quarta-feira, 29 de junho de 2022

Genocídio: do Kristallnacht ao Holocausto




Em 9 de novembro de 1938, teve lugar na Alemanha um acontecimento que passou para a história com o nome de Kristallnacht. Lojas, lares e templos judeus foram atacados por uma multidão desgovernada, embora oficialmente encorajada e sub-repticiamente controlada. Houve destruição, incêndios, vandalismo. Cerca de cem pessoas foram mortas. A Noite dos Cristais foi o único pogrom em larga escala ocorrido nas cidades da Alemanha durante todo o Holocausto. Foi também o único episódio do Holocausto que seguiu a tradição secular da violência de turba contra os judeus. Não diferiu muito dos pogroms anteriores; praticamente nada a destaca na extensa lista de violência desse tipo que vai da Antiguidade, passando pela Idade Média, até as quase contemporâneas, mas ainda em grande parte pré-modernas Rússia, Polónia ou Roménia. Se o que os nazis fizeram com os judeus tivesse sido apenas Noites de Cristal e coisas do género, só teriam acrescentado mais um parágrafo, um capítulo no máximo, à crónica em vários volumes de emoções que degeneram em violência, grupos de linchamento, soldados que saqueiam e violam ao invadir cidades. Mas não foi isso que aconteceu.

A raiva e a fúria são deploravelmente primitivas e ineficazes como instrumentos de extermínio em massa. Elas normalmente se exaurem antes que se conclua a tarefa. Não se podem erguer grandes projetos sobre essa base. Certamente não projetos que visem para além de efeitos momentâneos como uma onda de terror.

Em nenhuma outra oportunidade, fora os regimes de Hitler e Stalin, tanta gente foi assassinada em tão pouco tempo. Esta não foi, porém, a única novidade, talvez nem mesmo uma novidade básica, mas apenas um subproduto de outras características mais fundamentais. O assassínio em massa contemporâneo caracteriza-se, por um lado, pela ausência quase absoluta de espontaneidade, destaca-se pelo propósito. É genocídio com um propósito. É a visão grandiosa de uma sociedade melhor e radicalmente diferente. É um elemento de engenharia social que visa produzir uma ordem social conforme um projeto de sociedade perfeita.

As vítimas de Hitler e de Stalin não foram mortas para a conquista e colonização do território que ocupavam. Muitas vezes foram mortas de uma maneira mecânica. enfadonha, sem o estímulo de emoções humanas — sequer do ódio. Foram mortas por não se adequarem, por uma ou outra razão, ao esquema de uma sociedade perfeita. Um mundo harmonioso, livre de conflitos, dócil aos governantes, ordeiro, controlado. Pessoas manchadas pela inerradicável praga do seu passado ou origem não podiam se adequar a esse mundo impecável, saudável e brilhante. Como ervas daninhas, a sua natureza não podia ser alterada. Elas não podiam ser melhoradas ou reeducadas. Tinham que ser eliminadas por razões de hereditariedade genética ou ideológica — por razão de um mecanismo natural, resistente, imune ao processamento cultural.

O efeito mais essencial do genocídio é a “decapitação” do inimigo. Espera-se que o grupo marcado, uma vez privado de liderança e centros de autoridade, perca sua coesão e capacidade de sustentar a própria identidade e, consequentemente, seu potencial defensivo. A estrutura interior do grupo sofrerá um colapso, reduzindo o grupo a uma coleção de indivíduos que podem ser então pinçados um a um e incorporados à nova estrutura administrada pelos vencedores, ou reorganizada à força como categoria subjugada e segregada, governada e policiada diretamente pelos gerentes da nova ordem.

As elites tradicionais da comunidade condenada constituem, portanto, o alvo primário do genocídio, na medida em que este vise de facto à destruição do povo marcado como comunidade, como entidade autónoma coesa. De acordo com a visão de Hitler para a Europa oriental como um vasto Lebensraum [espaço vital] para a raça alemã em expansão e de seus habitantes como futura força de trabalho escravo a serviço dos novos senhores, as forças de ocupação alemãs procederam à sistemática extinção de todos os vestígios da estrutura política e autonomia cultural nativas.

A escravização dos judeus nunca foi objetivo dos nazis. Mesmo que o assassinato em massa não tenha sido pensado desde o início como fim último, a situação que os nazis queriam era a efetiva remoção dos judeus do mundo e da vida germânicos. Hitler e seus seguidores não tinham uso para os serviços que os judeus podiam oferecer, mesmo como trabalhadores escravos.

É possível supor que a insistência nazi em fazer tudo no gueto pelas mãos dos judeus tinha como um dos seus perversos objetivos tornar o poder da liderança judia tanto mais visível e convincente. A população judia ficou virtualmente fora da jurisdição das autoridades administrativas normais (o que aconteceu gradualmente na Alemanha e de forma abrupta nos territórios conquistados), sendo atirada inteiramente e sem apelo nas mãos dos seus líderes correligionários, que em troca recebiam suas ordens de — e respondiam perante — uma instituição alemã similarmente alheia à estrutura “normal” de poder. Os princípios teórico-legais da bizarra mistura de autogoverno e isolamento do gueto foram enunciados e codificados em 1940 por Hermann Erich Seifert.

A liderança judia exercia um poder ilimitado sobre a população cativa, mas estava à mercê de uma organização criminosa livre de controle exercida pelos órgãos constitucionais do Estado. As elites judias desempenhavam, portanto, um papel mediador crucial na incapacitação dos judeus; de forma bem atípica para um genocídio, a submissão total de uma população à vontade desenfreada dos seus captores foi alcançada não pela destruição, mas pelo reforço da estrutura comunitária e o papel integrador desempenhado pelas elites nativas.

Paradoxalmente, portanto, a situação dos judeus nos estágios preliminares da Solução Final parecia mais a de um grupo subordinado dentro de uma estrutura normal de poder do que a de vítimas de uma operação genocida “ordinária”. Em notável medida, os judeus eram parte do arranjo social que iria destruí-los. Constituíam um elo vital na cadeia de ações coordenadas; suas próprias ações eram parte indispensável da operação total e condição crucial do seu sucesso. O genocídio “comum” divide os atores de forma inequívoca em assassinos e assassinados; para estes, a resistência é a única resposta racional.

No Holocausto, as divisões foram menos claras. Incorporada à estrutura geral de poder, com uma lista ampliada de tarefas e funções dentro dela, a população condenada tinha aparentemente uma gama de opções. A cooperação com os próprios inimigos jurados e futuros assassinos não escapava à sua medida de racionalidade. Os judeus podiam, portanto, brincar nas mãos de seus opressores, facilitar a tarefa deles e apressar a própria perdição, enquanto guiados em sua ação pelo propósito racional de sobreviver.





quarta-feira, 22 de junho de 2022

O ano de 1415 d.C.





No ano de 1415 deram-se duas batalhas que foram decisivas para o rumo de três quartos do mundo nos 500 anos seguintes nas mãos dos europeus. Um punhado de europeus avisou o mundo de que o tempo estava a mudar. Poucos anos mais tarde os canhões de Vasco da Gama e de Pedro Álvares Cabral, quando chegaram à Índia, puseram grande parte do mundo de pernas para o ar. Em Mombaça e Calcutá, no ano de 1498, os mercadores obedeceram ao poder de fogo.

Em 21 de agosto de 1415, os filhos de D. João I de Portugal, com a conquista de Ceuta estavam a expandir o domínio de Lisboa para África. E no mês de outubro de 1415, no dia de São Crispim/Crispiano, um exército inglês animado pelo seu rei - Henrique V - alcançou uma das maiores vitórias da Guerra dos Cem anos. Tratou-se da batalha de Azincourt que se travou entre duas florestas húmidas no norte de França, em que os ingleses ganharam, num número de um para quatro franceses. Os ingleses tiveram 29 baixas; e os franceses perderam dez mil. Pelo menos assim imaginou Shakespeare.




Os ingleses haviam invadido a França novamente no começo do século XV, quando o rei Henrique V resolveu reivindicar o trono do país rival. No começo da Guerra dos Cem Anos, no século anterior, as tropas inglesas se mostraram mais eficientes do que o exército feudal francês. Mas quando Henrique iniciou a sua invasão, em agosto de 1415, a situação da França havia melhorado. Henrique e seus homens não tinham, por outro lado, mantimentos suficientes para uma prolongada campanha e precisavam forçar um engajamento decisivo. Foi próximo a Calais, no norte da França, que finalmente os dois exércitos bateriam de frente.

O terreno era difícil e irregular, com florestas nos flancos, o que não permitia muita manobra. Os franceses tomaram a iniciativa, mandando sua cavalaria atacar os arqueiros inimigos, mas foram repelidos com pesadas baixas. Logo em seguida, mandaram o grosso de sua infantaria. O terreno cheio de lama, atrasou este avanço e expôs os homens ao arco inglês. Como resultado, novamente, os franceses sofreram grandes perdas, com milhares de soldados sendo capturados. Segundo relatos da época, Henrique V liderou pessoalmente as suas tropas na batalha e teria participado dos combates corpo-a-corpo. Já o rei francês, Carlos VI, não comandou os seus homens, já que ele sofria de problemas mentais. Foi esta batalha que marcou o uso mais notável do arco longo inglês em grandes números, com arqueiros ingleses e galeses formando cerca de 80% do exército de Henrique. Esta batalha também é um dos temas centrais da peça Henrique V de Shakespeare.

Segundo uma lenda ou invenção muito posterior, os franceses se gabavam de sua superioridade numérica e ameaçavam os arqueiros de cortar o dedo do meio deles (fundamental para arqueiros, para armar o arco), mostrando o seu maior levantado; quando os franceses foram feitos prisioneiros, os ingleses mostraram os dedos e disseram "Olha: os meus dedos estão aqui". Esse gesto deu origem ao gesto obsceno de "mostrar o dedo" de hoje em dia, nas versões francesa/continental de um dedo e na inglesa dos dois dedos.


Um selo com um soldado ucraniano a fazer um gesto obsceno com a mão para o navio russo Moskva, afundado no Mar Negro alegadamente por mísseis ucranianos, tornou-se um item de colecionador para os ucranianos que o veem como um sinal de "vitória".

No século XIV já se fabricavam armas de fogo na Europa, canhões que usavam mais pólvora e disparavam balas mais pesadas. No século XV, nos sete anos que se seguiram a Azincourt, os artilheiros ingleses transformavam os castelos de pedra da Normandia em cascalho.

O que os portugueses estavam a anunciar para os 500 anos que viriam a seguir era que os europeus se preparavam para travar uma Guerra de Quinhentos anos contra o resto do mundo. E na verdade viria a revelar-se a guerra mais produtiva da história. Em 1914 os europeus dominavam 84% de terra e 100% de mar. Entre 1945 e 2001, nunca a humanidade tinha vivido um período de paz e segurança tão longo e produtivo.

As expectativas relacionadas aos benefícios da conquista de Ceuta não se confirmaram a longo prazo. Sob a ótica económica, pode-se afirmar que o domínio português sobre a cidade se revelou um completo fracasso. As rotas comerciais que chegavam ou passavam por Ceuta foram desviadas para outras localidades. Além disso, o permanente estado de guerra comprometia o cultivo dos campos e a produção de cereais. Os muçulmanos chegaram a sequestrar o Infante D. Fernando (considerado santo a partir deste episódio) e outras pessoas, para exigir Ceuta de volta, mas Portugal não cedeu e os prisioneiros acabaram por ser torturados e morrer. A situação agravou-se em função das elevadas despesas militares necessárias à manutenção da praça africana. Os membros da corte chegaram a cogitar o abandono da cidade.

Os marroquinos não se conformaram e atacaram a cidade duas vezes, em 1418 e em 1419, sem sucesso.
Manter a cidade constituía-se em um problema logístico: era necessário enviar suprimentos, armas e munições; a maior parte dos soldados era recrutada à força, recorrendo-se a condenados e criminosos a quem o rei comutava a pena desde que fossem para Ceuta e ainda recompensar generosamente os nobres que ocupavam postos de chefia. Julgaram consegui-lo, quando do desastre português de Tânger, pedindo como resgate do infante D. Fernando a cidade de Ceuta. Mas D. Fernando faleceu em 1443 no cativeiro e a cidade continuou portuguesa.

Ceuta teve que se aguentar sozinha, durante 43 anos, até a posição da cidade ser consolidada com a tomada de Alcácer Seguer em 1458, Arzila e Tânger em 1471. A cidade de Ceuta foi reconhecida como possessão portuguesa pelo Tratado de Alcáçovas em 1479; e pelo Tratado de Tordesilhas em1494. Quando Portugal esteve sob tutela Filipina de Espanha, Ceuta manteve a administração portuguesa, assim como Tânger e Mazagão. Mas quando se deu a Restauração com a aclamação do Duque de Bragança, o Norte de África não voltou mais para Portugal. A situação foi oficializada em 1668 com a assinatura do Tratado de Lisboa entre os dois países, e que pôs fim à Guerra da Restauração. 

Passado 500 anos o saldo de riqueza material para o povo português é nulo. Valha o cosmopolitismo e o saldo diplomático que é positivo. O progresso dos europeus era escasso, a menos que conseguissem oportunidades diplomáticas. Os mercadores portugueses começaram a subir o rio Zambeze em 1531, mas o Império do Monomotapa (um dos sucessores do Grande Zimbabué, que entrara em declínio nos anos de 1440) manteve-os à distância.

Como nunca é de mais repetir, o estado de guerra e de bandidagem civil sempre foi o estado corrente dos povos estacionados, e os africanos não tinham como ser uma excepção. Assim, os chefes africanos diziam aos mercadores europeus: Se me trouxeres pólvora, mosquetes e balas, levas homens mulheres e crianças". Assim, entre 1500 e 1800 eles entregaram na troca perto de doze milhões de escravos que marcharam para o outro lado do Atlântico. Num trocadilho de palavras eram prevalentes dois tipos de peste: a peste negra e a peste branca a infestar o Novo Mundo do outro lado do Atlântico.

A Eurásia tinha-se fundido consideravelmente desde a peste negra do século XIV, produzindo um equilíbrio que quando muito funcionava contra os europeus que continuavam vulneráveis à malária nos trópicos. Entre Lisboa e Guangzhou havia 20 mil quilómetros a percorrer, o que não era coisa pouca para as carracas dos portugueses. Mas para os asiáticos, apesar de os portugueses serem irritantes, acabavam por ser úteis quando um ou outro chefe precisava de armas de fogo. Assim, desde que se mantivessem dentro do limite não muito longe da costa, era mais barato ignorá-los do que combate-los. Era tratados como piratas. Para os impérios do continente asiático, o lucro das cidades costeiras era um problema a resolver apenas entre piratas europeus. Uma economia a duas velocidades, portanto, que ganhava forma no oceano Índico. E como sabemos, na disputa, as coisas não correram bem para Portugal.

Portugal não conseguia concorrer naquele modelo de negócio. De modo que saiu de cena de Malaca e Ceilão para dar lugar a ingleses e holandeses. Até que, quando a Inglaterra estava a ficar por cima, entrou em cena um novo rival: a França. E em Istambul, Deli e Pequim continuava-se a não lhes dar grande atenção. Distância, germes e demografia conferiam aos impérios asiáticos uma sensação de invulnerabilidade, até que um dia se esgotou.

quinta-feira, 16 de junho de 2022

Praga - o último episódio sangrento da Guerra




Encontro comemorativo em 5 de maio de 2010 na ponte Barikadnik junto ao memorial em honra dos combatentes que tombaram no levantamento de Praga.


Praga - 7 de maio de 1945 - resistentes checoslovacos pegavam em armas contra os alemães que ocupavam a cidade; no mesmo dia, chegavam a Praga três veículos do exército americano. Porém, os russos também haviam chegado. Eisenhower aceita um "acordo" imposto pelo supremo comando soviético. E os americanos recuam para Pilsen. Ao longo do dia 7, os combates em Praga continuaram, mas ao romper do dia 8 as forças alemãs rendiam-se incondicionalmente. Na batalha de Praga, perderam a vida mais de oito mil soldados soviéticos e um número bastante superior de soldados alemães.

Na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos, 8 de maio foi comemorado como o Dia da Vitória na Europa. Os dois países festejaram o acontecimento e enfeitaram as cidades com faixas e bandeiras. Nas capitais outrora cativas da Europa Ocidental – Haia, Bruxelas e Paris –, revivia-se o alívio e o entusiasmo dos dias de libertação. Em Copenhague e Oslo, os alemães depunham as armas. No mesmo dia, as últimas forças alemãs em ação no leste da Alemanha assinavam a rendição aos russos, em Karlshorst, perto de Berlim. No mesmo dia, as tropas alemãs que se encontravam, havia vários meses, isoladas no norte da Letónia renderam-se também, assim como na região de Dresden-Görlitz. Os alemães somente continuavam a combater em torno de Olomouc, mas tratava-se de uma resistência desesperada e curta; Olomouc caiu durante o dia 8, tal como Sternbeck, ao norte. Às 14h do mesmo dia, a guarnição alemã em St. Nazaire, no Atlântico, rendia-se aos americanos. Uma hora depois, o forte da pequena ilha de Sark, no canal da Mancha, desfraldava, em sua torre, as bandeiras da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos. Havia ainda 275 alemães na ilha e sequer um soldado aliado. O exército britânico, representado por três oficiais e por vinte homens, chegaria dois dias mais tarde.

Em Berlim, trinta minutos antes da meia-noite, um novo termo de rendição substituía o documento assinado em Reims. Pelo lado alemão, assinaram: o almirante Von Friedeburg, que punha o seu nome num terceiro termo de rendição em apenas quatro dias; o general Hans-Jurgen Stümpff, comandante da força aérea alemã; e o marechal Keitel. 




Quatro representantes aliados puseram seus nomes no documento: o marechal da força aérea Sir Arthur Tedder, representando a força expedicionária aliada; o marechal Zhukov, pelo estado-maior supremo do Exército Vermelho; o general de Lattre de Tassigny, comandante-chefe do 1º Exército da França; e o general Carl Spaatz, comandante da força aérea dos Estados Unidos.

Enquanto Hitler assistia à iminente destruição de Berlim, Churchill, em Londres, via, com angústia, Stalin impor um controlo absoluto sobre a Polónia. “Sinto-me muito descontente”, telegrafou Churchill a Stalin, em 29 de abril, “com os desentendimentos que crescem entre nós a propósito do acordo da Crimeia relativo à Polónia”. A Grã-Bretanha e os Estados Unidos haviam decidido permitir que o governo de Lublin se transformasse no “novo” governo polaco, assente numa ampla base democrática e incluindo dirigentes presentes na Polónia e cidadãos que se encontravam fora do país. Com esse fim, formara-se uma comissão em Moscovo, “para escolher os polacos participantes nas negociações”.

Os britânicos e os americanos haviam excluído as personalidades consideradas “muito hostis à Rússia”. Assim, não incluíram “quaisquer membros do governo exilado” e designaram “três homens sérios”, que se opuseram ao governo em Londres “porque não lhes agradava a sua atitude em relação à Rússia e, em especial, a sua recusa a reconhecer a fronteira oriental”, a linha Curzon. Churchill, entrando em detalhes disse: "linha aceite por você e por mim, há tanto tempo, tendo sido eu o primeiro homem, fora do governo soviético, a declará-la, perante o mundo, como justa, junto com as compensações a fornecer à Polónia a ocidente e a norte." Mas nenhum dos três homens, indicados pelos britânicos e americanos, foram tidos em conta por Moscovo, nem o plano de Yalta relativo à instalação de um regime baseado “no sufrágio secreto e universal”, em que poderiam participar nas eleições todos os partidos democráticos e antinazis. O governo soviético assinara um tratado por vinte anos com a anterior comissão de Lublin, a que Stalin chamou “o novo governo da Polónia”.

Depois de referir-se à predominância de comunistas no governo jugoslavo, com quem Stalin também assinara um tratado, Churchill prevenia o dirigente soviético através de um telegrama:
Não é muito consolador antever um tempo em que vocês, os países aos quais dominam e os partidos comunistas de alguns outros países estarão num lado enquanto aqueles que se juntarem às nações de língua inglesa e aos seus parceiros ou domínios estarão do outro lado. É bastante evidente que as dissensões entre uns e outros dividirão o mundo e que todos nós, responsáveis por um ou pelo outro campo, implicados a situação, ficaremos cobertos de vergonha aos olhos da história.

 Esse telegrama para Stalin acrescentava ainda:

Dar início a um longo período de suspeitas, abusos e contra-abusos e conflitos políticos será um desastre que colocará em risco os progressos da prosperidade mundial em benefício das massas, que apenas nós, os três, poderemos garantir. Espero que não haja palavra ou afirmação neste desabafo que, contra minha vontade, faça-o sentir-se ofendido. Se assim for, peço-lhe que me previna, mas peço-lhe encarecidamente, meu amigo Stalin, que não subestime as divergências acerca de questões que poderá pensar serem de pouca importância para nós, mas que simbolizam o modo como as democracias de língua inglesa veem o mundo.

Temos a impressão de que somos nós as vítimas de uma ditadura e de esbarrarmos numa parede de pedra acerca dessas questões que julgávamos sinceramente resolvidas, num espírito de confiança e solidariedade, desde a Crimeia. 


Na manhã de 30 de abril, tropas americanas entraram em Munique; na Itália, os americanos chegavam a Turim. No mesmo dia, o general Eisenhower informou o representante do estado-maior soviético, general Antonov, de que as forças americanas não avançariam, na Áustria, além “da região em torno de Linz” e do rio Enns. Na Ístria, forças britânicas e americanas precipitavam-se para entrar em Fiume, Pola e Trieste antes que Tito o fizesse. Churchill, irritado pela promessa de Eisenhower a Antonov e receoso quanto a um avanço comunista para ocidente, em direção ao Adriático, telegrafou a Truman em 30 de abril:
Não há dúvida de que a libertação de Praga e da maior área possível de territórios ocidentais da Checoslováquia por nossas forças será decisiva para a situação do país no pós-guerra, podendo também influenciar a evolução dos países vizinhos. Por outro lado, se os aliados ocidentais não desempenharem um papel importante na libertação da Checoslováquia, o país seguirá pelo mesmo caminho que a Jugoslávia.
Para a grande deceção de Churchill, Truman respondeu que os movimentos de tropas eram decididos pelos militares, e, ignorando o pedido britânico para que Praga fosse libertada pelos americanos, o general Marshall disse a Eisenhower: “Pessoalmente, e esquecendo os aspetos logísticos, táticos e estratégicos, sou contra que vidas americanas sejam arriscadas em nome de objetivos meramente políticos.”

Praga ficou para história libertada pelo Exército Vermelho. A Ístria, libertada por guerrilheiros de Tito. Churchill nada pôde fazer para impedir que assim fosse. Ainda em 30 de abril, às 14h30, um homem do Exército Vermelho, sargento Kantariya, hasteava a bandeira vermelha no segundo piso do Reichstag


Ainda havia soldados alemães no andar superior. A menos de 2 Km dali, Hitler estava em seu bunker, onde perdera todas as esperanças numa eventual contraofensiva. Às 15h30, ao fim do almoço, pediu aos companheiros – Goebbels, Bormann e outros colaboradores pessoais – que saíssem para o corredor. Enquanto o esperavam, os companheiros de Hitler ouviram um tiro. Hitler disparara dentro da própria boca.

Depois de alguns instantes, Goebbels, Bormann e os outros entraram nos aposentos de Hitler. O Führer estava morto. Eva Braun também estava morta, após envenenar-se. Com um único tiro, o Reich de mil anos chegava ignominiosamente ao fim, doze anos após ser triunfantemente proclamado. Haviam sido anos de sangue e de guerra numa escala que desafia a imaginação. Enquanto os projéteis da artilharia soviética caíam em torno da chancelaria, os corpos de Hitler e Eva Braun eram transportados para o pátio, regados com petróleo e queimados. Às 22h50, a bandeira vermelha era colocada no topo do Reichstag.




Em 22 de novembro de 2011 Moscovo vinha de novo reiterar a autenticidade do fragmento de crânio em sua posse ser de Adolfo Hitler. O funcionário explicou que as autoridades russas permitiram que um especialista americano examinasse o crânio de Hitler. A maior parte da ossada do ditador, com exceção de um pedaço do crânio e da mandíbula foi incinerada por ordem dos dirigentes soviéticos.


segunda-feira, 13 de junho de 2022

A política externa americana no tempo do ilusionista Kissinger




Em 1968 os Estados Unidos ainda eram uma presença marcante no Sudeste Asiático, com meio milhão de soldados apenas no Vietname do Sul. A Guerra Fria dera lugar à détente entre os EUA e a União Soviética com SALT 1 em 1972. Era o primeiro tratado internacional para limitar armamentos estratégicos. E entre a Alemanha e vizinhos a leste, em consonância com a Ostpolitik de Willy Brandt e dos tratados e acordos assinados com a União Soviética em 1970 e nos anos seguintes. No Médio Oriente, a instável trégua pós-67 entre Israel e os países árabes foi seguida pela Guerra do Yom Kippur, pelo embargo do petróleo e o aumento de preço, e uma mudança radical na configuração do poder tanto na região quanto entre os países árabes e as grandes potências. No sul da Ásia, um novo país nascia — Bangladesh — em consequência da guerra entre a Índia e o Paquistão.

Em 1979, na Ásia, os Estados Unidos, após ignorar deliberadamente a China comunista por duas décadas, iniciaram uma série de contactos e encontros com líderes chineses que culminariam na restauração das relações diplomáticas entre os dois países, algo impensável para a maioria dos políticos e estadistas norte-americanos da era da Guerra Fria. Em abril de 1975 os EUA já haviam saído do Vietname e do Camboja; dois meses depois realizava-se a conferência de Helsínquia sobre segurança e cooperação na Europa.

Henry Kissinger – dado o facto de a presidência de Nixon coincidir com uma viragem importante nos assuntos internacionais – fez da condução da política externa dos EUA um tema de inusitado interesse geral pela originalidade estratégica.

A Guerra Fria continuava congelada, e os EUA tinham estado presos a uma guerra perdida no Sudeste Asiático. Os regimes comunistas do Sudeste Asiático, inclusive o de Hanói, eram autoritários, repressivos e representavam uma ameaça a seus vizinhos não comunistas; e o regime de Hanói estava implacavelmente determinado a expandir seu poder. Contudo, ninguém no Ocidente conseguiu encontrar um modo eficaz de se opor a esses governos sem o apoio a governos não comunistas duvidosos (e frequentemente impopulares), o que na maior parte dos casos redundou em fracasso. Muitos soldados norte-americanos morreram no Vietname antes de Richard Nixon assumir o poder, por razões que pareciam cada vez mais obscuras a muita gente. Os “especialistas” poderiam ter tentado explicar porque e como os EUA estavam no Sudeste Asiático, mas eles pouco tinham a oferecer em termos do que precisava ser feito: salvar o Vietname do Sul ou retirar as forças norte-americanas. E este, acima de tudo, era o problema enfrentado pelo governo republicano que tomava posse.

A política externa sob Nixon e Kissinger não só deixava de ser adequadamente discutida no Congresso ou pelo eleitorado, como foi em ocasiões vitais deliberadamente escondida. O governo não só participou livremente em atos clandestinos e operações militares ilegais.

A abertura para a China e os tratados de armamento com a URSS foram bons em si, e no caso chinês ajudaram a destravar a discussão interna sobre a política externa nos Estados Unidos. Nixon e Kissinger podem levar corretamente o crédito por esses feitos. Mas eles nunca fizeram parte de uma estratégia abrangente. Kissinger desprezava os profissionais da política externa. A sua confiança em seu próprio conhecimento e compreensão era paradigmática. Quando um membro de sua equipe discordou do plano de invadir o Camboja em abril de 1970, Kissinger respondeu, reveladoramente: “Seus pontos de vista representam a covardia da elite da Costa Leste.”

Nem Nixon ou Kissinger pensaram em consultar outros congressistas influentes a respeito dessas missões — com o resultado de que, quando elas foram final e inevitavelmente divulgadas, eles não somente levaram à decisão do Congresso, em junho de 1973, de cortar os fundos para futuras ações militares no Sudeste Asiático, como também a um ambiente de frustração e ressentimento generalizados que contribuíram para a queda de Nixon. Como resultado, Kissinger desconsiderou diplomatas profissionais, estabeleceu canais privados com pessoas de todos os tipos e assumiu sozinho negociações cruciais, frequentemente sem consultar a equipe negociante existente, deixada completamente no escuro.

Kissinger era por vezes autoritário ao lidar com a sua equipa. Em certos momentos ele humilhava negociadores profissionais de modo a preservar o sigilo ou valorizar seu papel. Nada disso seria importante se ele tivesse garantido o desfecho desejado. Normalmente considera-se o Camboja — “a guerra de Nixon” — a pior falha no histórico de Nixon. No Camboja, o governo Nixon repetiu todos os erros do Vietname em escala ampliada e concentrada, sem ter mais a desculpa da inexperiência. Autorizou secretamente mais de 3.600 ataques aéreos com B-52s contra supostas bases do Vietcongue (jamais confirmadas) e contra forças norte-vietnamitas no Camboja, apenas em 1969-70. Em 1974 esta política contribuiu para a ascensão do Khmer Vermelho — uma organização comunista de guerrilha cujos crimes seguramente não podem ser creditados na conta de Nixon, mas cujas possibilidades políticas foram ampliadas pela devastação provocada pela guerra.

Por outro lado, a intensidade dos bombardeios — questão de avaliação pelo senso comum, compartilhada por muitos observadores objetivos — levou o Khmer Vermelho a esforços militares maiores. Também os tornou mais confiantes, mais distantes do Vietname do Norte, mais alienados de Sihanouk, e no geral menos sujeitos à influência de qualquer de seus defensores comunistas. Os bombardeios certamente tornaram mais difícil, e não menos, que qualquer parte persuadisse o Khmer Vermelho a aceitar um cessar-fogo e negociasse uma saída política — que era o objetivo declarado. As chances desta mudança de rumo do Khmer Vermelho já eram quase certamente mínimas. Um esforço de negociação para incluir Sihanouk como aliado [...] em conjunto com um programa de bombardeio bem mais limitado, para manter a ameaça em vigor, poderia ter alguma chance. Como foi feito, com bombardeio intenso sem negociação, até enraivecer ainda mais o Khmer Vermelho, foi o pior de todos os mundos. Como durante todo o envolvimento norte-americano no Camboja, os erros políticos — descontadas as eventuais reações do Congresso — foram monumentais. Eles devem ser devidamente creditados na conta de Nixon e de seus dois principais assessores, Alexander Haig e Henry Kissinger.

Nixon, Kissinger e Alexander Haig guardaram para si e para um punhado de colegas os detalhes da operação no Camboja enquanto foi possível, raramente pedindo conselhos a fontes desvinculadas dos militares (que se preocupavam unicamente em bloquear as rotas de suprimento norte-vietnamitas que passavam pelo leste do Camboja). O benefício no Camboja reduziu-se, portanto, quase inteiramente ao impacto psicológico negativo no Vietname do Sul se o Camboja caísse, e ao compromisso pessoal de Nixon com Lon Nol.

Não foi exatamente uma grande vitória do pensamento estratégico. Havia pessoas bem informadas no Departamento de Estado (e mais ainda no Quai d’Orsay, em Paris) que poderiam ter aconselhado Kissinger e Nixon a não fazer o que propunham, mas ninguém lhes perguntou nada. Kissinger, ainda mais do que Nixon, considerava um axioma que o mundo era governado pelas Grandes Potências, que passavam instruções e impunham seus interesses aos Estados menores, aos quais só restava obedecer. A política em relação ao Camboja foi, portanto, concebida e praticada sem atenção devida às características específicas de qualquer das partes locais interessadas. No caso dos países e organizações comunistas, Kissinger considerava óbvio que as linhas de comunicação seguiam precisa e diretamente de Moscovo (ou Pequim) para o mais humilde guerrilheiro na selva.

Assim como os governantes vietnamitas em Hanói desconfiavam historicamente da China, os comunistas do Camboja nunca obedeceram a seus “camaradas” vietnamitas, embora o “modelo” maoísta — que conheceram em primeira mão na China — sem dúvida inspirasse seu pensamento de forma mais direta. Zhou Enlai chegou a tentar transmitir esta verdade básica sobre a história da Ásia e a política comunista a Kissinger, em pessoa, sem qualquer resultado aparente.

O Camboja foi o pior exemplo, mas não foi o único. Em março de 1971 o ditador paquistanês Yahya Khan reprimiu com violência os protestos no Paquistão Oriental; milhares de refugiados se instalaram na vizinha Índia. A tensão cresceu durante o ano inteiro, até dezembro, quando a guerra irrompeu entre a Índia e o Paquistão, na fronteira noroeste da Índia, após o envio pelo Paquistão de tropas numerosas para reprimir o descontentamento no Paquistão Oriental. A guerra durou algumas semanas, até que as forças paquistanesas se renderam e bateram em retirada. O Paquistão Oriental proclamou a sua independência, adotando o nome de Bangladesh, o que deixou o Paquistão derrotado, humilhado e reduzido em tamanho.

Um motivo para isso era que Kissinger, preocupado com fatores geopolíticos nos assuntos internacionais, relutava em aceitar um acordo definitivo para territórios e fronteiras na Europa. Willi Brandt escreveu que “Henry Kissinger não gostava de pensar nos europeus a falarem numa só voz. Ele preferia manipular Paris, Londres e Bonn, jogando uma contra a outra, no velho estilo”. Willi Brandt é um tanto ingénuo, no caso. Mas as suas perceções das preferências de Kissinger não soam menos exatas por causa disso. O “velho estilo”, entretanto, não foi muito eficaz. Um de seus principais resultados foi enfraquecer a aliança atlântica, reduzindo a confiança europeia em Washington. Em abril de 1973, Kissinger, num discurso desastroso e famoso voltado aos aliados europeus continentais dos Estados Unidos, declarou aquele um “ano europeu”, sem consultar um único líder.

O resultado da política de Kissinger e de seu estilo foi abrir uma brecha entre os EUA e seus únicos verdadeiros aliados internacionais — uma fenda que abriu ainda mais quando os EUA deixaram de dar aviso prévio aos aliados da NATO do alerta militar mundial de 24 de outubro de 1973 (na época da guerra do Médio Oriente). Como no caso do governo japonês, após os choques políticos e econômicos de 1971 (abertura para a China, abandono da paridade dólar-ouro, restrições às importações dos EUA), os políticos da Europa Ocidental, na sequência do embargo do petróleo, do discurso de Kissinger e da fria reação à Ostpolitik, começaram a repensar seu relacionamento com Washington. Como resultado de se comportar como se os aliados europeus dos EUA estivessem sempre dispostos a endossar automaticamente as ações dos norte-americanos, Kissinger e Nixon os livraram do hábito de agir assim. O dano causado à NATO e à aliança ocidental ainda era sentido em meados dos anos 1980.

Kissinger livrou o Médio Oriente do volátil atoleiro que se seguiu à Guerra do Yom Kippur, alternando-se incansavelmente entre Golda Meir e Anwar Sadat, superando a União Soviética em termos de influência local, além de estabelecer boas relações com muitos líderes políticos importantes na região. Ao tratar com Sadat e outros, foram os argumentos de Kissinger, o vínculo pessoal que ele estabelecia, e a impressão de respeito e compreensão que transmitia, que impulsionaram as coisas para a frente.

Kissinger é um admirador de Metternich. Ele o apresenta como um modelo para emulação contemporânea: nos desdobramentos da queda do comunismo, ele escreveu: “Pode-se torcer para que algo similar ao sistema Metternich se desenvolva.” Não se trata de um comentário casual, isolado, paralelo. O sistema internacional que até aquela data mais tempo durara sem uma grande guerra vigorou a partir do congresso de Viena. Combinava legitimidade e equilíbrio, valores compartilhados e diplomacia baseada no equilíbrio entre as potências. A Áustria de 1815 era um império hereditário (embora liberal para os padrões europeus continentais do período), onde todo o poder estava nas mãos do imperador e seus ministros. Não havia restrições constitucionais, nem eleitorado para informar ou contentar, nem comités a consultar. O ministro do Exterior imperial e o chanceler respondiam apenas a seu imperador, e à visão compartilhada do interesse imperial. Metternich, que tinha alguma noção dos problemas internos iminentes no império centro-europeu multiétnico em expansão, podia concentrar a sua atenção unicamente nas questões estrangeiras e diplomáticas. Em suas próprias palavras: “Eu governei a Europa algumas vezes, mas nunca governei a Áustria.”

Kissinger se relacionava com Nixon tanto quanto Metternich com o imperador Francisco II. Um cortesão inteligente e ambicioso com acesso a um governante absoluto está em posição de influência única, especialmente se estiver livre de responsabilidade pelos assuntos domésticos — isso pelo menos a história nos ensina. Além do mais, embora o cortesão corra óbvios riscos se cair em desgraça com o governante, é o próprio governante quem está verdadeiramente vulnerável numa crise. Os cortesãos mais inteligentes — Talleyrand seria um exemplo — sobrevivem à queda de seus senhores, graças a alguns movimentos rápidos e à reelaboração do arquivo histórico; e Kissinger destacava-se entre os mais espertos de todos eles.

Henry Kissinger sabia perfeitamente bem que seu mundo não era o mesmo de Metternich, ou até de Woodrow Wilson — estadistas do passado nunca foram, segundo ele, obrigados a conduzir a diplomacia num ambiente onde os eventos podem ser instantânea e simultaneamente percebidos pelos líderes e seus públicos. Um certo grau de segredo e cálculo estratégico é condição básica para se fazer boa diplomacia em qualquer sistema político; porém, numa democracia liberal, reconhecer seus limites é uma demonstração básica de sabedoria.

Kissinger acreditava que países pequenos (como o Chile) em regiões sem importância (como a América Latina) exigiam pouca atenção e respeito enquanto mantivessem a linha. Ele acreditava, como foi visto, em “vínculos” — a noção de que as negociações dos EUA com outros países e regiões deveriam fazer sempre parte de um conjunto de políticas globais, em vez de serem respostas a situações locais em bases individualizadas. E ele acreditava no “equilíbrio do poder”. Por vezes Kissinger seguia a linha “geopolítica”, como nos entendimentos com a China; por vezes não, como na abordagem baseada nos vínculos internacionais dos comunistas e sua influência no Vietname ou no Camboja. O que Kissinger chamava de “diplomacia triangular” entre as grandes potências, gerou mais relações recíprocas com a China e a União Soviética. Mas isso nunca convenceu a China ou a União Soviética a moderar ou conter seus “clientes” na Ásia ou na África — a coisa que Nixon e Kissinger buscavam acima de tudo. O “vínculo” não garantia nada que não pudesse ser obtido pelos esforços convencionais de negociação diplomática. E o objetivo geral — garantia dos interesses permanentes dos Estados Unidos — estava provavelmente mais distante de ser atingido no final da era Nixon-Kissinger do que em seu início.

Nixon e Kissinger nunca deram ao Chile a atenção exigida por seu próprio sistema de tomada de decisões, e agiram impulsivamente, com reflexão inadequada. Suas ações não foram apenas moralmente repugnantes, como correram graves riscos com o desmascaramento que prejudicou os Estados Unidos aos olhos latino-americanos. Este é o problema do realismo geopolítico na política externa, especialmente quando praticada com desprezo pelas restrições internas.

Richard Nixon foi em certo aspeto um sujeito de sorte. Derrubado por Watergate, ele ressurgiu em certas áreas como um improvável herói trágico. Henry Kissinger beneficiou-se duas vezes com esta estranha beatificação — as falhas são de Nixon, mas a política externa era de Kissinger, e seus fracassos podiam ser atribuídos aos problemas domésticos de Nixon. Qualquer um tentado a dar crédito a essas alegações não antecipa o que se espera ser o julgamento da história sobre um homem atormentado numa época problemática da vida norte-americana.

De caçadores a aurigas





Auriga, no contexto da Antiguidade Clássica, refere-se a um condutor de um carro de guerra - a quadriga - que tem como ofício guiar os cavalos que a puxam. Na Roma Antiga, os aurigas conduziam os carros no circo, durante as corridas de bigas. Ao cocheiro mais experiente, que pode conduzir a quadriga, é-lhe atribuído o título de agitador. No transporte de alguns dos mais influentes romanos, principalmente comandantes militares, os aurigas tinham o dever de dirigir a biga, e eram normalmente escolhidos entre os escravos em quem possuíam maior confiança. Mais tarde, nas corridas de bigas, os nobres do Estado começam a participar nas competições.

O auriga é geralmente retratado vestido com uma túnica curta, a cabeça normalmente protegida por um capacete de couro, um pequeno chicote seguro na sua mão e guias em torno da cintura e atadas atrás das costas (técnica etrusca readoptada pelos romanos) para evitar que se soltem, fazendo uso de um colete de proteção feito de tiras de couro que protegem o peito contra a fricção das rédeas.

No Santuário de Delfos foi encontrada a estátua de bronze mais famosa de um auriga - O Auriga de Delfos (na imagem).




Esta escultura constitui uma peça honorífica de um condutor de uma quadriga vencedor nos Jogos Píticos de 478 a.C. Os olhos estão incrustados com pedras coloridas e esmalte.

Caio Apuleio Diocles (104-146) é um dos mais conhecidos aurigas da Antiguidade. No fim da sua brilhante carreira que durou 24 anos, segundo uma inscrição dedicada a Diocles, são-lhe atribuídas 4257 corridas e 1426 vitórias; com isto, recebeu o título de 'o melhor auriga da história'. Os seus lucros financeiros eram tais que se tornou mais rico do que o próprio imperador.

Uma biga é um carro de duas rodas, movido por dois cavalos, semelhante a uma quadriga (movida por quatro cavalos). Foi usada na Antiguidade como carro de combate. Leve, em grande parte de madeira, a biga foi usada no Egito desde a Quinta Dinastia. Largamente difundida na Civilização Micénica (o mundo do tempo da Guerra de Troia) a biga estava reservada aos chefes. No século V. a.C., o seu uso na guerra já havia decaído em território grego. Mas, no final do mesmo século e nos seguintes, passaria a ser muito usada em corridas, nas festas helénicas. Em Roma, a biga persistiu nas corridas de circo.

Alguns modelos mais antigos podiam mesmo dispor de quatro rodas, embora estes não sejam geralmente referidos como bigas. A invenção que potenciou a construção destes leves carros para fins militares foi a utilização de aros na roda. Por esta altura, a maioria dos cavalos não conseguia suportar o peso de um homem em combate; o cavalo selvagem original era, na verdade, um grande pónei em tamanho. As bigas eram eficazes sobretudo em terrenos planos e abertos. Os cavalos eram gradualmente alimentados para se tornarem maiores e mais fortes. Foi a utilização das bigas que potenciou mais tarde o surgimento da cavalaria nas divisões militares. As bigas de roda com aros datam de cerca de 2000 a.C., e a sua maior utilização parece ter-se dado à volta de 1300 a.C. 

Porque se terão tornado os aurigas, ou os pastores de quem eles direta ou indiretamente descendiam, mais belicosos que os seus ancestrais caçadores ou vizinhos agricultores? Não terá sido muito antes de 1700 a.C. que a intrepidez bárbara deu largas à Técnica que viria a dar na chamada Civilização. Nas pastagens em torno e entre os assentamentos agrícolas viviam pastores aparentados linguisticamente aos guerreiros da estepe ocidental. Por meio da mediação das comunidades agrícolas, esses pastores ficaram cada vez mais expostos à influência irradiada do distante centro cultural da Mesopotâmia.

Pode-se dar como certo que a Agricultura reduziu a proporção de carne na dieta humana. Sabe-se que a mudança para a produção de cereais não só reduziu o consumo de proteínas, como os lavradores araram as terras mais para o cultivo do que para as pastagens; é também um facto amplamente observável que os agricultores procuraram prolongar a vida de seus animais domésticos — para maximizar a sua produção de leite, peso da carcaça ou força muscular — em vez de apartá-los para comê-los assim que atingissem a maturidade. Em consequência disso, o fazendeiro não adquiriu as habilidades do açougueiro - matador de animais jovens e lépidos. Os caçadores primitivos era bons a localizar e a cercar a presa até ao golpe fatal; mas não dominavam tão bem as técnicas do açougueiro. Isso foi desenvolvido na passagem de caçador a pastor.

Os pastores aprenderam primeiro a selecionar para depois matar. Para o pastor as ovelhas e as cabras são para eles alimento, mas alimento vivo que dá o leite e seus derivados: manteiga, coalhada, soro, iogurte, bebidas fermentadas e queijo. Só secundariamente dá a carne e, talvez, o sangue. Não se sabe com certeza se os nómadas das estepes da Antiguidade extraíam sangue de seus animais, como fazem os pastores de gado da África oriental, mas parece possível; eles certamente matavam a produção anual de animais jovens e os reprodutores mais velhos, juntamente com os feridos, deformados ou doentes, numa base rotativa. Tal programa de matança exigia a capacidade de liquidar um animal vivo com um mínimo de dano e a menor perturbação possível para o resto do rebanho. Dar um golpe letal curto e rápido constituía uma habilidade pastoril, para além do conhecimento anatómico adquirido na matança periódica. A castração dos machos foi outra técnica adquirida pelo conhecimento da diferença no corte da carne. Assim como a experiência dos partos e da cirurgia veterinária, que apesar de grosseira, era própria e decorrente da boa administração de um rebanho.

Toda essa experiência com os rebanhos levou a que os pastores das montanhas e das estepes acabassem por levar sempre a melhor com os agricultores sedentários e os bandidos estacionários das planícies. Foi a técnica da conduta dos rebanhos, assim como o abate dos animais, que fez dos pastores guerreiros calculistas que lhes conferiu vantagem no confronto com os agricultores sedentários das terras ditas civilizadas. 

Foi assim que os hunos, turcos e mongóis passaram da biga para o cavalo de montar, o que tornou as suas táticas ainda mais eficazes. Para fazer a batalha virar a seu favor, eles assolavam e intimidavam o inimigo com saraivadas de flechas atiradas de longa distância com a sua arma terrivelmente superior, o arco composto. Que não deve ter aparecido da noite para o dia, pois a complexidade de sua construção, como a da biga, levou à fabricação de muitos protótipos experimentados durante décadas, se não séculos. um pedaço de madeira fina, ou de várias lâminas, ao qual se colavam tendão de animal elástico na parte externa (“costas”) e tiras de chifre compressível na parte interna (“barriga”). As colas, compostas de tendões de gado fervidos e couro misturado com pequenas quantidades de pó de chifre e couro, podiam levar mais de um ano para secar e tinham de ser aplicadas sob condições precisas de temperatura e humidade. Em suma, muita arte tinha de estar envolvida na sua preparação e aplicação, boa parte dela caracterizada por uma visão mística e semirreligiosa.

A habilidade e a presteza com que se moviam ajustavam-nos à guerra de ataque. Toda a guerra exige movimento, mas para povos sedentários até mesmo os movimentos de curto alcance impõem dificuldades quando os equipamentos são inadequados e pesados. Os agricultores não dispunham de meios de transporte rapidamente mobilizáveis, nem especialmente animais de tração. A sua movimentação era desajeitada e volumosa. Para o nómada fogo e água assumem uma importância diferente. Cada vez que a tenda é erguida em um novo lugar, um pouco da primeira água fervida e o primeiro alimento cozido devem ser rejeitados.

Os povos que tinham dominado as artes de fazer e usar bigas e arcos compostos descobriram — de que forma não podemos conjeturar — que os defensores das terras colonizadas não poderiam resistir aos métodos agressivos que tinham inicialmente inventado para enfrentar os predadores que atacavam os seus rebanhos. Os aurigas que desceram das montanhas para as planícies abertas conseguiram infligir baixas incapacitantes aos povos sedentários. Cercando soldados a pé sem armaduras a uma distância de cem ou duzentos metros, uma tripulação de biga — um para dirigir, outro para atirar — poderiam acertar em seis homens por minuto. Um trabalho de dez minutos de dez carros de guerra poderia causar quinhentas ou mais baixas aos pequenos exércitos da época.

Uma vez aperfeiçoada, a tecnologia da biga teria sido fácil de reproduzir e até mais fácil de transportar e vender. Um baixo-relevo egípcio de cerca de 1170 a.C. mostra um homem carregando uma biga sobre os ombros — menos de 45 quilos —, e um produto assim altamente comerciável teria estimulado a produção em todos os lugares onde houvesse artesãos com os conhecimentos necessários. O limite para a produção de uma mercadoria tão vendável e cara não seria, na prática, a falta de capacidade ou de matéria-prima, mas a escassez de cavalos adequados. O animal para a biga tinha de ser selecionado e bem adestrado. A mais antiga escola para adestramento de cavalos data 
dos séculos XIII e XII a.C. , com base em um grupo de textos mesopotâmicos.

Os hicsos que invadiram o Egito vinham das fímbrias setentrionais pouco férteis do deserto da Arábia e falavam uma língua semítica. Os cassitas e hurritas que dividiram e derrubaram o Império Mesopotâmico de Hamurábi vinham das cabeceiras montanhosas dos rios Tigre e Eufrates, ainda hoje uma das regiões etnicamente mais complexas do mundo. Os cassitas falavam uma língua não identificada, classificada como “asiática”, enquanto os hurritas e os hititas, que estabeleceram um império onde é hoje a Turquia, falavam línguas indo-europeias. O mesmo acontecia com os árias que invadiram a Índia e é possível que os fundadores da dinastia San da China também viessem do Norte do Irão, embora talvez de um centro proto-iraniano do Altai.

A identidade obscura dos soberanos aurigas é uma indicação da sua principal característica: eram mais destruidores que criadores e, na medida em que se civilizavam, faziam-no mediante a adoção de hábitos, instituições e cultos de povos conquistados, em vez de desenvolverem uma cultura própria. Na Mesopotâmia, o império de Hamurabi, que emergira de um período de conflitos provocado por povos fronteiriços conhecidos como gutos e elamitas, conseguiu restabelecer a autoridade outrora exercida por Sargão, reconstruindo uma burocracia e um exército profissional sob o comando da Babilónia. Porém, o exército desse império amorita continuava a ser uma força de infantaria incapaz de deter os carros de guerra cassitas e hurritas, quando eles irromperam pelas fronteiras no século XVII a.C.

Os invasores hicsos do Egito, embora tenham se assenhoreado efetivamente do Norte do país, fizeram-no somente assumindo uma divindade egípcia como seu deus estatal e adotando práticas administrativas dos faraós. Também os San parecem ter assumido uma cultura preexistente no Norte da China, em vez de ficarem com a sua própria. Algumas inscrições revelam que eles caçavam com bigas, matando animais tão grandes quanto tigres e touros com o arco composto, e que faziam sacrifícios humanos, provavelmente de escravos, mas talvez também de prisioneiros de guerra. Objetos encontrados em escavações de túmulos indicam que faziam uso do bronze, enquanto seus súbditos agricultores continuavam a usar instrumentos de pedra. Os San foram derrubados em 1050-1025 a.C. pelos Tsou, uma dinastia do Sul da China que aprendera a usar o cavalo e o carro de guerra de uma outra fonte.




A tirania dos aurigas teve curta duração em todos os lugares. Os soberanos árias da civilização do Indo parecem ter sido os únicos invasores sobre rodas que não foram derrubados internamente; alguns investigadores, no entanto, consideram que o aparecimento do budismo e do jainismo foi uma reação nativa contra a tirania de casta que os árias haviam implantado. Os hicsos foram expulsos do Egito pelo renascimento do poder faraónico com Amnés, que fundou o Novo Império por volta de 1567 a.C. Outros aurigas, os hititas da Anatólia, os gregos da civilização micénica, que foram talvez os responsáveis pela destruição da civilização minoica de Creta, e podem ter inspirado a história de Homero da Guerra de Troia, foram ambos derrubados por povos do Norte da Grécia, os frígios e os dórios, por volta de 1200 a.C. Porém, mais significativo é o caso dos mesopotâmios nativos, sob a liderança de Assurubalit, que concluíram em 1365 a.C., após uma demorada campanha contra os seus suseranos hurritas restabeleceram o antigo império, conhecido como Assíria, nome derivado de sua capital Assur.

A imagem dos Assírios, inferida de sua magnífica arte imperial descoberta nas escavações de Nínive e Nimrud, é de uma civilização sobre carros de guerra. De facto, seus reis e nobres eram aurigas, assim como foram aurigas os faraós do Novo Império. Porém seus ancestrais não o haviam sido. É essa transformação do papel dos reis no mundo civilizado que devemos considerar como o mais significativo, duradouro e funesto efeito da dominação pelos guerreiros dos antigos Estados teocráticos. Os egípcios do Antigo e do Médio Império mal tinham sido guerreiros; até mesmo o exército permanente de Sargão era uma organização ineficaz em comparação com o seu sucessor assírio. Os povos sobre rodas ensinaram aos assírios e egípcios as técnicas e o espírito da guerra imperial e ambos, cada um em sua órbita, tornaram-se poderes imperiais. O impulso que fez os faraós do Novo Império expulsarem os hicsos levou os seus exércitos nos anos seguintes a estabelecer as fronteiras do Egito longe do Nilo, nas montanhas do Norte da Síria. Depois da expulsão dos hurritas, os assírios resolveram o constante problema da civilização mesopotâmica, em que as suas ricas terras, mas indefesas, eram alvo de predadores. Partiram para a ofensiva, estendendo progressivamente os limites do que viria a tornar-se o primeiro império etnicamente eclético, incluindo partes do que são hoje a Arábia, o Irão e a Turquia, junto com a totalidade da Síria e da Israel modernas. 

Foi dessa forma que esses povos, ao receberem o legado da biga dos aurigas, instituíram o modelo de Estado que ainda perdura em todo o mundo civilizado pela guerra.


sexta-feira, 10 de junho de 2022

Guerra: competição, conflito, e assim por diante



Enjaular o Putin
Como conseguir meter a Besta dentro da jaula?

Não podemos ignorar que a estepe ainda existe. E a maior parte dos habitantes dessas grandes extensões ainda devem ter memória dos seus antepassados longínquos conhecidos na História por: os hunos, em primeiro lugar; e depois os mongóis. Devemos ter presente que a violação, a pilhagem, o massacre e a fome era uma parte da violência. De resto eram exímios cavaleiros com lanças e arcos compostos em flecha. E também do vocabulário, a palavra 'guerra' não fazia muito sentido. Eram mais incursões e operações especiais que levavam tudo à frente. Com os pés no estribo, com coletes de seda à prova de espeto, as flechas eram disparadas em movimento.

E assim se tornaram por um certo tempo, e pela primeira vez, os legítimos senhores da Eurásia. O Ocidente, entre os séculos V e XV, era insignificante, pequeno e pobre.
Sabe-se pelos estudos do cérebro realizados até ao momento que as reações de medo, aversão ou ameaça que se resolvem em agressão, têm a sua origem no sistema límbico. Mas eles também enfatizam a relação complexa desse sistema com as partes “superiores” do cérebro, tais como os lobos frontais, onde as informações sensoriais que chegam são inicialmente processadas, e da forma mais elaborada.

Os lobos frontais, de acordo com A. J. Herbert, parecem ser responsáveis pelo “controlo e uso do comportamento agressivo”, pois sabe-se que danos dos lobos frontais do homem podem causar irrupções incontroláveis de agressão explosiva não seguidas de remorso. A agressão é uma função do cérebro inferior que no homem é controlada pelo cérebro superior.

Em termos gerais, altos níveis de testosterona nos machos resultam em intensificação da masculinidade, da qual a agressividade é uma característica; níveis baixos, no entanto, não estão correlacionados com falta de coragem ou combatividade. Encontram-se provas disso, por exemplo, na reputação de guarda-costas eunucos e nos êxitos de Narses, famoso general eunuco de Bizâncio. Os efeitos hormonais tendem a ser moderados pelo contexto: cálculos de risco contrabalançam, tanto nos animais como no homem, a ação do que pode ser chamado de instinto.

Evidentemente, há uma distinção lógica entre agressão e autodefesa que não perde valor mesmo que os classificadores mostrem que os três tipos de comportamento que classificam juntos têm a sua origem na mesma área do cérebro. Essa indiferenciação sugere também que os que dão razão a Hobbes, de que o homem é naturalmente agressivo, dão pouca importância à influência moderadora de partes do cérebro que estão fora do sistema límbico.

Todos os animais que mostram comportamento agressivo possuem genes que modificam o seu nível de expressão. Sendo assim, os impulsos agressivos são contrabalançados por cálculos de risco ou por comparação da ameaça com a chance de escapar - “lutar/fugir” . A capacidade de modificar a expressão da agressão é particularmente marcante nos seres humanos.

É certo que agora sabemos que o medo e a ira têm a ver com a parte inferior do cérebro que é estimulada pela identificação da ameaça pela parte superior. As duas áreas de neurônios se comunicam por meio de ligações químicas e hormonais e que certas heranças genéticas predispõem a reações mais ou menos violentas. O que a ciência não pode prever é quando um indivíduo vai exibir violência. O que a ciência não explica é porque grupos de indivíduos se reúnem para lutar com outros. Uma base psicológica para a teoria da agressão foi apresentada por Freud, que originalmente a considerava como a frustração do impulso sexual pelo ego. Após a Primeira Guerra Mundial, na qual os seus dois filhos serviram com distinção, mas que o marcou por sua tragédia, Freud adotou uma visão mais sombria. Em uma correspondência famosa com Einstein ele afirma que o homem tem dentro dele uma ânsia de ódio e destruição. Para contrabalançá-la só o desenvolvimento de um pavor bem fundado das guerras futuras nucleares poderá contê-lo.

Em Totem e Tabu (1913), Freud propusera uma teoria da agressão grupal que se baseava muito na antropologia literária. Ele sugeria que a família patriarcal era a unidade social primitiva e que ela se ramificara devido às tensões sexuais dentro dela. Supunha que o pai patriarcal tivera direitos sexuais exclusivos sobre as mulheres da família, levando assim seus filhos sexualmente privados a matá-lo e comê-lo. Cheios de culpa, eles então proibiram e tornaram tabu a prática do incesto e instituíram a exogamia — o casamento fora do círculo familiar —, com toda a sua potencialidade de rapto de mulheres (Guerra de Troia) e violações (todas as guerras). Inicialmente eram contendas entre famílias que depois passou a ser entre tribos. 

Mais recentemente, com o desenvolvimento da Etologia, que combina a teoria psicológica com o estudo do comportamento animal, produziram-se explicações mais rigorosas da agressão grupal. A ideia de um território fundador tem origem na obra de Konrad Lorenz. A agressão é um “impulso” natural, extraindo a sua energia do próprio organismo, que chega à “descarga” quando estimulado por um “libertador” apropriado. Porém a maioria dos animais possuía, em sua conceção, a capacidade de amenizar a descarga agressiva sobre outros indivíduos da mesma espécie, exibindo geralmente sinais de submissão ou recuo. Segundo Lorenz, o homem comportava-se originalmente da mesma forma, mas, ao aprender a fazer armas de caça, acabou superpovoando o seu território. Os indivíduos tiveram então de matar outros a fim de defender um pedaço de terra, e o uso de armas, que “distanciava” emocionalmente o matador da vítima, atrofiou a reação da submissão. Esse foi o processo, segundo Lorenz, pelo qual o subsistente sistema da caça de outras espécies derivou a sua tenacidade de matador no sentido de agredir os seus semelhantes.

Em grupo, sendo mais eficazes na caça do que individualmente, os humanos aprenderam a caçar de forma cooperativa em territórios comuns, tal como os animais caçadores tinham-se adaptado a fazê-lo. Os bandos de caçadores tinham uma composição exclusivamente masculina, dada a sua apetência corporal, durante milénios os principais provedores de sustento, ficou a recolecção reservada para as mulheres. Tendo em vista que os bandos de caça tinham de aceitar uma liderança por motivos de eficiência, a liderança masculina agressiva determinou a partir de então o ethos de todas as formas de organização social. Esta teoria, todavia, foi mal recebida numa determinada escola dos praticantes da mais velha das ciências sociais - a Antropologia, como uma extensão da Etnografia. No século XVIII, os primeiros etnógrafos, como Latifau e Demeunier, reconheceram que a guerra era uma característica intrínseca das sociedades que estudaram. Assim nasceu a grande controvérsia “natureza versus educação”, que continua a dividir os cientistas sociais até hoje. Alguns defensores da escola naturalista, ficaram conhecidos como darwinistas sociais devido à sua defesa do conceito de luta como meio de mudança.

Mito e ritual eram utilizados para reforçar os laços de parentesco e evitar o recurso à violência? A Antropologia foi pressionada a apresentar exemplos de sociedades primitivas nas quais os padrões de parentesco antecipassem os da política dos modernos Estados. Com efeito, no final do século XIX, as energias dos antropólogos estavam em larga medida devotadas não a debater se o parentesco constituía a raiz das relações humanas, mas se as culturas criativas, que tomavam como modelo da organização humana, se tinham desenvolvido espontaneamente em vários lugares separados; ou se tinham difundido a partir de um centro original para outros locais. Essa busca das origens estava fadada ao fracasso, pois nem mesmo as sociedades mais primitivas disponíveis para estudo existiam em estado original. Teriam evoluído de alguma forma, ou teriam sido alteradas pelo contacto, embora ténue, com outras culturas?

Franz Boas, um alemão que emigrara para os Estados Unidos e que simplesmente negou que a busca das origens fosse produtiva. Era fútil esquadrinhar as culturas em busca de uma forma política atual que servisse de padrão. O homem era livre para escolher entre a mais ampla variedade de formas culturais a que melhor se adequasse a cada caso ecológico. Ruth Benedict, que havia sido assistente de Franz Boas, passou a ser referência, apesar do amplo público atraído por sir James Frazer e a sua Rama Dourada, gostar mais da universalidade dos mitos.

Ruth Benedict propôs a existência de duas formas culturais principais: apolínea e dionisíaca. A primeira, autoritária, a segunda, permissiva. A ideia do modo dionisíaco, no entanto, já despertara ampla atenção em consequência de uma visita feita por uma jovem discípula de Boas, Margaret Mead, aos mares do Sul em 1925. Em Coming of age in Samoa, Mead contou que encontrara uma sociedade que vivia aparentemente em perfeita harmonia consigo mesma, onde os laços de parentesco eram atenuados até quase a invisibilidade, a autoridade dos pais se dissolvia em meio à afeição da família extensa, as crianças não competiam por primazia e a violência era praticamente desconhecida.

O determinismo cultural também causou um efeito profundo nos antropólogos do mundo anglo-saxónico, mas por um motivo diferente. Os ingleses em particular, líderes da etnografia devido às oportunidades de trabalho de campo oferecidas pela enorme extensão de seu império, aceitaram a importância de seu impulso, mas estavam insatisfeitos sobretudo com a recusa do determinismo cultural em admitir que "a natureza humana e as necessidades materiais do homem" poderiam ser tão importantes quanto a liberdade de escolha na determinação da cultura em que ele vivia. Então, certos antropólogos, sob a influência de outro imigrante alemão, Bronislaw Malinowski, que também fizera o seu primeiro estudo de campo nos Mares do Sul, mas dez anos antes de Margaret Mead, ofereceram uma alternativa que ficou conhecida como funcionalismo estrutural (a confluência de duas filosofias). 

Os funcionalistas estruturais chegaram a uma análise bem mais detalhada da sociedade do que os deterministas culturais achavam necessário. Porém, a matéria-prima que coletaram para mostrar como a estrutura sustentava a função acabou por cair dentro de duas categorias familiares: mito e parentesco. O debate tornou-se ainda mais agitado após a II Guerra Mundial com a intervenção de Claude Lévi-Strauss, que conseguiu fazer a estrutura parecer muito mais importante do que a função. Partindo do conceito freudiano de tabu, procurou dar-lhe o fundamento antropológico que a psicanálise nunca conseguira oferecer. Havia com efeito um tabu sustentado pelo mito contra o incesto nas sociedades primitivas; elas se adaptavam arranjando mecanismos de troca entre famílias, tribos e assim por diante, nos quais as mulheres constituíam a mercadoria mais valiosa. Esses sistemas de troca equilibravam rancores e ressentimentos; a troca de mulheres para evitar o incesto era o emoliente definitivo.

Outros antropólogos, denominados ecologistas, envolveram-se no desenvolvimento da disciplina da ecologia, o estudo das relações entre a população e o seu habitat; jovens antropólogos logo descobriram que certos conceitos ecológicos, tais como a capacidade de sustento, que limita a população de uma determinada região a um número sustentável pelo que de consumível ela produz, poderiam ser de grande valor. O excesso de alimento, que leva ao consumo, implica crescimento da população. Esse crescimento leva à competição. A competição provoca conflito. E assim por diante. Seria a competição em si mesma a causa da guerra? Ou a guerra era - graças à sua “função” de reduzir a população, ou deslocar os derrotados da zona de conflito - uma causa de si mesma?

terça-feira, 7 de junho de 2022

Juan Pujol Garcia foi fundamental no 'Dia D' em 6 de junho de 1944



Juan Pujol Garcia, um comum cidadão espanhol, foi um agente duplo na II Guerra Mundial, Garbo para os Aliados, um criador de galinhas com uma rede de informações fictícias, que pelo seu grande sucesso em enganar os alemães foi fundamental no dia D, no desembarque de 160 mil tropas na Normandia em 6 de junho de 1944.

Originalmente rejeitado pelo serviço de inteligência britânica, Garcia conseguiu infiltrar-se nos mais altos níveis da inteligência nazi, tudo isso, enquanto trabalhava como um espião amador não autorizado. A história do criador de galinhas que foi duplamente condecorado e fingiu a sua morte é tão improvável e fascinante quanto a teia de mentiras que ele contou aos nazis enquanto operava como uma unidade de desinformação de um homem só.




Nascido em 1912 numa família rica de Barcelona, ele abandonou o colégio interno e desperdiçou o privilégio de frequentar uma academia de avicultores. Era um fracassado crónico em tudo o que se dispunha fazer. Aos 30 anos ele já havia abandonado as forças armadas, trabalhado como criador de galinhas e cumprido pena de prisão duas vezes. Aos 24 anos casou, quando decorria a Guerra Civil de Espanha. Acabou preso por não se apresentar ao serviço republicano, mas conseguiu escapar na calada da noite durante uma fuga de presos liderada por um grupo de resistência. Escondido durante um ano, não voltou a ver a sua mulher. Com documentos de identidade falsos, voltou à prisão por expressar a sua simpatia pela monarquia.

Já em 1939, desabafando a um especialista de espionagem, dissera a propósito de Hitler: “Minhas convicções humanistas não me permitiriam fechar os olhos ao enorme sofrimento que estava a ser desencadeado por esse psicopata”. Deixa o seu trabalho como gerente de um hotel em Madrid e decide trabalhar como espião dos Aliados. Porém, ele foi recusado pelo menos quatro vezes pela embaixada da inteligência britânica. Apesar da rejeição, resolveu tornar-se espião por conta própria. Ele, então, decidiu oferecer seus serviços de espionagem aos alemães, sabendo que se fosse capaz de estabelecer uma relação de confiança com os nazis, poderia, eventualmente, transformar-se num agente duplo. Esse plano funcionou melhor do que ele jamais pudesse imaginar. Para se tornar um espião, ele precisaria de um passaporte e um visto de saída; dois itens praticamente impossíveis de se conseguir em Espanha, um país devastado pela Guerra Civil. Mas ele não se deu por vencido, e encontrou a oportunidade perfeita quando um duque espanhol entrou no hotel. Ele buscava incessantemente uísque e Garcia poderia oferecer a bebida ao Duque em troca do passaporte.

Com o documento nas mãos, combinou um encontro com Gustav Leisner, chefe da Abwehr – uma organização de inteligência militar alemã, o encontro aconteceu em 1940. Garcia proferiu seu amor devoto (embora falso) pelo Terceiro Reich de Hitler, e girou em torno de Leisner a sua teia de mentiras nas quais listava nomes de diplomatas inexistentes aos quais dizia ser afiliado. Ele foi contratado e recebeu um curso intensivo de espionagem e criptografia. Nesse mesmo ano casa-se com Araceli González, uma jovem que conheceu meses antes. Ele tinha ordens para se mudar para Londres e estabelecer uma rede de agentes, mas fez exatamente o contrário. Em vez disso, mudou-se para Lisboa e iniciou a sua carreira imaginária de espião, entregando relatórios simulados ao seu agente da Abwehr em Madrid. Os dados eram fornecidos com mapas, guias e horários de comboios que eram retirados da biblioteca local. Araceli colhia informações em noticiários e manchetes, e Garcia utilizava-as para escrever seus longos e fictícios relatórios sobre campos de aviação dos Aliados, locais da artilharia britânica e toda uma armada estabelecida em Malta. Essa última desinformação foi seguida pelos alemães e a falta de veracidade foi descoberta. Apesar do deslize, ele ainda gozava de prestígio entre os alemães.

Em 1942, Karl-Erich Kühlenthal, um major do Abwehr escreveu para Garcia: “A sua atividade e suas informações nos deram uma ideia perfeita do que está acontecendo ali; esses relatórios, como você pode imaginar, têm um valor incalculável e, por esse motivo, imploro que proceda com o máximo cuidado para não colocar em risco esses momentos importantes, seja você ou a sua organização”. E foi assim que recebeu o nome de código “Alaric” — que significa governante de todo o mundo em alemão — e a sua rede fantasma de 27 agentes, foi apelidada de Arabel — que significa orações respondidas, em latim.

Os britânicos logo perceberam que alguém estava desinformando os alemães, e perceberam o valor disso depois que a Kriegsmarine desperdiçou recursos tentando caçar um comboio inexistente, relatado por ele. Então, foi transferido para a Grã-Bretanha em 24 de abril de 1942. Sua mestria em enganos e disfarces rendeu-lhe o nome de código “Garbo”, em homenagem a Greta Garbo. Garbo concedia aos alemães pequenas informações factuais sem nenhuma relevância, em outros casos ele mesclava as informações com factos inventados. Em 1944, os Aliados dedicaram todas as suas atenções para o planeamento da invasão da França no Dia D. A manutenção do segredo da operação era de suma importância.

Num esforço conjunto foram lançadas campanhas maciças de desinformação, exercício que ficou conhecido como Operação Fortitude. Informações falsas passaram a ser disseminadas em manchetes de jornais e transmissões de rádio. Hitler sabia que um ataque era iminente e preparava a sua resposta defensiva que já levava meses, mas um detalhe crucial escapou-lhe: o momento e a localização exata da ofensiva aliada. Foi aí que Garcia entrou em ação, encarregado de convencer Hitler que o ataque aconteceria a mais de 300 Km de distância da Normandia, em Pas-de-Calais, região francesa mais próxima da Grã-Bretanha. Ele convenceu os nazis que o general Patton estava a formar um exército de milhões de homens. Em 5 de junho, Garbo deu instruções aos nazis para aguardarem uma mensagem muito importante às 3 da manhã. A fim de preservar a sua confiabilidade com o inimigo, ele iria revelar a localização real (Normandia), mas propositadamente tarde demais para impedir a invasão que já estava a caminho.

Mas, por sorte, os nazis perderam a ligação - as operadoras de rádio de Madrid estavam fora do ar das 23h30 às 7h. Garbo repreendeu o seu oficial de justiça alemão por ter perdido o despacho crucial, dizendo: “Não posso aceitar desculpas ou negligência. Se não fosse pelos meus ideais, eu abandonaria o trabalho”.

A Operação Fortitude funcionou tão bem que, dois dias depois, os nazis ainda não tinham jogado todo o seu poder militar nas praias da Normandia. Em 9 de junho, Garbo enviou um despacho de acompanhamento aos alemães: “Sou da opinião de que, devido às fortes concentrações de tropas no Sudeste e no Leste da Inglaterra, que não participam das operações atuais, essas operações são uma manobra de desvio destinada a retirar reservas inimigas, a fim de fazer um ataque decisivo em outro lugar... pode muito provavelmente ocorrer na área de Pas-de-Calais." Isso permitiu que os Aliados garantissem uma posição forte na França. Por seu trabalho, Garbo tornou-se a única pessoa a receber a Cruz de Ferro da Alemanha, e, ao mesmo tempo tornando-se membro da Ordem do Império Britânico, a maior honra do país.

Após a guerra, Garbo mudou-se com a esposa, Araceli, e três filhos, para a Venezuela, onde ele finalmente fingiu a sua própria morte com a ajuda de Tomas Harris, seu agente do MI5. E assim deu início a uma nova vida. Faleceu em 1988, aos 76 anos, na cidade de Caracas.



quinta-feira, 2 de junho de 2022

Só em abril de 1945 Churchill percebe que Stalin tinha roído a corda



Churchill considerara o dia 30 de abril como a data a ter em mente para a vitória na Europa. As questões políticas e ideológicas relacionadas à Polónia levantavam, porém, uma nuvem negra que encobria o brilho da vitória. “As mudanças de atitude e tom dos russos desde Ialta são graves”, escreveu 
o primeiro-ministro à comissão dos chefes de estado-maior em 3 de abril. Aos representantes da Commonwealth reunidos com o Gabinete de Guerra, em Londres, no mesmo dia, Churchill disse:
As relações com a Rússia, que pareciam encaminhar-se tão bem durante a conferência da Crimeia, tornaram-se menos cordiais nas semanas seguintes. Surgiram grandes dificuldades em torno da questão polaca e, agora, parece possível que a Rússia não queira cooperar plenamente com a conferência de São Francisco no que se refere a uma nova organização internacional. Não é certo que possamos contar com uma influência russa benéfica sobre a Europa ou com a sua boa vontade para a manutenção da paz. Contudo, ao fim da guerra, a Rússia terá uma posição de preponderância, em matéria de poder e de influência, relativamente à Europa.
Os receios perante uma eventual preponderância soviética sobre a Europa não impediram a assinatura, ainda em 3 de abril, de um último acordo de auxílio anglo-americano à Rússia, que teria o nome de código: Milepost. A Rússia receberia, nos termos do acordo – e efetivamente recebeu – mais de mil aviões de combate e 240 mil toneladas de combustível, bem como 24 mil toneladas de borracha, tudo oferecido pela Grã-Bretanha; dos Estados Unidos, receberia mais de três mil aviões, três mil tanques, nove mil jipes, sessenta mil veículos de armamento e 41.436 camiões, além de máquinas e de outros equipamentos no valor de cerca de dois biliões de dólares.

Ainda em 3 de abril, uma divisão blindada americana estava a caminho da cidade de Gotha. Entre os correspondentes de guerra que acompanhavam a divisão, encontrava-se o romancista judeu Meyer Levin, que lembraria como ele e seus companheiros descobriram alguns “refugiados cadavéricos” ao longo da estrada. “Não se pareciam com nada que eu houvesse visto antes”, escreveu Levin, continuando: “Esqueléticos, com olhos encovados e febris, crânios rapados.” Os refugiados identificaram-se como polacos e pediram que Levin e os outros jornalistas visitassem o local onde estiveram presos. Falavam em “gente enterrada num grande buraco” e em “comando da morte”.




Na manhã seguinte, as tropas americanas entravam no local a que os refugiados se referiam. O nome do lugar era Ohrdruf e, à entrada do campo, havia centenas de cadáveres, todos nos mesmos uniformes listrados e com um ferimento de bala na nuca. Num alojamento, havia mais cadáveres, nus, rígidos e, segundo Levin, “magros e amarelos como tábuas”. Tornou-se rapidamente evidente que Ohrdruf não era um campo de trabalho nem um campo de prisioneiros de guerra, mas algo bastante diferente: um lugar em que quatro mil prisioneiros haviam morrido ou sido assassinados ao longo dos três meses anteriores.




Centenas de prisioneiros foram mortos na véspera da chegada dos americanos. Algumas vítimas eram judias; outras, prisioneiros de guerra polacos e russos. Os prisioneiros haviam sido obrigados a construir um grande centro subterrâneo de instalações telefónicas e de rádio, destinado ao exército alemão caso abandonasse Berlim. Entre os prisioneiros em Ohrdruf, contava-se um jovem judeu polaco, Leo Laufer. Quatro dias antes da libertação, quando começara a evacuação do campo, fugira na companhia de três camaradas. Durante quatro dias, esconderam-se nos montes que dominam Ohrdruf. Quando as forças e os correspondentes de guerra americanos chegaram, Laufer conduziu-os numa visita ao campo. 

Muitos cadáveres encontrados eram de prisioneiros que, quatro dias antes, estavam na enfermaria do campo. A imagem dos corpos esqueléticos em Ohrdruf criou uma onda de repulsa que se alastrou pela Grã-Bretanha e pelos Estados Unidos. Eisenhower, que visitou o local, impressionou-se tanto que telefonou a Churchill para descrever o que vira, enviando-lhe fotografias de prisioneiros. Churchill, chocado, garantiu que as fotografias circulassem por todos os membros do gabinete britânico.




O Exército Vermelho combatia nos subúrbios de Viena e planeava o assalto final contra Berlim. Nos ares, os restos da outrora dominante força aérea alemã tentavam, em vão, opor-se aos ataques em massa e quotidianos dos bombardeiros e caças aliados. Em 4 de abril, na frente oriental, era abatido o avião de Hermann Graf, piloto que abatera duzentos aviões soviéticos, pelo que recebera a cruz de Cavaleiro com Folhas de Carvalho, Espadas e Diamantes. Feito prisioneiro após a queda do avião, foi conduzido para leste, presenciando aí a destruição do poderio militar alemão.

Paralelamente, o general Student era forçado, pela falta de petróleo, a cancelar mais uma vez o contra-ataque, adiado havia dois dias, às forças aliadas no Ruhr. Na frente, já não havia setor que os aliados ocidentais não pudessem destroçar. Ao mesmo tempo, através de um exame cuidadoso de mensagens alemãs decifradas pelo sistema Ultra, os aliados podiam antecipar todas as alterações nos planos alemães e todos os projetos de contraofensiva; dados ultrassecretos relativos a uma contraofensiva especialmente vigorosa, de Mühlhausen sobre Eisenach, marcada para 6 de abril, foram decifrados a tempo para colocar os aliados em sobreaviso e impedir a operação.




Mesmo na derrota, Hitler estava decidido a não deixar que seus inimigos sobrevivessem. Em 8 de abril, Hans von Dohnanyi era assassinado em Sachsenhausen, e, no dia seguinte, o almirante Canaris, o general Oster e Dietrich Bonhoeffer eram enforcados em Flossenbürg, a menos de 160 Km das posições avançadas americanas que progrediam a partir de Gotha. Também em 9 de abril, na prisão de Plötzensee, em Berlim, era decapitado Ewald von Kleist-Schmenzin, que, desde 1932, denunciara o nazismo como uma “demência” e um “inimigo mortal de nosso modo de vida”. Em 1944, convidara vários grupos de resistentes alemães a reunirem-se em sua estância de veraneio em Schmenzin. Em Dachau, entre dezenas de milhares de prisioneiros que esperavam a libertação, estava Johann Elser, carpinteiro que tentara assassinar Hitler em novembro de 1939 e que seria morto antes da libertação do campo, por ordem de Himmler, em 9 de abril.

Na Itália, a mesma data assistiu a um renovado ataque aliado contra as defesas da linha gótica. Forças britânicas, americanas, polacas, indianas, neozelandesas, sul-africanas, brasileiras e judaicas participaram da ação. Na mesma noite, no Báltico, o comandante da fortaleza de Königsberg, general Otto Lasch, ordenava que seus homens se rendessem; entre eles 42 mil estavam mortos e 92 mil haviam sido aprisionados durante a batalha pela posse da cidade. Haviam morrido também 25 mil civis alemães, o que representava a quarta parte da população da cidade, após as autoridades nazis proibirem a evacuação dos habitantes. Na noite seguinte, Hitler telegrafou às poucas unidades equipadas com rádios ainda em ação na Prússia Oriental: “O general Lasch deve ser imediatamente fuzilado por traição.” No entanto, Lasch era já prisioneiro de guerra dos aliados. 

Na Alemanha Ocidental, os exércitos aliados viam-se confrontados por uma força alemã comandada pelo general Wenck, que se instalara numa forte posição defensiva nas montanhas de Harz. Hitler, em Berlim, depositava grandes esperanças no general, tanto para travar o avanço aliado como para, caso fosse necessário, acorrer em defesa de Berlim, impedindo que os russos entrassem na cidade. Ao fim de nove dias, contudo, as forças de Wenck estavam cercadas, e os exércitos aliados, mantendo o cerco, prosseguiram em direção a Halle e ao rio Elba.




Ao norte de Berlim, os pilotos americanos iniciaram, em 10 de abril, o que seria conhecido como “grande massacre dos jatos”, abatendo catorze jatos alemães acima de Oranienburg. No mesmo dia, os cidadãos britânicos tomavam conhecimento, através de seu primeiro-ministro, do número de mortes que a guerra causara ao país entre setembro de 1939 e fevereiro de 1945: 216.287 soldados em terra, no mar e nos ares, 59.793 baixas civis após bombardeamentos, lançamento de bombas voadoras e mísseis, e 30.179 marinheiros mercantes, num total de mais de trezentas mil mortes.