domingo, 31 de outubro de 2021

Morrer


Vamos todos morrer. No 1º de novembro fala-se da morte, não do morrer. Mas a morte, propriamente dita, não existe. As pessoas falam dela como se fosse um agente, um ser ou uma substância. É como o tempo. Mas é assim que as pessoas falam quando se referem ao processo humano de morrer. Ora, no 1º de novembro vive-se o luto. E isso é necessário, particularmente num tempo em que se mascara ou se esconde o momento de morrer. Ou se prolonga a vida, em agonia, inapropriadamente.


Isto de importar a palavra Halloween tem o efeito de diluir o medo. Dá a impressão de estarmos a celebrar uma festa estrangeira. A véspera do dia de Todos os Santos faz medo porque o dia de Todos os Santos é o dia dos mortos e os mortos fazem medo, sobretudo quando se pensa que estão de algum modo vivos, perturbados pela véspera do dia deles – e pela noite. Falar em bruxas também tira o medo. Parece que estamos dispostos a fazer tudo para não falar nos mortos. E nos irmãos dos mortos, na família de efabulações que fazemos à volta dos mortos: os fantasmas.




Quando um doente pergunta “vou morrer?”, é preciso muito cuidado com a resposta, diz Madalena Feio. Geralmente, devolve-se questionando: “Porque é que me está a perguntar isso?” É preciso aferir se a resposta é algo que o doente quer ouvir ou não e se é essa realmente a pergunta que quer ver respondida. “Às vezes, há um desfasamento entre o que nós pensamos e aquilo que a pessoa espera ouvir. Nunca damos um número certo, damos sempre um intervalo de tempo. Dizemos que pensamos que esse tempo se calhar não se mede em meses, mas talvez em semanas e dias, mas que nós nos enganamos muito, quer num sentido quer noutro, e isso é uma grande verdade.”

A morte é a única experiência humana que não podemos partilhar – é impossível representar a própria morte, a não ser como espectador, pelo que é sempre através do que acontece aos outros que dela tomamos conhecimento ou proximidade, pois, quando chegar a nossa vez, já não poderemos comunicá-la. Desaparecemos como consciência de nós. Deste modo, a morte impõe a inexorável vulnerabilidade humana e a limitação do Si, do Eu. Mais do que um problema ou uma interrogação à razão, a morte constitui um enigma, um mistério – partida sem regresso, ponto de interrogação no limiar do desconhecido. O horror da morte, a angústia da morte, é o pensamento que perturba a pessoa pela perda da sua individualidade. É a Consciência da perda de Si. O apaziguamento dessa consciência para algumas pessoas é a esperança, a última a morrer, de que há um Além, uma sobrevivência post mortem.

Estar vivo é podermos morrer a qualquer momento. A prática da consciencialização da noção de quanto valiosa é a vida, justamente porque a podemos perder a qualquer momento, dada a nossa tremenda vulnerabilidade, é de um valor supremo. Não acreditamos na vida eterna. Mas é bom acreditar na "crença na vida eterna". O que isto quer dizer? Quer dizer que sabemos todos que somos mortais, que somos finitos, que vamos morrer, mas como ferramenta de sobrevivência, acreditar que temos alma, e que ela é imortal, é bom para melhor defendermos a vida de todos em sociedade. A natureza não é sociável.

A ideia de imortalidade tem-se mostrado cada vez mais cativante para a ciência e para a medicina moderna. Por exemplo, na Universidade de Northwestern, nos Estados Unidos, cientistas fazem ou fizeram experiências em minhocas apagando os genes que fazem as mutações que estão na base do envelhecimento. Claro que uma coisa são os humanos, outra coisa são as minhocas, mas os cientistas entusiasmam-se muito com as conquistas técnicas. Outro exemplo é o rejuvenescimento de ratos velhos por meio da infusão de sangue de ratos novos. Os pesquisadores acreditam que o procedimento poderia funcionar com humanos. Companhias do Silicon Valley, região dos EUA que concentra algumas das principais empresas de tecnologia do mundo, estão agindo ativamente nesse setor. Uma enorme quantidade de dinheiro está sendo investida na pesquisa da imortalidade, e há grandes nomes participando, entre eles: Larry Ellison - um dos homens mais ricos do mundo e um dos donos da Oracle, empresa de sistemas de computação. Sergey Brin - co-fundador do Google e da Calico, que trabalha com saúde e bem-estar. Aubrey de Grey - o cientista e pesquisador britânico da área da medicina regenerativa é um dos maiores especialistas do Planeta em gerontologia. Essas pessoas famosas confessam sentir medo de envelhecer e morrer, por isso trabalham encarniçadamente para encontrar o tal “elixir da eterna juventude”. É claro que, quando nos remetemos para o transcendente, invocando a divindade, queremos que ela seja inteligente como nós. Com uma divindade antropomorfizada, capaz de ajuizar valores, podemos estabelecer com ela compromissos, e receber favores prestando-lhe homenagem. É este o principal benefício que os seres humanos, não os outros animais, obtém com a religião. 

Há alguns doentes com doença crónica avançada que pedem para morrer, apesar dos seus sintomas físicos e psicológicos terem sido tentados minimizar medicamente. Há doentes que, apesar disso, continuam a pensar que pela sua incapacidade de fazer o que antes faziam - a perda do seu lugar na sociedade, no trabalho e mesmo na família - pensam que já não vale a pena viver. É preferível morrer, pensam eles, do que viver, sim, num penar desgraçado. Não é morrer em si que está em questão, dado que seja qual for a sua vontade, terão mesmo de morrer. Apenas não querem viver daquela maneira.

Quem trabalha em cuidados paliativos por vezes nega que haja pedidos para morrer nesse contexto. Alegam que os problemas estão todos resolvidos. Mas isso apenas mostra quão cínica e hipócrita é a humanidade demasiadamente humana. A maioria das pessoas que morrem em Portugal não morrem em unidades de cuidados paliativos. E a falta de comunicação com os doentes acerca do viver e do morrer em todos os sítios, seja no domicílio seja no Hospital, muitos doentes com doenças crónicas avançadas e debilitantes, nunca ouviram um médico ou um enfermeiro abordar esse assunto. É sempre através de rodeios e eufemismos, quando muito alegoricamente no âmbito religioso.

As questões psicossociais muitas vezes não são abordadas pelo médico porque passou a ser um assunto filosófico que não faz parte da sua competência. Outros assumem que os doentes, se estivessem interessados, espontaneamente revelariam as suas preocupações. No entanto, a investigação revela que só cerca de 25% dos doentes o fazem. Os doentes podem pensar que é inapropriado abordar os médicos com essas preocupações, que não há tempo para isso, que os profissionais de saúde não quererão ou não poderão ajudá-los ou, ainda, que os seus sentimentos são pouco razoáveis. Tudo isto pode contribuir para que os doentes não revelem o seu desejo de morrer.


Rui Patrício, um advogado e colunista de um Jornal, escreveu: «Morrer é uma coisa bestial. Deve ser por gostar de História e de Fantasia que aprecio obituários. João Botelho, em entrevista recente à Visão, disse: “Há uma definição de cinema de que eu gosto muito: luzes e sombras e seres humanos aflitos no meio”. Belíssima definição de cinema, pareceu-me, e gostei de ler – aliás, gostei da entrevista toda, diga-se. E tocou-me, não só porque gosto muito de cinema, mas também porque o cinema (e outras coisas, numa infinita intertextualidade) me tem ajudado a tentar compreender a vida, e a mim nela. Ora, essa definição de cinema calha também muito bem como definição da vida: luzes e sombras, e gente aflita no meio. E tudo termina num obituário, onde desaparecem as sombras, e quase sempre só ressalta a luz. E, melhor ainda, o visado deixou para trás toda a aflição, uma vez que morreu. Deve ser por isso que, eufemisticamente, se costuma dizer quando alguém morre que “foi desta para melhor”. Não é por humor negro, creio, nem será sequer para acentuar a visão trágica da vida como um vale de lágrimas. Simplesmente, é porque cessou a aflição, e sobretudo porque um morto tem direito a um caloroso obituário, onde normalmente só dizem dele coisas boas. Pena é que já não esteja cá para apreciar tamanha e luminosa generosidade dos outros, que em vida lhe não tributaram tanto elogio, nem tal compreensão (ou mesmo esquecimento) pelos seus lados mais sombrios. Mas não se pode ter tudo, e deve ser um grande consolo saber que depois de mortos tenderemos a ser bestiais. Não tenhamos, porém, pressa em morrer, mas, mesmo que não haja vida para além da morte, pelo menos a umas palavrinhas fantásticas de obituário quase ninguém escapa. Ámen.»

sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Que tempo?


O tempo é inseparável da consciência. Sem consciência não haveria propriamente tempo, tal como intuitivamente o concebemos. O conceito de tempo nunca deixou de intrigar aqueles que gostam de pensar sobre o assunto. Por um lado, nós temos a tendência para objetivar os conceitos, isto é, segundo o jargão dos filósofos: “reificar”, que significa dar-lhes um corpo, uma substância. Mas, por outro lado, nós sentimos no próprio corpo o tempo a passar. O tempo passa sem cessar, nunca para. Mas, quando vamos analisá-lo, encontramos boas razões para rejeitar a ideia de que ele exista de uma forma independente, por si só. Assim como o presente está vinculado à consciência percetiva, o passado e o futuro estão vinculados à memória. Uma pessoa com doença de Alzheimer que tenha perdido a memória só tem presente, para essa pessoa passado e futuro não existem. Nós só temos a certeza de que vamos cumprir a promessa de amanhã nos encontrarmos com um amigo, ou ir fazer uma viagem dali a uma semana, porque temos memória de futuro. Marquei um encontro para amanhã no café tal à hora tal.



Templo de Poseidon no Cabo Súnio, Grécia - 444-440 a.C.
No regresso a casa, os marinheiros gregos sabiam que estavam a chegar quando ao longe avistavam o Templo de Poseidon, erguido num rochedo escarpado virado para o mar, no extremo do Cabo Súnio.
A associação íntima do tempo com o Universo remonta a Platão [428-347 a.C.]. Na cosmologia de Platão, tal como apresentada no diálogo Timeu, o Universo foi criado por um artífice divino que impôs ordem ao caos primordial, reduzindo-o à regra do que hoje chamamos de lei natural. Mas Platão via o Universo ligeiramente diferente dos astrofísicos de hoje: formas geométricas ideais em estado de absoluto descanso sem tempo. Enquanto o espaço era visto por Platão como uma estrutura preexistente na qual o Universo se encaixava, Platão já via o tempo ser produzido pelo Universo, sujeito a mudança. O tempo representava a mudança das coisas no mundo.

Antes de PlatãoParménides tinha divagado sobre o assunto. O tempo não pertence a nada que seja verdadeiramente “real”, faz parte da aparência do mundo que nos é revelada pelos sentidos, logicamente insatisfatório. A crença de Parménides consistia em pensar que o fluxo temporal não era um aspeto intrínseco da natureza última das coisas. O passado e o futuro deviam ser considerados tão reais quanto o presente.

Os físicos dizem que antes do Big-bang não existia tempo. Isto parece um oximoro, porque então o que é que eles querem dizer com o "antes" do Big-bang? Só falta dizer que o Big-bang surgiu do Nada. E o que é que eu estou aqui a fazer, se como uma extensão no tempo do Big-bang ao fim e ao cabo vim do Nada? E também não existia espaço. É por isso que para os astrofísicos Universo e Espaço são inextricáveis. São a mesma coisa. E assim, os astronautas vão para o Espaço quando saem da Terra. Não é separável o tempo do espaço. E só passou a haver espaço e tempo depois do Big-bang.
Houve um tempo
Que só queríamos passear
Pedimos a um pássaro ao vento
Que nos ensinasse a voar
Mas depois chegou o momento
Em que tínhamos de participar
Amar a vida e partilhar
Em harmonia com o tempo
Conta-se uma história interessante sobre o filósofo russo Nikolai Berdyaev, que, depois de ter defendido veementemente a insignificância e a irrealidade do tempo, de repente parou. E então olhou para o relógio. Ele não podia atrasar-se na toma do seu remédio.

Enquanto a seta do tempo descreve a irreversível sucessão de eventos antes-e-depois, a passagem do tempo refere-se à distinção que fazemos entre passado, presente e futuro. Essas duas propriedades intimamente associadas não devem ser confundidas. A série antes-e-depois é permanente, no sentido de que, se a declaração “B ocorre depois de A” for verdadeira, será sempre verdadeira. Por exemplo, a declaração de que a batalha de Waterloo ocorreu depois da batalha de Hastings é uma verdade permanente. A série antes-e-depois é a forma pela qual nós contemplamos normalmente uma cadeia de eventos no tempo. É o método de ordenação análogo à ordenação numérica, e é compatível com a ideia de “um Universo como um todo”. Por outro lado, a série de passado, presente e futuro caracteriza a forma pela qual nós realmente vivenciamos os eventos.

Não se pode definir o presente a não ser por referência ao aqui e agora. O presente é simplesmente o nosso “agora”, e, como essa é uma definição circular, não há razão para supormos que o que ela define tenha significância objetiva. O conceito de “agora” restringe-se ao nosso modo de perceção. Neste sentido, passado presente e futuro é mera abstração, ou seja, só há presente.

O “presente” de um indivíduo pode ser definido como tudo que interage com ele em um dado instante. É uma relação entre o indivíduo e o resto do Universo, tudo o que lhe está a acontecer num certo instante. Tudo o que é de facto presente para ele. Definindo o presente dessa forma, será possível mostrar que o presente é um conceito objetivo? É claro que só poderíamos ir contra isso se dois indivíduos pudessem simultaneamente ter diferentes “agora”. Portanto, não temos razão para não aceitar a sensata afirmação de que A e B têm um “agora” comum, e que as distinções que fazemos entre passado, presente e futuro não são meramente subjetivas.

A aceitação da Teoria da Relatividade proposta por Einstein não nos força a considerar a ordem dos eventos no tempo totalmente dependente do observador. A teoria realmente permite uma ordem de tempo objetiva para uma ampla classe de eventos, a saber, os que podem interagir com ou influenciar uns aos outros. Consequentemente, ao definir o conceito de presente para qualquer observador em termos de suas interações com o meio ambiente, não estamos em conflito com a Relatividade. Além disso, se o Universo admite um tempo cósmico comum para observadores fixados nas galáxias, em termos desse tempo cósmico, todos os eventos têm uma única ordem de tempo. Do ponto de vista dos observadores fundamentais, há uma ordem de tempo linear que é comum em todo o Universo, e uma distinção clara entre passado, presente e futuro. O Tempo e o Universo estão intimamente associados.

quinta-feira, 28 de outubro de 2021

Quem quererá uma Ilha de Páscoa Global para este tempo?



A 26ª Conferência das Partes (COP26) reúne em Glasgow no próximo dia 31 de outubro, e que se estenderá até ao dia 12 de novembro, líderes mundiais com o propósito de ainda irmos a tempo de controlar os efeitos catastróficos sobre todo o Planeta do aquecimento global de origem antropogénica. O colapso da sociedade da Ilha de Páscoa é uma metáfora: o que aconteceu à Ilha de Páscoa é o que podemos esperar mais cedo do que tarde para toda a Terra. É claro que a metáfora é imperfeita, porque o que há de superior em nós é mil vezes pior. Se o uso apenas de pedras como ferramentas, e à
 custa dos próprios músculos como fonte de energia, conseguiu destruir o ambiente da Ilha de Páscoa, o que não farão 7,5 mil milhões de pessoas a fazer a vida de um europeu ou um americano economicamente minimamente remediado faz nos dias de hoje?

Recapitulando o 'post' anterior, a Ilha de Páscoa é uma ilha triangular cuja formação resultou de três vulcões que se ergueram do mar, juntando-se uns aos outros em tempos diferentes, há dois ou três milhões de anos, e que ficaram adormecidos. Poike, o vulcão no ângulo nordeste da ilha é o mais velho. Seguiu-se o Rano Raraku. Há cerca de 200 mil anos deu-se a última erupção cuja lava cobriu 95% da superfície da ilha.

Os paralelos entre o que está a ocorrer nestes tempos a nível global e a Ilha de Páscoa são assustadoramente óbvios. Graças à globalização, comércio internacional, aviões a jato e Internet, todos os países da Terra de hoje em dia compartilham recursos e afetam uns aos outros, assim como fizeram os 12 clãs de Páscoa. A Ilha de Páscoa estava tão isolada no Oceano Pacífico quanto a Terra está hoje no espaço do sistema solar. Os habitantes de Páscoa tiveram as dificuldades que nós hoje estamos a ter em toda a Terra. Quando os de Páscoa tiveram dificuldades, não havia para onde fugir, nem a quem pedir ajuda. O mesmo se passa agora, também não temos a quem recorrer caso precisemos de ajuda. 

O colapso de Páscoa é o exemplo mais claro de uma sociedade que se destruiu pelo abuso dos seus recursos. Não havia ataques por sociedades vizinhas hostis. Consequentemente também não havia apoios. A causa do colapso de Páscoa foi interna. Não há prova de que havia povos inimigos ou amigos em contacto com a sociedade da Ilha de Páscoa após esta ter sido fundada. Mesmo que algumas canoas tenham chegado posteriormente, tais contactos não devem ter ocorrido em grande escala o bastante para constituírem ameaça ou apoio importantes. Quanto a razões de alterações climáticas, nunca se obtiveram provas.

O número de casas nas terras baixas do litoral - onde quase toda a gente vivia, e que atingiu o seu auge entre 1400 e 1600, em 1700 estavam reduzidas a 70%. Chegou a ser praticado o canibalismo. As tradições orais dos insulares estão obsessivamente repletas de relatos de canibalismo. O maior insulto que se podia dizer a um inimigo era: "A carne da tua mãe ainda está presa aos meus dentes". À medida que as promessas dos chefes e sacerdotes não se cumpriam, o seu poder ia-se esvaziando, ao ponto de a sociedade ruir por volta de 1680 numa série de guerras civis. Por questões de segurança, muitas pessoas começaram a viver em cavernas, que eram alargadas por escavações e cujas entradas eram parcialmente vedadas para criar um túnel estreito facilmente defensável. Restos de comida, agulhas de costura feitas de ossos, utensílios para trabalhar madeira e instrumentos para consertar roupas deixaram claro que tais cavernas eram ocupadas continuamente e não apenas como esconderijos.

As antigas tradições orais dão conta de que os últimos ahus e moais foram feitos por volta de 1620, e que a estátua mais alta estava entre as últimas a serem erguidas. As plantações das terras altas cuja produção comandada pela elite alimentava as equipas de escultores e transportadores de estátuas foram abandonadas progressivamente entre 1600 e 1680. O facto de as estátuas aumentarem de tamanho pode refletir não apenas rivalidade entre chefes tentando superar uns aos outros, mas também apelos mais urgentes aos ancestrais exigidos pela crise ambiental crescente. Por volta de 1680, por ocasião do golpe militar, os clãs rivais deixaram de erguer as estátuas e começaram a derrubá-las uns aos outros, fazendo-as tombar sobre uma laje posicionada de modo a que a estátua caísse e se quebrasse. Assim, como também ocorreu com os anasazis e maias, o colapso ocorreu logo após a sociedade de Páscoa ter chegado ao seu auge em termos de população, construção de monumentos e impacto ambiental.

Após a breve visita do capitão Cook em 1774, houve um fluxo contínuo de visitantes europeus. Como documentado no Havai, Fiji e muitas outras ilhas do Pacífico, foram estes visitantes que introduziram doenças europeias que mataram muitos insulares, embora a primeira menção específica a uma epidemia de varíola date de 1836. Como ocorreu em outras ilhas do Pacífico, a prática de trabalho forçado começou em Páscoa por volta de 1805 e chegou ao auge em 1862-63, o ano mais sombrio da história de Páscoa, quando duas dúzias de navios peruanos sequestraram cerca de 1.500 pascoenses (metade da população) e os venderam num leilão para trabalhar em minas peruanas de guano e em outros trabalhos inferiores. A maioria morreu em cativeiro. Sob pressão internacional, o Peru repatriou uma dúzia dos cativos sobreviventes, que trouxeram outra epidemia de varíola. Os missionários católicos estabeleceram residência em 1864. Em 1872 Páscoa tinha apenas 111 habitantes.

Primeiro, foi sugerido que o desmatamento de Páscoa visto por Roggeveen em 1722 não foi causado pelos insulares em isolamento mas resultado, de algum modo não específico, de dano causado por visitantes europeus que antecederam Roggeveen dos quais não há registro. É perfeitamente possível que tenha havido uma ou mais dessas visitas não registradas: muitos galeões espanhóis atravessavam o Pacífico nos séculos XVI e XVII, e a curiosa reação de despreocupação e destemor dos insulares em relação a Roggeveen sugere experiências anteriores com europeus, mais do que a reação de choque que se espera de gente que tenha vivido em total isolamento e pense que são as únicas pessoas do mundo. Contudo, não temos conhecimento específico de nenhuma visita antes de 1722, e nem de que tenha sido a causa inicial do desmatamento. Mesmo antes de Fernão de Magalhães se tornar o primeiro europeu a atravessar o Pacífico em 1521, há fartas provas que atestam impacto humano maciço em Páscoa: extinção de todas as espécies de aves, desaparecimento de golfinhos e atuns da dieta insular, declínio de pólen de árvores de floresta nos depósitos de sedimentos de Flenley anteriores a 1300, desmatamento da península de Poike por volta de 1400, falta de sementes de palmeira posteriores a 1500, e assim por diante.

Os insulares de Páscoa certamente não seriam tolos de cortar todas as suas árvores, uma vez que as consequências seriam óbvias para eles. Como expressou Catherine Odiac: "Porque destruir uma floresta necessária para a sobrevivência material e espiritual?" O que os insulares de Páscoa que cortaram a última palmeira disseram enquanto faziam aquilo? Será que se comportaram como os modernos de agora que gritam crescimento sim desemprego não?
 Ou: ''A tecnologia resolverá nossos problemas, não tema, vamos encontrar um substituto para  o carvão e o petróleo".

Como a Ilha de Páscoa chegou a tal ponto de desmatamento? Afinal de contas, o Pacífico compreende milhares de ilhas habitadas, e em quase todas elas os habitantes cortaram árvores, derrubaram florestas para abrir espaço para a agricultura, usaram madeira para fogueiras, construíram canoas e usaram madeira e cordas para construir casas e outras coisas. Contudo, entre todas essas ilhas, apenas três no arquipélago havaiano, todas muito mais secas do que Páscoa - as duas ilhotas de Necker e Nihoa e a ilha maior de Niihau - aproximaram-se de Páscoa em grau de desmatamento. Nihoa ainda tem uma espécie de palmeira grande, e não se sabe se a pequena Necker, com uma área de menos de 16 hectares, já teve árvores algum dia. Porque terão os de Páscoa sido os únicos, ou quase isso, a destruir todas as árvores? Foram os insulares que causaram o desmatamento porque foram mais imprevidentes, em comparação com os outros povos do Pacífico.

Parecem ser confiáveis as datações que situam a colonização da ilha de Páscoa por volta de 900 d.C., obtidas pelo paleontólogo David Steadman e pelos arqueólogos Claudio Cristino e Patrícia Vargas através de amostras de carvão e de ossos de golfinhos que serviram de alimento para seres humanos, extraídas das mais antigas camadas arqueológicas que oferecem prova de presença humana na praia de Anakena. Anakena é, de longe, o melhor lugar para se desembarcar em Páscoa a bordo de uma canoa, lugar óbvio onde os primeiros colonizadores se teriam estabelecido. Ao tempo da chegada dos europeus, eles subsistiam principalmente como agricultores, produzindo batatas-doces, inhame, taro, bananas e cana-de-açúcar, e criando galinhas, seu único animal doméstico. A falta de recifes de coral ou de uma lagoa significava que peixes e moluscos contribuíam menos para a sua dieta do que na maioria das ilhas da Polinésia. O
 arqueólogo Barry Rolett chegou a comentar: "Nunca estive em uma ilha da Polinésia onde as pessoas estivessem tão desesperadas como em Páscoa, ao ponto de terem de empilhar pedrinhas em círculo para plantar alguns míseros pés de taro e protegê-los do vento! Nas ilhas Cook, onde se planta taro irrigado, as pessoas jamais se dariam a esse trabalho”.

A maior parte do interior de Páscoa foi convertida em hortas de pedra. O interessante é que parece óbvio que os agricultores não moravam no interior, porque há ruínas de poucas casas populares por ali, nenhum galinheiro e apenas pequenos fornos e pilhas de lixo. Em vez disso, há casas dispersas do tipo usado pela elite, evidentemente para os administradores residentes, que geriam as extensas hortas de pedra como plantações de grande escala (e não como hortas familiares individuais) para produzir alimentos excedentes para a força de trabalho dos chefes, enquanto todos os camponeses continuavam a viver perto da costa e iam e voltavam do interior da ilha, caminhando muitos quilómetros todos os dias. 

As gigantescas estátuas de pedra (moai) e as plataformas de pedra (ahu) sobre as quais se erguem, eram especialmente grandes e elaboradas. Cada um dos 12 territórios da ilha tinha entre um e cinco desses grandes ahus. A maioria dos ahus com estátuas fica na costa, e são orientados de modo que o ahu e suas estátuas fiquem voltados para dentro da terra, para o território de seu clã; as estátuas não estão voltadas para o mar. O período de construção dos ahus parece recair entre os anos 1000-1600 d.C. Estas datas, deduzidas indiretamente, ganharam recentemente o apoio de um brilhante estudo feito por J. Warren Beck e seus colegas, que aplicaram a datação radiocarbónica do coral que os de Páscoa usavam como lima e para fazer os olhos das estátuas, bem como do carbono contido em algas cujos nódulos brancos decoravam a praça. Esta datação direta sugere três fases de construção e reconstrução do Ahu Nau Nau, em Anakena, a primeira fase por volta de 1100 d.C. e a última terminando por volta de 1600. 

Como sem guindastes, conseguiram entalhar, transportar e erguer tais estátuas? É claro que não sabemos com certeza, uma vez que nenhum europeu viu aquilo a ser feito. 
Na pedreira de Rano Raraku podem-se ver estátuas incompletas ainda surgindo da rocha e cercadas por estreitos canais de trabalho com cerca de meio metro de largura. As picaretas de basalto com as quais os entalhadores trabalharam ainda estão na pedreira. As estátuas mais incompletas não passam de um bloco de pedra mal destacado da rocha com o futuro rosto voltado para cima, e com as costas ainda ligadas ao penhasco por uma longa quilha de pedra. A seguir, seriam entalhados a cabeça, o nariz e as orelhas, seguidos dos braços, das mãos e da tanga. Nesse estágio, a quilha que ligava as costas da estátua ao penhasco era cortada, e começava o transporte para fora de seu nicho. Todas as estátuas a serem transportadas ainda não tinham as cavidades oculares, que evidentemente só eram entalhadas depois que a estátua fosse transportada e erguida em seu ahu. Uma das mais notáveis descobertas recentes sobre as estátuas foi feita em 1979, por Sonia Haoa e Sergio Rapu Haoa, que encontraram um olho completo de coral branco com uma pupila de escória vermelha, enterrado junto a um ahu. Posteriormente, fragmentos de outros olhos semelhantes foram desenterrados. Quando esses olhos são inseridos nas órbitas, dão à estátua uma visão intensa e perturbadora tornando impressionante olhá-la. O facto de tão poucos olhos terem sido recuperados sugere que foram feitos poucos, para ficarem sob a guarda de sacerdotes, e para serem inseridos nas órbitas apenas durante as cerimónias.

As ainda visíveis estradas de transporte nas quais as estátuas eram movidas da pedreira seguiam trajetos de contorno que evitavam o trabalho extra de subir e descer colinas, e têm até 14 Km no caso da que leva ao ahu da costa oeste mais distante de Rano Raraku. Embora a tarefa nos pareça desestimulante, sabemos que muitos outros povos pré-históricos já transportaram pedras muito pesadas, como em Stonehenge, nas pirâmides do Egito, em Teotihuacán, e nos centros incas e olmecas, e que algo pode ser deduzido dos métodos em cada caso. 

A parte mais perigosa da operação era a inclinação final da estátua de um ângulo muito inclinado para a posição vertical, por causa do risco da estátua ganhar impulso, ultrapassar a vertical e tombar para o outro lado. Evidentemente, de modo a reduzir este risco, os escultores projetavam a estátua de modo que não fosse completamente perpendicular à sua base plana (p.ex., em um ângulo de cerca de 87° em relação à base, em vez de 90°). Deste modo, quando erguessem a estátua para uma posição estável com a base posicionada sobre a plataforma, o corpo ainda estaria ligeiramente inclinado para a frente, sem risco de tombar para trás. Então, lenta e cuidadosamente, podiam levantar com alavancas a borda da frente da base recuperando os últimos poucos graus que faltavam, introduzindo pedras sob a parte da frente da base de modo a estabilizá-la, até o corpo ficar na vertical. Ainda assim, trágicos acidentes podiam ocorrer nesta última fase, e evidentemente aconteceram no Ahu Hanga Te Tenga, na tentativa de erguer uma estátua ainda maior e que acabou tombando para trás e se quebrou.

O desmatamento deve ter começado pouco depois de chegarem por volta de 900 d.C., e deve ter-se completado por volta de 1722, quando Roggeveen chegou e não viu árvores de grande porte. 
Na península de Poike, que tem o solo menos fértil de Páscoa e, portanto, deve ter sido desmatado primeiro, as palmeiras desapareceram por volta de 1400, e o carvão resultante de queimadas para a erradicação de florestas desapareceu por volta de 1440, embora sinais posteriores de agricultura atestem a presença continuada de seres humanos ali. Amostras de carvão retiradas de fogões e depósitos de lixo submetidas a datação por Orliac indicam que o carvão de madeira começou a ser substituído por ervas e mato após 1640, até mesmo em casas da elite que devem ter ficado com as últimas e preciosas árvores que restaram, não deixando qualquer madeira para os camponeses. 

As amostras de pólen de Flenley mostram o desaparecimento de pólen da palmeira e arbustos, e a sua substituição por pólen de gramíneas e ervas entre 900 e 1300. Mas as datações em depósitos de sedimentos são um meio menos direto de datar o desmatamento do que usando diretamente as palmeiras e suas sementes. Finalmente, as plantações em terras altas que Chris Stevenson estudou, e cuja operação deve ter sido contemporânea do período de maior uso de madeira e cordas para as estátuas, foram mantidas de 1400 a 1600. Tudo isso sugere que o derrube das árvores da floresta começou pouco depois da sua chegada, atingiu o auge por volta de 1400 e foi virtualmente completada em datas que variam localmente entre 1400 e 1600.

***
Renúncia e ascetismo, é agora a Teoria da Razão Ocidental. A razão que domina o interior, em vez da razão da modernidade que tinha como propósito dominar a natureza. É claro que aquilo a que se renuncia continua a ser desejado. Mas tem que ser reprimido, se queremos salvar a civilização. É uma racionalidade que não separa conhecimento e natureza. A racionalidade da modernidade separa o sujeito do objeto; o corpo da alma; o eu do mundo; a civilização da natureza. Cabe agora ao sujeito, destituído dos seus aspetos empíricos e individuais, tratar a natureza como mestre; receber ordens da natureza; compreender a linguagem da natureza, que afinal não é numérica como disse Galileu. Só assim a natureza poderá ser conhecida, e não dominada, perscrutando as incoerências da vida, e as suas dissonâncias em relação ao sujeito. Os acasos da natureza são incontornáveis, porque constituem um obstáculo resistente ao exercício triunfante da razão controladora.

Este capitalismo ainda é um capitalismo do consumo com a justificação da liberdade de escolha. Liberdade de escolha do médico, liberdade de fazer os exames que quiser, liberdade de não se vacinar se não quiser. Mas esta justificação além de ser falaciosa é hipócrita e egoísta. Em sete mil milhões e meio de habitantes no mundo, quatro mil milhões têm essa liberdade condicionada pela pobreza ou inexistência de recursos. Como se a pobreza fosse resultado de uma escolha pessoal. E, no entanto, se quisermos evitar que o planeta se transforme numa Ilha de Páscoa à escala global, temos que deixar o atual tipo de consumismo e adotarmos um modo de vida diferente. Sim, livre, mas livre da compulsão de adquirirmos constantemente produtos acabados de lançar. Estamos a ser vítimas da expansão crescente da circulação do capital. Por exemplo, para estimular a indústria e combater o abrandamento da economia os governos lançam incentivos consumistas às populações. Ora, o incitamento ao consumo e o desprezo pela ponderação ecológica não poderiam ser mais claros. A alegação dos partidos liberais que vivemos numa sociedade de livre escolha é falaciosa, porque não são as verdadeiras escolhas que importam para que possamos adotar as transformações fundamentais para uma existência humana sustentável.

É verdade que o conhecimento científico é cada vez mais extraordinário. Mas para os propósitos da crise ecológica até parece paradoxal, uma vez que está a funcionar cada vez mais de uma forma desregulada, com um poder fora de orientação e de controlo. Digamos que se trata de um impulso despido de juízo ético. E sendo assim, é uma ciência de impulsos cegos às suas consequências malignas. Daí que, não fazendo sentido travar a ciência e os seus avanços, já faz sentido ser a sociedade através dos seus representantes políticos controlar o que pode ser feito e o que não pode por razões éticas e ecológicas. É aqui que o atual Papa Francisco tem insistido nas suas homilias, se bem que de esperança vã. Ninguém garantirá que a explosão do conhecimento científico não nos irá submergir. O sentimento da maioria das pessoas comuns, digamos, com mais de 40 anos de idade, morrem de medo. O que gera hoje o medo é a não transparência causal das ameaças em jogo. Seria suposto especialistas e cientistas serem os sujeitos que deviam saber. Ainda que imputemos o aquecimento planetário à civilização tecnológica e científica, continuamos a precisar da ciência para salvar o Planeta Terra. Em relação ao aquecimento global as consequências ecológicas são afinal devidas à própria ciência tecnológica. E as propostas para sairmos disto tem de ser com mais ciência. Ou seja, a ferida só pode ser curada com a própria lança que a fez.

Os mistérios da Ilha de Páscoa





A Ilha de Páscoa Está situada a 3.700 km de distância da costa oeste do Chile do qual é uma província da região de Valparaíso. Com uma população em 2002 de 3.791 habitantes, 3.304 viviam na capital, Hanga Roa. É famosa pelas suas enormes estátuas de pedra, os moais. A língua que se fala é o Rapa Nui e o Espanhol. A Ilha de Páscoa é o pedaço de terra habitado mais isolado do mundo. A oeste ficam as ilhas Pitcairn da Polinésia a 2000 Km. Saindo do Chile de avião, demora-se cinco horas para lá chegar, sobrevoando apenas a água do Oceano Pacífico. Rano Raraku é uma cratera vulcânica aproximadamente circular de cerca de 550 metros de diâmetro, onde se encontra a pedreira das suas famosas estátuas de pedra que eram esculpidas no local. Estão espalhadas pelo interior e exterior da cratera 397 estátuas de pedra, representando de modo estilizado um torso humano masculino de longas orelhas e sem pernas, a maioria com 4,5 a 6 metros, embora a maior delas tenha mais de 20 metros. Pesam entre 10 e 270 toneladas. Pode-se discernir os restos de uma estrada de transporte saindo da cratera através de um desfiladeiro no ponto mais baixo do bordo da cratera, e da qual partem outras três estradas de transporte com cerca de 7,5 metros de largura irradiando para os outros três pontos cardeais da costa da ilha a cerca de 15 quilómetros de distância.




A mitologia Rapa Nui, também conhecida como mitologia da Ilha de Páscoa, refere-se aos mitos nativos, lendas e crenças do povo Rapa Nui, segundo a qual foi Hotu Matu’a o primeiro colonizador da Ilha de Páscoa, cuja designação ‘ariki mau’ significa chefe supremo ou rei. Hotu Matu'a metido na sua dupla canoa com a família – dois troncos de árvore escavados e unidos – desembarcaram na praia de Anakena a partir da qual se espalharam pela ilha. Subdividiram-se em clãs. Até que em 1722 chegou à ilha o holandês Jacob Roggeveen.

As estátuas em pedra maciça (moais) representam os seus antepassados divinizados. É o único elemento mais visível na cultura do povo Rapa Nui. Esculturas alinhadas ao longo do litoral com as costas viradas para o mar. Tangata manu é um culto do homem-pássaro que sucedeu à era dos moai, já na fase terminal da civilização em que eclodiu a guerra devido à escassez dos recursos alimentares. A construção das estátuas parou. Elementos comuns da história oral que foram extraídos de lendas da ilha, contam que os polinésios entraram na ilha pela primeira vez entre 300 e 800 desta era. Análise linguística sugere que eram polinésios das ilhas Marquesas. O DNA e pólen apontam para um primeiro assentamento polinésio da ilha naquela época, mas é improvável que outros detalhes possam ser verificados. Há uma incerteza considerável sobre a precisão da data.




As estátuas que ficaram na pedreira estão em diferentes estágios de conclusão. Algumas ainda estão presas à rocha na qual foram esculpidas, esboçadas, mas ainda sem detalhes como orelhas e mãos. Outras estão acabadas, extraídas da rocha e repousam sobre a encosta da cratera, abaixo do nicho onde foram esculpidas, e há ainda outras que foram erguidas dentro da cratera. Espalhados pelo chão da pedreira estão as picaretas de pedra, brocas e martelos com que as estátuas eram esculpidas. Ao redor de cada estátua, ainda junto à pedra, estão as valas onde ficavam os escultores.




Os muitos mistérios de Páscoa já eram evidentes para seu descobridor europeu, o explorador holandês Jacob Roggeveen, que avistou a ilha no Domingo de Páscoa (5 de abril de 1722), daí o nome com o qual a batizou e que ainda permanece. A ilha que ele encontrou era um lugar ermo com pequenos arbustos, mas sem nenhuma árvore com mais de três metros de altura. O que aconteceu com todas as árvores que outrora certamente estiveram ali?

Sabemos que uma viagem à Ilha de Páscoa a partir de outra ilha da Polinésia mais próxima, a oeste, demoraria muitos dias. Daí que Roggeveen e os visitantes europeus que o sucederam se tenham surpreendido ao descobrirem que os únicos barcos dos habitantes de Páscoa eram pequenas canoas mal vedadas, com não mais que três metros de comprimento, capazes de levar uma, no máximo duas pessoas.

Apesar de não terem bússola nem instrumentos de metal, os polinésios eram mestres da arte da navegação e da tecnologia de fabricação de canoas à vela. Por volta de 1200 desta era os polinésios tinham atingido toda a terra habitável do Pacífico compreendido entre o Havai, a Nova Zelândia e a Ilha de Páscoa. Hoje está claro que as descobertas e a colonização das ilhas foram meticulosamente planeadas. Ao contrário do que se poderia pensar terem sido viagens acidentais, a maior parte da Polinésia foi povoada de oeste para leste, direção oposta à dos ventos e correntes que prevalecem no Pacifico, que são de leste para oeste. As transferências de muitas espécies de plantas e animais - taro, bananas, porcos e galinhas - não deixam dúvida de que a ocupação foi bem preparada pelos colonizadores, que se preocuparam em trazer de suas terras de origem produtos considerados essenciais para a sobrevivência na nova colónia.

Através de que rota a Ilha de Páscoa, a ilha polinésia mais a leste, foi ocupada? Os ventos e correntes descartariam uma viagem direta das Marquesas, ilhas que possuíam uma grande população e que foram a fonte da ocupação do Havai. Em vez disso, as ilhas de partida mais prováveis para a colonização de Páscoa devem ter sido Mangareva, Pitcairn e Henderson, que ficam a meio caminho entre as Marquesas e Páscoa. 
Os polinésios sabiam como identificar uma ilha muito antes de ela ser avistável. Eram os bandos de aves marinhas que já apareciam a 160 Km dessas ilhas. 

Ilha de Páscoa é o exemplo mais extremo de destruição de florestas das ilhas do Pacifico, e está entre os mais extremos do mundo: toda a floresta desapareceu, todas as suas espécies de árvore se extinguiram. As consequências imediatas para os insulares foram a perda de matérias-primas, perda de fontes de caça e diminuição das colheitas. A proliferação de pequenas estátuas moai kavakava, com bochechas afundadas e costelas salientes, ilustram que se tratava de gente que passava fome. 

A primeira descrição europeia foi feita pelo capitão Cook quando em 1774 lá chegou e ficou por quatro dias. Enviou um destacamento para fazer o reconhecimento da ilha. Trazia consigo um taitiano cujo linguajar polinésio era similar ao dos autóctones, de modo que pôde recolher deles informações. 

Cook comentou ter visto estátuas tombadas, assim como outras ainda de pé. A última menção europeia de uma estátua erguida foi feita em 1838. Em 1868 já não havia nenhuma estátua em pé. As tradições relatam que a última estátua a ser derrubada, por volta de 1840, foi a estátua mais alta, supostamente erguida por uma mulher em homenagem ao marido, e que foi derrubada por inimigos tendo ficada quebrada ao meio. O capitão Cook descreveu a gente da Ilha de Páscoa assim: "pequenos, magros, tímidos e miseráveis". 

Organizar as esculturas, transportá-las a uma certa distância, e erguê-las, requeria uma sociedade populosa e complexa, vivendo num ambiente com bastantes recursos para sustentá-la. O número e o tamanho das estátuas sugerem uma população muito maior do que os poucos milhares de pessoas encontradas pelos visitantes europeus no século XVIII e no início do século XIX. Como eram alimentados? A
 ilha vista por Roggeveen não tinha animais terrestres nativos maiores que insetos, e nenhum animal doméstico exceto galinhas. Seria uma sociedade complexa, denunciada pela ampla distribuição das estátuas a partir da pedreira no extremo leste, onde havia as melhores. Mas as melhores pedras para fazer instrumentos encontravam-se no Sudeste. A melhor praia para pescar está no Noroeste. E as melhores terras de cultivo ao sul. Extrair e distribuir todos esses produtos requereria um sistema capaz de integrar a economia da ilha. Como isso pode ter surgido numa paisagem tão pobre e desolada, e o que aconteceu com esse sistema?

Muitos europeus não acreditavam que os polinésios, "meros selvagens", pudessem ter criado aquelas estátuas ou as belamente construídas plataformas de pedra. O explorador norueguês Thor Heyerdahl, sem querer atribuir tais habilidades aos polinésios que se espalharam da Ásia através do Pacífico Ocidental, argumentou que a Ilha de Páscoa fora colonizada através do Pacífico Oriental, por sociedades mais avançadas da América do Sul. Os especuladores da chamada 'história alternativa' desenvolveram a tese da Atlântida a partir da qual os antigos habitantes da América do Sul haviam sido civilizados. A famosa expedição Kon-Tiki de Heyerdahl e suas outras viagens a bordo de embarcações precárias pretendiam provar a factibilidade de tais contactos transoceânicos pré-históricos do Atlântico, e para apoiar conexões entre as pirâmides do Antigo Egito, a colossal arquitetura megalítica do Império Inca, na América do Sul, as pirâmides dos Maias, e as gigantescas estátuas de pedra da Ilha de Páscoa

Uma versão ainda mais estapafúrdia foi propagandeada pelo escritor suíço Erich von Däniken, acreditando em visitas de astronautas extraterrestres. Alegou que as estátuas de Páscoa eram trabalho de seres inteligentes de outro planeta mais sofisticado tecnologicamente.

A explicação para tais mistérios que emerge atualmente atribui a escultura das estátuas às picaretas de pedra e outros instrumentos comprovadamente espalhados por Rano Raraku mais do que a hipotéticos fenómenos rocambolescos.


terça-feira, 26 de outubro de 2021

Mitrídates


O nome Mitrídates é a forma grega do indo-ariano Mithra-Datt, que significa alguém doado por Mitra, deus-sol indo-ariano, e Datt (doado por) deriva do radical protoindo-europeu da = "dar". E é o nome de um grande número de reis, soldados e estadistas de uma região que abrange – Pártia, Ibéria, Arménia, Ponto. 




Mitrídates VI do Ponto, chamado Eupator Dionísio [132 a.C. - 63 a.C.]. Também conhecido como Mitrídates, o Grande, foi rei do Ponto, na Anatólia, de 120 a 63 a.C. Mitrídates VI era filho de Mitridates V do Ponto [150 a.C. – 120 a.C.], conhecido como Evérgeta. Ele tornou-se rei aos treze anos, governando sob a regência de sua mãe. Um dia mandou prendê-la e ordenou a sua execução, juntamente com um irmão. Mitrídates expandiu o seu reino conquistando os reinos em torno do rio Fásis e na região do Cáucaso. Ambicioso, invadiu alguns de seus vizinhos como a Bitínia, o que levaria mais tarde ao conflito com a República Romana. Mitrídates conquistou a Capadócia e matou o rei Ariárates VII e seu sobrinho, com as suas próprias mãos. 

Após conquistar a Anatólia ocidental em 88 a.C., Mitrídates ordenou a execução de todos os habitantes romanos da área. Durante a 1ª Guerra Mitridática (88 a 84 a.C.), Lúcio Cornélio Sula expulsou Mitrídates da Grécia, mas viu-se forçado a retornar a Itália para enfrentar a ameaça de Caio MárioEm 84 a.C. Nicomedes foi restaurado no trono da Bitínia, e os anos que seguiram foram relativamente pacíficos, com uma ingerência constante e crescente de Roma nos assuntos internos. Em 80 a.C. Júlio César foi enviado como embaixador à corte de Nicomedes. Durante a sua estadia na Bitínia, houve rumores de que ambos – Júlio César e Nicomedes - foram amantes, o qual motivou que os adversários políticos de Júlio César o apelidassem "Rainha da Bitínia", até mesmo tempo depois da sua estadia no reino. Em um dos últimos atos como rei da Bitínia, em 74 a.C., Nicomedes legou o seu reino inteiro a Roma e o Senado Romano depressa votou por integrar a Bitínia como uma nova província. Porém, Mitrídates tratou de proclamar para si o reino à morte de Nicomedes. Desta maneira, Nicomedes IV foi o último rei da Bitínia. Quando Roma tentou anexar a Bitínia, Mitrídates atacou com um exército ainda maior, no que viria a ser a 2ª Guerra Mitridática (83 a 81 a.C.). Em sucessão, Roma enviou Luculo, Aurélio Cota e Pompeu para enfrentá-lo; este último derrotou-o afinal na 3ª Guerra Mitridática (75 a 65 a.C.). Mitrídates refugiou-se na cidadela de Panticapeu e suicidou-se, sendo sucedido por seu filho Fárnaces II do Ponto.

Há duas lendas curiosas a respeito de Mitrídates VI do Ponto. Supostamente, a sua prodigiosa memória lhe permitia falar vinte e cinco línguas, de modo que podia comunicar-se com cada soldado de seus grandes exércitos no seu próprio idioma. Devido a esta lenda, certos livros que contêm excertos de muitas línguas chamam-se "Mitrídates". A segunda lenda relata que Mitrídates VI procurou imunizar-se contra um eventual envenenamento, tomando doses crescentes (mas nunca letais) dos venenos de que tinha conhecimento, até que fosse capaz de tolerar até mesmo uma dose mortal. Alguns chamam a esta prática 
Mitridatismo, para referir o processo pelo qual organismos vivos, a partir da sensibilização por doses crescentes de veneno desenvolvem defesas específicas para o tipo de veneno que foi utilizado, resultando numa imunidade até para elevadas doses. É o caso da dessensibilização à picada das abelhas para quem seja demasiadamente alérgico ao ponto de fazer um choque anafilático. Conforme a lenda, após ser derrotado por Pompeu, Mitrídates tentou o suicídio por envenenamento, sem efeito devido a sua imunidade. Teria, então, forçado um de seus servos a matá-lo à espada. Esta história é contada na peça Mitrídates (1673), de Jean Racine, e na ópera ‘Mitridates, re di Ponto’, de Mozart.

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Outros Mitrídates

Mitrídates I da Pártia [195 a.C. – 138 a.C.] fez da Pártia uma grande força política, expandindo o império para o Oeste até à Mesopotâmia. Durante o seu reinado, os partas tomaram Babilónia (144 a.C.); a Média (141 a.C.) e a Pérsia (139 a.C.). Capturou o governante selêucida Demétrio II Nicator. Demétrio II depois casou-se com a filha de Mitrídates I, Rodoguna. A Leste, Mitrídates I estendeu o seu controlo à Margiana, Cítia e Báctria. Assim completou o controlo parta das rotas de comércio entre o Leste e o Oeste, a Rota da Seda e a Estrada Real. Este controlo de comércio foi a fundação da riqueza e poder parta, e foi zelosamente guardado pelos arsácidas. O controlo parta quebrou a linha ténue com os gregos no Oeste que sustentava o helenístico Reino Greco-Báctrio.

Mitrídates I do Bósforo, líder de Pérgamo e, possivelmente, um dos muitos filhos bastardos de Mitrídates VI do Ponto. Quando Júlio César ficou preso em Alexandria, no inverno de 48 a.C., Mitrídates levantou um exército e foi em seu auxílio, juntamente com Antípatro, ajudando-o a vencer a Batalha do Nilo, que decretou a queda (e morte) de Ptolomeu XIII e a ascensão de Cleópatra ao trono do Egito.

Mitrídates da Arménia foi um governante da Arménia no período em que a Arménia era partilhada por Roma e Pártia, tendo governado como um protetorado romano entre 35 e 37. Governou por duas vezes entre os dois reinados de Orodes da Arménia. O seu segundo reinado foi sucedido por Radamisto.

E mais Mitrídates havia para falar deles, como, por exemplo, um Mitrídates persa, sobrinho de Dario III, que foi assassinado em 334 a.C. 

segunda-feira, 25 de outubro de 2021

O Cáucaso - uma incursão histórica entre 600 a.C. e 189 a.C.

 

Estados Georgianos antigos [600 a.C. - 189 a.C.]

Para quem se dirige da Cólquida para a Média, o trajeto não é longo, pois entre esses dois países encontra-se apenas a terra dos Saspiros. Atravessando-a, chega-se logo ao território dos Medos. Os Citas, entretanto, não penetraram desse lado; fizeram-no bem mais adiante, por uma estrada muito mais longa, deixando o Cáucaso à direita. Foi ali que os Medos, terçando armas com os Persas e sendo derrotados, perderam o império da Ásia, que passou para os Citas. De lá, os Citas marcharam para o Egito, mas quando chegaram à Síria, Psamético, rei do Egito, veio-lhes ao encontro, e, à força de presentes e de súplicas, conseguiu demovê-los de ir adiante. Retornaram eles pelo mesmo caminho e passaram por Ascalão, na Síria, sem causar nenhum dano, com exceção de algumas pilhagens no templo de Vénus Urânia, feitas por alguns dos que seguiam na retaguarda. Esse templo, ao que pude saber pelas informações colhidas, é o mais antigo de todos os dedicados à deusa, tendo servido de modelo ao de Cipro, segundo declararam os próprios cíprios. O de Citera é obra dos Fenícios, originários da Síria. [Heródoto]

A Cólquida é a região ao sul do Cáucaso e a leste do Mar Negro, que hoje faz parte da República da Geórgia. Na mitologia grega, era o país onde se encontrava o Velo de Ouro. Jasão, a bordo do seu navio Argo, viajou até ali para o roubar ao rei. O primeiro reino da Cólquida teria sido dominado pelos Cimérios e pelos Citas, por volta de 720 a.C. Em meados do século VI a.C. foi anexada pelo Império Aqueménida dos persas. Depois os Medos vindos da Ásia conquistaram o país. Antes disso, fontes de origem Urartu mencionam numerosas cidades reais na Cólquida, parecendo que essa nação apresentava elevado grau de civilização nessa época. Havia um único rei colco e um governador em cada província.

Entre 750 e 748 a.C., o rei Sardur II de Urartu invadiu e devastou o sul da Cólquida. Entre 747 e 741 a.C. Sardur voltou e conquistou o palácio de Ildamuche, sede principal do governo. Pouco depois, iniciaram-se as escaramuças dos Cimérios, chamados Gmir pelos georgianos, causando destruição e mortes. Então o país foi assolado pelos Citas. Em 590 a.C., os Citas e os Medos destruíram esse reino. O local de Urartu foi ocupado por tribos arménias, ficando a Cólquida e a Arménia como nações vizinhas. Em 330 a.C., o reino foi libertado do domínio persa por Alexandre Magno. No século IV a.C., a área do Leste caiu sob o domínio do Reino da Ibéria
Reino esse que existiu entre os séculos IV a.C. e V d.C.

O Reino da Grande Arménia existiu de 321 a.C. a 428 d.C. Dinastia orôntida 321 a 200 a.C.; artáxida 189 a.C. a 12 d.C.; arsácida 52 d.C. a 428 d.C. Antes deste reino o território pertencia ao Reino de Urartu, um reino da Idade do Ferro centrado à volta do lago Van no planalto Arménio [860 a.C. – 590 a.C.]. Em 590 a.C. foi conquistado pelo Império Medo, cuja capital era Ecbátana. O último rei do Império Medo foi Astíages, destronado em 550 a.C. por Ciro o Grande.




Como já disse, a Média foi a terra dos medos e do Império Medo. Os medos foram uma das tribos de origem ariana que migrou da Ásia Central para o planalto iraniano no final do século VII a.C., e aí fundaram o Império Medo centrado na cidade de Ecbátana. Era um povo que falava uma língua que pertencia ao tronco indo-europeu. Para todos os efeitos, estavam relacionados com os persas. Devido à sua proximidade com os persas, os autores gregos às vezes achavam difícil diferenciá-los deles, como evidenciado pela expressão "Guerras Médicas".

De acordo com estudiosos, os medos têm relação com um personagem de Génesis 10:2 chamado Madai. O mesmo nome é utilizado pelos assírios para designar o país dos medos. Os babilónios os designavam como Ummān-manda. Os medos destacaram-se pela administração do seu reino, uma boa organização quando comparada com outros reinos da época, como a Assíria, a Lídia e a Fenícia. Também mantinham um exército baseado em infantaria armada com espadas de ferro e escudos, arqueiros e cavaleiros com lanças. As demais tribos arianas, como os persas e os partas, permaneceram tributários dos medos por séculos. Atualmente, os curdos declaram ser os atuais descendentes dos medos.



Medeia - Paul Cézanne

Medeia, na mitologia grega, era filha do rei da Cólquida e sobrinha de Circe. Durante algum tempo foi esposa de Jasão. É uma das personagens mais terríveis e fascinantes da mitologia, ao envolver sentimentos contraditórios e profundamente cruéis, que inspiraram muitos artistas ao longo da história. Marca um limiar cultural e civilizacional: por um lado o mundo primitivo das culturas pelásgicas, das divindades ctónicas, dos matriarcados arcaicos e da Deusa-mãe; por outro, os novos desafios abertos pela Idade do Bronze. O mito de Medeia insere-se no ciclo narrativo dos Argonautas que nos chegou até hoje, de forma mais completa, na obra Argonáutica de Apolónio de Rodes (século III a.C.) que se baseou em material disperso, a que tinha acesso na famosa Biblioteca de Alexandria. Medeia fugiu para Atenas, onde se casa com o Rei Egeu. Eles tiveram um filho, Medo. Quando Teseu volta, Medeia tenta envenená-lo, mas Egeu descobre que Teseu era seu filho e impede o assassinato. Medeia e Medo voltam para a Cólquida, e descobrem que Eetes, pai de Medeia, tinha sido deposto por seu irmão Perses. Medeia e Medo matam Perses, e Medo se torna rei. Quando Medo conquista um grande território, este passa a se chamar Média ou terra dos Medos.


A Sarmácia Asiática é terra dos sármatas, na fronteira oriental da Cítia. Os sármatas eram povos iranianos relacionados com os citas e os sacas. Falavam um dialeto iraniano norte-oriental relacionado com o sogdiano e como o osseto. O termo Sarmácia é aplicado pelos antigos escritores ao que é conhecido como Europa central e oriental, inclusive tudo o que as antigas autoridades chamavam de Cítia, sendo esse nome transferido para regiões mais a leste. A Geografia de Ptolomeu mostra mapas da Sarmácia europeia e asiática.




Numa recente escavação por Jeannine Davis-Kimball, foi encontrado um túmulo onde terão sido enterradas guerreiras, proporcionando dessa forma algum crédito ao mito grego das amazonas. Após as escavações de 2003, ela e Joachim Burger compararam as evidências genéticas do sítio com os nómadas cazaques e encontraram uma impressionante ligação genética - verificada depois pela Universidade de Cambridge. Os povos turcos que se expandiram para essa região não exterminaram nem expulsaram completamente os habitantes iranianos originais, mas na verdade assimilaram um número significante deles.

O Reino da Ibéria, nome dado pelos antigos gregos e romanos, existiu entre os séculos IV a.C. e V d.C. e correspondia aproximadamente ao leste e ao sul da atual República da Geórgia. A similaridade do nome Ibéria, com o da Península Ibérica, sempre suscitou a ideia de alguma relação de parentesco entre os povos ditos "iberos" do Oeste e do Leste. Vários autores da Antiguidade levantaram essa hipótese de uma origem comum, mas não souberam explicar isso diante da grande distância geográfica entre os dois grupos, nem definiram de onde se teriam originado ambas as etnias.




A área era habitada por várias tribos relacionadas entre si, conhecidas como "iberos" por antigos autores. O reino local, Cártila, deve o seu nome a um mítico chefe de nome Cartlos. Os Sasper, citados por Heródoto, teriam sido os responsáveis pela consolidação das diversas tribos nessa região. A provável origem etimológica de Ibéria derivaria de Sasper via Sasper >Speri >Hberi >Iberi. Os Moschi teriam deslocado para o nordeste em migração, sendo que a sua principal tribo, os Mtsqueta, originaram o nome da capital.

A contínua rivalidade entre o Império Bizantino e o Império Sassânida pela supremacia no Cáucaso e a fracassada insurreição dos georgianos em 526, liderada por Gurgenes, foi de consequências danosas para o país. Desde então, o rei da Ibéria teve um poder apenas simbólico, pois o país estava sob domínio persa. A Ibéria passou a ser uma província persa administrada por um governador. Em 582, nobres georgianos solicitaram ajuda ao imperador Maurício I que reinou Constantinopla entre 582 e 602, para fazer renascer o Reino da Ibéria. Mas, em 591, os bizantinos e os persas preferiram fazer um acordo para dividir a região, ficando Tbilisi com os persas, e Mtsqueta com os bizantinos.



O mapa do Mundo no tempo de Heródoto


Os Masságetas foram uma confederação nómada de povos iranianos orientais, que habitaram as estepes da Ásia Central, no Nordeste do mar Cáspio, no atual Turquemenistão. Heródoto situou-os a leste do Mar Cáspio e sudeste do Mar de Aral, entre o Amu Daria e o Sir Daria. A localização exata, contudo, é difícil de determinar pela imprecisão das fontes. Heródoto, por exemplo, baseou-se parcialmente em Hecateu de Mileto e em informadores orais, o que cria um relato misto.

Os Masságetas são mencionados quando Ciro conduz a guerra contra eles, talvez para assegurar as recém-conquistadas Corásmia e Sogdiana. O curso da campanha não é conhecido em detalhe. Segundo Heródoto, após pedir a mão da rainha Tómiris. Cruza a fronteira, mas tem um final infeliz. Ciro morre na batalha decisiva, quando a maior parte de seu exército é destruída. Mais tarde, Dario consegue subjugá-los. Desde então passaram a fazer parte do Império Aqueménida. Depois, parece terem sido absorvidos pelos daas que aparecem uma vez numa inscrição de Xerxes. Só são conhecidos pelos gregos no tempo de Alexandre. Depois deixam de ser citados quando os daas se tornam o mais influente poder daquela região. No período romano aparecem como uma das notáveis tribos citas e Amiano Marcelino associa-os aos alanos do seu tempo.
Dos Masságetas, sabia-se que viviam nas grandes planícies da Ásia Central e nas ilhas do rio Amu Daria. Ciro continua a sua expedição militar, um exército gigantesco. Munido da água fervida do rio Coaspes, enfrenta a sede do deserto. Creso adverte para a possibilidade de a sorte abandonar Ciro e assim as coisas correrem muito mal. Os Masságetas desconhecem as delícias da Pérsia e nunca viveram grandes prazeres. Abatam rebanhos de gado tragam vinho e outras iguarias. Os Masságetas não vão perder a oportunidade de comer e beber e quando ébrios adormecerem. Ciro aceita o plano de Creso. Durante a noite Ciro tem uma Visão má e manda o filho dele, Cambises, na companhia de Credo de volta para a Pérsia. Os Masságetas viram o banquete servido e puseram-se a festejar. Empanturrados de comida e vinho adormeceram. Então os persas voltaram e massacraram uma data deles, aprisionando ainda muitos mais. Deste número fazia parte o filho da rainha Tómiris comandante dos Masságetas, de nome Espargápises. Tómiris não se deixa ficar e dá réplica. Numa luta corpo a corpo, no início as forças são equilibradas, mas depois ganham os Masságetas. A maioria do exército persa morre. Entre os caídos encontra-se Ciro. [Heródoto]

domingo, 24 de outubro de 2021

Frenkel no Campo Prisão Solovki





Naftaly Aronovich Frenkel, prisioneiro na Prisão Solovki, situada na ilha Solovetsky e que foi tratada no artigo precedente deste blogue, tornou-se num dos mais influentes comandantes de Solovki, promoção após promoção. Arquivos recém-abertos, em especial os arquivos regionais da Carélia (a república soviética à qual Solovetsky pertencia então), realmente deixam clara a importância de Frenkel no contexto do tema mais vasto dos gulags. Mesmo que não tenha inventado cada aspeto do sistema, ele encontrou maneira de transformar um campo prisional numa entidade económica aparentemente rentável. E fê-lo numa época e num lugar de uma maneira tal que não passou despercebido a Stalin.

"Judeu turco nascido em Constantinopla", na descrição de Soljenitsin, o nome de Frenkel aparece em muitas das memórias escritas sobre os primeiros tempos do 'sistema de campos', e por elas fica claro que, mesmo em vida, a identidade daquele homem já estava envolta em mito. Fotos oficiais mostram um indivíduo de aparência calculadamente sinistra, usando boné de couro e bigode muito bem aparado; um memorialista recorda que Frenkel "se trajava como um dândi". Um de seus colegas da OGPU, o qual o admirava muitíssimo, surpreendia-se com a sua memória infalível e a sua aptidão para fazer contas de cabeça: "Ele nunca punha nada no papel". Depois, a propaganda soviética também teceria eloquentes elogios à sua "incrível memória e excelentes conhecimentos do trabalho madeireiro e florestal em geral". A sua perícia em matéria de agricultura e engenharia era excecional. 

A história fica um tanto mais clara quando se lê o seu registo de preso, que informa que ele nasceu em Haifa em 1883, época em que a Palestina era parte do Império Otomano. De lá, ele provavelmente seguiu, talvez por Odessa, talvez pela Áustria-Hungria, para a URSS. Aqui aparece como "comerciante". Em 1923 é preso por "ter atravessado fronteiras ilegalmente", o que podia significar que era um comerciante que se permitia fazer algum contrabando, ou que era apenas um comerciante que se tornara demasiado bem-sucedido para o gosto soviético. Foi condenado a dez anos de trabalhos forçados em Solovetsky.

Soljenitsin, em Arquipélago Gulag refere que o próprio Frenkel concebeu o sistema de alimentar os presos segundo o trabalho produzido. Esse sistema tornou-se fatal, em questão de semanas os presos mais fracos morriam. Por outro lado, uma ampla gama de historiadores russos e ocidentais contesta a importância de Frenkel e descarta como mera lenda as muitas façanhas dele. É provável que Soljenitsin exagere ao falar de Frenkel. Todavia, permanece um mistério o modo exato pelo qual Frenkel se metamorfoseou de preso em comandante de campo. A lenda diz que, ao chegar lá, ele ficou tão horrorizado com a má organização, com o desperdício puro e simples de dinheiro e mão-de-obra, que resolveu escrever uma carta 
descrevendo de maneira precisa o que estava errado com cada uma das atividades económicas locais, entre elas a silvicultura, a agropecuária e a olaria. 

Colocou a carta na "caixa de reclamações" dos presos que depois um administrador enviou como curiosidade para Genrikh Yagoda, um chefe da polícia secreta. Consta que Yagoda quis conhecer de imediato o autor da carta. De acordo com um contemporâneo (e com Soljenitsin, que não explicita nenhuma fonte), o próprio Frenkel afirmou que, em certa altura, foi levado a Moscovo para ser presente a Estaline. É aí que a lenda fica mais nebulosa: embora os registos realmente mostrem que Frenkel se encontrou com Estaline nos anos 1930, e embora tenha sido protegido durante as purgas no Partido, ainda não se achou nenhuma comprovação de uma visita na década anterior. Isso não quer dizer que ela não tenha acontecido - pode ter acontecido os registos terem desaparecido. 

Surpreendentemente Naftaly Frenkel foi promovido de preso a guarda passado pouco tempo. Em novembro de 1924, quando estava no campo havia menos de um ano, era solto. Todas as informações eram elogiosas a seu respeito: "no campo, ele se portou como um trabalhador excecionalmente talentoso, tendo adquirido estima e confiança da administração. Tal êxito logo se tornou o principal argumento para que se reestruturasse todo o sistema prisional soviético. Se isso se fizesse a custo de piores rações e condições de vida para os presos, ninguém se importaria muito. Na realidade, o sistema de Frenkel era bem simples. Ele dividia os presos em três grupos, consoante a aptidão física: os considerados capazes de trabalho pesado; os capazes de serviços leves; e os inválidos. Cada grupo recebia uma série diferente de tarefas e metas. Eram então alimentados de acordo - e as diferenças entre as rações se mostravam bem nítidas. Uma tabela, elaborada entre 1928 e 1932, destinava oitocentos gramas de pão e oitenta gramas de carne aos integrantes do primeiro grupo; quinhentos de pão e quarenta de carne aos do segundo; e quatrocentos de pão e quarenta de carne aos do terceiro. A categoria de trabalhador mais baixa recebia o equivalente a apenas metade do que comia a mais alta.

Na prática, o sistema dividia bem depressa os presos entre os que iriam e os que não iriam sobreviver. Os fortes, sendo relativamente bem alimentados, ficavam mais fortes. Os mais fracos, estando privados de comida, se enfraqueciam e acabavam adoecendo ou morrendo. O processo se tornava mais rápido e mais radical porque as metas de trabalho eram com frequência muito elevadas - absurdamente elevadas para alguns presos, em especial a gente da cidade que nunca trabalhara escavando turfa ou cortando árvores. Em 1928, as autoridades centrais puniram um grupo de guardas de campo porque eles, a fim de cumprir a meta, haviam forçado 128 pessoas a trabalhar a noite inteira na floresta em pleno inverno. Um mês depois, 75% desses presos ainda estavam com graves queimaduras de frio.

Frenkel "racionalizou" outros aspetos da vida no campo, descartando aos poucos tudo o que não contribuísse para a produtividade económica. Bem depressa renunciou toda pretensão de reabilitar. Como se queixavam os detratores de Frenkel, ele fechara os jornais e outros periódicos do campo e suspendera as reuniões da Associação de Estudos Locais de Solovetsky. O museu e o teatro continuaram a existir, mas só para impressionar os maiorais que chegavam de visita. Por fim, sob a liderança de Frenkel, o conceito de "preso político" mudou em definitivo. No outono de 1925, abandonaram-se as distinções artificiais que se haviam traçado entre quem fora condenado por atividades criminais e quem fora condenado por atividades antirrevolucionárias, uma vez que ambos os grupos eram mandados juntos ao continente para trabalhar nos enormes projetos de abate de árvores e processamento de madeira na Carélia

Em outubro de 1924, seguiu-se uma série de artigos no Izvestiya. "Quem acredita que Solovetsky seja uma prisão deprimente e sombria, onde as pessoas ficam inativas, perdendo o tempo em celas superlotadas, está muito enganado", escreveu N. Krasikov. "O campo inteiro consiste numa enorme organização económica de 3 mil trabalhadores braçais, atuando nos mais diversos tipos de produção." A vida que levam pode ser caracterizada como intelectual anarquista, com todos os aspetos negativos dessa forma de existência. A contínua ociosidade, a insistência nas mesmas dissensões políticas, as brigas de família, as disputas sectárias e, sobretudo, uma atitude agressiva e hostil para com o governo, em geral, e a administração local e os guardas do Exército Vermelho, em particular [...], tudo isso combinado faz que aquelas trezentas pessoas (mais ou menos) se mostrem refratárias a toda medida e toda tentativa das autoridades locais para introduzir regularidade e organização em suas vidas.

Era o começo do fim. Após uma série de discussões, durante as quais o Comitê Central ponderou e rejeitou a ideia de mandar esses presos para o exílio no exterior (preocupava-se com o impacto disso sobre os socialistas ocidentais - especialmente, por alguma razão, sobre o Partido Trabalhista britânico), tomou-se uma decisão. Ao amanhecer de 17 de junho de 1925, soldados cercaram o Mosteiro. Deram duas horas para que os presos fizessem as malas. Em seguida, conduziram-nos marchando para o porto, obrigaram-nos a embarcar e os despacharam para longínquas prisões na Rússia central, de regime realmente fechado - Tobolsk, na Sibéria ocidental, e Verkhneuralsk, nos Urais -, onde os presos encontraram condições muito piores que as de Solovetsky. Embora continuassem lutando por seus direitos, enviando cartas para o exterior, telegrafando mensagens uns para os outros pelas paredes das prisões e organizando greves de fome, a propaganda bolchevique seguia sufocando os protestos dos socialistas. Em Berlim, Paris e Nova York, as antigas associações de auxílio aos presos começaram a encontrar maior dificuldade para recolher fundos.

quinta-feira, 21 de outubro de 2021

O Campo Prisão Solovki nas ilhas Solovetski





O Campo de prisioneiros de Solovki, posteriormente denominado Prisão Solovki, começou por ser um grande campo de trabalhos forçados destinado a presos políticos no tempo do Império Russo dos czares, localizado nas Ilhas Solovetsky no Mar Branco, e que depois continuou no tempo da União Soviética.

As ilhas Solovetsky fazem parte de um arquipélago no golfo de Onega no Mar Branco no Norte da Rússia. Integram o oblast (província) de Arkangelsk, e distrito de Solovetsky. As ilhas dispõem de um aeroporto em Solovki. Este arquipélago começou a ser habitado há cinco mil anos. Foram encontrados restos arqueológicos dessa data. Foi um lugar de grande atividade monástica desde o século XV, com várias igrejas que datam dos séculos XVI a XIX. É 
famoso complexo Mosteiro de Solovetsky. A Igreja Ortodoxa restabeleceu o mosteiro em 1992, ano em que o conjunto foi incluído na Lista do Património Mundial da Humanidade da UNESCO.




O número exato de prisioneiros que passaram pelo campo durante o período de 1923 a 1939 ainda é desconhecido, mas as estimativas variam entre dezenas a centenas de milhares de pessoas. Aleksandr Solzhenitsyn chamou-lhe a mãe do Gulag. Por um decreto de Lenine, os edifícios do Mosteiro foram transformados numa prisão especial. Em 1921 o campo recebeu centenas de marinheiros presos durante a Revolta de Kronstadt. Durante o início da década de 1930 muitos dos prisioneiros do campo trabalharam na construção do famoso Canal que liga o Mar Branco ao Mar Báltico. De 11 de agosto de 1937 a 24 de dezembro de 1938 mais de 9.500 vítimas de repressão foram executadas por fuzilamento e sepultadas na vizinha Sandarmokh. Mais de 1.100 deles foram retirados da prisão Solovki. A prisão foi fechada em 1939 devido à Segunda Guerra Mundial. Não está muito distante da fronteira com a Finlândia. Os edifícios foram, então, transformados numa base naval.

O Mosteiro de Solovetsky, fundado em 1436 pelo monge Zózimo, foi a maior fortaleza do cristianismo no norte da Rússia, antes de ser transformada em prisão e protótipo do sistema Gulag
No entanto, os monges German (Herman) e Savvatiy (Sabbatius) de mosteiro de Kirillo-Belozersky que viveram na ilha de 1429 a 1436, são considerados também como fundadores. O mosteiro sofreu muitas mudanças e cercos militares. Suas estruturas mais importantes datam do século XVI, no tempo de Filip Kolychev. No final do século XVI, a abadia era uma das mais ricas proprietárias de terras e um dos mais influentes centros religiosos na Rússia. A fortaleza existente e as suas maiores igrejas foram construídas em pedra no início do reinado de Ivan o Terrível, influenciado pelo bispo de Moscovo, Filippo II. Em pleno cisma da Igreja Russa, os monges expulsaram os representantes do czar no mosteiro, precipitando um cerco de oito anos às ilhas pelas forças de Aleixo I. 

Durante os séculos XV e XVI, o mosteiro ampliou a sua atividade de produção e comercial, tornando-se um centro económico e político da região do Mar Branco. Atividades de negócio que incluíam salinas (na década de 1660, possuía 54). E a produção de frutos do mar, caça com armadilhas, pesca, obras em mica, ferragens, trabalhos com pérolas e outros, que empregava uma grande população na região. Pedro o Grande visitou a ilha em 1694. Por volta do século XVII, o mosteiro já tinha cerca de 350 monges, de 600 a 700 servos, artesãos e camponeses. Na década 1650/60, o mosteiro foi um dos baluartes da Raskol. Após a Revolução Bolchevique, as autoridades soviéticas fecharam o Mosteiro e incorporaram muitos dos edifícios na Prisão Solovki, um dos primeiros campos de trabalhos forçados do Gulag durante os anos 1920 e 1930.