sentido às nossas vidas. De outro modo vamos mesmo ser uns infelizes autómatos, ou mesmo uns zombies, submissos à engrenagem manipuladora nas mãos de multimilionários cleptocratas. Temos que defender que cada um de nós possui uma qualidade universal da qual derivam direitos humanos inalienáveis.

quinta-feira, 24 de outubro de 2019

O Nacional-Populismo Iliberal


O que está por detrás do crescimento do populismo no Ocidente? Porque está a transformar-se a paisagem política da Europa-América no sentido de uma extrema direita nacionalista e antidemocrática? É uma questão económica ou cultural? Está relacionada com o emprego ou com a imigração? Deve-se à austeridade ou ao nacionalismo xenófobo e racista?

É bom que fiquemos esclarecidos, a vida real nunca se processa da maneira como nós categorizamos os problemas para melhor entrar neles. As relações em sociedade estão longe de funcionar linearmente entre premissas binárias. Isso seria ignorar o modo como se processam as relações e o modo como a cultura e a economia podem interagir. Ou como se relaciona a agitação política e a crise financeira. Portugal é um exemplo paradigmático disso: apesar da violenta austeridade imprimida no tempo da Troica não gerou nenhum movimento populista significativo, ou de algum modo relevante. Isto significa que os fatores económicos têm de ser analisados em conjunto com outros fatores, tais como a liderança, as questões da identidade nacional, e a segurança das pessoas.

Os liberais progressistas estão otimistas quanto ao futuro da geração Y e da geração Z – (geração Y também chamada geração do milénio, Millennials em inglês, um conceito em sociologia que se refere à corte dos nascidos depois de 1980 e até ao final da década de 1990, ou os primeiros anos de 2000, sendo sucedida pela geração Z) – continuando este modo de vida liberal. Argumentam que esta época de Trumps e Bolsonaros é apenas uma transição de fase passageira. Os Millennials são fans do liberalismo, dizem eles.

Mas outra corrente de pensamento argumenta de maneira diferente, alegando que ao invés de estarmos a chegar ao fim, estamos no começo em crescendo de fans pelos nacionais-populistas iliberais: o início de uma nova era de fragmentação, volatilidade e perturbação política. Desta perspetiva, o nacional-populismo iliberal está apenas a dar os primeiros passos à medida que os laços entre as pessoas e os partidos tradicionais se vai desfazendo. E à medida que uma mudança étnica e um aumento das desigualdades, sem precedentes, vai ganhando ímpeto. O conflito entre culturas, centrado num conjunto de valores em disputa, indica que a procissão ainda vai no adro. Os efeitos da automação, ainda imprevisíveis, vão agravar ainda mais os conflitos laborais. E as próximas gerações, sejam apelidadas de Y ou Z, millennials ou pós-millennials, não interessa, podem ter à sua disposição mais robôs, mas vão ter de baixar a fasquia, no que respeita às expectativas de conforto material e tranquilidade de espírito, comparado com o modo de vida ocidental da geração pré-millennial.

É voz corrente nos masse-media que muitos dos eleitores das atuais democracias ocidentais estão a voltar-se para movimentos populistas, que começaram a transformar a face das democracias liberais ocidentais. Por exemplo, a explicação que é dada para o facto de o Brexit ter ganho o referendo no Reino Unido, dizem-nos, a mesma que está por trás do crescimento da extrema direita com líderes fascistas, deve-se a um eleitorado envelhecido desesperado. Que os seus líderes são fascistas e as suas políticas antidemocráticas. Esta versão simplista dos acontecimentos está longe de explicar tudo. Por todo o Ocidente há um número crescente de pessoas que se sentem excluídas da política tradicional, cada vez mais hostis com as minorias, os imigrantes e a economia neoliberal.

O que temos vindo a assistir nos últimos anos, sobretudo um pouco por todo o ocidente e que está a transformar as nossas sociedades para pior, do ponto de vista dos valores políticos da cidadania democrática, é uma tendência cuja génese se encontra bem lá para trás no tempo. Tem a ver com os efeitos da globalização que se traduziu numa negligência assustadora, se não mesmo de desprezo, das elites dominantes em relação às classes mais desfavorecidas. Elites predadoras e corruptas que se têm estado nas tintas para o povo. Por outro lado, esta tendência que já se vinha insinuando há mais de duas décadas, parece que eram invisíveis aos olhos dos operadores do círculo mediático escrito e audiovisual. Salvo raras exceções, só acordaram depois de terem visto Trump e Bolsonaro no poleiro. Por exemplo, num estudo de opinião efetuado na Inglaterra antes do referendo do Brexit, em 2016, e que incidiu sobre cerca de três centenas de jornalistas e líderes de opinião: 90% disseram que os eleitores britânicos não queriam sair da União Europeia. E foi nesta base que Cameron caiu na esparrela de promover o referendo, pois estava completamente convencido que os ingleses não iriam cometer a temeridade de sair da União Europeia.

Nunca dispusemos de tantos dados como agora. E, no entanto, foram poucos os que acertaram no prognóstico acerca do resultado do referendo britânico. E esta é a ironia e o paradoxo dos “Dados” (Big Data). Uma das explicações para esta incongruência prende-se com o facto de a última geração de pessoas ter desprezado a História, e se importar apenas pelo curto prazo, o imediato. E, no entanto, as causas dos problemas que se vivem num dado momento histórico, são causas latentes que têm a ver com o comportamento das pessoas em coletivo ao longo do tempo. Forças latentes que movem a História. E como “anda tudo ligado” (tudo se rege pelo princípio da mutação por transição de fase, uma lei dos sistemas complexos não-lineares), a manifestação dos efeitos dos comportamentos humanos à la longue são sempre surpreendentes e fulminantes.

Com efeito, os nacionais-populistas emergiram muito antes da crise financeira de 2008 e da grande recessão que se seguiu. Marine Le Pen, Matteo Salvini e Victor Orban já tinham entrado em cena, e vinham a capturar adeptos há muito mais tempo. Sempre se opuseram a determinados aspetos das nossas democracias liberais, aqueles aspetos que são agora imputados à globalização e que exploraram grandes camadas da população trabalhadora. O chamado sistema capitalista liberal (ou neoliberal). Assim como na América as lideranças de Washington são vistas com maus olhos, na Europa a mesma reação se fez sentir em relação aos burocratas de Bruxelas a circular nas portas-giratórias dos negócios público/privados.

Há bons motivos para preocupações com Trump, atendendo ao seu caráter, julgamento ético e temperamento. Contudo, o foco na sua personalidade não nos ajuda a compreender as raízes populares da revolta que alimentou a sua ascensão, bem como a de outros como ele na Europa, e noutros lugares. Não foram apenas os operários do “cinturão da ferrugem”, mas também republicanos tradicionais abastados xenófobos e racistas temerosos da imigração. O Brexit recebeu os votos favoráveis tanto dos distritos onde prevalece a classe operária, que tradicionalmente vota no Partido Trabalhista, como também do terço dos eleitores negros entre 35 e 44 anos. Mesmo nos distritos onde imigrantes de fora da Europa se fixaram, o voto para sair da EU também ganhou. A explicação está no medo dos imigrantes trabalhadores de outros estados-membros da EU que venham ameaçar a sua plena integração que lhes confere o acesso à segurança social britânica. Será que, se os estrategas da permanência do Reino Unido na EU tivessem prestado mais atenção a esses votantes no Brexit, o resultado da votação teria sido diferente? Será que o Partido do Brexit de Farage não teria tido uma votação tão dilatada como teve se o país estivesse mais fechado à imigração?

Não é possível compreender estas revoltas sem analisar as tendências que se vieram desenhando há décadas, moldando eleitorados ressentidos com o Outro. E as fortes críticas a esse comportamento ainda o tem exacerbado mais. Os estudos sociólogos têm sido feitos e evidenciado essas tendências. Mas não foi dada a devida importância política. E isso só tem legitimado ainda mais o aumento desse ressentimento. As comunidades históricas dos países que têm recebido mais imigrantes de fora da Europa viram os seus modos de vida seculares e religiosos postos em causa por movimentos apelidados do “politicamente correto”. Os receios de serem silenciados e corroídos, só faz aumentar a desconfiança dos poderes políticos e das instituições internacionais.

Acresce a tudo isto, o descalabro financeiro nas economias neoliberais globalizadas, que empurrou as pessoas de rendimentos médios para as franjas da indigência, acompanhado do crescente aumento do fosso das desigualdades e do acesso às riquezas nacionais capturadas pelas rendas dos monopólios energéticos. É a perda do trabalho a favor do capital sem justa causa. O que lança um espetro sombrio sobre o futuro dos nossos filhos e netos. Se não forem tomadas medidas sérias que façam arrepiar este caminho que se tem vindo a trilhar nos últimos quarenta anos, então que venha a Revolução Democrática, para que não sejam os líderes nacionais-populistas a fazê-la. Para que isso não aconteça os tradicionais partidos têm de operar uma verdadeira mudança interna, para que se voltem a alinhar com as legítimas aspirações dos povos.

As respostas dos articulistas raramente levam em conta as correntes profundas que circulam submersas nas nossas democracias. A maior parte das alegações incidem em factos do curto prazo, ainda que sejam verdadeiros, mas apenas focados no imediato, não vamos conseguir o distanciamento suficiente para avaliar as tendências mais amplas que tornaram possível o momento político que atravessamos.

O pensamento de Keiji Nishitani e a Escola de Kyoto



Em 1935, Keiji Nishitani tornou-se professor associado na Universidade de Kyoto. E em 1937, foi para a Universidade de Frankfurt, onde nessa altura lecionava Heidegger. Em 1965, ele foi eleito membro da Academia Japonesa de Ciências. Em 1972, recebeu a Medalha de Ouro Goethe pela Alemanha Ocidental por suas grandes realizações em trocas culturais entre o Japão e a Alemanha. Em 1982, foi selecionado como herói nacional japonês por suas extraordinárias realizações em pesquisa filosófica.

Como estudioso da Filosofia Ocidental, teve uma boa formação, recebendo conhecimento do pensamento de vários filósofos: Aristóteles, Plotino, Agostinho, Eckhart, Descartes, Kant, Hegel, Shelling, Nietzsche, Bergson e Heidegger. E depois combinou-os com as ideias tradicionais do Oriente. E é assim que desenvolve pensamento original, em quase todos os campos da filosofia e da religião, que hoje é usual ser mencionado com o nome de “Pensamento da Escola de Kyoto”.

No livro "A filosofia subjetiva das raízes" (1940), ele apresenta o termo único "subjetividade das raízes", argumentando que não há nada no fundo de nossa existência que possa ser usado como base. A partir dessa consciência de fundo sem base, forma a subjetividade de uma intelectualidade de cariz religioso ligada a uma existência natural. Em "O que é a religião" (1962), o núcleo do pensamento é a transição da ideia de "vazio" para um céu sem limites. Ele reproduz o significado do conceito de vacuidade do budismo mahayana no mundo moderno, através do estudo comparativo da religião e da filosofia entre o Oriente e o Ocidente.

Na colisão e fusão da filosofia ocidental com a tradição espiritual oriental, na Escola de Kyoto é trabalhado o tópico do niilismo através do conceito de vacuidade do budismo. Por conseguinte, o ponto de partida do pensamento de Nishitani colide com a visão de mundo do paradigma científico ocidental mecanicista e reducionista. E choca também com a visão de mundo baseada na metafísica tradicional, seguindo a posição de Heidegger. Ora, a ciência e a tecnologia proporcionaram à humanidade a confiança no domínio da natureza e da racionalização da sociedade, ao ponto de conceber o progresso infinito. Um exemplo é o dos transplantes de órgãos serem possíveis por via de uma visão mecânica dominante, que entende a estrutura humana como um conjunto de peças. O que veio mexer no sentimento da identidade pessoal. É um veneno a falta de sentido que faz o ser humano levantar-se de forma radical contra a natureza dominada por leis mecânicas do mundo mecanicista. Nietzsche chamou à atenção para isso e Sartre procurou elucidar o que era o “nada” na base da condição humana. A humanidade havia cortado os seus laços com a transcendência.

Uma grande parte da humanidade contemporânea ainda acreditar nessa visão de mundo científica informada pela racionalidade metafísica. E é a essa mundivisão oque Nishitani é crítico quando a confronta com a necessidade que o ser humano tem de paz de espírito, coisa que a visão de mundo científica, como a única verdade, não dá. A reflexão de Nishitani pode dar a impressão de desenvolver uma apreensão pessimista da contemporaneidade tendo por seu ponto de partida a visão de que o mundo contemporâneo é marcado pelo niilismo em seu próprio fundamento. Como se terá dado esta situação histórica do surgimento do niilismo? Que relação terá com a visão dominante do mundo das ciências naturais exercendo influência sobre a humanidade em sua passagem da modernidade para a contemporaneidade?

A visão do mundo científica é marcada pelo racionalismo. O seu conteúdo é o materialismo e, por consequência, é ateísta. O ponto de vista racionalista, que fundamenta a visão do mundo científica, quando de forma extrema, implica que o mundo natural é dominado pela lei da necessidade mecânica, e que, na apreensão dessa lei, nada mais é necessário além da racionalidade humana. Essa compreensão racional possui em seu interior um caráter que dispensa qualquer existência transcendente para além de si mesma. Atualmente, não se coloca o problema das limitações da ciência a partir do ponto de vista da própria ciência. Ou seja, o ponto de vista científico inclui essencialmente uma tendência a não reconhecer não só a religião, mas também a filosofia (com a exceção da filosofia da ciência, que assume o ponto de vista da ciência).

A ciência parece ver seu ponto de vista como uma verdade absoluta e a se afirmar de uma forma completa. Em função disso, não é possível limitar essa questão no presente a um estabelecimento de limites. O pilar que sustenta o ponto de vista científico implica em primeiro lugar uma radicalização da racionalidade, ou seja, acreditar que o mundo consiste em um domínio que pode ser compreendido sem contradições pela razão humana. Em segundo lugar, o ponto de vista científico se apoia num materialismo que pressupõe que a totalidade da existência pode ser reduzida à matéria. Em consequência disso, aparece em terceiro lugar um ateísmo como consequência do segundo pilar, ateísmo este que nega o espírito ou qualquer existência transcendente no sentido da metafísica, na medida em que são distintos da matéria. De acordo com este pensamento, é possível explicar tudo através da redução à matéria: o mundo, a totalidade da existência, a vida entendida em seu caráter finalista, a existência humana entendida como a modalidade mais concreta da existência, a atividade racional humana, e mesmo a sua sensibilidade. Em função disso, aconteceu que tanto o mundo como a existência se tornaram sem sentido e sem objetivo. E essa visão se difundiu no fundamento da civilização e da humanidade contemporâneas.

Então a questão é: Será possível reduzir à materialidade a existência humana quando esta se constitui como o sujeito da operação racional que desenvolve tal ponto de vista? Por exemplo, mesmo que fosse possível essa redução à matéria, não é possível negar que é a atividade espiritual humana que atua no pano de fundo dessa redução. Essa atividade espiritual é uma parcela da atividade vital, que inclui em si um caráter não racional e, portanto, não se constitui apenas como uma atividade de caráter racional. Se o ser humano exerce a sua atividade em concordância com essa atividade, então aparecerá necessariamente uma modalidade de sentimento não racional.

Como o “lugar do vazio” é o lugar que possibilita que a negação absoluta seja transmutada em afirmação absoluta, ele considerou que é através do “lugar” que se pode dizer que surge a existência de cada indivíduo. Assim, o “lugar” é a totalidade infinita do Universo. Ora, é a partir daqui que a totalidade infinita do Universo pode absorver a totalidade dos existentes presentes em seu interior. E é assim que o “si mesmo nominal”, “eu absoluto” aqui a sentenciar, é em última instância o Universo a afirmar-se a si próprio, na medida em que “eu” faço parte do Universo. A lógica da autoidentidade é uma lógica existencial aplicada ao Universo. É a partir daqui que se pode prosseguir com a negação e afirmação absolutas das existências numa interpenetração mútua através de um lugar que é vazio. É através da lógica do vazio que se torna possível a simultaneidade da negação e afirmação absolutas.

terça-feira, 22 de outubro de 2019

Jesuitas portugueses no teto do mundo



A 30 de março de 1624, António de Andrade e Manuel Marques, padres jesuítas, partem de Agra, da corte do Mogol no norte da Índia, em direção aos Himalaias para o encontro com um reino que julgavam existir no extremo ocidental do Gugue, um dos reinos que na época formavam o império tibetano. Após uma duríssima viagem de três meses alcançam Tsaparang, designada por Andrade por Chaparangue, capital do pequeno reino.

Dentro de uma complexa teia política que opunha o rei e seu irmão, o lama principal, a entrada dos portugueses em cena agravou ainda mais as relações, pelas intrigantes questões religiosas que Andrade ali introduziu. Seja como for, a dada altura Andrade viu-se numa situação interessante, ao ser eleito pelo rei, precisamente por razões políticas, Lama Maior.




O teto do mundo

Convido-vos a dar azo à vossa imaginação, e empreendam uma viagem imaginária ao remoto Ladakh. Nestas fotos mostro-vos o Palácio de Leh, um antigo palácio real que domina a cidade de Leh, a capital histórica da região tibetana de Ladakh, atualmente parte do estado de Jammu e Caxemira, na Índia. Localizada a grande altitude, mais de 99% deste território é constituído por um deserto montanhoso. 


E apesar disso, ou por causa disso, a gente que aqui habita é detentora de um profundo sentido espiritual. Aqui estão localizados muitos dos mosteiros que tradicionalmente têm dominado a vida espiritual dos budistas de Ladakh. Leh é como se fosse uma cidade, com não mais do que 12.000 habitantes. Os outros ladakhis vivem em aldeias, alguns deles pastores nómadas, que fazem parte do chamado “mundo tibetano” que abrange cerca de seis milhões de pessoas. Atualmente Ladakh é o último reduto do Budismo Tibetano Ocidental, que tem sobrevivido na sua forma pura. 

Bardo-Thödol


Bardo-Thödol – um pequeno livro que se tem tornado nos últimos anos objeto de muitas discussões, tanto para os ocidentais como para os tibetanos. Tem sido ultimamente abordado muito a partir do ponto de vista psicológico, dado que, entre todas as religiões do globo, o Budismo é aquela que mais está direcionada para a psicologia.

Estritamente falando, segundo a tradição Budista, o termo “bardo” refere-se aos seis estados intermédios de perceção, mas também se refere ao último estado intermédio a partir da morte de uma pessoa até ao seu renascimento várias semanas depois. Daí o facto de no Ocidente este livro ser designado por “O Livro Tibetano dos Mortos”.

Várias linhagens ou escolas do Budismo vajrayano estão representadas em Ladakh e no Tibete (região autónoma chinesa do Tibete, cuja capital é Lhasa), enfatizando as diferentes divindades, textos e rituais para os mortos. Alguns mosteiros incorporam certas práticas mágicas que remontam a tempos históricos muito recuados da cultura hindu.

É claro que, como em toda a parte, nem todas as pessoas são dotadas ou vocacionadas a especulações metafísicas, pelo que se ficam pelo mais básico popular. Mas estes mosteiros trabalham com sofisticadas e intrincadas metafísicas de especulação abstrata sobre a natureza última da mente e da realidade. O Budismo, a este nível, só é completamente percebido por um pequeno escol de monges mais treinados de Ladakh.


Um agricultor que nos seus tempos de juventude cultivava nos vales batatas, nabos, cevada e trigo mourisco, agora ocupa o seu tempo a fazer as suas orações, girando a sua roda de orações murmurando mantras, e enviando a santa invocação “Omu! Mani padme hum!” à divindade compassiva protetora do Tibete. Como a sua vida, que foi boa, já vai longa, afastou-se deste mundo de ilusão e prepara-se para a inevitável “mudança de corpo” que se aproxima. Tem a ajuda do rinpoche (abade) e dos monges do mosteiro próximo, para esvaziar a sua mente e assim se soltar das amarras que ainda o ligam à “Eterna Roda da Vida”. Wangchuck não aprendeu a meditar, mas tem ido em diversas peregrinações a lugares sagrados na intenção de obter mérito religioso e melhorar o seu karma. Todavia, não acredita que após a morte seja capaz de penetrar na calma felicidade de um “Nirvana” – para além da dor.do mal, do tempo e da morte – pelo que espera por um bom renascimento.

Quando morrer, o Lama será informado e o astrólogo rapidamente se preparará para trabalhar e estabelecer o horóscopo da morte e calcular a data da cremação. Ajudá-lo-á na sua perigosa viagem através do bardo. Para isso o astrólogo realizará uma série de rituais durante esses dias para assegurar um bom resultado da jornada. A família pagar-lhe-á bem pelos seus esforços.

segunda-feira, 21 de outubro de 2019

Curdos – A influência da geografia na formação de estados-nação



Uma das causas dos problemas políticos que ainda hoje se vivem no Médio Oriente – de que os Curdos são paradigma – resulta de muita desatenção e ignorância por parte dos líderes das potências coloniais europeias nos séculos XIX e XX, quer para as realidades físicas da topografia das regiões, quer em relação às culturas e etnias dos povos que aí residiam. Em vez disso, traçaram fronteiras artificiais a régua e esquadro, olhando simplesmente para os mapas no papel. Assim, a geografia e a história de como as nações se estabeleceram dentro dessa geografia sempre foi e continua a ser decisiva para a nossa compreensão do mundo atual e futuro.

O legado do colonialismo europeu deixou os povos do Médio Oriente agrupados em Estados-nação e governados por líderes que tendiam a favorecer qualquer ramo (e tribo) do islão de que eles próprios proviessem. Eram ditadores que usavam a máquina do Estado para assegurar que sua autoridade dominasse toda a área dentro das linhas artificiais traçadas pelos europeus, quer isso fosse ou não historicamente apropriado e justo para com as diferentes tribos e religiões que haviam sido reunidas.

Nada menos que 100 mil curdos foram assassinados e 90% de suas aldeias foram varridas do mapa. Embora não seja um Estado reconhecido, há uma região identificável como “Curdistão”. Já que atravessa fronteiras, é uma área de perturbação potencial caso as regiões curdas tentem estabelecer um país independente. Quando em 1990 Saddam Hussein invadiu o Kuwait, os curdos passaram a se agarrar à chance de fazer história e transformar o Curdistão na realidade que lhes fora prometida – mas jamais concedida – após a Primeira Guerra Mundial pelo Tratado de Sèvres (1920). Na parte final do conflito da Guerra do Golfo, os curdos se insurgiram, as forças aliadas declararam uma “zona segura” em que as forças iraquianas não podiam entrar, e um Curdistão de facto começou a ganhar forma.

A invasão do Iraque pelos Estados Unidos em 2003 cimentou o que parece um facto: “Bagdade não governará mais os curdos”. O Curdistão não é um Estado soberano reconhecido, mas tem muitas das características de um Estado, e acontecimentos em curso no Médio Oriente apenas aumentam a probabilidade de que venha a existir um Curdistão no nome e no direito internacional. As questões são: que forma ele terá? E como a Síria, a Turquia e o Irã reagirão caso suas regiões curdas tentem fazer parte dele e se esforcem para criar um Curdistão contínuo, com acesso ao Mediterrâneo? Haverá outro problema: a unidade entre os curdos. O Curdistão iraquiano está dividido há muito tempo em duas famílias rivais. Os curdos da Síria tentam criar um pequeno Estado que chamam de Rojava. Eles o veem como parte de um futuro Curdistão maior, mas, na eventualidade de sua criação, surgiriam questões relativas ao seguinte ponto: quem teria o poder, quanto e onde. Se o Curdistão vier a ser de facto um Estado internacionalmente reconhecido, a forma do Iraque mudará. Isso presumindo que haverá um Iraque. Pode ser que não haja.

No tempo de Saddam, os curdos eram geograficamente definidos e numerosos o bastante para conseguir reagir quando a realidade da ditadura se tornou excessiva. Os 5 milhões de curdos do Iraque estão concentrados nas províncias norte e nordeste de Arbil, Suleimania e Dohuk e áreas circundantes. Elas formam um gigantesco crescente marcado sobretudo por morros e montanhas, o que significa que os curdos conservaram sua identidade distinta apesar de repetidos ataques culturais e militares contra eles, como a Operação de Al-Anfal de 1988, que incluiu ataques aéreos com gás contra as aldeias. Durante a campanha de oito estágios, as forças de Saddam não fizeram nenhum prisioneiro e mataram todos os homens que lhe apareceram com idade entre quinze e cinquenta anos. As minorias mais diminutas numa ditadura por vezes fingem acreditar na propaganda de que seus direitos estão protegidos porque lhes falta força para fazer alguma coisa em relação à realidade. Por exemplo, a minoria cristã do Iraque e seu punhado de judeus sentiam que podiam ficar mais seguros mantendo-se em silêncio numa ditadura secular, como a de Saddam, do que se arriscando numa mudança e no que temiam que poderia vir a seguir, como de facto veio.

domingo, 20 de outubro de 2019

Um choque de visões


Todos os dias se publicam dezenas de artigos e livros cujo tema é o caminho que o mundo de hoje está a levar de uma forma que ninguém sabe para onde. A transformação está a ser de tal forma acelerada que não dá tempo a que se faça uma reflexão cuidada e ponderada.

Há quem tenha uma visão muito pessimista. Mas também há quem tenha uma visão otimista. Os primeiros são de um modo geral conservadores no pensamento, criticando a ordem internacional liberal que foi a ordem que se instalou depois da Segunda Guerra Mundial sob o patrocínio dos EUA, e que se globalizou. Esta ordem naturalmente que se acelerou depois da queda do Muro de Berlim e que levou consigo a queda do Império Soviético, e com isso o fim da Guerra Fria.

Os otimistas apresentam uma visão benigna de tudo aquilo que os primeiros apontam como negativo. Chamam a atenção para o facto de que foi essa ordem que permitiu que na China e na Índia saíssem da fome e da pobreza centenas de milhões de pessoas. E isso fez-se acompanhar da ascensão desses países de uma forma jamais pensável. O que em si não tem de ser uma coisa má. Há avanços e recuos neste caminho, dizem os otimistas, mas é a única forma de garantir a aspiração a um desenvolvimento mais equilibrado, mesmo com grande turbulência como aquela com que somos acometidos nos dias em que vivemos.

É certo que se reconhece que isso determinou o crescimento das forças populistas na maioria das democracias ocidentais, concordam os otimistas em resposta à interpelação dos pessimistas que vaticinam a integração europeia a caminho do fim. Os otimistas consideram que seria inevitável na medida em que essas democracias obtiveram o crescimento económico à custa daqueles que sempre foram os marginalizados da globalização. Os otimistas recusam-se acreditar que uma construção tão extraordinária como foi a União Europeia tenha agora que desaparecer, ou a ficar a marcar passo no caminho, ou voltar às guerras. Os pessimistas replicam dizendo que os líderes europeus, apesar da crise de 2008, estão em estado de negação, o chamado síndrome de Titanic, em que nova crise se avizinha num horizonte muito próximo e eles continuam a dizer que está tudo ótimo, continuando a acreditar nas virtudes da ordem liberal.

Como a União Europeia, o Presidente Putin vê o mundo de acordo com duas ou três noções muito simples, mas no sentido oposto daquilo em que os europeus acreditam. Putin não acredita em regras neutras e universais. A neutralidade é apenas uma fantasia destinada a enganar os outros. O poder nunca pode ser neutro, na medida em que são pessoas que o exercem e não uma mera abstração escondida por trás de instituições supostamente neutras. É a aspiração natural acompanhar também aqueles dos países do mundo que obtiveram a oportunidade de ascenderem ao desenvolvimento. O que ninguém estava à espera é que fosse tão rápido.

Os russos sabem muito bem do que falam, quando também ficaram ofuscados com as ilusões que experimentaram com a sua utopia soviética. Muito bem, dirão eles, a troca de bens, conhecimento e cultura é no seu todo muito boa, mas não há necessidade de assumir que atingimos por isso a “fraternidade humana universal”.

Os benefícios da globalização estão desigualmente distribuídos porque a regras são feitas por aqueles que têm o poder para as fazer. Em resultado disso, Putin acredita que o mundo da política internacional é uma arena de rivalidade e competição permanentes. A soberania é o equivalente político da competitividade económica. Portanto, hoje a ordem mundial é um mundo onde os Estados competem pela sua quota de mercado na economia global. A soberania, neste tempo, já não se expressa pela imagem da fortaleza inexpugnável. É aberta ao mundo, tem vontade de participar em todas as trocas globais com um espírito aberto, mas não exatamente com um coração aberto. Porque se trata de uma luta aberta.

Putin não se limita a pensar confinado a horizontes nacionais. A Rússia desde os seus primórdios que nasceu com vocação imperial, em termos de espaços maiores. Esta dimensão confere-lhe um sentido de legitimidade para jogar o jogo da ordem mundial. Por outro lado, se a Rússia quiser preservar a sua ordem política, então essa ordem tem de adquirir algum tipo de projeção global. A ordem global tem de espelhar pelo menos alguns elementos do atual regime russo. E não o regime russo espelhar a ordem política liberal ocidental. 

O Joker


O Joker é um filme fenomenal que está em exibição nas salas de cinema, e com um sucesso estrondoso. O filme reflecte a chamada “nova normalidade” de um mundo que perdeu as suas referências e a sua identidade, invadido cada vez mais por uma multidão de “jokers”. Catalunha, “Brexit”, Turquia, Síria e Curdos, Hong Kong, Washington ou Moscovo, entre tantos lugares ou temas: não faltam de facto espelhos para os “jokers” se verem reflectidos…

“É impressão minha ou o mundo está cada vez mais louco?”, interroga-se o Joker. E conclui: “Só espero que a minha morte faça mais sentido do que a minha vida.” “Não fui feliz um único dia na minha vida. Pensava que a minha vida era uma tragédia, mas afinal era uma comédia”, segundo confessa depois de se deixar possuir pelas suas derradeiras pulsões vingativas e assassinas contra uma sociedade que desde sempre o abandonou e o trata como o lixo que invade as ruas de Gotham. Uma sociedade em que todos gritam uns com os outros e não há espaço para comunicar verdadeiramente com ninguém.

sexta-feira, 18 de outubro de 2019

Rodolfo II – O Imperador dos pintores



O Sacro Imperador católico romano Rodolfo II nasceu em Viena (1552), foi educado em Espanha e coroado rei da Hungria, Boémia e Alemanha. Morreu em Praga (1612), com 59 anos de idade. Filho do Imperador Maximiliano II e da arquiduquesa Maria da Áustria, uma espanhola desesperadamente católica, e neto do formidável Carlos V. Rodolfo era um rapazinho de onze anos, silencioso e pensativo, quando foi enviado para Espanha para crescer sob orientação do muitíssimo católico Filipe II. A missão do tio era criar no sobrinho um defensor ferrenho da ortodoxia, para que depois conseguisse governar sobre as terras do Norte atormentadas pelos protestantes.

Ao subir ao trono, Rodolfo II já era rei da Boémia e da Hungria aquando da morte do seu pai, e foi coroado imperador a 27 de outrubro de 1576. Manteve a política de tolerância ao protestantismo, mas auxiliou a Contrarreforma. Era dado à melancolia, o que lhe diminuía as capacidades governativas. Tendo chegado a momentos de insanidade, os outros membros da família não tardaram a intervir nos assuntos do império. Rodolfo II foi, de facto, um dos mais excêntricos monarcas europeus de todos os tempos. Colecionava anões e possuía um regimento de gigantes em seu exército. Era rodeado por tudo o que cheirasse a ciência, principalmente a ciências esotéricas. Patrono da alquimia, financiou à farta literatura alquimista.

Não conseguindo manter a coesão dos estados, com os alemães que lhe eram hostis, instalou a capital em Praga e deixou o poder aos irmãos. Após uma revolta na Hungria (1604-1606) liderada por Stephen Bocskay e seus aliados otomanos, grande parte do poder foi transferido para o irmão Matias. A revolta foi provocada pela tentativa de Rodolfo impor o catolicismo romano na Hungria. Em 1608, Matias forçou Rodolfo a lhe ceder a Hungria, a Áustria e a Morávia. Procurando ganhar apoio dos estados da Boémia, Rodolfo emitiu um documento real chamado Majestät em 1609, que garantia a liberdade religiosa aos nobres e às cidades. Este esforço foi em vão e Rodolfo foi forçado a ceder a Boémia para Matias em 1611. O reinado turbulento de Rodolfo foi um prelúdio para a Guerra dos Trinta Anos.


Rodolfo II, por Giuseppe Arcimboldo

O seu gosto pelo excêntrico fez dele um dos principais protetores e mecenas da Europa. A partir de 1597, a sua saúde declinou e, trancando-se no castelo chamado Hradcany, apaixonou-se pelas ciências: química, alquimia, astrologia e astronomia. E interessou-se por Tycho Brahe e Johannes Kepler, e pelas belas artes de Giuseppe Arcimboldo. Assim, criou dentro do seu universo fechado um ambiente cintilante de criatividade e pesquisa, onde a experiência e a descoberta podiam encontrar ali abrigo.

Este Habsburgo, muito perturbado mentalmente, vivia rodeado por uma imensa corte de alquimistas, cabalistas, necromantes, filósofos naturais, astrónomos, pintores e escultores entrincheirados num palácio superlotado de acervos do mais eclético que alguma vez seria possível reunir por uma só pessoa. Não cabe na nossa imaginação um mundo tão estranho como aquele. As histórias que se contam são impressionantes, ainda que possamos suspeitar de estarem revestidas de certa fantasia.

Tycho Brahe fazia-lhe horóscopos com as piores previsões. Uma delas foi que o seu leão de estimação não duraria muito. Mas só morreu vários anos mais tarde a seus pés. Esse episódio tomou-o de angústias e de terror, caindo desmaiado sob as colunas italianas da sua última morada. Pagens e criados levaram-no para o quarto em convulsões terminais de agonia. E em poucos dias morreu.





Morreu com o frasco do elixir da eterna juventude ainda atado à volta do pescoço por um cordão de seda. O sacro imperador tinha-se tornado cada vez mais temeroso e supersticioso, nas mãos de toda a espécie de charlatães. O corpo de Rodolfo ficou exposto durante oito dias na capela ao lado da Sala Venceslas, um espaço tão vasto que costumavam fazer-se lá torneios a cavalo. Enquanto o irmão Mathias organizava a estratégia para expandir o seu poder na Europa. Um padre chamado Kaspar Zrucky entrou na câmara ardente. Ele observara de perto todos os passos da destruição de Rodolfo, inclusive duas tentativas de suicídio. Mas acreditava no elixir, pelo que não hesitou em roubá-lo. Roubou-o e bebeu-o, mas foi preso. Enforcou-se na cadeia.

O primeiro inventário das coleções de Rodolfo foi feito em 1619, um ano depois de ter iniciado a agora chamada Guerra dos Trinta Anos, e depois da Segunda Defenestração de Praga, que provocou sérios estragos nas coleções imperiais. A sala no Ludwigsflügel, onde o evento da defenestração ocorreu, ainda existe. Como a pilhagem ainda mal tinha começado foi possível listar mais de 3.000 quadros, onde se podiam ver trabalhos de Miguel Ângelo, Leonardo, Rafael, Giorgione, Dürer, Holbein, Cranasch, Brueghel, Ticiano, Tintoretto, Veronese e Rubens. E mais de 2.500 esculturas. O duque Maximiliano da Baviera não esteve com meias medidas, chegou e carregou. Diz-se que foram mil e quinhentos carregamentos, em carros puxados a cavalos. Na sequência da Batalha de Praga, que marcou termo à Guerra dos Trinta Anos, a 26 de julho de 1648, Konigsmark tomou posse do fabuloso palácio. Do espólio destinado à rainha Cristina da Suécia, outra grande colecionadora e amante das artes, destacou para si mesmo cinco carros com peças de ouro e prata. Quando a imperatriz Marie-Thérèse decidiu redecorar o palácio em 1749 (e assim apagar todos os vestígios de como fora a vida no tempo de Rodolfo), ainda amealhou uma grande fortuna em quadros vendidos para a pinacoteca de Dresda.



No dia 14 de maio de 1788, José II decidiu transformar o velho palácio, o maior orgulho do povo de Praga, na caserna para as suas tropas. Em 1876, um inspetor mandado de Viena encontrou mais quadros, e organizou uma transferência discreta entre capitais. E mais tarde, um certo SS Reichprotector e Obergruopenfuhrer chamado Reinhard Heydrich mandou emparedar a coroa de Venceslau, o santo padroeiro da Boémia. Rodolfo deliciava-se a inventar esconderijos complicadíssimos para as suas peças de eleição, que ainda continuam a aflorar à superfície nos nossos dias.




Robert Fludd



Robert Fludd , também conhecido como Robertus de Fluctibus (1574 - 1637), nascido em Milgate House, foi um proeminente médico da linha de Paracelso, com interesses na nova ciência, mas também no ocultismo. Ele é referenciado como astrólogo, matemático, cosmólogo cabalista, rosacruz, ou seja, um profundo esoterista do calibre de John Dee. Não deixou de ser um grande interlocutor de Kepler sobre abordagens científicas e herméticas. Para além disso foi membro do Parlamento e tesoureiro da rainha Isabel I para a guerra na Europa.

Ingressou no St. John's College de Oxford em 1591, tendo terminado em 1598 uma graduação em Mestre. Durante o período do St. John's College, o médico residente era Matthew Gwinne, prático da medicina galénica, mas também conhecedor da medicina de Paracelso. 
Fludd leu os seus escritos durante esse tempo em Oxford, o que muito o influenciou para a sua posterior filosofia e prática médica.  Depois andou pela Europa, entre 1598 e 1604, onde estudou medicina, química e hermetismo. Viajou por França, Itália, Alemanha e Espanha. O seu itinerário não é conhecido em detalhes, mas sabe-se que por conta própria passou um inverno nos Pirinéus para estudar teurgia (a prática de rituais) com os jesuítas.

Ao retornar à Inglaterra em 1604, Fludd matriculou-se na Christ Church em Oxford, para continuar os seus estudos em medicina. Os principais requisitos para entrar nessa época, incluíam a demonstração de ter lido e compreendido os textos médicos necessários - principalmente os de Galeno e Hipócrates.

Depois de se formar na Christ Church, Fludd mudou-se para Londres instalando-se na Fenchurch Street, e tentou ingressar no College of Physicians. Mas teve problemas com os examinadores do Colégio, não só pelo desprezo que exibia pelas autoridades médicas tradicionais (ele adotara os pontos de vista de Paracelso), como pela autoridade de Galeno. Após seis tentativas, finalmente foi admitido como membro em setembro de 1609. Tornou-se um próspero médico de Londres, atuando como censor do College quatro vezes (1618, 1627, 1633 e 1634). Ele também participou numa inspeção dos farmacêuticos de Londres realizada pelo Colégio em 1614 e ajudou a criar a Pharmacopoeia Londinensis em 1618 - um diretório de preparações farmacêuticas padronizadas fornecidas pelo London College of Physicians. Ele se tornou uma figura tão estabelecida no Colégio que foi incluído nas críticas do século XVII ao Colégio, incluindo as de Nicholas Culpepper e Peter Coles. Fludd foi um dos primeiros a apoiar na imprensa a teoria da circulação do sangue de William Harvey. Até que ponto Fludd realmente influenciou Harvey ainda é debatido, no contexto em que a descoberta de Harvey é difícil de datar com precisão. O termo "circulação" era certamente ambíguo na época.


Abordando agora mais a sua vertente esotérica, enquanto seguia Paracelso em seus pontos de vista médicos, e não nas autoridades antigas, ele também acreditava que a verdadeira sabedoria seria encontrada nos escritos de mágicos naturais. A visão mística da matemática e a reverência por Pitágoras, era muito apreciada nessa época. A certeza na religião só poderia ser descoberta através de um estudo sério de números e proporções. Ora, foi esta inclinação de Fludd que o fez entrar em conflito com Kepler.

Grande parte dos escritos de Fludd tinham como centro as simpatias na natureza entre o Homem, a Terra e o Divino. Havia um último elemento, também chamado Espírito do Senhor, que constituía a matéria passiva de todas as outras substâncias, incluindo todos os elementos secundários e as quatro qualidades dos antigos. Além disso, a sua teoria tripartida, a própria concepção de Paracelso dos três princípios primários - enxofre, sal e mercúrio -, acabou por derivar do caos e da luz interagindo para criar as variações do espírito. A divisão trinitária é importante, pois reflete uma estrutura mística da biologia. Fludd levava a sério as escrituras bíblicas; na Bíblia, o número três representava o principium formarum, ou a forma original. Além disso, era o número da Santíssima Trindade. Assim, o número três formou o corpo perfeito, paralelo à Trindade. Isso permitiu que o homem e a terra se aproximassem da infinidade de Deus, criando uma universalidade de simpatia e composição entre todas as coisas.

A aplicação da teoria de Fludd foi melhor ilustrada por meio da sua concepção do relacionamento entre macrocosmo e microcosmo. A luz divina (o segundo dos princípios primários de Fludd) era o "agente ativo" responsável pela criação. Isso deu forma ao desenvolvimento do mundo e do sol. Fludd concluiu, a partir de uma leitura do Salmo 19: 4 - "Neles estabeleceu um tabernáculo para o sol". O sol estava para a terra,assi como o coração estava para o homem. O sol transmitia o Espírito à terra através dos seus raios, que circulavam por dentro e por fora da terra, dando-lhe vida. Da mesma forma, o sangue do homem carregava o Espírito do Senhor que circulava pelo corpo do homem. Esta foi uma aplicação das simpatias e paralelos fornecidos a toda a criação de Deus pela teoria tripartida da matéria de Fludd


O sangue era central na concepção de Fludd, na relação entre microcosmo e macrocosmo; o sangue e o Espírito que circulava interagiam diretamente com o Espírito transmitido ao macrocosmo. O Espírito macrocósmico, carregado pelo Sol, influenciava os corpos astrais. As influências astrais do macrocosmo podem atuar no microcosmo. Fludd estendeu essa interação à sua concepção de doença: o movimento do Espírito entre o macrocosmo e o microcosmo poderia ser corrompido e invadir o microcosmo como doença. Como Paracelso, Fludd concebeu a doença como um invasor externo, e não como um "desequilíbrio interno".

A literatura rosacruz tornou-se a caixa de areia de teosofistas e charlatães, que afirmavam estar ligados à misteriosa Irmandade. Robert Fludd liderou a batalha contra os detratores. Mas havia quem dissesse que ele era "o grande filósofo místico inglês do século XVII, um homem de imensa erudição, de mente exaltada e, a julgar pelos seus escritos, de extrema santidade pessoal". Também foi dito que o que Fludd fez foi libertar o ocultismo, tanto da filosofia aristotélica tradicional quanto da filosofia  cartesiana do seu tempo.

John Dee




John Dee (1527-1609) – matemático, astrónomo, astrólogo, filósofo do esoterismo e conselheiro de Isabel I. Nasceu em Tower Ward, Londres, filho de Rowland Dee, de origem galesa e Johanna Wild. Foi um membro muito original do Trinity College depois de ter frequentado o St. John's College em Cambridge.


Para os nossos olhos à século XXI, é difícil compreender como ele se meteu no mundo da magia. Mas temos de compreender que ele é um génio do século XVI. Ele era convidado tanto para dar palestras sobre geometria euclidiana na Universidade de Paris, como para subir a palcos e mostrar as suas habilidades de mágico. Os inteligentes efeitos de palco que ele produziu para uma produção da Paz de Aristófanes lhe garantiram a reputação de ser um mágico que se agarrou a ele pela vida. Mas ele era um fervoroso promotor da matemática, um respeitado astrónomo e um dos principais especialistas em navegação, que treinou muitos navegadores ingleses à descoberta do mundo. Tinha como amigos íntimos os cartógrafos Gerardus Mercator e Abraham Ortelius. 

Era uma pessoa muito viajada pela Europa, onde fez muitos contactos com personalidades influentes da nascente ciência ocidental. Mas a sua faceta de investigador na área das ciências esotéricas nunca o largou, assunto sobre o qual acumulou uma vasta biblioteca, sobre a qual se mergulhava na busca daquelas verdades puras, transcendentes, lendo os escritos de Marsilio Ficino e todo o mundo do neoplatonismo renascentista.

Em 1555 foi preso por ter sido acusado de traçar horóscopos da Rainha Maria e da princesa Isabel. Depois de ter sido entregue ao bispo católico Bonner, conseguiu limpar o seu nome e tornar-se amigo de Bonner. Então em 1556 Dee apresentou à rainha Maria um plano visionário para a preservação de livros, manuscritos e registos antigos e a fundação de uma biblioteca nacional. Mas a sua proposta não foi aceite. Assim, ele expandiu ainda mais a sua biblioteca pessoal, na sua casa em Mortlake. A biblioteca de Dee, um centro de aprendizagem fora das universidades, tornou-se a maior da Inglaterra e atraiu muitos estudiosos de toda a Europa.

Quando Isabel assumiu o trono em 1558, Dee tornou-se seu conselheiro de confiança em questões astrológicas e científicas. Entre as décadas de 1550 e 1570, ele serviu como consultor das viagens de navegação. 
Em 1564, Dee escreveu a obra hermética "Monas Hieroglyphica", uma interpretação cabalística exaustiva de um glifo de seu próprio projeto, destinado a expressar a unidade mística de toda a criação, que dedicou a Maximiliano II, o Sacro Imperador Romano. Publicou um "Prefácio Matemático" à tradução inglesa de Henry Billingsley dos Elementos de Euclides em 1570, argumentando a importância central da matemática e destacando a influência da matemática nas outras artes e ciências. Destinado a uma audiência fora das universidades, provou ser o trabalho mais amplamente influente e frequentemente reimpresso. 

Dee promoveu a cartografia e as ciências da navegação. Estudou de perto com Gerardus Mercator e possuía uma importante coleção de mapas, globos e instrumentos astronómicos. Ele desenvolveu novos instrumentos, bem como técnicas especiais de navegação para uso em regiões polares. Dee serviu como consultor das viagens inglesas de descoberta e selecionou pessoalmente os pilotos e os treinou em navegação. Ele acreditava que a matemática (que ele entendia misticamente) era central para o progresso humano. A centralidade da matemática na visão de Dee o torna, até certo ponto, mais moderno que Francis Baconembora alguns estudiosos acreditem que Bacon subestimou propositadamente a matemática na atmosfera anti-oculta do reinado de James I. Deve-se notar, porém, que a compreensão de Dee sobre o papel da matemática é radicalmente diferente da nossa visão contemporânea. A promoção de Dee da matemática fora das universidades foi uma conquista prática duradoura. Como na maioria de seus escritos, Dee escolheu escrever em inglês, e não em latim, para tornar seus escritos acessíveis ao público em geral. 

Dee era amigo de Tycho Brahe e estava familiarizado com o trabalho de Nicolaus Copernicus. Muitos dos seus cálculos astronómicos foram baseados em suposições copernicanas, mas ele nunca adotou abertamente a teoria heliocêntrica. Dee aplicou a teoria copernicana ao problema da reforma do calendário. Em 1583, ele foi convidado a aconselhar a rainha sobre o novo calendário gregoriano que fora promulgado pelo papa Gregório XIII a partir de outubro de 1582. Seu conselho era que a Inglaterra a aceitasse, embora com sete emendas específicas. A primeira delas foi que o ajuste não deveria ser os 10 dias que restaurariam o calendário no tempo do Concílio de Niceia em 325 d.C., mas em 11 dias, o que restauraria o nascimento de Cristo. Outra proposta de Dee era alinhar os anos civil e litúrgico e iniciar os dois em 1 de janeiro. Previsivelmente, a Inglaterra optou por rejeitar quaisquer sugestões que tivessem origens papistas, apesar de qualquer mérito que pudesse ter objetivamente, e o conselho de Dee foi rejeitado.

Em 1587, durante uma conferência espiritual na Boémia, Kelley informou Dee que o anjo Uriel havia ordenado aos homens que compartilhassem todos os seus bens, incluindo suas esposas. Naquela época, Kelley ganhara fama de alquimista e, de facto, era mais procurado que Dee nesse sentido: essa era uma linha de trabalho que tinha perspectivas de ganhos financeiros sérios e de longo prazo, especialmente entre as famílias reais da Europa Central. Kelley chegou a ser o alquimista do Imperador Rudolfo II.

Dee, por outro lado, estava mais interessado em se comunicar com os anjos que ele acreditava que o ajudariam a resolver os mistérios do céu através da matemática, óptica, astrologia, ciência e navegação. A ordem de compartilhar a esposa causou grande angústia em Dee, mas ele aparentemente não duvidou da sua genuinidade. Eles aparentemente compartilharam as esposas. No entanto, Dee interrompeu de imediato as conferências. Dee regressou a Inglaterra em 1589. Quando regressou a Mortlake, depois de seis anos no exterior, encontrou a sua casa vandalizada, a biblioteca arruinada e muitos de seus livros e instrumentos premiados roubados. Além disso, Dee deparou-se com uma crescente crítica às práticas ocultistas, que havia tornado a Inglaterra ainda mais hostil às suas práticas de magia e filosofia natural. Nove meses depois, em 28 de fevereiro de 1588, a mulher de Dee teve um filho: Theodorus Trebonianus Dee. É claro que lhe passou pela cabeça ser filho de Kelley. Mas não houve problema, nessa altura Dee tinha 60 anos e Edward Kelley tinha 32. Dee foi casado três vezes e teve oito filhos. Theodorus morreu em Manchester em 1601, com 13 anos. Os que lhe sobreviveram foram Arthur Dee, Rowland e Katherine, a sua companheira até ao fim. Os outros filhos, bem como a sua mulher Jane, morrerram de peste bubónica.

Cerca de dez anos após a morte de Dee, o antiquário Robert Cotton comprou terras ao redor da casa de Dee e começou a cavar em busca de papéis e artefactos. Ele descobriu vários manuscritos, principalmente registos das comunicações angelicais de Dee. O filho de Cotton entregou esses manuscritos ao estudioso Méric Casaubon, que os publicou em 1659, juntamente com uma longa introdução crítica ao seu autor, como "Uma Relação Verdadeira e Fiel" do que passou por muitos anos entre o Dr. John Dee (um matemático de grande fama) e Q. Eliz e King James. Como a primeira revelação pública das conferências espirituais de Dee, o livro foi extremamente popular e vendido rapidamente. Casaubon, que acreditava na realidade dos espíritos, argumentou em sua introdução que Dee estava agindo como a ferramenta involuntária de espíritos malignos quando acreditava que estava se comunicando com anjos. Este livro é o grande responsável pela imagem, predominante nos dois séculos e meio seguintes, de Dee como um fanático enganado e iludido. 

Uma reavaliação do caráter e do significado de Dee ocorreu no século XX, em grande parte como resultado do trabalho dos historiadores Charlotte Fell Smith e Frances Yates. Ambos os autores colocaram em foco os papéis paralelos que a magia, a ciência e a religião tinham no Renascimento Isabelino. Fell Smith escreve: "Talvez não exista um autor erudito na história que tenha sido tão persistentemente mal avaliado, ou mesmo caluniado, por sua posteridade, e nenhuma voz nos três séculos tenha sido elevada mesmo para reivindicar uma audiência justa para ele. Certamente é hora de examinar a causa de toda essa condenação universal à luz da razão e da ciência; e talvez se verifique que existe principalmente no facto de que ele estava muito avançado no pensamento especulativo para sua própria época entender ". Como resultado dessa e subsequente reavaliação, Dee agora é visto como um estudioso e colecionador de livros, um cristão devoto. A biblioteca pessoal em Mortlake era a maior do país (antes de ser vandalizada), e foi criada a um custo pessoal enorme e às vezes ruinoso; foi considerado um dos melhores da Europa. Além de conselheiro astrológico e científico de Elizabeth e sua corte, ele foi um dos primeiros defensores da colonização da América do Norte e um visionário do Império Britânico que se estendia pelo Atlântico Norte.