sexta-feira, 21 de dezembro de 2018
Húbris
Hoje já não é possível a classe política só ter contas a prestar aos seus eleitores como no tempo em que nem os juízes nem os jornalistas exerciam sobre ela qualquer vigilância ameaçadora. Por savoir-vivre ou por educação, a corrupção não era o objetivo principal do meio político. Os casos de enriquecimento ilícito eram raros.
Aristóteles definiu húbris como uma humilhação para a vítima, não por causa de qualquer coisa que tenha acontecido ou que ela tenha feito ou pudesse fazer contra si, mas meramente por desprezo seu em relação a ela. Húbris não é acerto de contas, isso é vingança. Húbris é arrogância, indiferença, cinismo, devassidão, libertinagem.
Fosse por causa e efeito, ou fosse lá porque fosse, a santa aliança entre juízes e jornalistas é coetânea dos grandes casos de corrupção na política. Domesticados lado a lado durante décadas, insurgiram-se em conjunto. Os membros dos sindicatos da magistratura e as novas gerações de jornalistas tornaram-se quase permutáveis. Juízes de espírito missionário e jornalistas impregnados de profissionalismo à americana estão convencidos de que constituem, por si sós, o contrapoder. O juiz de instrução e o jornalista de investigação são, em conjunto, o eixo deste sistema. O primeiro, quando é o procedimento judiciário a marcar o ritmo e este utiliza a imprensa como caixa de ressonância; o segundo quando o inquérito tem início no terreno jornalístico e a justiça se contenta em seguir as suas revelações. Isso permitiu que o tribunal da opinião pronunciasse o seu veredicto: “condenado!” Quem tem a última palavra é a opinião pública.
Apanhados no turbilhão inesperado da glória, havia que alimentar o moinho da comunicação social, fornecendo-lhe mais, e sempre cada vez mais grão para moer. Sempre mais casos, sempre mais inquéritos com interesse para o grande público, sempre mais processos de prestígio, sempre mais prisões preventivas iconoclastas, sempre mais surpresas.
O terceiro ato da húbris chegou durante as manhãs e tardes à praça das TVs generalistas; e à noite aos areópagos futebolísticos das TVs por cabo. A primeiras com a rubrica criminal, os casos de polícia e a loucura judiciária empacotada no comentário dos especialistas. As segundas com os comentários obscenos e obscuros acerca do sexo dos anjos fora das quatro linhas. É a escalada mediática, em termos de “tele-realidade”, desde que as câmaras entrem, de um lado os casos e os processos transformados em folhetins de sucesso para satisfazer o prazer na crónica feminina. E do outro, a violência das grandes emoções coletivas nos estádios para gáudio do macho guerreiro.
Pela imprensa tabloide e amplificada pelas redes socias, a sacrossanta proteção da vida provada foi deitada às urtigas. E de caminho e por arrasto a própria democracia. É a obsessão pela transparência levada ao extremo pelos devotos da pureza movidos pelos piores instintos da espécie humana.
A relação pendular entre as civilizações chinesa e europeia
O meu raciocínio com
a expressão “oscilação {China/Europa – Europa/China}” baseia-se no seguinte: do
lado do que se convencionou na Europa chamar Oriente, portanto na Ásia, aconteceu
emergir apenas uma nação forte. É inevitável quando assim acontece: uma nação
forte contra nações fracas. Na Europa aconteceu o contrário, a oposição entre várias
nações fortes. A Ásia estagnou na escravidão e a Europa emancipou-se na
libertação. O que faltou na Ásia não foi o comércio, nem mesmo a ciência. O que
faltou foi a criação de algumas instituições que deu voz à sociedade civil. No
entanto, se no ano de 1420 tivéssemos ido à Inglaterra e viajado rio Tamisa acima,
e depois fôssemos à China e viajado pelo rio Iansequião, teríamos ficado
espantados com o contraste.
Nenhuma
civilização dura para sempre. Adam Smith, apesar de ter escrito que a China
parecia estar desde há muito parada, ainda assim considerava a China um dos
países mais ricos do mundo. A Cidade Proibida (Gugong) havia sido construída
entre 1406 e 1420 para a qual Yongle, o imperador da Dinastia Ming, havia
recrutado um milhão de trabalhadores para a construção de quase mil edifícios
decorados de modo a evidenciar o poderio da Dinastia Ming. E, todavia, menos de
um século depois o declínio era já visível enquanto os pequenos e pobres países
da Europa, até aí devastados pelos conflitos, se erguiam para dominar o Oriente
sucumbido.
Porque é que em
1500, digamos assim, a China soçobrou e a Europa progrediu? Para Adam Smith foi
a China não ter beneficiado das vantagens das instituições; e ao mesmo tempo se
ter fechado ao exterior. Com isso perdeu o comércio externo, primeiro para as
mãos dos árabes, e depois para as mãos dos europeus.
O Iansequião fazia
parte de um vasto complexo fluvial que ligava Nanjing a Beijing, a mais de 750
quilómetros para norte, e Hangzhou a sul. No coração deste sistema de
comunicação localizava-se o Grande Canal, substancialmente restaurado ao mesmo
tempo que se construía a Cidade Proibida em Beijing e se desviava o rio Amarelo
para que o canal se estendesse por mais de 1500 quilómetros. A partir daí o
canal passou a ser navegado por barcaças carregadas de cereais, estimando-se
doze mil por ano. Nanjing era provavelmente a maior cidade do mundo em 1420,
com uma população estimada em um milhão de habitantes, um próspero centro da
indústria da seda e do algodão, bem como do conhecimento, com uma biblioteca de
mais de onze mil volumes. Ainda assim, Yongle não estava satisfeito com
Nanjing. Foi quando resolveu construir uma capital mais espetacular a norte:
Beijing, que para nós ocidentais é ainda a atual Pequim. Durante todo o século
XV, a China, ainda podia reclamar, sem contestação, o estatuto de civilização
mais avançada do mundo. Mas depois, entre os séculos XVI e XX tal reivindicação
passou a ser reclamada com legitimidade por parte dos europeus. Mas, e agora,
passadas já quase duas décadas do século XXI, o que está de novo a acontecer?
Dão-se alvíssaras aos novos profetas apocalípticos.
terça-feira, 18 de dezembro de 2018
Liberdade para exprimir e escolher
A democracia quando foi inventada foi mais a pensar na possibilidade de evitar o pior dos mundos do que proporcionar o melhor dos mundos. Isto queria dizer que sem o processo de eleições não seria possível apear o governante que se tornou indesejável.
Para isso era preciso outra condição: a liberdade, tanto de expressão como de escolha. Quanto à liberdade de expressão convém não cair no exagero do “politicamente correto”, que restringe a liberdade de toda e qualquer expressão que possa ofender alguém. Isto acaba em ditadura quando se começa a especificar, porque há sempre alguém que se vai sentir ofendido com uma determinada expressão. Em teoria, e sem falar em casos específicos, todos são verbalmente a favor da liberdade de expressão. Mas depois, na prática, quando se incorpora um qualquer estado de espírito “politicamente correto”, acaba-se por se limitar até à exaustão a liberdade de expressão. Se é politicamente incorreto dizer em público certas coisas que alguém possa não gostar de ouvir, então a ‘liberdade de expressão’ não passará de mero palavreado.
Há, contudo, argumentos para uma exceção, o do tratamento especial quando se trata de religião. As pessoas ainda continuam a matar-se umas às outras por causa dela. O que é seguro dizer-se, por exemplo em Filadélfia pode ser dinamite no Punjabi. Durante a maior parte da história humana, as pessoas sentiram uma tensão entre a religião e a liberdade de expressão, e a maioria da humanidade ainda a sente. Por exemplo, a Irlanda reintroduziu em 2009 um delito de libelo blasfemo. E no Paquistão, a Secção 295C do Código Penal diz agora que “Quem por palavras faladas ou escritas, ou por representação visível ou por qualquer imputação, sugestão, ou insinuação, direta ou indiretamente, conspurcar o sagrado nome do profeta Maomé (que a paz esteja com ele) será punido com a morte, ou com a prisão perpétua, e também ficará sujeito a multa”. E além disso vemos crentes fanáticos tomarem a lei nas suas próprias mãos, cujo veto se estende através das fronteiras.
Pelo que acabei de descrever até parece que vivemos no fim dos tempos. Mas não é nada a que não estejamos habituados. Por exemplo, com a queda do Muro, a que se seguiu a desintegração dos regimes comunistas, que ruíram como um castelo de cartas, para muitos foi a concretização de um sonho de uma forma milagrosa, porque ainda poucos meses antes ninguém ousaria prever uma coisa dessas. Porém, não demorou muito tempo o regresso ao poder dos ex-comunistas através de eleições livres e democráticas. A nobre luta pela liberdade e pela justiça não levara a mais do que um prato de lentilhas. O povo queria comer o bolo e ao mesmo tempo ficar com ele. Queriam a liberdade de viver as suas próprias vidas em segurança, mas sem reivindicar o capitalismo. Aquilo a que aspiravam poderia receber o nome de “socialismo de rosto humano”. Na Hungria as manifestações no domingo chegaram ao número mais alto de participação, com 15 mil pessoas, sob um blackout dos media a unirem uma oposição muito fragmentada, da esquerda à direita nacionalista. “É uma massa significativa, no sentido de que parece ser uma oposição comprometida contra o Governo”, disse ao New York Times o analista Peter Kreko, do centro de estudos Political Capital. No domingo, uma parte dos manifestantes foi até à sede da empresa de rádio e televisão estatal, já nos arredores da cidade, gritando: “fábrica de mentiras”. Os media estatais são o símbolo do apoio a Orbán, enquanto os media privados estão nas mãos de aliados do primeiro-ministro. A emissora ignorou a presença dos deputados e a segurança expulsou mesmo dois dos deputados independentes, Akos Hadhazy e Bernadett Szél. As imagens de Hadhazy a ser agarrado por seguranças por mãos e pés e arrastado com brutalidade para fora do edifício, depois de caído no chão (antes tinha sido agredido) foram “uma exibição rara do controlo de Orbán sobre o acesso dos húngaros à informação.
Para isso era preciso outra condição: a liberdade, tanto de expressão como de escolha. Quanto à liberdade de expressão convém não cair no exagero do “politicamente correto”, que restringe a liberdade de toda e qualquer expressão que possa ofender alguém. Isto acaba em ditadura quando se começa a especificar, porque há sempre alguém que se vai sentir ofendido com uma determinada expressão. Em teoria, e sem falar em casos específicos, todos são verbalmente a favor da liberdade de expressão. Mas depois, na prática, quando se incorpora um qualquer estado de espírito “politicamente correto”, acaba-se por se limitar até à exaustão a liberdade de expressão. Se é politicamente incorreto dizer em público certas coisas que alguém possa não gostar de ouvir, então a ‘liberdade de expressão’ não passará de mero palavreado.
Há, contudo, argumentos para uma exceção, o do tratamento especial quando se trata de religião. As pessoas ainda continuam a matar-se umas às outras por causa dela. O que é seguro dizer-se, por exemplo em Filadélfia pode ser dinamite no Punjabi. Durante a maior parte da história humana, as pessoas sentiram uma tensão entre a religião e a liberdade de expressão, e a maioria da humanidade ainda a sente. Por exemplo, a Irlanda reintroduziu em 2009 um delito de libelo blasfemo. E no Paquistão, a Secção 295C do Código Penal diz agora que “Quem por palavras faladas ou escritas, ou por representação visível ou por qualquer imputação, sugestão, ou insinuação, direta ou indiretamente, conspurcar o sagrado nome do profeta Maomé (que a paz esteja com ele) será punido com a morte, ou com a prisão perpétua, e também ficará sujeito a multa”. E além disso vemos crentes fanáticos tomarem a lei nas suas próprias mãos, cujo veto se estende através das fronteiras.
Pelo que acabei de descrever até parece que vivemos no fim dos tempos. Mas não é nada a que não estejamos habituados. Por exemplo, com a queda do Muro, a que se seguiu a desintegração dos regimes comunistas, que ruíram como um castelo de cartas, para muitos foi a concretização de um sonho de uma forma milagrosa, porque ainda poucos meses antes ninguém ousaria prever uma coisa dessas. Porém, não demorou muito tempo o regresso ao poder dos ex-comunistas através de eleições livres e democráticas. A nobre luta pela liberdade e pela justiça não levara a mais do que um prato de lentilhas. O povo queria comer o bolo e ao mesmo tempo ficar com ele. Queriam a liberdade de viver as suas próprias vidas em segurança, mas sem reivindicar o capitalismo. Aquilo a que aspiravam poderia receber o nome de “socialismo de rosto humano”. Na Hungria as manifestações no domingo chegaram ao número mais alto de participação, com 15 mil pessoas, sob um blackout dos media a unirem uma oposição muito fragmentada, da esquerda à direita nacionalista. “É uma massa significativa, no sentido de que parece ser uma oposição comprometida contra o Governo”, disse ao New York Times o analista Peter Kreko, do centro de estudos Political Capital. No domingo, uma parte dos manifestantes foi até à sede da empresa de rádio e televisão estatal, já nos arredores da cidade, gritando: “fábrica de mentiras”. Os media estatais são o símbolo do apoio a Orbán, enquanto os media privados estão nas mãos de aliados do primeiro-ministro. A emissora ignorou a presença dos deputados e a segurança expulsou mesmo dois dos deputados independentes, Akos Hadhazy e Bernadett Szél. As imagens de Hadhazy a ser agarrado por seguranças por mãos e pés e arrastado com brutalidade para fora do edifício, depois de caído no chão (antes tinha sido agredido) foram “uma exibição rara do controlo de Orbán sobre o acesso dos húngaros à informação.
quinta-feira, 6 de dezembro de 2018
Jus Soli e Jus Sanguinis
Há duas maneiras de adquirir a nacionalidade originária, que é aquela que se alcança pelo nascimento: jus soli e jus sanguinis. Pelo jus soli, a nacionalidade originária obtém-se pelo nascimento no território do país pretendido. Logo, não importa a nacionalidade dos pais. O jus sanguinis, pelo direito de sangue, dá direito ao indivíduo adquirir a nacionalidade dos pais. É considerado nacional desde que seja inscrito numa Conservatória do Registo Civil antes de atingir a maioridade.
Estes dois princípios, que regulam a concessão de nacionalidade, raramente funcionam em separado. Mas a prevalência de um ou de outro revela a abertura ou a tendência protecionista de um país. Portugal é considerado o país com a melhor política de cidadania da Europa. Isso não significa que também em Portugal a discussão sobre o direito à cidadania tenha subido à ordem do dia nos últimos tempos.
Para além da nacionalidade originária, há outra forma de adquirir a cidadania: por naturalização. Por exemplo, um dos pais ser cidadão português à data do seu nascimento por naturalização. Se o requerente for menor de idade, a prova e o trâmite ficam a cargo de quem possua o poder paternal. A lei de nacionalidade, permite que o indivíduo conserve sua nacionalidade estrangeira original, passando a deter dupla nacionalidade. Os requisitos básicos para adquirir a naturalização portuguesa são: a residência por um determinado período de tempo, seis anos consecutivos com possibilidade de se ausentar do país por menos de seis meses. Ou por ligação ao país, por exemplo, através do casamento com pessoa que seja titular da nacionalidade que se pretende.
Assim
são portugueses de origem, os filhos de mãe portuguesa ou de pai português
nascidos no território português; os filhos de mãe portuguesa ou de pai
português nascidos no estrangeiro se o progenitor português aí se encontrar ao serviço
do Estado Português; os filhos de mãe portuguesa ou de pai português nascidos
no estrangeiro se tiverem o seu nascimento inscrito no registo civil português
ou se declararem que querem ser portugueses; os indivíduos nascidos no
estrangeiro com, pelo menos, um ascendente de nacionalidade portuguesa
do 2.º grau na linha/reta que não tenha perdido essa nacionalidade, se declararem que querem ser portugueses, possuírem laços de efetiva ligação à comunidade nacional e, verificados tais requisitos, inscreverem o nascimento no registo civil português; os indivíduos nascidos no território português, filhos de estrangeiros, se pelo menos um dos progenitores também aqui tiver nascido e aqui tiver residência, independentemente de título, ao tempo do nascimento; os indivíduos nascidos no território português, filhos de estrangeiros que não se encontrem ao serviço do respetivo Estado, se declararem que querem ser portugueses e desde que, no momento do nascimento, um dos progenitores aqui resida legalmente há pelo menos cinco anos; os indivíduos nascidos no território português e que não possuam outra nacionalidade. Presumem-se nascidos no território português, salvo prova em contrário, os recém-nascidos que aqui tenham sido expostos. A verificação da existência de laços de efetiva ligação à comunidade nacional, implica o reconhecimento pelo Governo da relevância de tais laços, nomeadamente pelo conhecimento suficiente da língua portuguesa e pela existência de contactos regulares com o território português, e depende de não condenação, com trânsito em julgado da sentença, pela prática de crime punível com pena de prisão de máximo igual ou superior a 3 anos, segundo a lei portuguesa.
do 2.º grau na linha/reta que não tenha perdido essa nacionalidade, se declararem que querem ser portugueses, possuírem laços de efetiva ligação à comunidade nacional e, verificados tais requisitos, inscreverem o nascimento no registo civil português; os indivíduos nascidos no território português, filhos de estrangeiros, se pelo menos um dos progenitores também aqui tiver nascido e aqui tiver residência, independentemente de título, ao tempo do nascimento; os indivíduos nascidos no território português, filhos de estrangeiros que não se encontrem ao serviço do respetivo Estado, se declararem que querem ser portugueses e desde que, no momento do nascimento, um dos progenitores aqui resida legalmente há pelo menos cinco anos; os indivíduos nascidos no território português e que não possuam outra nacionalidade. Presumem-se nascidos no território português, salvo prova em contrário, os recém-nascidos que aqui tenham sido expostos. A verificação da existência de laços de efetiva ligação à comunidade nacional, implica o reconhecimento pelo Governo da relevância de tais laços, nomeadamente pelo conhecimento suficiente da língua portuguesa e pela existência de contactos regulares com o território português, e depende de não condenação, com trânsito em julgado da sentença, pela prática de crime punível com pena de prisão de máximo igual ou superior a 3 anos, segundo a lei portuguesa.
Só em 1981 é que a lei portuguesa passou a estabelecer como
princípio predominante o jus sanguinis,
no rescaldo de um processo de descolonização que mudou drasticamente o perfil
demográfico do país. Houve também a necessidade de criar proximidade com as
crianças da diáspora, descendentes da forte emigração dos anos 60, que de outra
forma teriam perdido a conexão cultural com Portugal. O movimento imigratório
dos anos 90 e inícios do século XXI, bem como a urgência por naturalizar os
chamados imigrantes de segunda e terceira geração que se encontravam num limbo
legal, fez com que nova lei em 2006 o jus
sanguinis fosse atenuado, dando de novo relevo aos jus soli para facilitar a obtenção da nacionalidade.
Um novo capítulo está a ser delineado por estes dias, em
que não só o Governo está a ultimar a sua proposta de regulamentação às
alterações feitas à lei em 2015, como dois partidos de quadrantes opostos
apresentaram projetos de novas mudanças, já discutidos no Parlamento e agora à
espera de o serem na respetiva comissão. O que determina tais mudanças são em
geral os movimentos migratórios e a posição que o país ocupa nesse mapa. Havia
uma situação insustentável no nosso país, em especial nas grandes cidades, com
bolsas de jovens considerados apátridas de facto. Eram filhos e netos de
cidadãos das ex-colónias que tinham a nacionalidade dos pais e não a portuguesa.
Ou seja, que não se identificavam com a única nacionalidade a que tinham
direito. A lei corrigiu esta anomalia, mas sem nunca deixar de cruzar os dois
princípios.
Tradicionalmente, os partidos mais à esquerda são mais abertos à integração do estrangeiro por via da naturalização e da atribuição da nacionalidade assente no jus soli, porque entendem a cidadania como instrumento de integração. Os partidos mais à direita tendem a ser mais abertos ao reforço das relações com a diáspora nas suas várias gerações. De um ponto de vista ideológico há que reconhecer que, hoje, o jus soli é mais comum nos discursos progressistas e inclusivos, e o jus sanguinis é um princípio mais exclusivo e elitista. Ainda hoje, a maioria dos países americanos adota o jus soli, embora tenha havido crescentes movimentos na direção de limitar certas ações nascidas da imigração ilegal, principalmente nos EUA e Canadá. Alemanha, Hungria, Polônia e Rússia aplicam o jus sanguini mesmo com cidadãos nascidos fora dos territórios nacionais e seus descendentes diretos sem limite de tempo. A cidadania europeia, como complemento da nacionalidade de cada país, existe desde o Tratado de Maastricht, 1992, que instituiu a União Europeia. Instituída a cidadania da União, é cidadão da União Europeia qualquer pessoa que tenha a nacionalidade de um Estado-Membro. A cidadania da União é complementar da cidadania nacional e não a substitui. Isto quer dizer que uma pessoa com nacionalidade portuguesa passa a ser automaticamente um cidadão da União Europeia, com todos os direitos, privilégios e os deveres que isto implica.
Tradicionalmente, os partidos mais à esquerda são mais abertos à integração do estrangeiro por via da naturalização e da atribuição da nacionalidade assente no jus soli, porque entendem a cidadania como instrumento de integração. Os partidos mais à direita tendem a ser mais abertos ao reforço das relações com a diáspora nas suas várias gerações. De um ponto de vista ideológico há que reconhecer que, hoje, o jus soli é mais comum nos discursos progressistas e inclusivos, e o jus sanguinis é um princípio mais exclusivo e elitista. Ainda hoje, a maioria dos países americanos adota o jus soli, embora tenha havido crescentes movimentos na direção de limitar certas ações nascidas da imigração ilegal, principalmente nos EUA e Canadá. Alemanha, Hungria, Polônia e Rússia aplicam o jus sanguini mesmo com cidadãos nascidos fora dos territórios nacionais e seus descendentes diretos sem limite de tempo. A cidadania europeia, como complemento da nacionalidade de cada país, existe desde o Tratado de Maastricht, 1992, que instituiu a União Europeia. Instituída a cidadania da União, é cidadão da União Europeia qualquer pessoa que tenha a nacionalidade de um Estado-Membro. A cidadania da União é complementar da cidadania nacional e não a substitui. Isto quer dizer que uma pessoa com nacionalidade portuguesa passa a ser automaticamente um cidadão da União Europeia, com todos os direitos, privilégios e os deveres que isto implica.
segunda-feira, 3 de dezembro de 2018
Será confundir alhos com bugalhos?
É o caso da aplicação das transições de fase da Física à Sociedade, como por exemplo, quando se aplica o modelo epistemológico dos sistemas complexos ao desempenho de um governo. Um governo, onde atuam inúmeros agentes que interagem segundo as leis das redes de informação, é em si um sistema complexo adaptativo. Da fase criativa – o chamado estado expansivo de novidades – passa-se à fase de incerteza. É esse o destino inexorável: do estado de graça para o estado de desgraça. É no limiar da desintegração do sistema, um estado paradoxal simultaneamente estável e instável, de competição e cooperação, que se estabelece uma dialética evolutiva cujo resultado é sempre imprevisível. Nesta fase da evolução do processo dialético, a tendência é mais destrutiva do que criativa. Até se chegar a uma nova fase que dá lugar a um novo estado de receção a um comando centralizado, o processo de transição corre de forma auto-organizada, pelo que deixa de ser sensível a esse controlo centralizado.
Em 2016, o Prémio Nobel da Física foi atribuído a três físicos teóricos britânicos, a trabalhar nos Estados Unidos, pela descoberta de novas fases da matéria aplicadas à sociologia. Segundo consta, a investigação teórica, guiada pela curiosidade, também conduziu a fases estranhas que não tardaram a ser confirmadas em laboratório.
É impressionante como certas pessoas, algumas delas mentes brilhantes na área das ciências exatas, são irracionais nos seus pontos de vista quando se pronunciam sobre temas sociais e políticos. Ora, o que está mal é pensarem que podem aplicar as ferramentas epistemológicas próprias das ciências exatas em assuntos que são das ciências sociais e humanas. Duas categorias epistemológicas que envolvem mundivisões completamente diferentes. O que resulta daqui é: muitos dos aspetos sociais, porque não são apanhados pelo radar, serem ignorados. Daí as explicações descabidas que aparecem serem incompreensíveis. São incompreensíveis não porque as suas mentes sofram de um qualquer défice, mas porque são aplicadas a epistemologias erradas.
Ora a “epistemologia compreensiva” como conceito específico das ciências sociais e humanas, está fora do alcance explicativo das chamadas ciências exatas, duras ou da natureza. Não se pode ver o certo e o errado em Ética, ou o verdadeiro e o falso em História, com os mesmos olhos que veem os astros e as pedras. Porque os fenómenos que resultam da ação humana não cabem em equações matemáticas, e são impenetráveis aos instrumentos usados para perscrutar a matéria.
Um robô foi programado pelo seu construtor para detestar o gosto do limão. E de facto, pondo sumo de meio limão na boca do robô, ele cospe tal como faz a maioria dos seres humanos. O seu programador deu-lhe instruções nesse sentido, imitando as reações humanas. Mas não podemos dizer que realmente o robô sente o gosto do limão. O robô não percebe o “quale” humano do sabor do limão (a qualidade subjetiva da experiência mental consciente sabor a limão). Ainda que viesse a ser dotado de unidades eletrónicas análogas às nossas unidades neurofisiológicas, elas teriam de ser de carne como a nossa. A unidade eletrónica feita de silício não seria capaz de gerar as qualidades fenomenais como as nossas feitas de carne, como é o caso do nosso gosto e paladar. Torna-se intuitivamente plausível a ideia de que essas propriedades se limitam a cérebros biológicos, sendo a sua reprodução por outros meios impossível. Só nós, bem como outros seres vivos conscientes como nós, feitos de carne e osso, somos capazes de sentir o verdadeiro gosto do limão.
Em 2016, o Prémio Nobel da Física foi atribuído a três físicos teóricos britânicos, a trabalhar nos Estados Unidos, pela descoberta de novas fases da matéria aplicadas à sociologia. Segundo consta, a investigação teórica, guiada pela curiosidade, também conduziu a fases estranhas que não tardaram a ser confirmadas em laboratório.
É impressionante como certas pessoas, algumas delas mentes brilhantes na área das ciências exatas, são irracionais nos seus pontos de vista quando se pronunciam sobre temas sociais e políticos. Ora, o que está mal é pensarem que podem aplicar as ferramentas epistemológicas próprias das ciências exatas em assuntos que são das ciências sociais e humanas. Duas categorias epistemológicas que envolvem mundivisões completamente diferentes. O que resulta daqui é: muitos dos aspetos sociais, porque não são apanhados pelo radar, serem ignorados. Daí as explicações descabidas que aparecem serem incompreensíveis. São incompreensíveis não porque as suas mentes sofram de um qualquer défice, mas porque são aplicadas a epistemologias erradas.
Ora a “epistemologia compreensiva” como conceito específico das ciências sociais e humanas, está fora do alcance explicativo das chamadas ciências exatas, duras ou da natureza. Não se pode ver o certo e o errado em Ética, ou o verdadeiro e o falso em História, com os mesmos olhos que veem os astros e as pedras. Porque os fenómenos que resultam da ação humana não cabem em equações matemáticas, e são impenetráveis aos instrumentos usados para perscrutar a matéria.
Um robô foi programado pelo seu construtor para detestar o gosto do limão. E de facto, pondo sumo de meio limão na boca do robô, ele cospe tal como faz a maioria dos seres humanos. O seu programador deu-lhe instruções nesse sentido, imitando as reações humanas. Mas não podemos dizer que realmente o robô sente o gosto do limão. O robô não percebe o “quale” humano do sabor do limão (a qualidade subjetiva da experiência mental consciente sabor a limão). Ainda que viesse a ser dotado de unidades eletrónicas análogas às nossas unidades neurofisiológicas, elas teriam de ser de carne como a nossa. A unidade eletrónica feita de silício não seria capaz de gerar as qualidades fenomenais como as nossas feitas de carne, como é o caso do nosso gosto e paladar. Torna-se intuitivamente plausível a ideia de que essas propriedades se limitam a cérebros biológicos, sendo a sua reprodução por outros meios impossível. Só nós, bem como outros seres vivos conscientes como nós, feitos de carne e osso, somos capazes de sentir o verdadeiro gosto do limão.
quinta-feira, 29 de novembro de 2018
Cidadania e identidade nacional
Todos os países
têm leis de cidadania nacionais e definições da identidade nacional, assim como
as democracias liberais têm a sua própria cultura, em que o principal direito
que distingue os cidadãos dos não cidadãos é o direito de voto. Já se devem ser
mais valorizados do que as culturas que rejeitam os valores da democracia, os
ideólogos da democracia dividem-se. Hoje começa a ser mais claro por que a
integração dos recém-chegados à Europa das culturas democráticas falhou.
A identidade tem
de estar relacionada com o respeito por parte dos cidadãos de ideias substantivas
como o constitucionalismo, o primado do direito e a igualdade humana. E neste
contexto o país tem justificação para excluir da sua cidadania aqueles que as
rejeitam. Parece ser um bom caminho para a integração dos imigrantes e para uma
sociedade saudável na sua diversidade. Infelizmente os imigrantes não estão bem
integrados na maior parte dos países europeus, e a primeira ameaça que isso
acarreta é a segurança das pessoas. Infelizmente, o que tem havido nos países
democráticos liberais é uma polarização entre uma direita que procura eliminar
completamente a imigração, e uma esquerda que afirma uma obrigação de acolher todos
os imigrantes, em número praticamente ilimitado e indiscriminado. Isto gerou a
ascensão de uma direita populista que sente ameaçada a sua própria identidade.
Os europeístas
convictos são de opinião de que a identidade nacional deveria ser redefinida de
modo a ser incorporada nas suas leis de cidadania. Idealmente a EU deveria
criar uma cidadania única cujos requisitos se baseariam na adesão a princípios
democráticos liberais básicos. Seria uma cidadania que suplantaria as leis de
cidadania nacional. Mas agora, com a ascensão de partidos populistas em toda a
Europa, isso será impossível. A maior parte dos 28 países da União continuam
ciosos das suas prerrogativas nacionais. Assim, qualquer ação que possa vir a
acontecer terá de ser ao nível de cada estado membro.
A dupla cidadania
tem-se tornado crescentemente vulgar hoje em dia à medida que os níveis de
migração sobem. Mas, por vezes, isto pode causar problemas. Por exemplo, na
Alemanha reside uma comunidade turca significativa. E nas eleições alemãs de
2017, Erdogan, o Presidente turco, resolveu encorajar os turcos com cidadania
alemã a votarem em políticos mais favoráveis aos interesses turcos, em vez de
votarem em consciência naqueles que seriam melhores para a Alemanha. O direito
de voto é particularmente importante, visto que dá às pessoas uma parcela do
poder do Estado. Mas não passaria pela cabeça de ninguém que um turco pudesse
votar em Itália ou no Gana, mesmo que vivesse num desses países.
A verdade é que o
multiculturalismo, que se tem vivido em países como a Alemanha, incutiu na
cabeça das pessoas a preocupação de não insinuar que a nossa cultura europeia,
por baseada na crença dos valores democráticos e da igualdade liberal, era
superior a outros valores culturais, e daí o facto de um turco na Alemanha, com
cidadania alemã, não se sentir obrigado a falar de si como um alemão. Ou seja, este
entendimento de identidade nacional é baseado na etnicidade. É claro que este
ambiente cultural veio dar um conforto involuntário não apenas aos islamistas,
mas também à direita que ainda acredita na identidade étnica.
Acima de tudo, segundo
a Declaração Universal dos Direitos Humanos, há uma obrigação moral para com os
refugiados. Mas, como todas as obrigações morais, estes deveres precisam de ser
temperados por considerações práticas de escassez de recursos, prioridades
concorrentes e a sustentabilidade política de um programa de apoio. As
democracias liberais beneficiam largamente com a imigração, tanto económica
como culturalmente. Mas isso significa também que os níveis de imigração tê de
ser relevados, porque as comunidades imigrantes ao atingirem certa escala
tendem a tornar-se disfuncionais com os outros grupos dado o seu desejo de se
autonomizarem. Por seu lado, a população autóctone não aceita de ânimo leve que
estrangeiros que não são cidadãos legais, e não contribuintes enquanto
desempregados, assoberbem os serviços públicos para cuidar deles, enfraquecendo
o apoio esperado receber de uma segurança social generosa. Por outro lado, a
situação de ilegalidade é agravada porque alguns empregadores ocultam
informação acerca dos seus trabalhadores para beneficiarem de trabalho barato.
Portanto, a solução
para o problema do populismo e da ascensão da extrema direita derivado da
pressão migratória, tanto na Europa como nos Estados Unidos, passa por
políticas públicas de integração bem-sucedidas. Na verdade, apaziguariam pelo
menos aquele setor da sociedade que rejeita o imigrante mais por medo e
insegurança, do que por racismo ou intolerância do estranho outro. Receiam que
as instituições existentes não sejam capazes de arcar com um tão elevado número
de pessoas que implica grandes e rápidas mudanças no modus vivendi. Porque em relação ao grupo motivado pelo racismo e
intolerância, pouco se pode fazer para que mudem de opinião, a não ser a nossa
oposição de caráter moral. Uma política focada na integração, boa para a coesão
social, poderia aplacar as preocupações do primeiro grupo, e assim despega-los
dos intolerantes racistas.
terça-feira, 27 de novembro de 2018
Relações desiguais de género numa sociedade ainda patriarcal
Há dois dias, no
dia internacional pela eliminação da violência contra as mulheres, centenas de
pessoas reuniram-se em marchas pelas principais cidades da Europa. Das
declarações às reportagens televisivas, de líderes de alguns movimentos, como
por exemplo UMAR (União de Mulheres Alternativa e Resposta) extraía-se um argumento
de peso: “ainda se vive numa cultura patriarcal e machista, assente numa
sociedade desigual que historicamente, quanto à desigualdade de género, tem privilegiado
os homens em detrimento das mulheres.”
É claro que a
perceção de alguns homens conservadores, os que enfiam a carapuça de machista, não
é coincidente, e como é óbvio, não aceitam essa verdade também óbvia. Argumentam
que são ideias da esquerda que tem dado vantagens injustificadas às minorias,
às mulheres, aos refugiados. Mas a verdade é que ainda é muito elevado o número
de mulheres assediadas, agredidas, violadas e assassinadas (nos últimos dez
anos, 30 mulheres assassinadas em média por ano).
Quando a liberdade
de expressão se transforma em afronta vergonhosa, agora algumas democracias
europeias criminalizam certas expressões, que são vedadas quando proferidas em
público, ou por serem humilhantes para certas minorias, ou por instigarem à
violência. No entanto estes princípios não se aplicam aos Estados Unidos da
América porque a liberdade de expressão está constitucionalmente protegida.
Assim, as pessoas podem dizer o que lhes apetece, que o que lhes pode acontecer
é apenas um opróbrio moral. Não é assim, portanto, tão extraordinário para os
americanos, toda a verborreia bestial de Donald Trump. Inclusivamente, Hillary
Clinton, numas declarações aquando da derrota que teve com Trump, chegou a
dizer que isso se deveu a um certo eleitorado pacóvio, ou algo semelhante. Ora,
de certo modo estas declarações vieram agravar ainda mais a pouca fé que esse
eleitorado visado tinha por ela. Apesar de algumas dessas pessoas não
apreciarem por aí além a forma como Trump diz as coisas, o certo é que gostam
do facto de ele não se deixar intimidar pela pressão do politicamente correto.
Pode ser irritante, e até malévolo, mas pelo menos é autêntico. Estes americanos
da chamada “América Profunda”, ou do mundo rural, e a que Hillary Clinton
chamou pacóvia, ficaram fartos de serem ridicularizados pelas elites das grandes
cidades, através dos filmes produzidos em Hollywood, em que quem ficava sempre
bem na fotografia eram personagens estereotipadas nas categorias conotadas com lésbicas
e gays.
Apesar de a
identidade pessoal ser um aspeto de suprema importância, quando levada ao
extremo pode paralisar as sociedades, ao ameaçar a possibilidade de comunicação
e de ação coletiva. Por isso, a sociedade como um todo, para prosseguir
objetivos comuns, nada beneficia quando protege determinadas identidades de
grupo cuja legitimidade pode ser discutível. As pessoas vivem melhor em
sociedades mais cosmopolitas, mais democráticas, mais diversificadas, sem que
com isso tenham de perder o sentido de identidade nacional, mais ampla e ao
mesmo tempo mais integradora.
domingo, 25 de novembro de 2018
O paraíso perdido (3)
Entretanto na
Alemanha dos festejos passou-se ao medo e os xenófobos passaram a fazer mais
barulho. Em fevereiro de 2017 Merkel é obrigada a ceder e em setembro a
popularidade de Merkel começa a baixar e a AfD a subir. Em junho de 2018 com
Merkel mais fragilizada do que nunca depois de seis meses para formar governo,
o ministro do interior ameaça agir unilateralmente para restringir o acesso à
imigração. Merkel acaba por ceder comprometendo-se com a criação de centros de
trânsito para os migrantes em território alemão. Os ataques de Paris haviam
acelerado um processo de rápida inversão do que estava já em andamento. Tal
como na Grão Bretanha e outros países europeus os franceses tinham semelhantes
razões para estarem céticos em relação à retórica que se havia instalado.
No verão de 2016 a cidade de Nice apenas passou pelo primeiro de um conjunto de ataques quase diários. Alguns destes ataques foram levados a cabo por pessoas que tinham chegado à Europa durante os anos da recente vaga de imigração. Outros ataques, como o de Munique, foram realizados por indivíduos que tinham nascido na Europa. As pessoas ficavam atrapalhadas quando se perguntava porque estava isso a acontecer. O falhanço da integração era apenas uma parte da resposta. E por outro lado os migrantes mais recentes não explicavam tudo.
No verão de 2016 a cidade de Nice apenas passou pelo primeiro de um conjunto de ataques quase diários. Alguns destes ataques foram levados a cabo por pessoas que tinham chegado à Europa durante os anos da recente vaga de imigração. Outros ataques, como o de Munique, foram realizados por indivíduos que tinham nascido na Europa. As pessoas ficavam atrapalhadas quando se perguntava porque estava isso a acontecer. O falhanço da integração era apenas uma parte da resposta. E por outro lado os migrantes mais recentes não explicavam tudo.
O medo estava-se
espalhando, e quantos mais refugiados entrassem num país mais esse medo
crescia. Mas por outro lado também se tinha medo de cair ou ser acusado de
racismo. E as autoridades ficaram à nora, sem saber o que fazer. Inclusivamente
a Noruega passou a oferecer lições aos migrantes, como tratar as mulheres.
Estas lições destinavam-se a contrariar o crescente problema das violações na
Noruega, explicando aos refugiados que, por exemplo, se uma mulher lhes sorrisse
ou se vestisse de forma a mostrar a pele, isso não queria dizer que eles
pudessem violá-la. E na Alemanha, ao longo de 2016, a onda de violações e
agressões também se espalhou. Mas o medo das consequências de identificar os agressores sobrepôs-se ao empenhamento da polícia no seu dever de não ocultar a identificação dos culpados.
Agora, com a
política de inversão, era sobre a Grécia e sobre os países de receção que
pesavam os efeitos dessa inversão. Nem os podiam deslocar para norte, nem os
podiam mandar de volta para casa. E o que tinha a dizer Merkel por toda esta
confusão ? O que ela disse numa breve palestra enquanto recebia um doutoramento
honoris causa pela universidade de Berna, foi que os europeus tinham responsabilidades
relativamente aos refugiados. Mas, e então, levantou-se alguém da assistência,
“em que posição fica a responsabilidade dos europeus na proteção dos outros
europeus?” Merkel, invocando europeus que se tinham ido juntar ao Daesh, os
europeus não podiam dizer que nada tinham a ver com eles. Não fora isso que lhe
fora perguntado, mas a chanceler continuou: “o medo é mau conselheiro, tanto na
vida pessoal, como na vida social.”
O campo de
refugiados da ilha grega de Lesbos é o maior da Europa. É um lugar onde não
faltam agressões nem violações. São perto de oito mil pessoas num espaço
insuficiente para tanta gente que chega a Mória, onde outrora estava instalada
uma base militar. Semanas depois da chegada são chamadas para registo oficial.
Mas a etapa seguinte pode demorar meses. Os que chegaram agora só lá para abril
terão a entrevista de admissibilidade. E depois, só se passarem é que seguem
para a entrevista principal, a de elegibilidade. Se tudo correr bem então é
pedida a ajuda internacional. Caso contrário entram na fase de recurso. Se a
pessoa for rejeitada, a pessoa é detida e deportada. Ainda pode recorrer, a um
tribunal superior, muito difícil de alcançar e caro.
Há uma casa de
banho para cada trinta pessoas, alguns a viver em tendas de lona com paletes
cobertas com mantas a fazer de chão. É difícil entrar na parte oficial do campo
de Mória. Os jornalistas não têm autorização para entrar nas casas de banho e
nos duches, onde as mulheres têm medo de ir porque podem ser violadas. Este
centro de registo numa base militar sob a responsabilidade do governo grego e
financiado com fundos europeus, não foi planeado para reter refugiados tantos
meses, podendo chegar a um ano. Foi planeado para ser um abrigo transitório
onde os refugiados não permaneceriam mais de uma semana. À volta do campo há
rulotes junto ao muro da base, onde se pode ler “bem-vindo à prisão”, e comerciantes
vendem fruta e outras coisas, que regressam a casa ao fim do dia e voltam no
dia seguinte.
Terra prometida (2)
Então no dia 31 de
agosto de 2015, na Alemanha, todos os alemães ouviram Angela Merkel proclamar que
o mundo via a Alemanha como um país de esperança, apesar de nem sempre ter sido
assim. Poucos dias antes tinha havido um ataque incendiário em instalações para
migrantes numa cidade do leste alemão, e manifestações no exterior de um centro
a partir de agora chamado de refugiados. Quando a chanceler apareceu nessa
cidade, foi vaiada e assobiada pela multidão.
Mas outros alemães
viram essas manifestações horrorizados. Era preciso agir de forma a mostrarem
um lado diferente do seu país. E estavam prontos para isso. Essa oportunidade
chegou poucos dias depois, quando a chanceler abriu as portas a centenas de
milhares de pessoas que haviam partido do Mediterrâneo e subido rumo à Alemanha
passando a Sérvia, a Hungria e a Áustria. Nas fronteiras e nas estações
ferroviárias juntaram-se centenas de alemães para dar as boas-vindas aos agora
denominados refugiados que chegavam. Nesta altura já tinha conotação pejorativa
chamar-lhes migrantes, pelo que passaram então a ser refugiados. Cadeias
formadas por voluntários entregavam-lhes comida e presentes, incluindo ursos de
peluche para as crianças.
Este espírito espalhou-se
a outros países do norte da Europa. Por exemplo, na Dinamarca, quando jorravam
montes de imigrantes pela ponte em direção às Suécia, uma política dinamarquesa
de 24 anos de idade começou a transportar refugiados no seu iate, entre a
cidade de Copenhaga e a cidade sueca de Malmo. De um dia para o outro a crise
da migração é redefinida nos círculos mais abertos como uma crise de refugiados, e quem questionasse era visto como xenófobo.
A partir da
exuberante manifestação de boas-vindas alemã, todos passaram a querer ir para a
Alemanha. De um momento para o outro passou a haver autocarros na Grécia e na
Macedónia. E a barreira da Hungria já não era mais do que um rolo de arame
farpado que se podia transpor, interpondo, por exemplo, um colchão, ou até um
casaco. Aos milhares em plena luz do dia, a polícia húngara já não fazia nada
para os impedir. Foram autorizados a atravessar o país com destino à Áustria e
depois Alemanha, que prometeu recebê-los de braços abertos.
Ainda assim tinham
um desafio: ou os centros policiais de identificação; ou os traficantes
criminosos sem escrúpulos; ou então, se tivessem sorte, a ajuda de um
voluntário que desafia também a sua sorte a anos de prisão se fossem apanhados
pela polícia.
Mas em 15 de
setembro de 2015 a Hungria bloqueava finalmente de vez a principal rota até ali
usada pelos refugiados para alcançarem a Alemanha. Por isso a rota sofreu um
desvio em direção à Croácia.
O êxodo trágico de uma primavera perdida (1)
A primavera que havia despontado
prematuramente na Tunísia, em dezembro de 2011, quando chegou à Síria ainda era inverno.
Bashar al-Assad responde inicialmente com violência policial nas manifestações, mas
vendo que o conflito se tornou mais intenso, e que seus oponentes começaram a
dominar cidades, ordenou bombardeamentos aéreos e ataques de mísseis a todas as
cidades sob controlo rebelde, além de enviar tropas para combater. E o país
fica imerso numa cruel e brutal guerra civil. E então há um êxodo em várias
direções, do qual apenas retemos as imagens dos naufrágios no Mediterrâneo, por
serem indescritivelmente chocantes.
Um repórter, que acompanhou pessoalmente uma missão de salvamento, conta:
“Quando se para ao lado de um navio destes, não se está preparado para o
choque. Já vi centenas de fotos de barcos. Testemunhei mesmo um salvamento de
menor dimensão. Mas um barco com seiscentas pessoas amontoadas até à última
prancha do convés, e até ao último espaço possível do porão, é uma cena que nos
arrasa. Um mar de vidas apenas a alguns momentos da morte. O barco balançava,
bastaria uma pequena mudança do tempo para certamente se produzir uma
catástrofe. Ainda retenho na memória as imagens do desembarque, mais bíblicas
do que homéricas, apesar de estarmos na Grécia. A partir do momento em que põem
o pé em terra, são vistos apenas como uma estatística. E toda a gente usa
novamente uma máscara. E, todavia, a história não acaba aqui.”
Das muitas
entrevistas que os jornalistas fizeram, os relatos dos sobreviventes dos
naufrágios são absolutamente arrepiantes. Conta um sobrevivente: “O único poder
de que uma pessoa dispõe é o de manter-se calma. Num barco assim tão carregado,
os movimentos bruscos podem virá-lo. As pessoas não podem mexer-se, pelo que
aquelas que ficam no meio do barco simplesmente defecam e mijam em cima dos
outros. E então o cheiro torna-se insuportável. Na borda do barco houve dois
homens que se desequilibraram e caíram ao mar. Escusado será dizer que se
afogaram. Houve outro que perdeu o controlo, pela sede ou pelo pânico. Antes
que a situação se complicasse mais, dois rapazes que estavam junto dele
atiraram-no pela borda fora.”
Para entrar em
países Schengen, para chegar ao norte da Europa, a maior parte desta gente
atravessa a pé a Macedónia e a Sérvia. Então, chegados à Sérvia, seria lógico
entrarem na Hungria, país que fica do outro lado da fronteira. Mas a Hungria
colocou uma barreira ao longo dos 180 quilómetros que a separa da Sérvia.
Na verdade, não é
na Hungria que os imigrantes querem ficar. Mas o argumento das autoridades
húngaras vai no sentido de achar que é seu dever impedir que um número tão
elevado de estrangeiros entre nos outros países da União Europeia.
Seja como for, há
quem veja nesta atitude hipócrita de Viktor Orbán razões de ordem interna, com
o objetivo de ficar bem visto pelo eleitorado e evitar que se desloque ainda
mais para a direita, neutralizando o partido que se lhe pode opor com maior
eficácia, com o argumento de que os imigrantes não apenas vêm tirar os empregos
aos húngaras, como pôr em perigo as próprias bases da Europa cristã.
sexta-feira, 23 de novembro de 2018
O terramoto político de Roma com epicentro na Grande Muralha da China
O pedigree do
animal político que hoje é a Europa recebe contributos de muitos lados. Mas os
seus contornos não se delimitam apenas entre a Muralha de Adriano na Escócia e o
Muro das Lamentações na Judeia. Também se descobrem conexões com a Grande
Muralha da China.
A Grande Muralha
da China, concluída por volta de 220 a.C., tinha como objetivo proteger o novo
império chinês de Shih Huang-ti das tribos guerreiras de nómadas saqueadores da
Mongólia. Afastados do novo império, um
local seguro, viraram-se para o ocidente, onde povos que acabaram por dominar a
Europa após o fim do Império Romano no Ocidente, foram empurrados por eles. Se
não fosse a Grande Muralha da China, no exterior da qual eles se unificaram e
aumentaram o seu poder com astúcia e técnica militar, em vez de migrarem para
ocidente com a consequente pressão demográfica, teriam preferencialmente penetrado
para o sul da China e aí dominado. Ainda assim, eles conseguiram irromper para
sul no século I desta era, apesar de os Han os terem expulsado com elevados
custos de destruição.
Os Hsiung-nu para
além de nómadas dedicados à pastorícia, eram exímios domadores de cavalos que pastavam
onde encontrassem boa erva. Por isso, eles sabiam tudo o que era preciso saber
sobre cavalos. Montados sobre eles fincados sobre estribos, disparavam flechas
mortíferas com arcos pequenos e poderosos, feitos de camadas de ossos de
animais, à quais juntavam madeira para obter flexibilidade. Entravam de
rompante numa aldeia, matavam todas as pessoas que encontravam e voltavam a
desaparecer, levando tudo o que pudessem transportar a cavalo, sobretudo
reservas de comida e ouro.
Assim, pouco havia
que estorvasse os nómadas a correr a cavalo na vasta estepe vazia da Ásia
Central. Até que chegaram aos territórios em redor do mar Negro. Aqui chegados,
os Hsiung-nu, agora chamados Hunos, encontraram outros povos nómadas, que não
tardaram a desalojá-los empurrando-os ainda mais para ocidente, principalmente Godos
e Vândalos. Mas os Hunos não se ficando por aí, chegaram em 400 às portas de
Viena, desalojando novamente os Godos. Então os Godos dividem-se em dois
grupos: um deles, os Ostrogodos, forçaram os povos germânicos nativos a fugir
para sul; e os outros, os Visigodos, vendo Roma enfraquecida, arriscaram atacá-la.
Em 410, comandados por Alarico, foram bem-sucedidos. Roma era devastada e
saqueada. Em 402 já a capital do Império havia sido mudada para Ravena, que por
sua vez também foi tomada em 493, desta feita por Ostrogodos.
Hoje a palavra “vandalismo”,
sinónimo de profanação, ou destruição propositada, deve-se aos Vândalos, que
continuaram para ocidente pilhando tudo o que encontravam pelo caminho. Depois
atravessaram para África e apoderaram-se da cidade nova de Cartago, o grande centro
do Império Romano do Norte de África. E não ficando por aqui, a seguir voltaram
a atravessar o Mediterrâneo até Itália, sendo Roma novamente saqueada em 455.
É claro que aquela
energia febril das hordas hunas não podia durar para sempre. Em 451, os Hunos
comandados por Átila, depois de terem invadido a Gália, acabaram por ser
derrotados por uma coligação de Romanos e Visigodos. Passado um ano Átila morre
de atentado, e em breve os Hunos desapareciam das páginas da história.
Constantino havia
adotado o cristianismo como religião oficial de Roma. Mas Constantino também
fundou Constantinopla, que a partir do século V passou a dominar o que restava
ainda de interessante no império. Ainda assim, com o passar do tempo, o
cristianismo impôs-se no ocidente com o papa em Roma, e a Igreja como sua
instituição.
Entretanto
Agostinho nasce em Tagaste, norte de África, onde hoje é Argélia, corria o ano
de 354. Os pais investiram todos os seus recursos financeiros numa formação
intelectual esmerada. Mónica, a mãe de Agostinho, era uma cristã muito devota,
mas o pai não. Ela tanto se esforçou que Agostinho acabou por se converter, e a
reconhecer as características sobre-humanas de Cristo. Em 410 Roma foi
saqueada, e os pagãos acusaram o cristianismo como a sua causa. Agostinho
escreveu muita coisa, nomeadamente a Cidade de Deus, como resposta à acusação
de o cristianismo ter sido culpado pela entrega de Roma nas mãos dos bárbaros. Em
430 morre em Hipona, sem antes ver um exército vândalo à portas da cidade preparando-se
para entrar. A partir daí, todos os cristãos aderiram a um novo modo de vida,
não parecendo lamentar o que tinham perdido. Pouco se interessavam pelo corpo e
pelo bem-estar material. O importante era a saúde da alma. Conquistar fortuna
era perder reputação. A arte e a filosofia deixaram pura e simplesmente de
existir, era preciso proteger a família e isso roubava tempo. Não havia tempo
para ler, mesmo que se soubesse, a vida tornara-se difícil. E o latim, que era
entendido em toda a parte, passou a ser substituído por outras línguas não
letradas.
Ora, os Romanos
dos primeiros séculos da atual era passavam mais tempo nos banhos e nos
ginásios do que nas igrejas, ou bibliotecas. Obcecados pela saúde, iam para as
termas e faziam dietas esquisitas. Mas também se entusiasmavam com as viagens, e
os espetáculos nos teatros e nos circos. E gostavam da fama. E eram gananciosos
corruptos. Acima de tudo, os Romanos preocupavam-se com o sucesso, o qual
interpretavam como sendo viver para o bem-estar do presente e não pensar no
amanhã. Roma, nesses tempos áureos albergara cerca de um milhão de pessoas. Mas
em 550, já não tinha mais de 50.000.
Enfim, a Europa
mudara radicalmente, e hoje já não tem o cristianismo como religião de Estado.
Os Visigodos duraram cerca de duzentos anos numa faixa de terra no sudoeste de
França e em quase toda a Península Ibérica, exceto o País Basco. Até que
entraram em cena outros protagonistas, outras hordas não menos energéticas e
febris. Vinham aparelhados com uma doutrina religiosa que ainda haveria de dar
muito que falar mais de mil e trezentos anos depois.
A Lei por Direito
Ainda hoje, quase
todos os sistemas legais do mundo ocidental descendem da lei romana, que
começou a ser codificada nas Doze Tábuas por volta de 450 a.C. Os Romanos
sempre possuíram u respeito e um amor profundos pelo Direito. Os Romanos
levaram a sua lei para onde quer que fossem e entregavam-na aos povos que
conquistavam. Assim, durante muito tempo qualquer cidadão do império podia
invocar a lei romana, fosse grande ou pequeno, rico ou pobre. As legiões
romanas levavam consigo cópias das tábuas, que eram erigidas nas cidades
conquistadas, para que os derrotados soubessem que tipo de pessoas os tinham
vencido. As leis e os procedimentos eram fáceis de compreender, por isso
acessíveis a todos os cidadãos.
Em 529, o
imperador Justiniano proclamou o famoso “Codex
Constitutionum”, o qual se tornou a principal fonte da lei romana durante
mais de mil anos. Daí não ser surpreendente que ainda hoje sirva de base aos
sistemas legais da maioria dos países europeus, bem como do Estado da Louisiana.
Apesar de, no
campo da Arte, Filosofia e Ciência, os Romanos terem aprendido com os Gregos, e,
portanto, apesar de os Romanos nestes domínios não saberem mais do que aquilo
que os Gregos sabiam, sabiam coisas que os Gregos não sabiam. Os Gregos não eram
um povo com um sentido prático tão apurado como o dos Romanos. E isso fez toda
a diferença para que os Romanos derrotassem os Gregos sempre que combatiam.
Mesmo assim, a ciência romana era atrasada comparada com a grega, sobretudo a
ciência grega que se praticava em Alexandria.
A queda da República
Romana foi lamentada ao longo de dois milénios por todos aqueles que amam a
liberdade. Talvez ninguém acreditasse tão profundamente na República como
Cícero, ou seja, ele acreditava num Estado de Direito e não de homens. Mas o
que ele viu foi um Estado de um só homem, pois ainda não existia uma
Constituição suficientemente forte para que a República sobrevivesse.
A intuição de
Cícero apenas viu a luz do dia muitos séculos mais tarde com os fundadores da
República Americana. Estes foram os primeiros a conseguir demonstrar como um
Estado de homens poderia, na prática, funcionar tal como Cícero havia
concebido.
No entanto, a
Constituição Americana é um pedaço de papel, não se pode defender sozinha. Se
os Americanos não acreditarem nela, torna-se mesmo apenas um mero papel. A
Constituição não tem qualquer proteção, a não ser a fé que o povo tem nela. E a
crença não pode ser legislada.
quarta-feira, 21 de novembro de 2018
Como se explica a desertificação da esquerda?
A fraqueza global
da esquerda é em muitos aspetos surpreendente, uma vez que seria de esperar o
contrário depois da crise financeira que rebentou em 2008, e de a desigualdade,
o fosso entre ricos e pobres dentro de cada país, ter aumentado ao longo das
três últimas décadas. Dentro de cada país, não entre países. Isto contraria o
que a esquerda vaticinava há décadas. O mundo tornou-se muito mais rico graças
a ganhos de produtividade, mas esses ganhos não foram igualmente distribuídos. E
assim, nestas circunstâncias, seria de esperar que se assistisse a um rejuvenescimento
da esquerda. Tal não aconteceu.
É possível que as
causas se tenham começado a desencadear há mais tempo. A velha esquerda, de
base classista, tem estado num declínio de longo prazo no mundo inteiro desde o
desabamento do comunismo arrastado pela queda do Muro, que a seguir arrastou
consigo na queda também a social-democracia, uma das forças dominantes, sobretudo
na maioria dos países europeus. Então, o que se verificou com esses partidos, que
inclui os socialistas, foi que toda a esquerda deu uma guinada para o centro, ao
ritmo da terceira via de Blair, para acompanhar a lógica da economia de
mercado.
Mas pior do que terem
perdido influência sobre a base do seu eleitorado tradicional, simplificada com
a designação de “classe trabalhadora”, os partidos da esquerda perderam-na para
a extrema direita nacionalista. Os marxistas ficaram perplexos, porque não
estavam à espera que a História entregasse o ouro ao bandido. O que acontece é
que é na nação que o povo revê a sua identidade. As motivações económicas subordinam-se
às questões de identidade. A indignidade da invisibilidade é pior do que a
falta de recursos.
Ainda que muitos
países, chamados em vias de desenvolvimento, tenham visto uma certa percentagem
de cidadãos saírem da faixa de pobreza e passado a constituir a classe média, terem
passado a usufruir de recursos materiais que definem a classe média, a verdade
é que, paradoxalmente, essa passagem conferiu-lhes melhor conhecimento da
dignidade a que tinham direito. As pessoas são muito mais sensíveis às perdas,
do que aos ganhos. Isto pode explicar porque é que é que as classes médias são
aquelas que se manifestam e desestabilizam os regimes políticos, e não os
desesperadamente pobres. Sentir perda, e sobretudo perda de estatuto social é o
verdadeiro motor da revolta.
O desejo de
reconhecimento da própria dignidade é muito mais forte que o desejo da mera
melhoria das condições materiais de vida. E neste estádio evolutivo da condição
social que essas pessoas vêm para a rua indignar-se com a situação política. São
movidos mais por razões de justiça do que por necessidade de aumento salarial. Ser
notado, sentir aprovação social, tudo isso são aspetos que se sobrepõem à
ambição de riqueza. A estima de Si só se pode fundar e alimentar se for objeto de
atenção e aprovação por parte dos outros.
Ter um emprego não
garante apenas recursos, mas também reconhecimento pelo resto da sociedade de
que uma pessoa está a fazer alguma coisa socialmente valiosa. Dar uma esmola a
um pobre, ou a um sem-abrigo, ou o rendimento mínimo garantido a uma cigana com
três filhos, mas sem os olharmos nos olhos, estamos a aliviar a carência
material, mas não a reconhecer e a partilhar a sua humanidade. A verdadeira dor
da pobreza é a perda de dignidade. As pessoas gostam de se comparar umas com as
outras. E é por isso que uma pessoa rica pode nunca estar satisfeita com a sua
riqueza e querer enriquecer mais, porque ainda não é tão rico como fulano e
sicrano. Um qualquer padrão de riqueza que limite essa ambição não existe,
porque o que nos move na obtenção de riqueza é o desejo de estatuto social,
desejo esse que está inscrito na nossa condição biológica de primata.
A ameaça percebida
pela classe média à sua perda de estatuto, devido às profundas transformações nos
paradigmas de vida processados na viragem do século XX para o século XXI, pode ser
uma das explicações do fenómeno de desertificação da esquerda e da ascensão do
nacionalismo populista em muitas partes do mundo nesta segunda década do século
XXI. As pessoas que ascenderam à classe média significa que passaram a ter mais
estudos. E com isso adquiriram uma consciência de classe mais fácil de
mobilizar e mais tempo para a atividade política.
Assim, a classe
média dos dias de hoje de países como os Estados Unidos da América e
Inglaterra, é formada por cidadãos ressentidos que temem a perda de estatuto, e
apontam o dedo não apenas às elites, mas também a outros grupos sociais ainda
mais desfavorecidos, como é o caso de imigrantes à procura de asilo. É
considerada gente dolosa não merecedora de lhes passar à frente no usufruto de
recursos produto do seu esforço. Por isso não veem com bons olhos gente vulgar
que está à espera numa longa fila para entrar pela porta do sonho americano.
segunda-feira, 19 de novembro de 2018
Como viver em tempos de recessão democrática?
Viktor Orbán, o
primeiro-ministro húngaro, declarou em 2017 que o seu regresso ao poder marcava
o ponto em que os húngaros decidiram que queriam recuperar o seu país com a
dignidade que a autoestima por si própria merecia. Pois a identidade nacional
nascia, em primeiro lugar, da distinção ente o nosso eu interior e um mundo
exterior de regras e normas da curvatura da banana e da couve de couve de
Bruxelas, que não reconhecia adequadamente o valor da dignidade do eu interior
húngaro. Não é o eu interior que deve ser obrigado a conformar-se com a regras
impostas por uma casta de burocratas. Quem tem de mudar é precisamente essa
mesma casta.
Esta segunda
década dos ‘anos 2000’, tem sido profundamente marcada por uma recessão
democrática, não apenas na Europa, mas um pouco por todo o mundo. E então, a
que se deve isto? Como anda tudo ligado, é um fenómeno que começa em força em
meados dos ‘anos 1980’ com a deslocalização das empresas-fábrica da Europa e
dos Estados Unidos para a Ásai Oriental, onde a mão de obra era muito mais
barata, e culmina, pelo menos até aqui, na mutação da Al-Qaeda em Estado
Islâmico. E jovens muçulmanos, a maior parte deles nascidos na Europa, a
deixarem as suas vidas, aparentemente vividas com relativa tranquilidade, para
se alistarem nas fileiras do autodenominado Estado Islâmico. E a cereja do bolo
chegou em 2016, quando os britânicos votaram a favor da sua saída da União
Europeia, e os norte-americanos elegeram Donald Trump como Presidente dos
Estados Unidos.
Assim, para a
emergência do sentimento de identidade nacional, que estava adormecido, juntou-se
a fome com a vontade de comer: a perda de emprego por parte das classes
trabalhadoras e classes médias antigas desses países; e a vaga colossal de
imigrantes fugindo à guerra, e a outros atropelos contra os direitos humanos,
sobretudo do Médio Oriente, África Subsariana e América Central. Muitos
nacionais dos países de acolhimento viram os imigrantes não só como usurpadores
dos seus empregos, mas também como os causadores da insegurança e agitação
social. Estavam assim criadas as condições para que partidos anti-imigração e
anti União Europeia ganhassem força para subir em flexa.
Bem ou mal,
sobretudo os eleitorados preferencialmente inclinados para políticas
conservadoras e de direita, sentiram que o seu âmago, o mais íntimo da sua
dignidade humana, o “eu interior”, estava ameaçado. Portanto, já não era apenas
a carestia material, devida ao desemprego, o único problema, mas a ela associava-se
o sentimento de um eu interior desrespeitado, para não dizer humilhado.
O Homem a abrir a caixa de Pandora e a ver o seu poder em cinzas
Em certos
processos históricos há pontos de inflexão que, só a posteriori, se podem ver melhor e avaliar as consequências. Mas
não é este o caso. O Homem abriu a caixa, e viram-se logo os fenómenos incontroláveis.
Mas o Homem continuou com o cinismo do pior que há. Não tem necessidade de
mediadores.
Nos últimos tempos
havíamos ficado sensíveis à obrigação de usar publicamente expressões não
humilhantes: não negros, mas subsarianos; não pobres, mas desfavorecidos; e por
aí fora. E agradados com a discriminação positiva, ou com o Affirmative action do outro lado do
Atlântico que entrou em desuso depois do 11 de setembro. As minorias, a começar
pelas muçulmanas, sentiram-se obrigadas a exceder-se em zelo cívico. E o Homem
proferiu o slogan “America First”, como única palavra de ordem.
Seja como for,
temos de continuar a acreditar no estado de direito, nos juízes e na
comunicação social. Cuidado com a opinião pública. É preciso ter em conta que a
opinião pública é muito versátil e traiçoeira. Não nos devemos deixar levar
pelas delícias do Carpe diem. Uma
coisa é o Homem, outra é o país. Podemos não estar a gostar do governante, e
ainda assim apreciarmos uma democracia com “checks
and balances”, a quinta essência da democracia. Com esta atitude não somos
obrigados a ter de ser pró-americanos. E também não vejo necessidade de neste
momento sermos antiamericanos primários.
Como sabemos que nem
sempre conseguimos saber a verdade do que acontece pela mera aparência dos
factos, necessitamos de criar grelhas interpretativas. Portanto, se queremos
saber o que se passa em todo o planeta, que agora não é mais do que uma aldeia
global, não nos podemos abster de usar essas grelhas interpretativas. Porque mais
tarde ou mais cedo também servirão para ajudar a tomar as melhores decisões que
têm mais diretamente a ver com as nossas próprias vidas. Não reagir também é
uma escolha, embora quase nunca a melhor. Temos de estar sempre a escolher
valores para que a nossa vida possa fazer sentido com a maior dignidade
possível. É claro que qualquer decisão pode umas vezes ser boa, e outras vezes
má. Vai depender dos critérios que, num determinado contexto, conforme as
circunstâncias, utilizemos para conhecer a realidade. Realidade essa que é um
enigma, envolvida num grande mistério.
quinta-feira, 15 de novembro de 2018
Intuição versus Racionalidade
É por intuição e
não por razão que vemos o mundo muito mais arrumado, simples, previsível e
coerente, quando na realidade não é. E isto biologicamente tem de ser assim:
ilusório. É apaziguador para o nosso espírito ter a ilusão que controlamos o
nosso futuro porque conhecemos o nosso passado. Estas ilusões reduzem a
ansiedade quando experimentamos por vezes que a vida é incerta e não segura.
São reconfortantes.
É uma sorte
ganharmos quando tivemos de arriscar e arriscámos. Mas muitas vezes ficamos com
a ilusão que tivemos faro e antevisão para antecipar o sucesso. Alguns lances
de sorte podem coroar um político imprudente com uma aura de presciência e
ousadia. E as pessoas sensatas que duvidaram deles passam a ser vistas como
medíocres e fracas.
A intuição está
preparada para saltar para conclusões a partir de pouca evidência. E não está
preparada para conhecer o tamanho dos seus saltos. Para algumas das nossas
crenças mais importantes não temos qualquer tipo de evidência, a não ser o
facto de as pessoas que amamos e nas quais confiamos possuírem estas crenças.
Fazendo um recuo
até aos finais dos anos 1990, quando comecei a interessar-me mais pela
neurociência por causa de António Damásio, dizia-se que nós, seres humanos, comportávamo-nos
como se tivéssemos dois cérebros protagonizados pelo hemisfério direito e
esquerdo. E dizia-se que o hemisfério direito processava a maior parte das
nossas intuições, e o hemisfério esquerdo era o responsável pela nossa
racionalidade.
Hoje sabe-se que
as coisas não são bem assim, mas continuam válidos os aforismos, tal como
aquele do “faz o que eu digo e não o que eu faço” para ilustrar que o que o Eu
faz hora da verdade (O Eu portador da consciência e conhecedor) é o que o nosso
hemisfério direito nos dita, apesar da retórica e dos eufemismos que nos chegam
do hemisfério esquerdo. Isto, claro, se houver um Eu em qualquer lado,
resultante da convergência dos dois hemisférios e que alguns neurocientistas
alegaram poder estar no lobo da ínsula, situado profundamente no fundo do sulco
lateral. Faz parte do sistema límbico e coordena as emoções. Situa-se sobreposta à zona em
que o telencéfalo e o diencéfalo se fundiram aquando do desenvolvimento
embrionário. A ínsula pode ser visível se se afastar o opérculo que
a envolve na zona do sulco lateral, ou se se retirar parte da zona
envolvente. O seu córtex apresenta uma forma triangular com o ápice dirigido
antero-inferiormente para abrir na fossa lateral (límen). Existe
o opérculo frontal, opérculo temporal e opérculo
parietal que correspondem às zonas que cobrem a ínsula.
Os seres humanos são
incorrigivelmente inconsistentes ao fazerem juízos sumários a partir de
informação complexa. Quando é pedida para avaliarmos duas vezes a mesma informação,
é frequente as respostas serem dadas de modo diferente. Assim, como os juízos
que daí resultam não podendo ser fiáveis, também não podem ser previsores
válidos seja do que for. Daí que não nos admiremos que os algoritmos sejam
melhores que o nosso sistema intuitivo, dado que este, devido à sua extrema
dependência contextual, é suscetível de inconsistências alargadas. Algoritmos?
Sim, a prática estatística dominante nas ciências sociais é atribuir pesos a
diferentes previsores segundo um algoritmo – regressão múltipla – que está agora incorporado no software
convencional.
Ainda hoje é usado em
todas as salas de parto o teste de Apgar. O índice de Apgar tem o nome da
médica norte-americana Virgínia Apgar, que o adotou para avaliar o índice de
vitalidade do recém-nascido nos primeiros minutos após o nascimento. Ao aplicar
a pontuação de Apgar , o pessoal das salas de parto tinham uma escala
consistente para determinar quais os bebés que estavam com problemas, e assim
contribuindo para a redução da mortalidade infantil. Até a anestesista Virgínia
Apgar introduzir os seus métodos, os médicos e as parteiras usavam o seu juízo
clínico para determinar se um bebé estava em dificuldades. Assim, diferentes
praticantes usavam diferentes critérios. Sem um procedimento padronizado, os
sinais de perigo eram muitas vezes ignorados e muitos recém-nascidos morriam.
Mas durante praticamente a segunda metade do século XX a hostilidade dos
médicos aos algoritmos foi total. Estavam claramente sob o domínio de uma ilusão:
a ilusão nas suas capacidades e perícia.
A evidência
estatística da inferioridade do “olho clínico” em comparação com as funções
algorítmicas veio a mostrar-se esmagadora, contrariando a experiência
quotidiana dos clínicos acerca da qualidade dos seus juízos. É claro que isto
não significa que seja negligenciável o valor da experiência clínica de muitos
anos confirmada pelas provas dadas. A linha entre aquilo que os clínicos podem
fazer bem e aquilo que de nenhum modo podem fazer não é óbvia. Mas em geral, as
previsões a longo prazo acerca do futuro dos seus pacientes são muito mais
difíceis de fazer.
Hoje em dia já se veem
os proponentes da aplicação de algoritmos à medicina, particularmente aos
diagnósticos clínicos, afirmarem veementemente que não é ético confiar nos
juízos intuitivos dos seres humanos quando estão em causa decisões importantes,
uma vez que já há provas irrefutáveis de que os algoritmos disponíveis cometem
muito menos erros do que as nossas intuições.
O mundo é difícil, a
culpa não é dos especialistas. Os erros de previsão são inevitáveis porque o
mundo é imprevisível. O único erro das pessoas está na elevada confiança na sua
subjetividade. Os especialistas são enganados pela forma como os seus cérebros
operam para que eles tenham como boas as suas crenças. É claro que as pessoas
não são todas iguais quanto ao seu grau de convicção e arrogância. Há aqueles
que pensam que sabem uma grande coisa, e inclusivamente constroem teorias
acerca do mundo. E a sua confiança na coerência do seu esquema mental é de tal
modo que chega a ser retumbante a sua arrogância em relação àqueles que não
veem as coisas à sua maneira. Mas, por outro lado, também há aqueles que são
mais complexos e profundos nos seus pensamentos ao ponto de muitas vezes
ninguém os compreender. São profundamente céticos e nunca acreditam que algo de
importante na História tenha sido determinado por um único acontecimento, ou
por influência de um único homem. São mais dados a reconhecer que a realidade
emerge da interação de muitos agentes e forças diferentes, incluindo o acaso e
a necessidade que acabam por dar origem a grandes e imprevisíveis desfechos.
Narrativas falaciosas
São as histórias
falaciosas do passado que muitas vezes moldam as nossas perspetivas do mundo e
as nossas expectativas para o futuro. E isto acontece porque nós somos muito
sensíveis ao sentido que o mundo e a vida tem de ter. E para tal somos muitas
vezes forçados a fazer entorses e enviesamentos aos factos e aos pensamentos
para que as coisas se expliquem dentro de um quadro paradigmático de
mundivisão. E assim, as histórias explicativas têm de ser simples e mais
concretas do que abstratas.
A mente humana não
lida bem com não-explicações. A mente que constrói narrativas acerca do passado
é um órgão de criação de sentido. Quando ocorre um acontecimento imprevisto, ajustamos
de imediato a nossa perspetiva do mundo, para que se acomode à surpresa. Sabe-se
que as nossas memórias estão constantemente a serem revistas e refeitas, e é
por isso que não podemos acreditar cem por cento nelas. Essa é uma das
limitações da nossa mente, entre outras, claro. Somos imperfeitos a reconstruir
estados passados de conhecimento. E é por isso que damos conta de nos
enganarmos a nós próprios o tempo todo, pois passamos a vida a acreditar em
relatos como verdadeiros, quando na realidade são falsos. Tudo o que contribua
para relatos coerentes, nós gostamos. Daí que quando todos foram ultrapassados
pela imprevisibilidade dos acontecimentos, há sempre alguém que diz: “Eu bem
sabia!”
O enviesamento da
perceção retrospetiva tem efeitos perniciosos nas avaliações dos decisores.
Leva os observadores a avaliarem a qualidade de uma decisão, não segundo a
solidez do processo, ma por o resultado ter sido bom ou mau. É o que acontece
com os médicos, ou os corretores de bolsa, especialmente ingrata porque tomam
decisões pelos outros. É por isso que se diz que para o mesmo doente o médico
tanto pode ser deus se tudo correr bem, como ser o diabo se tudo correr mal.
O que conta é o
resultado, não se as práticas e as decisões foram boas. As ações que pareciam
prudentes, devido ao enviesamento de resultados, recebem uma perceção
retrospetiva de irresponsável e negligente. A confiança subjetiva dos
corretores é uma sensação, não um juízo. É por confiarem demasiado nas suas
intuições e subjetividades que os apelidados gurus falham mais do que acertam. Sabemos que as pessoas conseguem
manter uma fé inabalável em qualquer proposição, por muito absurda que seja,
quando é defendida por uma comunidade de adeptos, ou fãs. Não é surpreendente,
por conseguinte, que uma grande quantidade de indivíduos engajados no mundo das
Seitas, de que as seitas religiosas
são apenas uma parte, acreditem eles próprios fazerem parte daquilo que
biblicamente ficou conhecido como “povo eleito”.
Uma narrativa,
desde que apelativa e coerente nos raciocínios, é suscetível de provocar em nós
a ilusão de inevitabilidade. O que contribui para o chamado efeito de aura: as pessoas boas só fazem
coisas boas; e as pessoas más só fazem coisas más. O efeito de aura ajuda a manter as narrativas explicativas simples e
coerentes. É a nossa tendência para construir e acreditar em narrativas
coerentes do passado e dos gurus.
segunda-feira, 12 de novembro de 2018
Há aqueles que pensam que poderiam parar as migrações
Há aqueles que
pensam que poderiam parar as migrações. No outono de 2014, a Itália terminou a
sua operação de salvamento no Mediterrâneo – uma missão naval sem restrições
designada por “Operação Mare Nostrum", que salvou do afogamento mais de 100.000
migrantes nesse ano. Mas os italianos não compreendiam porque deveriam
continuar com a Mare Nostrum sozinhos. As pessoas que partem da Líbia e
atravessam o Mediterrâneo querem vir para a Europa e não apenas para a Itália.
Por isso a Itália esperava que o resto da Europa a ajudasse a salvar as vidas
dessas pessoas. Mas o resto da Europa, pelos vistos, não queria ajudar. A ideia
na mente dos europeus era que mais salvamentos incentivavam mais migrantes a
arriscar a viagem. E isso conduzia assim a mais mortes trágicas e
desnecessárias.
Angela Merkel, no
seu discurso em Potsdam, 2010, admitiu que falhara a integração dos imigrantes
que até àquela data tinham chegado à Alemanha. Em 2010 a Alemanha tinha perto de
50.000 pedidos de asilo. Então se o multiculturalismo não tinha funcionado com
aquele número, como poderia funcionar com um número de entradas trinta vezes
superior em 2015?
Por toda a Europa,
a vaga de migração de 2015 acumulou ainda um maior número de pessoas num modelo
que todos os líderes políticos da altura tinham já admitido ter sido um fracasso.
Em determinada altura da crise Merkel perguntara a Benjamin Netanyahu como é
que Israel conseguira absorver tanta gente e manter um país assinalavelmente
unido? O primeiro-ministro de Israel poderia ter outras respostas para dar, mas por razões de ordem diplomática
deu a seguinte resposta: Israel tinha a vantagem de quase todos os chegados ao
país ao longo de décadas terem na sua herança um elo comum – a herança judaica.
Ao passo que a Alemanha teria de reconhecer que nem todas as pessoas que
deixaram entrar, durante 2015, eram luteranas.
Em 2015, o
presidente da câmara da cidade de Gosler, na Baixa Saxónia, disse a Merkel que
a sua cidade acolheria migrantes de “braços abertos”. Gosler estava a
envelhecer ano após ano e a perder população. Na última década a população
havia passado de 50.000 para 4.000. Os migrantes, disse ele, “iriam dar um
futuro à cidade”. Para ele, era uma política sensata substituir em grande parte
a população de Goslar por uma população totalmente diferente.
Foi para mim uma
surpresa ter descoberto este livro “Late Antiquity” de Peter Brown, 1971, em
que é apresentada uma visão muito mais confortável do fim do império romano do
ocidente. Este autor define um novo período – “Antiguidade Tardia” – que vai de
200 d.C. a 711 d.C., caracterizado não pela dissolução de metade do império
romano, mas por um vibrante debate religioso e cultural. Teve um impacto
marcante entre os historiadores, uma vez que “declínio” foi substituído por “transformação”
e “acomodação”. Isto sugere que Roma continuou a viver algo diferente, mas não
necessariamente para pior. Com a palavra “acomodação” Peter Brown explica como
povos de fora do império vieram viver dentro dele e governá-lo. Vagas de povos
germânicos, amantes da liberdade, que trouxeram uma infusão de sangue novo, germânico,
a um império decadente. Devastaram Roma, é verdade, mas eram gigantes do Norte
que traziam uma vida nova para uma Itália moribunda. Tenho para mim que com a
queda do império romano do ocidente se foi a Arte e a Filosofia, bem como os
esgotos decentes e a água potável. A Roma Antiga tinha 12 aquedutos trazendo
água para a cidade através de canais com mais de 100 quilómetros de comprimento.
Quanto à Arte Arquitetónica é quase impossível beneficiar o inventário, e muito
difícil não ficar impressionado. Por exemplo, as 16 colunas que formam o
pórtico do Panteão são monólitos maciços, cada um com 14 metros de altura,
laboriosamente extraídos de uma pedreira no leste do Egito, e deslocadas à
força de braços para o Nilo, e daí trazidos por via marítima para a capital do
império.
Mas a surpresa
ainda foi maior quando li declarações de Fredrik Reinfeldt, na imagem acima, primeiro-ministro
sueco de 2006 a 2014, e líder do Partido Moderado entre 2003 e 2015: “. . .
temos de dissolver o povo e eleger outro, porque apenas surge barbárie do
interior de países como o nosso, enquanto do exterior apenas surgem coisas boas”.
Na última metade do século XX, quando se estabeleceu uma nova Europa ocidental
pacífica, as opiniões sobre os invasores suavizaram-se gradualmente e
tornaram-se mais positivas. E alguns historiadores, como é o caso de Peter Brown,
foram muito mais longe afirmando que os povos germânicos beneficiaram de uma
mudança na política militar romana que optou por acomodá-los no império através
de uma engenhosa tática. Em troca dos ataques sistemáticos que os “bárbaros”
faziam ao longo das linhas fronteiriças do Reno e Danúbio, guardavam as suas
energias para apoiar o poder romano nas várias frentes, tanto a oriente como a
ocidente. Com efeito, tornaram-se a força de defesa romana. Roma realmente
caiu, mas só porque tinha voluntariamente delegado o seu próprio poder, não
porque tivesse sido invadida com êxito. Mas no final o que se verificou foi que,
com a compra de apoio militar vindo do estrangeiro, Roma perdeu o controlo do
império. Em 476, o pequeno imperador Rómulo Augústulo foi deposto, passando o Ocidente
a partir daí a ser governado por reis germânicos independentes. Isto porque os
godos já por ali andavam há cerca de 75 anos.
Ora, estou
convencido que, pelo menos, uma das causas do recrudescimento da
extrema-direita xenófoba na Europa se relaciona com o medo crescente que a população
europeia está a exprimir perante dois fenómenos simultâneos: o fluxo crescente
e maciço para dentro da Europa de pessoas provenientes do mundo islâmico; e o
aumento de atentados terroristas mesmo que perpetrados maioritariamente por homens
jovens de gente muçulmana a viver há muito tempo na Europa. O medo tem a ver
com a tendência de a longo prazo os valores e os costumes que os europeus mais
prezam, pelo menos aqueles que resultaram a seguir à Segunda Guerra Mundial,
virem a ser dissolvidos e substituídos por outros que representam um atraso
civilizacional de vários séculos.