domingo, 29 de novembro de 2020

Crónica do acordar de um doente que havia passado por uma Unidade de Cuidados Intensivos


Hoje, com a infeção devido à covid-19 a acelerar o tempo, 80% dos óbitos em Portugal estão a ocorrer nos hospitais, e muitos deles em unidades de cuidados intensivos. 

Anos 1970 em Portugal, 20% dos óbitos ocorriam nos hospitais. Ainda andava por perto a memória de os hospitais serem mais hospícios, ou mesmo asilos, do que clinicas salva-vidas.

Longe vai o tempo em que tudo se passava em casa com a família ao lado. Nos Cuidados Intensivos a família não pode estar. Por outro lado, a morte transformou-se num acontecimento estranho, e distante, para reduzir ao mínimo as evidencias da nossa finitude. 




Anos 1990 em Portugal, o médico de saúde pública Pedro Serrano, que havia acabado de ser operado ao coração, começa a cair em si por volta das três horas da madrugada, ofuscado por umas luzes de presença que mais parecem de uma cabine de avião de longo curso. Lança os olhos em volta, mas não vê nada. Parece que está tudo deserto. As dores de garganta e a sede são brutais. Até que começa a ver alguma coisa a mexer-se lá ao fundo. Tenta mover o braço esquerdo para chamar, mas não consegue, porque está preso a um tubo fino de soro que lhe entra no braço pela prega do cotovelo. E na ponta do dedo indicador tem metida uma carapuça luminosa ligada a um fio que desaparece no escuro.

O braço direito também tem um tubo a meter-lhe sangue no corpo, e a mão está perra. O que viu mexer, agora vê que é uma enfermeira, que se debruça sobre ele e pergunta a sorrir algo que não percebeu bem, está confuso. Então ouve uma voz de cana rachada dizer: “tenho sede". A enfermeira diz-lhe que para já não pode dar-lhe de beber, a não ser molhar os lábios com água. Vai buscar um copo com água e mergulha nele uma espátula de madeira com uma boneca de gaze na ponta. Passa-lhe a gaze húmida pelos lábios, uma e outra vez, e ele chupa o mais que pode. Depois a enfermeira retira-se, como ele diz:  "levantando voo no escuro".

Pedro Serrano começa a ficar mais desperto, mas ainda se sente como se tivesse acordado de um coma após uma grande bebedeira. Começa a ouvir uns sons estranhos, sintéticos, que lhe fazem lembrar a banda sonora da série de TV - Twin Peaks. Entretanto os seus olhos vão-se habituando progressivamente ao escuro e às luzes quebradas. E à medida que se vai irritando com o plim-plim-plim, sente-se gelado. Tenta puxar um lençol. Nada. Ele então chama em voz alta dizendo: "tenho frio, não me podia puxar o lençol para cima?"

"Não posso" - responde a enfermeira. "Temos de manter esses tubos sempre à mostra". Ele admira-se: "Tubos? Quais tubos? Como é que não os tinha visto?" Agora também repara que não está só na sala. Há corpos humanos deitados por ali fora alinhados em paralelo. Cinco ou seis também quase nus. Um corpo agita-se, a enfermeira vem e estende o braço para um monitor. Volta a dar um passo atrás e desaparece no escuro. Não quer saber de mais nada e fecha os olhos. Os sons reaparecem como se fossem gotas de um líquido a pingar num lavatório com microfone.
Fico comigo e tomo consciência de que sobrevivi à operação. Cá estou outra vez deste lado. Comovo-me e os olhos ficam encharcados. Amanheceu e deduzo que estou hospedado na Unidade de Cuidados Intensivos do Serviço de Cirurgia Cardiotorácica do Hospital de Santa Marta. Agora com feições muito mais definidas o anjo louro aproxima-se da minha cama. Vem despedir-se: "Adeus, ET". Sorrio e levanto o dedo luminoso, com o objetivo de o encostar ao dela e, assim, cumprir o previsto no guião da história. Mas estou muito lentiforme e, entrementes, ela já voltou costas e zarpou no vácuo. 
Agora vem outra enfermeira. Espreita para baixo da cama e analisa os vários sacos de drenagem no enfiamento dos tubos que lhe saem do corpo, incluindo a algália. A seguir senta-se aos pés da cama a escrever numa mesinha. Ele pergunta-lhe pelo pequeno almoço, uma vez que vê passar bandejas para os outros hóspedes, como ele gosta de chamar. A enfermeira levantou a cabeça, arrebitou as sobrancelhas, e com um sorriso na face disse: "Para já não vai poder comer nada, sr. José; se tiver muita sede posso molhar-lhe os lábios". Ele, de repente, teve um sobressalto de estranheza, porque em todos os seus mais de quarenta anos nunca ninguém o havia tratado por “sr. José”. Pensou ele: "Este é o melhor estilo TAP que já ouvi. Para esse peditório já dei"

Entretanto passaram-se dez dias. Eis que aparece o cirurgião de serviço à Unidade. Folheia o processo que está na mesinha encostada ao fundo da cama. Pedro Serrano observa-o com atenção, e vem-lhe à cabeça uma ideia divertida: "O tipo é a cara chapada do Lou Reed. Igualzinho…, a cara, os óculos, o modo de se mover; só não tem a expressão causticada e tensa do Lou Reed. Este tem um ar tranquilo e pachorrentamente gozão." 

“Fibrilação ventricular!”, exclamou o cirurgião como se assobiasse entre dentes. "Você teve muita sorte…”. “É não é?”, responde Pedro Serrano com ar blasé, já habituado a ouvir n vezes esse comentário. "A esta hora já devia estar morto", remata Pedro Serrano. “E como!”, deixa o cirurgião escapar entre dentes, enquanto consulta os dados do processo clínico. "Você teve isto no dia dezassete, hoje são vinte e seis - são dez dias!”, diz o cirurgião enquanto olha para Pedro Serrano. E Pero Serrano não evita o pensamento: "Estás a olhar para mim dessa maneira, com ar maroto. e ainda a imaginar aquilo em que eu me podia ter transformado em dez dias de defunção". 

O cirurgião pergunta assim: "E então como se têm portado as dores?" Serrano joga à defesa e responde: "Pelo menos por agora não me dói nada, dr.". "Vamos ver se lhe conseguimos tirar isso ainda hoje".
"Hoje dr? " . "Talvez, talvez; mas só lá para a noite". E foi-se a outras unidades.

Pescando à linha o O'Neill no Reino da Dinamarca



O tempo faz caretas: 

Visto que não há regresso
E o tempo está de mau cariz,
Viremos o dia do avesso
Para ver como é, primeiro.

Acaso o nosso destino, tac!, vai mudar


Se:
O engenheiro sempre não era engenheiro
É possível conservar a juventude deixando-a em estado grave
A Duquesa de Quente tem o baú cheio de ações das minas de esterco
Na América um jovem de cem anos veio de longe ver o Presidente a cavalo de corrida
Um bode recebe o seu próprio peso em vacina e a oferece aos hospitais do seu país

Há quem diga que: “Em política, o que parece, é”



“Em política, o que parece, é” – ouve-se e lê-se muitas vezes no comentário político dos dias de hoje em plena pandemia. Formar um juízo sobre a realidade é algo que está necessariamente relacionado com a perceção que se tem dessa realidade. Sempre foi assim, mas o que é novidade é os mediadores tradicionais dessas perceções estarem em muitos casos a ser ultrapassados pelos novos meios dados pelo nome de "redes sociais".

Além do meio, é o conteúdo da mensagem, que agora não se pode confiar, e muito menos levar à letra, sem que primeiro passe pelo “Polígrafo”, que ainda vai permitindo que as perceções erradas sobre a realidade, alimento de populismos, se afastem da frente. As “fake news” têm sido a coluna vertebral do discurso populista. Em Portugal, o populismo tem vindo a sair da casca com pezinhos de lã. A fraca expressão de movimentos populistas de direita até à data terá ainda a ver com o trauma de 48 anos de ditadura em Portugal até se dar O 25 de abril de 1974. Em Portugal, diga-se a verdade, os ataques terroristas e os problemas com a imigração não têm tido expressão. Mas agora Ventura Chegou, que apesar de ser um político com assento parlamentar, tenta não parecer. E assim vai navegando com distinta ousadia nas águas turvas da perceção popular da corrupção política.

Vivemos uma onda de grande descrédito em relação ao papel dos políticos em democracia. E tal facto deve-se à sucessão de escândalos financeiros envolvendo pessoas públicas de fraca confiabilidade no exercício de funções em que a ética é fundamental. E Ventura cavalgou essa onda, que tem afastado os jovens do interesse pela participação cívica e assumirem lugares de responsabilidade política. É assim plausível que através do populismo, pontas de lança da extrema direita como Ventura tenham algum sucesso em arrebanhá-los. Jovens de diferentes estratos sociais dão expressivas evidências de rejeição do ofício de “político profissional”. As camadas mais jovens da população sempre tenderam a engajar-se mais empenhadamente em causas sociais protagonizadas por organizações não governamentais do que em instituições políticas. Um dos maiores entraves à participação dos jovens em instituições clássicas, como os partidos políticos, prende-se com esse estigma que os faz andar pelas ruas da amargura. Moral da história: Os clássicos partidos, considerados ainda “mainstream”, das duas uma: ou reveem rapidamente o paradigma da militância marcado pelos obsoletos meios da propaganda que se espelham em frases de escárnio tais como "ah! são os coladores de cartazes e as tardes de churrasco de carne assada”; ou desaparecem comidos pelos novos partidos populistas. Será que a via de melhorar todo este estado de coisas pouco recomendáveis passa pela reabilitação da social-democracia e do socialismo democrático? Não sei.

Como não sei, em vez de fazer como David Hume, que foi jogar uma partida de gamão quando não conseguiu resolver o problema de Deus, vou derivar para o tema da perceção, recuperando aqui alguns conceitos de outro filósofo que, em vez de jogar às damas, dedicou muito do seu tempo às teorias da perceção em filosofia – Maurice Merleau-Ponty: "A perceção é um feito nosso, tal como é o pensamento. A perceção aberta sobre a própria coisa, ela é o que pensamos ver – cogitatum ou noema. A perceção é uma fé percetiva baseada num pulsar de manhã à noite, numa mistura com o mundo entre o cogito e o cogitatum."

É nessa relação corpo-mente-mundo que repousa a nossa perceção reflexiva – a abertura para o mundo que nos escapa, no momento em que o esforço reflexivo tenta captá-la. Portanto, o fenomenólogo Merleau-Ponty, tem consciência de que suspende a visão bruta para a transpor na ordem da expressão linguística. É sobre esta relação que repousa a rede de significações que nos faz acreditar na nossa vinculação ao mundo. Ora, é pelo pensamento que entramos no mundo pelo qual o objeto se apresenta na perceção. É o pensamento que faz a síntese entre a fé percetiva e o mundo percebido. É a reflexão, não no sentido do espelho, mas no sentido do entrelaçamento.

Husserl, antes de Merleau-Ponty, tinha colocado nitidamente a nu o papel da redução transcendental para que a nossa reflexão eidética fosse possível. Isto é, a palavra "refletir" é enganadora, porque não se trata de refletir na mente a representação do fluxo da experiência vivida, como se a mente fosse um espelho. Isto não significa dizer que não existe um mundo preexistente à consciência do mundo. O mundo consciencializa a sua existência em que Cada um de nós é um mero mediador do próprio mundo que consciencializa a sua existência. Ou seja, a redução fenomenológica husserliana é a colocação do espectador, que somos nós, temporariamente em suspensão. O mundo é-em-si-o-que-é, independentemente da nossa perceção. O mundo é uno e único, sempre o mesmo, independentemente das perceções individuais em que as coisas e o mundo se limitam a ser objeto do nosso pensamento, como se fossem meros fantasmas. E isso não quer dizer que a ordem da significação não seja naturalmente a ordem do verdadeiro. Porque não temos outra fonte da verdade. Mas a ordem do verdadeiro não é a ordem do acontecimento em si. A questão de saber se o mundo é mesmo assim, e único, para todos os sujeitos perde todo o sentido quanto à identidade do mundo. Perguntar se o meu mundo e o de outrem constituem o mesmo, quer numérica, quer especificamente, nada mais quer dizer, porquanto, como estrutura inteligível, o mundo está sempre além do pensamento como acontecimento.

certeza de que temos duas mãos, quando as colocamos à frente dos olhos, é mais uma questão de fé percetiva do que de razões para acreditar nisso. No caso da perceção, a certeza vem antes da razão. Só faz sentido fazer entrar em cena a razão para averiguar do fenómeno da ilusão e da alucinação. A fé percetiva sempre foi resistente à dúvida. A apreensão de mim, por mim, estende-se ao longo de toda a minha vida, salvo a Alzheimer. A interrogação filosófica sobre o mundo não pode consistir em contestar o mundo em si, ou as coisas em si, por subordinação ao fenómeno da ordem humana. Há, todavia, questões de facto, quanto às coligações sensoriais da nossa condição psicofísica, que nos possibilitam uma relação de verdade com os objetos do mundo.

Quando perguntamos o que é isto e aquilo, ou o mundo, não é possível colocarmo-nos na situação como se fôssemos puros espectadores vindos de nenhures, ou de Marte. Somos um campo de experiências onde se desenrolam acontecimentos concretos e não abstratos. A carne faz parte do visível concreto e a fala faz parte das significações abstratas e indivisíveis da carne. É pela linguagem que percebemos como é necessário voltar à relação da carne com as próprias coisas. É muito claro por que muitas vezes, para tornar presente a própria coisa, não temos outro remédio senão recorrermos à metáfora. Por outro lado, não saberíamos o que é o falso e o verdadeiro se não tivéssemos condições para os distinguir. Da mesma maneira que não teríamos como distinguir o sonho da realidade. Mas conseguimos distinguir nitidamente quando tivemos um sonho depois de termos acordado. Há diferença de estrutura e, por assim dizer, de definição ou nitidez entre a perceção do mundo real e o sonho.

sexta-feira, 27 de novembro de 2020

A malvada complexidade




A interação de um vírus com o corpo humano, para o qual ele não tem imunidade, é um capricho da natureza. No tempo em que os seres humanos eram caçadores recolectores as consequências seriam mínimas. Mas no estado de complexidade a que chegaram as sociedades humanas, as consequências de uma pandemia como esta são brutais. Epidemias como esta são fenómenos raros, mas extremos, que quando acontecem desafiam a sobrevivência de vastas camadas de população que vive aglomerada. A dimensão do impacto e a sua gravidade está mais relacionada com o gau da complexidade em que as pessoas vivem, do que com o vírus em si. É claro que uma pandemia não é nada que se compare com a queda de um asteroide, que pode levar à extinção de muitas espécies vivas, incluindo a nossa. A queda de um meteorito de certas dimensões, vindo do nada, pode causar de forma mais ou menos instantânea estragos equivalentes aos da explosão de cem mil bombas atómicas de Nagasaki. Uma pandemia é um acontecimento que, para além de um número significativo de mortos, ainda leva algum tempo até causar destruição. Uma praga mundial não pode infetar todas as pessoas em poucas horas. Até mesmo a doença mais contagiosa requer um processo de transmissão que leva muitas semanas a dar a volta ao planeta – apesar do nosso mundo de viagens globais estar muito acelerado.

Ora, para combater a pandemia são necessárias estruturas ainda mais complexas, que começam nos cuidados intensivos e acabam numa vacina. Para além de consumir avultados recursos materiais e humanos, impede que a economia corresponda na resposta ao mesmo nível das necessidades. E então, para além da perda de vidas humanas, junta-se o problema da perda económica. Chegado a este ponto, as pessoas sofrem não apenas devido a uma sobrecarga de complexidade, mas também do stress psicológico. É a clássica dificuldade de adaptação a situações novas e extremas, que limitam a capacidade de resposta. Por isso, não nos admiremos que os sistemas de saúde de praticamente todos os países do mundo estejam a colapsar mais do que seria de esperar. E tanto mais se os serviços já estavam em défice antes de a pandemia ter chegado.

Toda esta complicação, que colocou os serviços de saúde praticamente exclusivamente concentrados no combate à covid-19, vai implicar que só muito mais tarde se vão recomeçar a tratar os casos que ficaram para trás, mas num nível muito mais baixo de exigência. Pode-se argumentar, naturalmente, que os avanços tecnológicos e as inovações científicas permitem superar as dificuldades. Por quanto tempo ainda? Ninguém sabe ao certo. A complexidade desta pandemia atingiu tais níveis ao ponto de não ter deixado incólume nenhum primeiro-ministro nem nenhum/a ministra/o da saúde. A perda de controlo por parte do líder é comum acontecer, e normalmente dá lugar a estruturas descentralizadas com o poder mais distribuído. Mas nem assim a situação deixa de ser mais precária. Uma falha numa das partes reverbera por toda a rede.

O regresso a uma forma de vida mais simplificada, isto é, reduzida apenas ao estritamente necessário a uma vida de subsistência, não é uma ideia capaz de cativar muita gente. O estilo de vida a que chegamos atingiu um ponto sem retorno pela via voluntária. E a coerção em democracia é impensável. Geralmente conhecemos alguma psicologia acerca do comportamento a título individual, mas falhamos muito em relação ao conjunto das propriedades sistémicas que resultam das interações entre as pessoas.
Um dos problemas nesta pandemia foi o sistema de saúde já estar depauperado em recursos humanos, o que colocou à prova a resiliência e a eficiência do sistema. Desta forma verificou-se que o sistema não estava à altura de responder a uma pressão desta natureza.

O "normal pós-covid-19", cuja pandemia ainda deve estar longe de desaparecer, enquadra-se naquele tipo de acontecimentos a que John Casti alude no seu livro de 2012 – X-Events: The Collapse of Eveything. Doravante teremos de rever a nossa forma de encarar o chamado estado de vida normal. É na ameaça ao nosso modo de vida moderno que o SARS-CoV-2 protagoniza um acontecimento-X. Definir uma probabilidade credível para a ocorrência de um acontecimento raro pura e simplesmente não é possível. Quando o normal já não era assim tão normal eis uma pandemia com um vírus novo cujas características implicaram estratégias nunca-antes experimentadas. Que eu saiba não houve nenhum governo no mundo que tenha previsto a pandemia, e mais do que isso, tomado alguma medida por antecipação de modo a controlar o acontecimento.

Os seres humanos estão hoje mais vulneráveis do que nunca a acontecimentos-X. As infraestruturas complexas das quais dependemos para a vida de todos os dias – os transportes, as comunicações, as redes de abastecimento de água e energia elétrica, os cuidados de saúde, só para referir alguns – são de uma fragilidade inacreditável, como nos é lembrado quando a mais pequena falha afeta o sistema de abastecimento. Quais são as causas desta fragilidade e da nossa consequente vulnerabilidade? Poderemos compreender estes acontecimentos-X e antecipar a sua chegada? Para responder a tais perguntas, precisamos de compreender pelo menos um pouco a(s) causa(s) que originam esses acontecimentos e saber ainda se essas causas estão inseridas no funcionamento das próprias infraestruturas ou se são alguma coisa que possamos prever e, até certo ponto, controlar.

A causa subjacente às catástrofes relacionadas com acontecimentos-X tem mais ligações com a complexidade crescente da nossa sociedade global, do que propriamente com os eventos genuinamente atribuídos à natureza. Por vezes a complexidade revela-se em camadas de burocracias sobrepostas que bloqueiam o sistema por elas próprias criado. O sistema deixa de funcionar por “sobrecarga de complexidade”, nos termos de John Casti. Outras vezes o problema da complexidade manifesta-se, não na infraestrutura, mas nas ligações entre várias infraestruturas que interagem por sistema. Outras vezes ainda é a incapacidade de entendimento por parte dos cidadãos da linguagem utilizada pelos seus governantes. Mas, em todos os casos, os sistemas com que contamos para a vida de todos os dias não podem funcionar se estiverem para lá da capacidade de compreensão de quem os controla. Quando o nível de complexidade ou o desequilíbrio se tornam superiores ao que o sistema pode suportar, é necessária uma redução de complexidade para retificar a situação. Um acontecimento-X é simplesmente a maneira que um sistema tem de restaurar um equilíbrio sustentável. É este processo de reequilíbrio que deve estar sempre presente nas nossas mentes. 
O que é verdadeiramente preocupante é que os sistemas em que se baseia o nosso estilo de vida do século XXI pura e simplesmente não são tão robustos como gostaríamos que fossem. 

Maradona




Uma multidão, milhões de pessoas por todo o mundo choram a partida de um Deus, um Herói que ao longo de alguns anos lhes proporcionou felicidade. E esse é o mistério do futebol que põe mais de meio mundo a venerar um ídolo. A felicidade com nada de especial, apenas um jogador num jogo de 10 contra 10 a correr atrás de uma bola para a meter dentro de uma gaiola onde está o 11, entre dois postes e uma trave, a tentar não a deixar entrar. O objetivo do jogo é esse, ganha quem meter mais vezes a bola dentro da gaiola durante o tempo regulamentar (45+45 minutos com 15 de intervalo, mudando de lado). Como é um jogo muito duro sem querer, com faltas e caneladas por querer, existem 4 fiscais a arbitrar o jogo.

As contradições de um homem cujo talento tanto o projetou para o estrelato, como o afundou em tragédia.

Por agora fico por aqui, embalado pela Ode ao futebol do Tossan:

Retângulo verde, meio de sombra meio de sol / Vinte e dois em cuecas a jogar futebol
Correndo, saltando, ziguezagueando ao som dum apito

Um homem magrito, também em cuecas / E mais dois carecas com uma bandeira
De cá para lá, de lá para cá / Bola ao centro, bola fora. / Fora o árbitro!

E a multidão, lá do peão / Gritava, berrava, gesticulava

E a bola coitada, rolava no verde / Rolava no pé, de cabeça em cabeça
A bola não perde, um minuto sequer / Zumbindo no ar como um besoiro,
Toda redonda, toda bonita / Vestida de coiro.

O árbitro corre, o árbitro apita / O público grita / Gooooolllllooooo! / Bola nas redes
E nas bancadas / Dropes, pirolitos, laranjadas
Asneiras, palavrões / Damas frenéticas, gordas esqueléticas / Esganiçadas aos gritos.

Todos à uma, todos ao um / Ao árbitro roubam o apito / Entra a guarda, entra a polícia
Os cavalos a correr, os senhores a esconder / Uma cabeça aqui, um pé acolá
Ancas, coxas, pernas, pé, / Cabeças no chão, cabeças de cavalo,
Cavalos sem cabeça, com os pés no ar / Fez-se em montão multidão.

E uma dama excitada, que era casada / Com um marinheiro distraído,
No meio da bancada que estava à cunha, / Tirou-lhe um olho, com a própria unha!
À unha, à unha!

Ânimos ao alto! / E no fim, / perdeu-se o campeonato!

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

No que é humano, há tanto de instintivo como de racional



Homo sum ; humani nihil a me alienum puto
(Sou um Homem, nada do que é humano me é estranho) 
[Públio Terêncio Afro]

Esta frase de Terêncio, escravo liberto que se tornou dramaturgo no tempo do Império Romano, exprime o processo de formação da consciência social e política tanto a nível individual como coletivo. 
O ser humano nunca existiu em estado de natureza pura, ou seja, pré-social. A ideia de que a humanidade começou por ser cada um por si, isolado, a interagir com os outros através da violência anárquica, como teorizou Hobbes, está errada. Rousseau também está errado com a ideia do bom selvagem a interagir pacificamente com outro bom selvagem. O ser humano, tal como os seus antepassados primatas, viveu sempre em grupo social de tamanho variável, assente no parentesco. Na verdade, em bandos sociais num período de tempo suficientemente longo para que as capacidades cognitivas e emocionais necessárias à promoção da cooperação social tivessem evoluído e ficado enraizadas na sua configuração genética. Isto significa que o modelo de cooperação é instintivo, ainda que seja temperado com cálculo racional.

Assim, a sociabilidade humana forma-se em torno de dois princípios: o do parentesco; e o do altruísmo recíproco. O princípio do parentesco sustenta que os seres humanos atuam naturalmente de modo altruísta para com os seus parentes genéticos, ou supostamente genéticos. O princípio do altruísmo recíproco vai ao encontro da interpretação de que à medida que os seres humanos vão convivendo em conjunto tendem a desenvolver não apenas relações de benefício, a regra, como por vezes de prejuízo mútuo, a exceção. A norma é o altruísmo recíproco ser gerado por relações de confiança. Porém, poderão aderir a outras formas mais impessoais, as chamadas instituições, se para tal houver incentivos. Mas quando as instituições impessoais entram em declínio, são sempre as formas de cooperação primária que voltam a emergir, porque elas são as que estão mais estruturalmente consolidadas por natureza. Ao longo do tempo, e em todo o lado, surgiram períodos de regresso ao princípio patrimonial natural, como por exemplo na China, na parte final da dinastia Han, em que os cargos burocráticos foram preenchidos pelas famílias dos governantes; na Turquia, quando os janízaros estenderam aos seus filhos a entrada nas suas fileiras; ou na França do Antigo Regime, quando os lugares para os cargos da administração eram transmitidos por via hereditária.  

É sabido que o instinto humano para o cumprimento de regras é suportado pelas emoções, e não pela razão. Emoções como a culpa, a vergonha, o orgulho, a raiva, o embaraço e a admiração não são comportamentos aprendidos por via da educação. Em vez disso, organizam-se espontaneamente logo à nascença, e à medida que se vai crescendo. É algo parecido com a língua falada, a língua nativa. Ainda que o conteúdo das regras seja convencional, e o vocabulário varie de sociedade para sociedade, a estrutura profunda das regras e a capacidade de as adquirir são naturais. A propensão dos seres humanos para obedecerem a regras é intrínseca à sua natureza. O que ajuda a compreender por que o conservadorismo se enraíza nas sociedades. As regras precisam de ser mudadas, à medida que as condições de vida evoluem, ou de ser alteradas para melhor se adaptarem a um conjunto específico de condições ambientais. Mas as sociedades são mais lentas a processar as mudanças devido à força desse enraizamento à tradição. Permanecem agarradas à tradição apesar de ter perdido a sua razão de ser por irrelevante ou inútil, e até disfuncional.

Por muito que custe aos adeptos de Rousseau, que defendem que no fundo no fundo o ser humano é todo bonzinho, a violência é uma característica intrínseca ao ser humano. Desde os primeiros primatas até ao homo sapiens sapiens dos dias de hoje, a violência de uns contra os outros esteve sempre presente em qualquer lugar. Ao contrário do que sugeria Rousseau, a propensão para a violência não foi um comportamento adquirido, ou que tenha emergido apenas num dado momento da história humana. Encarado como um defeito de fabrico, ou não, se teve que ser para a espécie não se extinguir, sempre tiveram de ser criadas instituições sociais para controlar e canalizar a violência. Na verdade, uma das preocupações principais de qualquer governo, é de cuidar das instituições indispensáveis para a manutenção e controlo da ordem pública, bem como à permissão de atividades de catarse que agregam as pessoas à prática da violência pela via lúdica. Em diversos aspetos, as normas e instituições do mundo contemporâneo vieram pôr cobro à violência enquanto meio de resolver os impasses políticos. Ninguém espera, ou pretende, que os países da África Subsariana atravessem o mesmo tipo de processos seculares experimentados pela China ou pela Europa, de forma a gerar Estados fortes e consolidados. Isto significa, ou que o fardo da inovação e reforma institucional recairá sobre outros mecanismos não-violentos semelhantes aos que descrevi acima, ou que as sociedades continuarão a atravessar o declínio político. 

Mas encarando as coisas como elas são, nem tudo é mau, os seres humanos, por natureza, desejam não só recursos materiais, mas também reconhecimento. O reconhecimento é a perceção do valor ou dignidade de outro ser humano, ou daquilo que é entendido de outra forma como estatuto. As lutas pelo reconhecimento ou pelo estatuto têm frequentemente uma característica distinta das lutas pelos recursos, uma vez que o estatuto é relativo, e não absoluto. Só se pode ter um estatuto elevado caso todos os outros o reconheçam e aceitem estar mais abaixo. As lutas em torno do estatuto relativo são de soma nula e, nelas, os ganhos de um protagonista são as perdas de outro. Nos séculos V e VI as tribos árabes conseguiram resolver as suas divergências e conquistar grande parte do Norte de África e do Médio Oriente porque procuraram o reconhecimento da sua religião. O islão impôs-se de forma muito semelhante ao cristianismo quando os guerreiros europeus conquistaram o Novo Mundo sob o lema da evangelização. Foi o que se passou em tempos mais recentes com a democracia. Será difícil de compreender a ascensão da democracia moderna em todo o mundo se não for enquadrada na exigência do reconhecimento do seu estatuto. 

A Inglaterra passou gradualmente por essa exigência de reconhecimento. E os Estados Unidos da América chegaram a cair no erro de querer impor a democracia em certas partes do globo onde há milénios haviam florescido grandes civilizações. E se não iam a bem iam a mal, inclusivamente invadindo os seus territórios. A capacidade das sociedades para inovar a nível institucional depende de conseguirem neutralizar os interesses políticos instalados que detêm o poder de veto sobre as reformas. Por vezes a transformação económica enfraquece a posição das elites existentes em favor de novas elites, que se batem por novas instituições. O relativo declínio dos rendimentos da propriedade fundiária, quando comparados com os do comércio ou da manufatura em Inglaterra, reforçou a burguesia e permitiu-lhe obter ganhos políticos à custa da velha aristocracia no século XVII. Por vezes, novos atores sociais são reforçados pela ascensão de novas ideologias religiosas. Não é completamente claro se as sociedades democráticas conseguem sempre resolver este tipo de problemas pacificamente. Nos Estados Unidos, durante o período que conduziu à Guerra Civil, uma minoria de norte-americanos no Sul procurou apaixonadamente defender a sua «peculiar instituição» da escravatura. As regras institucionais existentes, segundo a Constituição, permitiam-lhes fazê-lo, desde que a expansão do país rumo ao Oeste não conduzisse à admissão de estados livres suficientes para ultrapassar o seu veto. O conflito acabou por ser impossível de resolver segundo a Constituição e necessitou de uma guerra que tirou a vida a mais de 600 000 norte-americanos. 

É importante resistir à tentação de reduzir a motivação humana a um desejo económico de recursos. A violência ao longo da história humana foi frequentemente empregue por pessoas que buscavam não riqueza material, mas reconhecimento. Os conflitos prosseguem muito para além do ponto em que têm sentido a nível económico. É impossível desenvolver uma teoria sólida do desenvolvimento político sem considerar as ideias como causas fundamentais pelas quais as sociedades se diferenciam e seguem caminhos de desenvolvimento distintos. As pessoas criam modelos mentais da realidade em todas as sociedades humanas. Estes modelos mentais atribuem causalidade a diversos fatores – muitas vezes invisíveis – e a sua função é tornar o mundo mais legível, previsível e fácil de manipular. 

Nas sociedades primitivas, essas forças invisíveis eram espíritos, demónios, deuses ou a natureza. Todas as crenças religiosas constituem um modelo mental da realidade, no qual os acontecimentos observáveis são atribuídos a, ou provocados, por forças inobserváveis ou difíceis de identificar. Os modelos mentais e as regras estão intimamente relacionadas, uma vez que os modelos sugerem frequentemente regras claras que as sociedades devem seguir. As religiões são mais do que meras teorias; são códigos mentais prescritivos que procuram aplicar regras aos seus seguidores. A universalidade da crença religiosa em praticamente todas as sociedades humanas conhecidas sugere que ela está de algum modo enraizada na natureza humana. Tal como a linguagem e a obediência às regras, o conteúdo das crenças religiosas varia de sociedade para sociedade. Mas, sendo a capacidade de criar doutrinas religiosas inata, não significa que tenha de haver um gene da religião. 

Os modelos mentais partilhados, como é o caso das religiões, são decisivos na facilitação da ação coletiva em grande escala. A ação coletiva baseada apenas no interesse próprio racional é completamente inadequada para explicar o grau de altruísmo e de cooperação social efetivamente existente no mundo. As crenças religiosas ajudaram a motivar as pessoas para coisas que não desejariam fazer se estivessem interessadas apenas em recursos ou no bem-estar material. A partilha de crenças e de cultura favorece a cooperação, pois oferece objetivos comuns e facilita a cooperação para a solução de problemas partilhados.

É assim verdade que a religião, num contexto histórico mais amplo, foi um fator decisivo que permitiu uma cooperação social mais ampla, capaz de transcender o parentesco e a amizade enquanto fonte de relações sociais. No entanto, não podemos ignorar as guerras religiosas do passado, e ainda o conflito religioso no mundo contemporâneo protagonizado por um setor radical cada vez mais significativo de uma certa religião hostil, não apenas para com outras religiões, mas também com superior hostilidade e intolerância contra ateus e agnósticos da cultura europeia laica. Tendo sido esta marcada pela ideologia secular marxista-leninista, se bem que com um tipo de influência de cariz semelhante a uma religião. A substituição de crenças religiosas por ideologias, teve o mesmo e diversos efeitos nas sociedades contemporâneas, igualmente destrutivas pela forma inflamada como as convicções se transmitiram.
Pensadores como Karl Marx e Émile Durkheim, compreendendo o papel utilitário desempenhado pelas crenças religiosas na unificação das comunidades (quer se trate do conjunto da comunidade quer se trate de uma classe social específica), pensaram que a religião havia sido por isso criada deliberadamente com esse objetivo. A religião nunca pode ser explicada simplesmente através da referência às suas condições materiais prévias. Os pressupostos metafísicos específicos subjacentes a essa religião são altamente complexos e sofisticados, e é um erro tremendo procurar relacioná-los detalhadamente com as condições económicas e ambientais específicas.

A passagem de sociedades estruturadas em bando e em tribo para sociedades com Estado representou, de certa forma, um enorme recuo para a liberdade humana. Os Estados eram mais ricos e mais poderosos do que os seus antecessores baseados no parentesco, mas essa riqueza e poder conduziu a uma enorme estratificação: de um lado, senhores; e do outro, escravos. Hegel afirmaria que o reconhecimento concedido a um governante numa sociedade tão desigual era incompleto e em última medida insatisfatório para os próprios governantes, por provir de pessoas a quem faltava dignidade. A ascensão da democracia moderna concede a todas as pessoas a oportunidade de se governarem a si próprias, na base do reconhecimento mútuo da dignidade e dos direitos dos seus congéneres humanos. Procura assim restaurar, no contexto de sociedades amplas e complexas parte daquilo que se perdeu na transição original para o Estado. A competição é decisiva para o processo de desenvolvimento político, tal como acontece na evolução biológica. Se não houvesse competição, não existiria uma pressão seletiva sobre as instituições e não existiriam incentivos à inovação institucional, nem à sua partilha ou à sua reforma. Entre as mais importantes pressões competitivas que conduziram à inovação institucional encontram-se a violência e a guerra. A transição da organização em bando para a organização em tribo tornou-se possível em virtude de uma maior produtividade económica, mas foi diretamente motivada pela superior capacidade de mobilizar mão de obra revelada pelas sociedades tribais.

As verdadeiras raízes históricas de diferentes instituições parecem frequentemente ter sido o produto de uma longa combinação de acidentes históricos que seria impossível prever. A ideia pode parecer desencorajadora, uma vez que não se pode esperar que uma sociedade contemporânea adotasse exatamente a mesma sequência de acontecimentos até chegar a instituições semelhantes. A fonte histórica específica de uma instituição é menos importante do que a sua funcionalidade. Uma vez descoberta, pode ser imitada e utilizada por outras sociedades de formas completamente impossíveis de antecipar. As instituições desenvolvidas são mais complexas por estarem sujeitas a uma maior divisão do trabalho e especialização. Numa chefatura ou num Estado primitivo, o governante pode ser simultaneamente um general militar, um líder sacerdotal, um cobrador de impostos e o Supremo Tribunal de Justiça. Num Estado altamente desenvolvido, todas estas funções são desempenhadas por organizações distintas, com funções específicas e um elevado grau de capacidade técnica para as desempenhar.

A autonomia está intimamente relacionada com a especialização, razão pela qual tende a caracterizar as instituições mais desenvolvidas. Um exército autorizado a controlar as suas próprias promoções internas tenderá a desempenhar melhor as suas funções, caso todas as outras condições permaneçam iguais, do que um exército no qual os generais são nomeados segundo critérios políticos. Se existe um processo dinâmico através do qual a competição entre instituições gera o desenvolvimento político, existe também um processo correspondente de declínio político, através do qual as sociedades se tornam menos institucionalizadas. As instituições são criadas inicialmente para fazer face aos desafios competitivos de um determinado meio ambiente. Esse ambiente pode ser: físico - consistindo em terras, recursos, clima e geografia; ou social - envolvendo rivais, inimigos, competidores, aliados e outros semelhantes. Noutras alturas, é a mera força da liderança e a capacidade de formar coligações vencedoras entre os grupos excluídos do poder que conduzem às transformações. É esta, na verdade, a essência da política: a capacidade dos líderes de concretizar os seus objetivos através da combinação de autoridade, legitimidade, intimidação, negociação, carisma, ideias e organização.

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

O primado do Direito na construção dos Estados Modernos na Europa Ocidental


A União Europeia está confrontada com um dilema existencial que, mais tarde ou mais cedo, terá de resolver. Durante demasiado tempo tentou ignorar o caminho populista de dois Estados-membros. Já havia regras nos tratados – nomeadamente, o Artigo 7.º do Tratado de Lisboa – que tentavam antecipar uma deriva antidemocrática de um ou mais países. Havia um debate, sobretudo interno ao PPE, que reúne os partidos de centro-direita europeus, sobre o que fazer um dos seus membros – o Fidesz de Viktor Orbán. Prevaleceu um sentimento de complacência, numa atitude muito europeia de esperar que o problema acabe por desaparecer por si. Pode ser uma regra aceitável numa comunidade com 27 Estados soberanos. Deixa de o ser quando o que está em causa são os princípios fundadores da integração europeia, claramente expressos na letra dos Tratados. A Europa comunitária é uma união de democracias liberais, que assenta no respeito pelos direitos humanos, pelas minorias e pelo Estado de direito. A própria União distingue-se de todas as outras organizações internacionais por assentar num conjunto de normas comuns que os seus membros, para poderem ser membros, se comprometem a aceitar. [Teresa de Sousa]

A sociedade europeia é individualista desde os primórdios, no sentido em que os indivíduos, e não as suas famílias ou grupos de parentesco, podiam tomar decisões importantes relativas ao casamento, à propriedade e a outros assuntos pessoais. O individualismo a nível familiar é o fundamento de todos os outros individualismos. O individualismo não esperou pela emergência de um Estado que estipulasse os direitos legais dos indivíduos e utilizasse o seu poder coercivo para os garantir. Em vez disso, os Estados formaram-se em sociedades nas quais os indivíduos já desfrutavam de uma considerável liberdade relativamente às obrigações sociais de parentesco. Na Europa, o desenvolvimento social precedeu o desenvolvimento político. 

O padrão matrimonial na Europa Ocidental, depois da sua estabilização após a queda do Império Romano a Ocidente, processou-se de maneira diferente de praticamente todas as outras partes do mundo. Na Europa Ocidental, tanto os homens como as mulheres tendiam a casar-se mais tarde. E existia um número global mais elevado de indivíduos que nunca casavam. Ambos os casos determinavam taxas baixas de natalidade. Existiam também mais mulheres jovens no mercado de trabalho e uma maior igualdade entre famílias, devido ao facto de as mulheres, em virtude do seu casamento tardio, terem mais oportunidades de adquirir propriedades. Este padrão está bem documentado para o período entre 1400 e 1650. Mas quando é que ocorreu o abandono do parentesco na estrutura governativa por parte dos europeus e, se não foi política, qual a força motriz por trás dessa transformação? Esse abandono ocorreu nas tribos germânicas quando, para lidar com a herdeira do Império Romano – a Igreja Cristã em Roma – se converteram ao Cristianismo. As tribos germânicas, normandas, magiares e eslavas viram as suas estruturas de parentesco dissolvidas no espaço de duas gerações após a sua conversão ao Cristianismo.

É claro que todos os povos ancestrais dos atuais europeus estiveram nos tempos primordiais organizados de maneira tribal. As suas formas de parentesco, leis, costumes e práticas religiosas começaram a ser documentados pelos estudiosos do século XIX que vieram depois a dar em antropólogos. Todos eles eram comparatistas com um vasto conhecimento de diferentes culturas. E todos eles repararam nas semelhanças da organização agnática (linhagem masculina) do parentesco entre sociedades tão distantes umas das outras como a hindu, a grega e a germânica. Ou seja, uma numerosa família a que os linguistas cunharam com a designação de “indo-europeus”. A designação ‘agnática’ quer dizer que a linhagem da descendência é alinhada pelo lado paterno. Geralmente, envolve a herança de propriedades, nomes, ou títulos através da linha masculina.

Na Europa, o abandono do parentesco complexo ocorreu primeiro a nível social e cultural, em vez de a nível político. Ao alterar as regras do casamento e das heranças, a Igreja atuou, de certa forma, politicamente e por razões económicas. Mas a Igreja não detinha a soberania sobre os territórios em que atuava; era, em vez disso, um ator social cuja influência residia na sua capacidade de definir regras culturais. Na Europa medieval, antes de ter começado o processo de construção do Estado Moderno por via da Reforma, do Iluminismo e da Revolução Industrial, já se encontrava em formação uma sociedade muito mais individualista do que em qualquer outra parte do mundo.

A mudança a nível da família foi provavelmente uma condição facilitadora para que a própria modernização pudesse ocorrer. Uma economia capitalista emergente em Itália, Inglaterra e nos Países Baixos no século XVI não teve de superar a resistência de grandes grupos de parentescos organizados corporativamente e com patrimónios substanciais a defender, como aconteceu na Índia, China e Médio Oriente, onde a família e o parentesco ainda hoje continuam muito fortes. Ainda existem linhagens segmentárias integrais em Taiwan e no Sul da China. Os casamentos na Índia continuam a ser mais uma união entre famílias do que entre indivíduos. E a filiação tribal permanece omnipresente no Médio Oriente árabe, particularmente entre os povos de origem beduína. O Estado turco foi extremamente bem-sucedido na redução da influência da organização tribal no interior da Anatólia e dos Balcãs, mas muito menos nas províncias árabes, onde governou de forma mais moderada. Na verdade, o Estado Otomano exerceu escassa autoridade sobre as comunidades beduínas periféricas, cuja organização tribal permaneceu intocada até aos dias de hoje.

Ora, no caso da Europa do centro norte e leste, como é o caso da Polónia e da Hungria, não significa que os construtores destes Estados se movessem num terreno livre de instituições sociais entrincheiradas. Não existiam clãs nem tribos, mas existia uma nobreza de sangue que havia acumulado riqueza, poder militar e estatuto legal durante o período feudal. O facto de essas instituições sociais serem feudais, em vez de baseadas no parentesco, fez uma enorme diferença para o desenvolvimento político europeu posterior. A relação feudal de vassalagem era um contrato estabelecido voluntariamente entre um indivíduo mais forte e outro mais fraco, que prescrevia obrigações legais a ambas as partes. Ainda que formalizasse uma sociedade altamente desigual e hierárquica, avançou em todo o caso precedentes tanto para o individualismo (uma vez que os contratos eram estabelecidos entre indivíduos e não entre grupos de parentesco), como para o alargamento do entendimento do que era a personalidade jurídica. 

Ora, o orçamento da União é um tema delicado para o sr. Orbán. Foi com ele que o seu pai ficou multimilionário, que o seu genro ficou multimilionário, que o seu irmão ficou multimilionário, e que vários dos seus amigos de infância se tornaram os homens mais ricos da Hungria, numa verdadeira concentração de talento empreendedor só possível com a proximidade ao homem que distribui no país o dinheiro que nós, com os nossos impostos, pagamos à União. É absolutamente necessário para Orbán que as coisas continuem como estão, e por isso estará disposto a vetar tudo até que tenha as garantias de que não há mecanismo de Estado de direito, artigo 7 ou quaisquer condições políticas ao uso do dinheiro (mas ele continuará a apoiar que outros países sejam sujeitos a procedimentos apertados por umas décimas de défice). [Rui Tavares]

A substituição das instituições locais assentes no parentesco pelas instituições feudais teve um impacto político importante na eficácia do governo local. Tanto as linhagens como as instituições feudais assumiam uma função de soberania e governação em diversos domínios, particularmente quando os Estados centrais eram fracos. Podiam providenciar segurança a nível local, bem como administrar a justiça e organizar a vida económica. As instituições feudais eram inerentemente mais flexíveis, por estarem baseadas no contrato, e eram capazes de organizar a ação coletiva de forma mais eficaz, por serem menos hierárquicas. A partir do momento em que eram legalmente estabelecidos, os direitos de um senhor feudal não eram sujeitos a renegociações constantes, como acontecia com a autoridade no interior da linhagem.

O direito legal à propriedade, quer fosse detido pela parte forte quer pela parte fraca, incluía claramente o poder de o comprar ou de o vender, sem os limites impostos por um sistema social baseado no parentesco. Um senhor local podia falar decisivamente em nome da comunidade que representava, de uma forma que um líder tribal não podia. Um erro cometido habitualmente pelos colonizadores europeus em África e na Índia foi presumir que a liderança tribal equivalia à autoridade de um senhor local numa sociedade feudal, quando estas eram efetivamente muito diferentes.

Mas, porque é que certos valores religiosos, como é o caso na Polónia, são promovidos ainda hoje? Tal deve-se à forma como se enraizou originalmente. A Igreja Católica é o exemplo paradigmático, ao ter conseguido desmantelar o sistema de parentesco alargado, apesar de não resultar diretamente da doutrina cristã. A Igreja Ortodoxa Oriental de Constantinopla não fez qualquer esforço semelhante para alterar as leis do casamento e da herança. O facto de essas instituições terem desaparecido na Europa Ocidental esteve muito mais relacionado com interesses materiais e de poder da própria Igreja, cujo controlo sobre os valores sociais foi usado em benefício próprio.

A Igreja Católica acabou por ser institucionalizada, enquanto ator político independente, a um nível muito superior ao das autoridades religiosas na Europa norte-oriental. A influência oriental nunca desenvolveu uma religião autóctone mais sofisticada do que a adoração de antepassados. A religião servia como instrumento de limitação do poder político. A autoridade religiosa nunca se consolidou numa única instituição burocrática centralizada fora da esfera do Estado. A forma como as coisas evoluíram na Europa Ocidental prende-se com aquilo a que chamamos hoje o primado do Direito. A propriedade privada emergiu não só devido a razões económicas, mas também porque as linhagens necessitavam de um sítio onde enterrar os seus, e tranquilizar-lhes a alma.

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Um leigo numa tertúlia de astrofísicos e cosmólogos


Na infância todos fazemos perguntas do género: Porque é que o céu é azul e não é verde; Porque é que caímos para baixo e não para cima; porque há coisas quentes e frias; etc. Nessa altura da vida somos cientistas natos. A curiosidade é uma aptidão inata. Mas mal entramos na Escola, essa curiosidade inata começa a ser-nos retirada porque é preciso aprender o que está, para mais tarde conseguirmos arranjar um emprego, casar, ter filhos, ganhar dinheiro para educar os filhos, ganhar dinheiro para os medicamentos, ganhar dinheiro para uma residência sénior, ganhar dinheiro para pagar ao cangalheiro. Paramos de fazer perguntas para podermos pagar as contas, sem o que não funcionaríamos de todo.

No mundo especializado da ciência moderna, e no que respeita à ciência fundamental, como é o caso das ciências cósmicas, estes cientistas costumam ser honestos dizendo que o que lhes interessa é saber como funciona este Universo. No seu trabalho não estão preocupados com as doenças ou com a felicidade humana. Quando muito aceitam dizer que se daí resultar um dia a cura do cancro ou da doença de Alzheimer, foi um efeito secundário meramente casual. A paixão pela ciência deriva de uma sensibilidade estética, não de uma sensibilidade prática. Apreender a “simetria quebrada, escondida da nossa vista por um campo que permeia o espaço”, é tão maravilhoso como apreender um poema de Sophia de Mello Breyner Andresen, ou uma pintura de Amadeo de Souza-Cardoso. Descobrimos algo novo sobre o mundo, e isso permite-nos apreciar melhor a sua beleza. 



Os papeis da ciência experimental e teórica tornaram-se bastante distintos, particularmente em física de partículas. Os teóricos, entre os quais há um nome que todos conhecem – Einstein, têm sido demasiado bons. E quem o diz são os físicos das máquinas, os experimentalistas, que têm passado a vida desde Einstein a comprovar que os teóricos estavam certos. O desafio dos físicos engenheiros tem sido mais ao nível da construção das máquinas e do engenho experimental para provar que afinal os físicos teóricos estavam certos.

Os engenheiros, no entanto, não têm estado a dormir. O que têm feito também não tem sido coisa pouca. As máquinas melhoraram a passos largos o domínio daquilo que parecia inalcançável há bem pouco tempo. O Grande Colisionador de Hadrões permite a colisão de partículas umas contra as outras com uma energia nunca-antes alcançada pela humanidade. Nem imaginada.

Hoje os teóricos de partículas rabiscam equações em quadros de lousa enormes até encontrarem um padrão. E depois os das experiências vão copiá-las para as testar. Daí é extraída a primeira conclusão: funciona ou não funciona. Os melhores teóricos acompanham de perto as experiências. E os melhores experimentalistas dão palpites aos teóricos. Mas ninguém é mestre nas duas coisas. As teorias científicas, no início, é como se fossem postas num pedestal. E depois é lançado o desafio aos práticos para ver se as conseguem refutar. É esse o primeiro caminho experimental, antes de saberem o que podem fazer com elas. Foram raros aqueles que ficaram famosos por terem demonstrado experimentalmente que a teoria estava certa. E hoje todos os dias lidamos com coisas, como por exemplo os telemóveis, e nem damos conta de quanta teoria física e tanto trabalho experimental está por trás desse banal objeto. A fama ficou com quem a teorizou primeiro. Mas alguns experimentalistas tornaram-se famosos por terem deitado abaixo teorias canónicas.

A astrofísica não deve ser confundida com a cosmologia, pois esta ocupa-se da estrutura geral do universo e das leis que o regem num sentido mais amplo. Embora ambas muitas vezes sigam caminhos paralelos, frequentemente considerado como redundante, há diferenças quanto ao objeto de estudo. A astrofísica reúne físicos e astrónomos em que predomina a física teórica com as suas leis aplicadas às estrelas e galáxias pela física observacional. Algumas áreas de estudo para astrofísicos incluem suas tentativas para determinar as propriedades da matéria escura, energia escura e buracos negros. Ao passo que a cosmologia, mais um ramo da astronomia do que da física, interessa-se mais pela origem do Universo e a sua evolução numa perspetiva mais metafísica e especulativa, embora respeite todo o rigor do método científico. Por outro lado, os cosmólogos são os herdeiros dos precursores: Copérnico e Newton, de um tempo em que ainda não havia propriamente físicos a estudar os corpos celestes e as suas leis.

A partir do início do século XX, com a teoria da relatividade de Albert Einstein, surgia a cosmologia moderna, com um artigo de 1917: "Kosmologische Betrachtungen Zur Allgemeinen Relativitätstheorie" (Considerações cosmológicas sobre a teoria da relatividade geral). Nesse trabalho, Einstein analisava, sob a luz da relatividade, o universo como um todo, introduzindo o conceito de constante cosmológica. A cosmologia física com o desenvolvimento de novos telescópios, ainda no início do século XX, foi possível estudar o universo em escalas então inexploradas. Um pioneiro no estudo sistemático das galáxias além da nossa Via Láctea foi o americano Edwin Hubble, que notou que a maioria das galáxias parecia estar a afastar-se da nossa, e que a velocidade de afastamento aumentava com a distância da galáxia em relação à nossa. Tal observação, confirmada posteriormente, tornou-se uma lei empírica, conhecida hoje como lei de Hubble, e era uma 'prova' experimental da expansão do universo: as galáxias afastam-se umas das outras devido à expansão do espaço entre elas.

A física de partículas tem as suas raízes nos atomistas da Grécia antiga. Matéria e Energia representavam arranjos diferentes de um pequeno número de átomos fundamentais. Nesses tempos não se chamavam cientistas, mas filósofos. E o alto conhecimento também não estava compartimentado. Estavam tão interessados em saber o que era a realidade, bem como seria o sentido de uma vida ética antes da morte. Tinham a noção que também eles eram parte do Universo. Faziam perguntas do género: “Se a realidade é simplesmente uma ação combinada dos átomos, onde podemos encontrar o propósito e o significado de tudo isto?”

Tudo isto pode ser fácil de dizer, mas como é que estes cientistas dizem que tudo é feito do mesmo quando umas coisas são duras e outras são moles; umas são leves, outras são pesadas; umas são líquidas, outras são gasosas; umas são transparentes, outras são opacas; umas estão vivas, outras não? Para os Antigos – gregos, babilónios, chineses – eram cinco as coisas de que tudo era feito: terra, água, ar, fogo, e um quinto elemento (éter ou quintessência). Aristóteles desenvolveu estas ideias, sugerindo que cada elemento procura um estado natural particular, como por exemplo a terra tender a cair e o ar tender a subir. Misturando os elementos em diferentes combinações, poderíamos explicar todas as diferentes substâncias que vemos à nossa volta. Demócrito, um filósofo grego anterior a Aristóteles, fez a sugestão original de que tudo o que conhecemos é composto por determinadas peças minúsculas indivisíveis, às quais chamou átomos. Dois mil trezentos e noventa anos depois da morte de Demócrito estou aqui agora a dizer que o átomo é divisível, consistindo de um núcleo de protões e neutrões à volta do qual orbita um certo número de eletrões. E que os protões e neutrões ainda são divisíveis por partículas mais pequenas designadas quarks. Isto até parece que estou a brincar, não estarei a exagerar? Só precisamos de três partículas elementares para obter qualquer coisa, como um ser humano, ou um vírus: eletrões, quarks up e quarks down? 

Bem, há, na realidade, 12 tipos de matéria, e mais um grupo de partículas mediadoras de forças que as juntam todas umas às outras: 6 quarks que interagem fortemente e ficam confinados dentro de conjuntos maiores como os protões e neutrões; 6 leptões que conseguem viajar individualmente pelo espaço. Não é a imagem mais arrumada do mundo, quando metemos estes tipos todos de partículas num saco, misturamos bem, e depois tanto podemos tirar de lá pedras, gatos ou carros. E bate tudo certo com dados experimentais.

E a matéria negra e a energia escura? E Deus? Ah! Tinha-me esquecido de dizer que os astrofísicos e cosmólogos de agora são todos ateus. Mas, entretanto, os experimentalistas confirmaram que o bosão de Higgs existe mesmo. E os teístas vieram logo a correr e dizer que o bosão de Higgs era a partícula de Deus. O bosão de Higgs era uma partícula diferente, uma espécie de patinho feio. Em termos técnicos é uma partícula mediadora de forças, mas diferente das outras. Do ponto de vista de um físico de partículas, o bosão de Higgs parece um suplemento arbitrário e caprichoso. Se não fosse ele o Universo até seria uma estrutura bela. Assim, é uma enorme confusão, mas bate certo! 

Lederman, um dos grandes físicos experimentais do mundo, que ganhou o Prémio Nobel da Física em 1988, por ter descoberto que existe mais de um tipo de neutrinos, é tido como o culpado de os crentes em Deus terem chamado ao bosão de Higgs a partícula de Deus. De facto, é o título de um livro cativante sobre física de partículas e o bosão de Higgs que escreveu em parceria com Dick Teresi. E Lederman explicou que usaram aqui a expressão “partícula de Deus” porque o editor não gostou da expressão original que era “partícula Maldita”. Peter Higgs, de quem provém o nome canónico, disse com uma gargalhada: “Fiquei realmente irritado com aquele livro. E penso que não fui o único.” Os físicos têm uma relação complicada e longa com Deus. Lederman usou o conceito de Deus como uma metáfora conveniente. Quando falam metaforicamente de Deus, os físicos estão simplesmente a ceder à natural tendência humana para antropomorfizar o mundo físico. E do ponto de vista do marketing, ao fazer arregalar os olhos de gente crente comum, dá jeito para vender livros.

Foram precisos milhares de cientistas: para construir o Grande Colisionador de Hadrões; para fazer as experiências; para analisar os dados. Para no fim se descobrir que afinal o bosão de Higgs existe. E que se concluiu, quarenta anos depois, que o físico teórico Peter Higgs, afinal estava certo. Mas os físicos experimentais só lhe deram razão 40 anos depois, tempo durante o qual todos os cientistas do mundo duvidavam se era verdade o que Higgs afirmava. A 4 de julho de 2012, poucas horas depois dos seminários que anunciaram a descoberta do bosão de Higgs, Lyn Evans foi questionado sobre como esperava que os jovens recebessem as notícias: “Inspiração. Estes grandes projetos têm de ser inspiradores para que os jovens amem a ciência. É essencial entusiasmar os jovens pela ciência”.

quinta-feira, 19 de novembro de 2020

Doação + autoestima = felicidade



Este artigo é mais um ensaio encabeçado por uma pergunta: Como se pode saber ser feliz? 

Os autores que estudam o tema da felicidade dizem que não é a saúde nem a riqueza material que faz as pessoas serem mais felizes. Então o que sará?

Bem, serão várias coisas relacionadas com a qualidade de vida, com a liberdade, a autoestima, independência pessoal e muito mais. Comecemos, por exemplo, pela capacidade de controlar a própria vida e ter boas relações com as outras pessoas, a começar pela família e amigos. Mas não devem ser entendidas como meios para a felicidade, como se a felicidade fosse uma coisa ou um fim. Não faz sentido procurar a felicidade diretamente. Em vez disso a amizade, o gosto profissional, a probidade e sei lá que valores é que valem como fins por si, e a felicidade é obtida indiretamente, como de fosse um efeito secundário. Os nossos propósitos estarem focados na procura da felicidade é como se estivéssemos à procura do Ser e o Nada, um erro, portanto - uma utopia, uma ilusão, ou o que lhe quisermos chamar. A felicidade é uma coisa que nos assalta no percurso do caminho da prática de certos valores. 
E também não faz sentido perguntar se somos felizes, porque automaticamente deixamos de o ser. 

Epicuro é um daqueles clássicos gregos a que os filósofos gostam de evocar quando começam a discorrer sobre o tema da felicidade. Ele recomendou uma vida simples, a melhor forma de evitar sofrimento e angústias. Os Estoicos são outros que tal, ao acrescentarem que um homem sábio não depende de coisas, e de nada que não consiga controlar, como riqueza, a saúde e opinião que os outros possam ter a nosso respeito. Em contrapartida, são qualidades pessoais interessantes para a felicidade, para além do otimismo e o bom feitio, capacidades performativas tais como: adaptação a novas situações; competência na resolução de problemas; empatia relacional. Não é pelo facto de sermos finitos que vamos deixar de ser felizes, e deixar de encontrar um sentido para as nossas vidas. 

A religião ao longo da História, tem sido o pouco a que as pessoas comuns, que não são filósofos, se costumam agarrar com o fito de serem felizes. Mas de que modo a religião nos pode ajudar nisso? Esta pergunta revela-se enigmática, porque parte do princípio que a nossa vida é controlada por uma força estranha, sobrenatural. Ora, para que um sentido de vida não seja absurdo terá que ser encontrado e depois oferecido por cada um a si próprio. O melhor que podemos dizer é que cada vida tem o seu próprio sentido particular e que nos compete a nós dar sentido à nossa vida, e a mais ninguém. Uma pessoa determina o sentido da sua vida particular adotando os valores pelos quais ela pensa que vale a pena viver. Há, com certeza, valores que qualquer pessoa pode subscrever: ter relações pessoais amistosas; viver uma vida consistente com os seus talentos e orgulhar-se com o que faz; gostar de aprender e de compreender como as coisas são; contribuir para um mundo melhor.

Um exemplo por ser muito conhecido: Bill Gates -  tendo aparecido várias vezes em primeiro lugar, ao longo das últimas duas décadas no ranking dos indivíduos mais ricos do mundo. E, todavia, afirma que aceita a ideia de que o dinheiro não pode comprar a felicidade. Sendo uma pessoa racional, começou a fazer doações à ciência no sentido de esta se empenhar na descoberta de medicamentos que tenham como efeito nada menos que a cura de doenças que ainda hoje matam milhões de crianças nas latitudes mais pobres do planeta. Bill Gates não é caso único, é claro, mas funciona como paradigma, ou um protótipo quando abordamos estas questões do dinheiro, da riqueza e da felicidade. Muitos dos doadores confiam mais na sua livre iniciativa para fazerem beneficência como grandes mecenas, do que entregar esse dinheiro ao Estado através dos impostos, e deixar as decisões e escolhas à mercê da classe política. E isto porque atribuem as suas altas capacidades para enriquecer mais a si próprios do que à sorte, confiando mais nas suas capacidades racionais do que emocionais. 

Ora, esta ideia desses grandes mecenas parece paradoxal, porque intuitivamente somos levados a pensar que o altruísmo e a generosidade estão mais ligados à emoção do que à razão. A expressão “pessoa de bom coração” é a expressão que mais se utiliza para referenciar as boas ações das pessoas, que andam associadas mais aos afetos do que aos raciocínios. Mas, todavia, os factos mais recentes dos doadores de órgãos e de fortunas indiciam o contrário.

Melhorar a autoestima e ser mais feliz é isso, é dar. Há como em tudo na vida humana, verdadeira gente humana que não faz por menos: doar um rim, doar metade do fígado a outra pessoa que nem conhecem. A autoestima racional é um elemento importante da felicidade, dizem os especialistas em ética que têm estudado estes casos. Dizem eles que são as crenças racionais sobre o mundo que melhor orientam as pessoas para aquilo que devem fazer, nomeadamente para bem dos seus próprios interesses.

As decisões éticas corretas são aquelas que toda a gente com bom senso compreende que não faria sentido ser de outra maneira. Não existe forma melhor do que o pensamento ponderado com razão e bom juízo. É verdade que nada do que venho expondo explica o que são os valores razoáveis. Mas, para uma longa linhagem de filósofos que remonta pelo menos até Aristóteles, a autoestima é uma coisa verdadeiramente sentida em bases concretas. É pela racionalidade que chegamos à conclusão que somos todos iguais, que os outros são como nós, em que as suas vidas e o seu bem-estar são tão importantes quanto os nossos. Por conseguinte, a pessoa racional sabe que a sua autoestima melhora se também se preocupar com o bem-estar e os interesses também dos outros. A base mais sólida da autoestima é viver uma vida com ética, uma vida em que a pessoa contribua o mais possível para um mundo. E por mais estranho que possa parecer, o verdadeiro altruísta é aquele que considera que para o ser não precisa de fazer nenhum sacrifício. Não é um verdadeiro altruísta aquele que tem necessidade de perguntar a Jesus: "Mestre, o que devo fazer para ganhar a vida eterna?" É claro que Jesus disse ao homem da pergunta, uma pessoa rica e abastada, para se desfazer de tudo o que tivesse e o desse aos pobres. O altruísmo implica distanciamento das nossas coisas e dos nossos desejos mais preciosos. O autossacrifício não pode ser conditio sine qua non do altruísmo, ainda que Hobbes tenha virado o bico ao prego – para fazer valer a sua teoria de que todos fazíamos o bem em última instância por egoísmo – quando disse que ao dar esmola ao pobre se sentia bem por ver um mendigo contente, e isso era a prova de como ele era egoísta.

Por conseguinte, e concluindo, é irracional dizer-se que fulano não fez nada de especial ao ajudar alguém, porque isso não lhe custou nada, ou não teve que fazer nenhum sacrifício para dar essa ajuda. Partindo daí, é errado dizer que não foi altruísmo ajudar sem sacrifício. Ora, aquilo que realmente importa no altruísmo é a genuína preocupação, sem esperar nada em troca, com o bem dos outros. Será escusado metermos aqui qualquer teoria da conspiração. Se quisermos educar os nossos jovens a encorajarem-se pelas boas ações, não nos devemos concentrar na questão do sacrifício. Ao invés, devemos concentrar-nos no facto de nos sentirmos mais felizes pelo nosso contributo para o bem-estar dos outros. Nesta forma de interpretarmos o altruísmo, o que mais importa é o bem que resultou, independentemente de isso nos ter tornado mais felizes, ou de termos ficado na mesma. Ou dito de outra forma: independentemente de isso envolver um ganho ou uma perda para o “altruísta”.

terça-feira, 17 de novembro de 2020

Vítor Jorge e o "Massacre do Osso da Baleia", 1987


Vitor Jorge foi abandonado pelo pai. E a mãe, vivendo em Lisboa, deixou-o entregue aos avós. Com apenas cinco anos viu um tio matar as duas filhas bebés. Aos oito foi viver com a mãe. Tinha apenas um quarto em Lisboa. Foi com essa idade que viu a mãe ter relações sexuais com um homem, que pensou que lhe estava a bater.

Vítor Jorge foi o autor do Massacre do Osso da Baleia, um dos crimes mais terríveis que aconteceu em Portugal, na noite de 1 para 2 de março de 1987, na Praia do Osso da Baleia (Pombal) e na Amieira (Marinha Grande). A terça-feira de Carnaval desse ano foi a 3 de março. Vítor Jorge, na altura do crime com 38 anos de idade, era contínuo numa agência bancária e fotógrafo de casamentos e batizados nas horas vagas. Assassinou 7 pessoas: Leonor, que tinha acabado de festejar os seus 24 anos, tinha uma relação extraconjugal com Vítor Jorge; quatro jovens com quem ela festejara o seu aniversário, a tiro de caçadeira e à paulada; e depois a esposa de 36 anos, e a filha mais velha, de 16 anos, ambas à facada. Ainda tentou matar a filha mais nova, de 14 anos, que antes de fugir já ferida, ainda lutou para lhe tirar a faca. 

“Vai e cuida do teu irmão. Tens muito para sofrer” ainda lhe gritou Vítor Jorge. Explicar-se-ia ele mais tarde às autoridades: “Ainda tentei atirar a faca à Sandra, mas já foi sem força. Já tinha perdido a raiva. Já não era aquilo que queria fazer. Tinha desaparecido o peso no coração. Mas antes, quando as levava para o pinhal, não via nada. Só tinha aquela ideia na cabeça… matar, matar, matar”. O filho de 10 anos, dormia tranquilo, não deu por nada.




Pelas seis da tarde do dia dois de março a Polícia Judiciária de Coimbra foi chamada pelo Comandante da GNR de Leiria. A Polícia Judiciária encontrou ao lado do corpo de Leonor uma mensagem: "Isto foi porque tu quiseste. Os outros foram por arrastamento". No carro, uma Renault 4L, havia um papel que dizia: "Mato a minha mulher porque não era virgem quando casou, mato as minhas filhas para não serem pasto para os prazeres do mundo, poupo o meu filho para perpetuar a semente do mal".

Dias depois, chegaria um envelope à redação do Correio da Manhã, à época na Rua Ruben A. Leitão, em Lisboa, enviado da estação de correios de Santana, em Leiria. O
 carimbo é de 2 de março, 19:00). À cabeça, estava uma página em branco, com uma só frase em letras maiúsculas: “Há sempre um pouco de razão na loucura”. A seguir, outra mensagem, já menos composta: “Lamentavelmente consumado e engrossado o início da minha loucura. Médicos, agora acreditam? Osso da Baleia”. Era a cópia de um Diário, e outros papeis: registos médicos que dão conta de úlceras e gastrites; recibos de ordenado (recebia cerca de 36 contos em 1983, o equivalente hoje a 1.074 euros, de acordo com a taxa de inflação); mensagens endereçadas ao Presidente da República (“V. Exa. deverá promulgar a pena de morte para os seguintes crimes: assassínio, incendiários, violadores de menores, traficantes de droga”); e ao Papa João Paulo II (“Não permita V. Exa que grande parte dos seus padres se aproveite da inocência e da confissão das raparigas para de uma forma chantagista as levar a ter relações com eles”).




Vítor Jorge, apesar de não se ter entregado logo às autoridades, e ter deambulado até ser detido a 5 de março, no concelho de Porto de Mós, foi encontrado deitado no chão de uma casa em ruínas, febril e com aspeto deplorável, ferido numa perna. Havia no chão junto aos sapatos umas folhas de papel escritas: “Na cidade mudei de ideias, senti que a solução era morrer lentamente à fome e à sede… queria um castigo pelo que tinha feito. Tinha intenção de morrer na Calvaria, onde tinha nascido, na casa para castigar a minha mãe”. E duas de eucalipto, analisadas depois pela polícia: “Foram duas noites muito duras: despedi-me da minha mulher e da minha filha com muita mágoa, de uma forma muito trágica, pois estimava-as muito”. Foi levado pela GNR para o hospital.

A 13 de março, o juiz de instrução criminal de Leiria, Eduardo Correia Lobo, levou-o à praia e ao pinhal para a reconstituição do crime. Vítor Jorge surge nas fotos desse dia com um ar tranquilo, a explicar às autoridades como matou sete pessoas a tiro, à paulada e à facada. O inspetor, num depoimento recente à reportagem jornalística, declara que em toda a sua vida profissional nunca viu nada com tanta frieza: “Quando fomos ao pinhal, uma colega fez de vítima e ele, muito calmo, foi demonstrando: espetei assim, espetei assado. O meu chefe estava desvairado, tivemos de o agarrar e mandar para o carro. A ideia com que fiquei foi que ele liquidou primeiro o paraquedista, que era o único que lhe podia fazer frente. Os outros… eles vinham de uma festa, estou convencido de que alguns tinham bebido demais… O outro moço era fraquito. E elas entraram em pânico, só uma é que conseguiu fugir e mesmo assim deixou-se apanhar.”

Começou a ser julgado em novembro do mesmo ano, por um tribunal de júri. Vítor Jorge pediu que os jurados fossem constituídos por familiares das vítimas. E frisava que a sua defesa devia assentar na busca da verdade e da justiça. Mesmo que isso significasse que deveria "ser morto por crucificação ou apedrejamento popular". Numa pequena entrevista que nesse dia deu ao Jornal de Notícias, enquanto não se iniciava o julgamento, disse assim: "O Vítor Jorge é um monstro e praticou monstruosidades que não merecem piedade nem perdão." Falava de si na terceira pessoa. Durante o julgamento, no Tribunal da Marinha Grande, Vítor Jorge confessou os crimes, pediu para ser internado para o resto da vida e alertou para o perigo de um dia vir a matar mais gente. Durante o julgamento tirava apontamentos do depoimento das testemunhas e advogados. E depois, pedia para intervir pra corrigir pormenores e imprecisões do que havia sido dito, quase sempre para o prejudicar ainda mais.




Condenado em cúmulo jurídico a 20 anos de prisão, era a pena máxima prevista no Código Penal na altura. Foi julgado como imputável, embora num confronto de teses sobre a sua personalidade. Eduardo Cortesão, eminente médico e professor catedrático de Psiquiatria, numa contenda acerca do perfil psicológico de Vítor Jorge, defendeu tratar-se de um doente mental grave e, logo, inimputável. Mas os médicos do Centro de Saúde Mental de Leiria, que examinaram Vítor Jorge após a sua detenção, tiveram opinião contrária, porque ele sabia muito bem distinguir o bem e o mal.

Vítor Jorge foi um recluso exemplar nos Estabelecimentos Prisionais de Leiria e, depois, em Coimbra, onde viria a ajudar à missa como sacristão, e a praticar fotografia. Em 5 de outubro de 2001 foi libertado, após 14 anos de prisão, beneficiando de amnistias. Livre, foi viver para Inglaterra, e mais tarde para a Córsega. Recentemente foi dada a notícia da sua morte a 29 de dezembro de 2018, com 69 anos de idade. Amigos disseram que se suicidou.

segunda-feira, 16 de novembro de 2020

Despersonalização


Não se deve confundir Despersonalização com Perturbação Dissociativa de Identidade, embora muitas das causas sejam comuns. A Despersonalização está intimamente relacionada com a ansiedade. Ambas podem ser desencadeadas pela vivência de uma situação traumática, seja por maus tratos individuais de natureza física ou psicológica, seja em situações de catástrofe ou guerra. A mente passa por um processo inconsciente de dissociação. A Despersonalização é uma perturbação ao nível do processo interpretativo que, todavia, não atinge o nível do delírio ou alucinação das psicoses. E não está relacionada com múltiplas personalidades, não alterando o nível da consciência do Si. A Despersonalização pode ser desencadeada por pânico/ansiedade/medo. 
A Despersonalização é a alteração do sentido que a pessoa tem a respeito de si própria; enquanto a Desrealização é a alteração da forma como a pessoa perceciona a realidade do mundo exterior, mas não tem afetada a sensação a respeito de si própria (do self). Contudo, as duas perturbações podem ocorrer em simultâneo na mesma pessoa. Entretanto, na classificação DSM-IV , Despersonalização e Desrealização estão fundidas na mesma entidade, encarando-as como o mesmo problema. 

Na 
Despersonalização a pessoa geralmente afasta-se do seu círculo social; pode passar a identificar-se com outro nome; e as perturbações da memória são muito estranhas. Passado o conflito que deu origem à perturbação, que normalmente não ultrapassa no máximo cerca de um mês, a pessoa retorna à sua vida anterior. Há relatos de casos de sobreviventes de um acidente de aviação. Verifica-se geralmente uma amnésia para o acidente, em que são recordados apenas os instantes antes que antecederam o início da entrada em pânico. A memória, no entanto, retém os acontecimentos, podendo ser recuperados pelo psicólogo em sessões de psicoterapia, como se fossem arrancadas a ferros do inconsciente. A hipnose tem sido o método que tem dado melhores resultados. A pessoa pode sentir-se como um autómato ou como se estivesse a sonhar. Pode passar por aquele estado muito relatado nos casos rotulados "Near Death Experience",  em que ele se vê como se estivesse fora do corpo. Pode sentir vários tipos de anestesia sensorial; ausência de resposta emocional a estímulos padronizados; ou uma sensação de não conseguir controlar as próprias ações, incluindo a fala. Uma vez que a despersonalização pode ocorrer associada a outras perturbações mentais, esta variante da Despersonalização pode passar despercebida aos profissionais, sejam psiquiatras ou psicólogos. 

A pessoa tem perfeita noção do que se está a passar consigo. Algo de errado está a acontecer, podendo ver figuras liliputianas ou gigantones (micropsia ou macropsia), pode apresentar fotossensibilidade (sentir-se ofuscado e incomodado com a luz). Outras características associadas incluem uma perturbação do sentido do tempo. A pessoa sente-se desapegada dos seus amigos e familiares, começa a sentir o mundo de uma forma diferente e irreal, bem como um grande vazio no seu íntimo, como se a sua personalidade se lhe tivesse sido arrancada do corpo. Na fase inicial, instauram-se, por vezes, sintomas depressivos. Associado aos sintomas depressivos, muitas vezes estas pessoas passam por sintomas de personalidade obsessivo-compulsivo. As pessoas com determinado tipo de literacia, são elas a fazer o diagnóstico a si próprias. A forma como uma pessoa despersonalizada perceciona e sente a realidade é de tal modo extraordinária que muitas vezes só se consegue lá chegar através de metáforas.

O ponto central da Despersonalização é a sensação de se estar desligada do mundo como se, na verdade, estivesse sonhando. O indivíduo que experimenta a despersonalização tem a impressão de estar num mundo fictício, irreal, mas tem a noção disso. Por seu turno, com a desrealização há alterações da perceção mas não do pensamento, como acontece nas psicoses, em que o indivíduo não distingue a ficção da realidade. Na despersonalização o indivíduo tem preservado o sentido da realidade. Estudos neurofisiológicos têm apontado para uma ativação da região interna do córtex pré-frontal e de uma diminuição da atividade do sistema límbico e amígdalas. Os pacientes conseguem indicar a significância ou a emoção que normalmente teriam em relação a certa pessoa ou a certo objecto, contudo não conseguem senti-los. Esta discrepância entre o que se espera sentir e o que se sente provoca grande sofrimento nas pessoas despersonalizadas. Ao contrário de patologias orgânicas, as pessoas têm plena noção do que deveriam sentir e não sentem. Os casos com as duas perturbações presentes em simultâneo - despersonalização e desrealização - Não conseguem lidar bem com o mundo à sua volta. Sentem-se distanciadas daquilo que as rodeia, sendo difícil falarem e ligarem-se a outras pessoas. Podem sentir que já não nutrem sentimentos por outras pessoas que lhes são próximas. A pessoa parece que já não se sente como sendo uma pessoa normal e isso acarreta um grande sofrimento. Podem acordar a meio da noite, com um ataque de pânico. Ocorrem nas fases de transição de consciência, na mudança entre os diferentes estágios do sono. 

O tratamento farmacológico para este tipo de perturbações é muito limitado. A psicoterapia ainda é a que resulta melhor, apesar de as respostas variarem bastante de paciente para paciente. De um modo geral, consegue-se algum grau de alívio. A recuperação completa é possível para muitas pessoas, especialmente para aquelas cujos sintomas ocorrem em ligação com qualquer stress identificado durante o tratamento. De resto, em geral, as melhoras espontâneas decorrem de forma gradual e progressiva. 
Existencialistas usam o termo num contexto diferente.

domingo, 15 de novembro de 2020

Os negacionistas e as falácias




Muitas vezes os negacionistas em relação à gravidade da covid-19 apresentam argumentos válidos, ou seja, a conclusão segue-se das premissas, mas não são sólidos. E porquê? É que um argumento para ser sólido, para além de ter de ser válido logicamente, as suas premissas têm de ser verdadeiras. E é esse o problema dos negacionistas, os seus argumentos estão cheios de falácias. O que acontece é que os seus argumentos geralmente não utilizam premissas verdadeiras. Constroem os argumentos de modo a satisfazerem as suas crenças ou preferências ideológicas. Ambiguidades e contradições, isto é, a utilização de palavras com sentidos diferentes, são erros que resultam em falácias muito frequentes nos argumentos dos negacionistas. Negam, por exemplo, que estejamos a viver uma situação de uma pandemia viral, e que a doença, chamada covid-19, seja real. E por isso, entre as várias proclamações, contestam o uso da máscara. E mais do que isso, negam a ciência. Negam a importância das vacinas para a saúde mundial, por exemplo, alegando que há poderes ocultos a usá-las para inocular informação nas pessoas a fim de controlar a humanidade. 

O sítio ideal para a propaganda das ideias negacionistas, obviamente, são as chamadas redes sociais. E uma vez que é o seu meio predileto, para além da rua claro está, aqui também negam aquilo que não lhes é conveniente, que os algoritmos das redes sociais foram desenhados com o propósito de controlar as pessoas. A verdade perdeu validade. A partir do momento em que se pode negar tudo, então nada é verdadeiro, e tudo é permitido. E o mais surpreendente é que o negacionismo e as teorias da conspiração não poupam alguns médicos e alguns filósofos, o que apesar de não terem de ser cientistas tinham obrigação de perceber o que é o conhecimento alicerçado na ciência. Por exemplo, Giorgio Agamben, um filósofo italiano, é um desses negacionistas. E no entanto, é um filósofo da moda pós-moderna, com grande notoriedade e número de adeptos. De resto, já não falo em Trump ou Bolsonaro, duas figuras mais do que bem conhecidas e que dispensam apresentações.  

Em suma, o negacionismo é a atitude consciente de negar a realidade, que para além de ser movida por mais do que um propósito, também funciona como a vassoura que varre os factos para baixo do tapete,  isto é, para que de uma forma ilusória a negação da realidade os faça escapar de uma verdade que lhes é muito desconfortável e inconveniente. Trata-se da recusa em aceitar uma realidade empiricamente verificável, que o mesmo é dizer demonstrável cientificamente, o método mais eficaz que a sociedade mundial até à data conseguiu obter para conhecer a realidade tal como na verdade é, e à qual a vida humana está sujeita, queiramos ou não. Por conseguinte, o cientista não tem outra forma de colocar o negacionista noutros termos que não sejam revestidos de grande perversidade e prejuízo para o bem de todos nós, quando de uma forma irresponsável e leviana colocam em risco a vida, sobretudo das pessoas mais frágeis e desfavorecidas, por não levarem a sério não apenas os conhecimentos conseguidos pela ciência, mas os conceitos mais básicos e consensuais adquiridos e consolidados pela humanidade ao longo de séculos de civilização. 



Há uma outra espécie de negacionistas que não são bem da estirpe dos negacionistas que venho expondo: os oportunistas; os ignorantes. Os oportunistas são aqueles que encontram na retórica a única forma de darem nas vistas. Além de dizerem disparates, lançando o caos e a desinformação, exacerbam preconceitos e suspeições totalmente infundadas. Os ignorantes são aqueles que com arrogância recusam as conclusões da ciência, e sobretudo quando é posto em causa o seu comportamento troglodita. São deste grupo os que também negam as alterações climáticas com falácias esfarrapadas, apresentando como argumento de autoridade para as suas ideias gente do género de Trump e Bolsonaro. Estes negacionistas ignorantes são os que enchem as caixas de comentários, e vão para a rua engrossar rebanhos de palermas sem máscara nem distanciamento com ditos e frases bizarras em cartazes de todos os tamanhos e feitios. 

Este fenómeno não é exclusivamente português. Todos os dias as televisões registam imagens vindas de todos os pontos do mundo supostamente civilizado como, por exemplo, a Alemanha e o Estados Unidos. Imagens de Berlim, nas Portas de Brandemburgo, milhares de manifestantes, lado a lado, sem máscara no rosto, gritando palavras de ordem como: "nós somos a segunda onda" ; "resistência". Sob o dúbio lema "Tag der Freiheit - das Ende der Pandemie" (Dia da liberdade - o fim da pandemia), os manifestantes protestaram contra as medidas do governo alemão para conter a disseminação do novo coronavírus. "Dia da liberdade" pode soar inofensivo, mas é também o título de um filme de propaganda nazi dirigido por Leni Riefenstahl, um ícone do nazismo, sobre a convenção do partido nazi NSDAP em 1935 e focado na Forças Armadas do país. O primeiro grupo a convocar a manifestação foi o controverso Querdenken 711, de Stuttgart (711 é o prefixo telefónico de Stuttgart). Essa organização, formada sobretudo por militantes contra as vacinas já convocara protestos semelhantes na capital de Baden-Württemberg, até então os maiores na Alemanha. Desta vez, milhares de pessoas de outros estados seguiram a convocação e foram para Berlim. Segundo a polícia, o protesto reuniu 20 mil pessoas.  A bandeira com listas horizontais: preta, branca e vermelha – a antiga bandeira do Império Alemão – é hoje um símbolo da extrema direita alemã. Os chamados Reichsbüger grupos de extrema direita que usam a bandeira imperial para expressar a sua rejeição à democracia alemã. E para contestar o banimento público dos símbolos nazis. Ao lado deles marchavam também outras pessoas que exibiam bandeiras com o símbolo hippie da paz ou a bandeira do arco-íris, originalmente um ícone pacifista normalmente usado pelo movimento LGBT, e cartazes com dizeres como "Jesus vive".

A propósito daquela frase, um parentese para falar de um outro tipo de negacionismo, diferente deste, o que nega que Jesus, ou Sócrates tenham existido. Ou pelo menos que tenham dito e feito respetivamente o que os Evangelistas dizem nos Evangelhos, ou o que Platão diz nos seus diálogos. Como Sócrates e Jesus nada tenham deixado: nomeadamente documentos escritos por eles; e pela forma como ambos morreram – é tudo demasiado misterioso para não cheirarem a esturro. Por que razão os tinham que condenar à morte? Parece tudo muito forçado. Terá tudo acontecido como Platão, Marcos, Mateus e Lucas deixaram escrito? O Oráculo de Delfos dissera: "Sócrates é o mais sábio de todos". Mas a razão por que ele era sábio, é a seguinte: Sócrates dissera que só sabia que nada sabia. Compreendera quão ignorante ele era. Uma afirmação que trazia água no bico, porque mostrava aos outros que também eles eram ignorantes. E isso foi o seu problema, porque os seus interlocutores ficaram furiosos com isso. Então, para manifesto desagrado deles, tinha que se concluir, que todas as suas opiniões estavam erradas. É assim que se conjetura que a vontade deles foi livrarem-se de Sócrates. E isso justifica a sua condenação à morte? Os atenienses tinham orgulho das suas instituições democráticas. Mas Sócrates era o crítico mais feroz da democracia. Os democratas governavam por via do seu talento e sabedoria. Sócrates detestava os sofistas, porque era devido às suas medíocres capacidades que as massas eram influenciadas com retórica vazia. Ora, eram os mais influentes sofistas da altura que controlavam o poder através da arte da persuasão.

Heiko Schrang, um teórico de meia-tigela, nos seus vídeos YouTube, alterna entre denúncias de uma suposta manipulação da sociedade por meio da imprensa "mainstream" e declarações de que a pandemia é uma mentira. E acicata a população para que não se deixe ser  mandada por "aqueles lá de cima". Essa ampla gama de teóricos da conspiração arranjou alguns inimigos em comum: o Estado alemão, Bill Gates e a chamada "conspiração sionista". Na visão do ‘mundo alternativo’, criada por eles, as teorias mais indigeríveis fazem sentido, são ajustadas entre si e se complementam. Aí veio um duro golpe para eles: o confinamento da primeira vaga tinha sido eficaz na Alemanha, bem como as máscaras e as medidas de distanciamento social. A população estava, em geral, satisfeita, e a adesão às ideias dos teóricos da conspiração caiu. Mas, agora, nesta segunda vaga o movimento negacionista ganhou novo impulso. Quando 20 mil pessoas saíram às ruas de Berlim, Jebsen e Hildmann transmitiram ao vivo, do local onde estavam, pelos seus canais YouTube, elogiando os "lutadores pela liberdade". Assim como outros apoiantes da manifestação difundiram um número descaradamente falso de participantes. Muitas pessoas na manifestação usavam t-shirts publicitando um livro de Heiko Schrang, a grande estrela do dia que no palco incentivava e animava os participantes. E prometia um futuro melhor: a libertação da ditadura da covid-19 havia finalmente começado. O seu discurso, que está no YouTube, foi visto por 13 mil pessoas apenas nas primeiras horas depois de publicado.