sábado, 30 de maio de 2020

A frugalidade de certos dirigentes políticos: de Aristóteles a Calvino


Isto vem a propósito dos “4 frugais” ministros, dos países cujos nomes agora não interessa, que se têm mantido recalcitrantes quanto a uma forma mais solidária de ajudar as economias mais sensíveis por causa da Covid-19. 



Aristóteles na “Política”, no que se refere à actividade, o belo e o nobre também estão para lá do útil e do necessário, para lá do trabalho. Só a necessidade obriga ao trabalho, e daí que o trabalho seja necessário. O ócio, em contrapartida, abre um espaço sem necessidade nem preocupações. Está livre das necessidades da vida. Aristóteles distingue três tipos de vida (bioi) do homem livre: hedone – a vida que aspira ao prazer; bios politikos – a que leva a efeito acções belas e nobres na pólis; bios theoretikos – a que se dedica à contemplação da verdade. O ócio de Aristóteles baseia-se numa conceção do ser que, para um mundo completamente dependente do trabalho, como o nosso de agora, se afigura incompreensível. É estranho ao nosso tempo. O ócio é uma capacidade especial que deve ser educada, diz Aristóteles. Não é uma prática de relaxamento, ou de desconexão. O ócio remete para o pensar como theorein, como contemplação da verdade.

O trabalho, em Aristóteles, está ligado às necessidades da vida. Não é um fim em si mesmo, mas um meio, um meio de vida necessário, que se ocupa da necessidade. Por isso o actual conceito de trabalho, que é vital aos protestantes calvinistas, também seria absolutamente estranho a Aristóteles. Para Kant, o ócio é “uma espécie de luxo da mente”. O intelecto não se esgota no trabalho e nos negócios. 


Há uns anos, numa reunião com um coronel para nos disponibilizar a parada do Quartel, isto é, ao Hospital, para que doentes, como por exemplo os queimados, e outras emergências muito sensíveis, pudessem ser transportados de helicóptero para outros hospitais do país com Unidades Especiais, como a de Queimados. A certa altura o coronel segredou-me: “sabe, nós os militares, dispomos, em relação aos médicos, de muito mais tempo para o ócio, o que nos confere vantagem, porque temos muito mais tempo para pensar as coisas. O ócio não tem nada a ver com nada fazer, mas é antes o contrário disso”.

Na Idade Média, a vida contemplativa gozava ainda de prioridade em relação à vida activa. Tomás de Aquino, na Summa Theologica, escreveu sobre isso. A vida activa estava ainda muito embebida na vida contemplativa, de modo a que o seu fluir no tempo adquirisse sentido. Só durante a Reforma, o trabalho adquire um sentido que excede a satisfação das necessidades vitais. Relaciona-se agora com um sentido teológico, o que o legitima e valoriza. Segundo Max Weber – em “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo Lutero associa o trabalho como ocupação ao chamamento que Deus faz aos homens. E no calvinismo, o trabalho adquire um sentido económico-salvífico. A preocupação com a salvação transforma o indivíduo em trabalhador. O trabalho é o único meio que o indivíduo tem de se reconhecer como eleito e, por conseguinte, de mitigar o medo. Max Weber vê no espírito do protestantismo a prefiguração do capitalismo. Manifesta-se como um impulso no sentido da acumulação, levando à constituição do capital. O lucro como preceito divino, o afã posto no ganho para poder obter o favor de Deus.

Os bens não duram. A cupidez material não explica por si só as receitas económicas. Baseia-se mais na busca esforçada pela salvação. O imperativo capitalista vai no sentido de produzir sempre mais, portanto no de crescimento, de modo que as coisas se produzam e se consumam num lapso de tempo cada vez mais curto. E o resultado está à vista: terra e mar a transbordarem de lixo humano que leva à extinção das outras espécies. Por isso não tem que se queixar se os micróbios, por falta das espécies que serviam para a sua reserva natural, terem de saltar para outras espécies, nomeadamente a espécie humana, que para além de existir em abundância, se põe a jeito. Por falar neste ciclo de substituição das coisas cada vez mais curto, estou a lembrar-me do meu primeiro casaco de fazenda com calções a condizer, ainda andava na escola primária, mandado fazer ao alfaiate com a fazenda de um sobretudo do meu pai virado do avesso. E depois, quando já estava a crescer desalmadamente com a puberdade, ainda serviu ao meu irmão, três anos mais novo a seguir a mim.

Fala-se na necessidade de crescimento económico para manter saudável a Economia, para manter saudável a Sociedade, etc. e tal, mas só possível à custa de consumo e uso vertiginoso cada vez mais de coisas. Usam-se e consomem-se o mais rapidamente possível, para ceder lugar a novos produtos e necessidades. Assim, não há contemplação possível, não há sossego, um bem preciosíssimo, mas tão escasso nos dias de hoje.

A vita activa, que desde a modernidade te vindo a ganhar em intensidade, em detrimento da vita contemplativa, tem uma participação essencial na compulsão à aceleração moderna. Também a degradação do homem em animal laborans é uma consequência deste novo desenvolvimento. Tanto a intensidade do trabalho como a da acção remetem para o primado da vita activa na modernidade.

O tema da vida activa, e do labor, foi um tema caro a Hannah Arendt, o qual foi magistralmente trabalhado no seu livro “A Condição Humana”. A reabilitação da vida activa dirige-se, sobretudo, ao agir. Agir significa começar alguma coisa completamente de novo. Sem a condição do agir, o homem fica reduzido à condição do labor. Nas últimas páginas de A Condição Humana, Arendt acaba por fazer uma apologia involuntária da vita contemplativa. A perda da capacidade contemplativa é responsável pela degradação do homem em animal laborans.

Só a revitalização da vita contemplativa tornará possível a libertação da compulsão a trabalhar. Mas o homem é mais do que um animal, porque possui a capacidade contemplativa, que não é um estilo, mas uma “veritatis inquantum est perfectio hominis". Sem ars tranquila a vida acaba numa hiperactividade letal, porque talvez o espírito, ou a alma, devam deixar de respirar. Fica sem pneuma. Pneuma tanto significa respiração como espírito. Sem pneuma não tem espírito. À falta de sossego, a nossa civilização desemboca numa nova barbárie.


quinta-feira, 28 de maio de 2020

Os sinais dos tempos sentidos por olfato e paladar



Ninguém melhor do que o Sr. Presidente da República - Marcelo Rebelo de Sousa - para comunicar ao público o que os cientistas têm dificuldade em comunicar. Pela nossa perplexidade perante a velocidade dos acontecimentos, foi preciso improvisar soluções. Novas soluções, isto é, outros sentidos, ainda que transitórios, frágeis e locais. Portanto, é preciso assumir que não se dispõe de soluções definitivas, nem de modelos ou de padrão-ouro. As peças do puzzle ainda não estão completas. Todos os dias são acrescentadas outras, que propiciam, conforme o ponto de vista do observador-intérprete, novas configurações múltiplas e complexas. Prever o futuro tornou-se algo que cumpre mais uma função de busca de ordenações possíveis para o presente, do que prognósticos escancarados em relação ao futuro. Não passam de meros exercícios preditivos. A situação epidemiológica reclama um texto crítico com riqueza argumentativa, para que a retórica não caia no risco do discurso irracional. Irracionalidade que empurre as pessoas a adotar estilos de vida deletérios. Não por o público, enquanto massa amorfa, ser verdadeiramente irracional, mas porque não tem que conhecer com fiabilidade o jargão científico embebido nas referidas mensagens epidemiológicas. 

Há em muitas pessoas um otimismo sustentado, que consiste na crença do primado da razão e do poder da ciência para resolver os problemas humanos, incluindo aqueles criados pela própria tecnociência. Esta é a óptica dos especialistas, que acreditam que a tecnologia, apesar dos seus "efeitos colaterais", existe para melhorar a vida humana. E apresentam reiteradamente o exemplo: de hoje as pessoas viverem mais anos, graças aos avanços da ciência e da técnica. É claro que um corvo falante, perguntaria: “viver mais anos é morrer menos anos?” Ou seja, serão anos a menos para a morte?

Viver sempre foi um risco. Mas como estávamos convencidos que as epidemias de peste, ou outras moléstias contagiosas, tinham desaparecido, também queríamos crer que as narrativas psicológicas que as acompanhavam eram idiossincrasias do passado. Era um quadro que reflectia uma ignorância dos perigos da vida em cada tempo histórico. Por isso, não estávamos preparados para saber avaliar com segurança quanto do medo da pandemia vírica se traduziria numa pandemia paranóica.

Sob a óptica leiga, tínhamos de ter fé no racionalismo científico, como fonte de segurança e sobrevivência. Ainda assim, não custava nada a um crente dizer: “seja o que Deus quiser”; ou a um não crente dizer (permitam-me a expressão original): “que se foda”. Trata-se de uma estratégia cínica, a que Sartre chamou “má-fé”. É uma espécie de distanciamento das fontes de ansiedade através de recursos psicológicos que incluem a ironia, o sarcasmo e o deboche. Pode-se ter uma postura irónica sem necessariamente implicar pessimismo, porque é pragmatismo. Há os pessimistas 'incorrigíveis', que apesar de estarem à espera pela 'derrocada' inevitável, adotam comportamentos hedonistas (considerados de risco), no estilo de 'empurrar o problema com a barriga'. Não deixa de ser, no entanto, uma forma de encaminhamento para o futuro com a cara sorridente.

quarta-feira, 27 de maio de 2020

1496 e as dinastias reais da Península Ibérica



A expulsão dos judeus e alguns muçulmanos, em 1496, foi a condição imposta pelos Reis Católicos a D. Manuel I de Portugal, como contrapartida com o casamento com a filha Isabel. D. Manuel fez-lhes a vontade, na medida em que D. Manuel um dia poderia ser também rei de Espanha. Este seu primeiro casamento durou apenas três anos [1498-1501]. Depois da morte desta, D. Manuel I de Portugal ainda casou mais duas vezes: primeiro com Maria de Aragão e Castela, também filha dos Reis Católicos; e depois com Leonor, filha de Filipe I de Castela [1478-1506] e de Joana a Louca.

Dom Manuel I, o Venturoso [1469-1521] – rei de Portugal e dos Algarves desde 1495 e até morrer, era o filho mais novo de Fernando de Portugal, Duque de Viseu [1433-1470]. Este Fernando era o 2º filho de D. Duarte de Portugal e Leonor de Aragão; e, portanto, irmão de D. Afonso V de Portugal. D. Leonor, filha de Fernando I de Aragão [1380-1416], foi regente no reinado do filho Afonso V, por este ainda ser menor de idade quando subiu ao trono. A mãe de D. Manuel I de Portugal – Beatriz de Portugal – era neta do rei Dom João I de Portugal, casado com Filipa de Lencastre. O rei que precedeu D. Manuel I, foi D. João II de Portugal, que por sua vez havia sucedido ao pai, D. Afonso V, sendo a mãe Isabel de Coimbra [1432-1455], primeira mulher de Afonso V. Este voltou a casar, desta vez com Joana de Trastâmara, conhecida pejorativamente por Joana a Beltraneja.

Pelo que já foi dito, se vê como funcionavam as casas reais na Península Ibérica, casando uns com os outros desde as fundações afonsinas, ao ponto de Filipe II de Castela [1527-1598], vir a ocupar o trono de Portugal em 1580, tendo feito valer os seus direitos de sucessão em 1581 nas Cortes de Tomar. E como os mesmos nomes se repetem de um lado e doutro, torna-se necessário acrescentar à frente do nome: ‘de Portugal’; ou ‘de Aragão’; ou ‘de Castela’, como se irá verificar ao longo desta crónica.

Desde a Idade Média que a população judaica era olhada com alguma desconfiança, tanto em Espanha como em Portugal. E isso tinha uma causa: os judeus trabalhavam para o rei na cobrança das rendas e na organização da contabilidade pública. Os ocasionais ataques a judiarias tinham quase sempre esta motivação. Mas mantinha-se a tolerância quanto à religião. Quando Frei Tomás de Torquemada [1420-1498] foi nomeado para o cargo de inquisidor-geral da Inquisição espanhola pelos Reis Católicos, foi mais por ser um dominicano de Valhadolide, sério e observante da lei religiosa, e de linhagem, do que pelo facto de ser um converso. É sabido como se comportam alguns apóstatas com os seus antigos camaradas para dar nas vistas quanto ao seu fervor pela nova religião. Mas essa faceta não foi prevista, e, portanto, foi o que se sabe: a fama deste Tomás Torquemada como inquisidor mor atravessou séculos. Quem na verdade parece ter sido uma pessoa decente foi o seu tio – João de Torquemada [1388-1468] – Cardeal que teve muita influência tanto em Roma junto dos Papas, como nos restritos círculos do poder político. Bem, em 1388, quando João de Torquemada nasceu, ainda não se pode falar de uma Espanha. Nos finais do século XIV, a Península Ibérica era constituída pelo reino de Portugal; o reino de Navarra; a Coroa de Aragão que reunia os reinos de Aragão-Catalunha, Baleares e Valência; e a Coroa de Castela que reunia uma série de outros reinos desde os tempos da Reconquista aos árabes que haviam entrado na Península Ibérica em 711. A Coroa de Castela ainda continha um reino em Granada governado pela dinastia Nasrida, ou Nacérida, última dinastia muçulmana na Península. A Espanha só começou a dar nas vistas quando D. João I de Castela, se casou com Beatriz de Portugal, única filha legítima e presumível herdeira do rei D. Fernando de Portugal, tendo posteriormente reclamado para si, ou para a sua mulher, a coroa portuguesa. Esta pretensão levou-o a disputar o caso com D. João I de Portugal, na batalha de Aljubarrota, em 14 de agosto de 1385. D. João I de Portugal levou a melhor, chegando a ser auxiliado pelo príncipe inglês Edmond de Cambridge, um dos filhos de Eduardo III, um Plantageneta, e tio de Filipa de Lencastre, com quem D. João I de Portugal veio a casar em 1387.

Nas cidades ibéricas, e em grande parte dos territórios rurais, viviam mouros, ou seja, todos aqueles muçulmanos que tinham decidido permanecer, pagando um imposto especial. As mourarias, foram até ao século XVI sectores urbanos extremamente activos. Paredes meias com estas mourarias, tinham-se igualmente organizado e mantido com um dinamismo semelhante, as judiarias, os bairros judeus. Os judeus no tempo do domínio muçulmano tinham podido viver à vontade, dado que um pacto com o nome de Pacto de Omar, lhes conferia o estatuto de ‘dhimmi’, que significava viver de acordo com a xaria. E da mesma forma foram permanecendo nas cidades cristãs reconquistadas.

A partir de 1290 a Península começou a receber progressivamente mais judeus que estavam a ser expulsos do ducado da Aquitânia e do reino de França. Entretanto na Guerra dos Cem Anos, entre a Inglaterra e a França, Portugal tomou o partido dos ingleses e Castela apoiou o rei de França. No entanto a Coroa de Aragão não se meteu neste conflito, estando mais preocupada com as questões mediterrânicas onde era uma grande potência. Porém, a partir do século XIII, uma dinastia francesa passou a reinar Navarra e alargou o poder a Castela, tendo o trono sido tomado em 1369 pela dinastia dos Trastâmara. Já tínhamos referenciado esta família com o casamento de Afonso V em segundas núpcias com Joana de Trastâmara. Uma era de lutas dinásticas se iniciava na Península Ibérica, tendo Castela como epicentro. Como já foi dito, D. João I de Castela foi o segundo da dinastia dos Trastâmara a reinar e a cobiçar o trono de Portugal.

Em 1348, a Coroa de Aragão é abalada pela epidemia da Peste. O rei D. Pedro IV vai deixando sucessivamente as várias cidades onde procura abrigo, seguindo o vale do Ebro, para escapar ao contágio. Com o afastamento da Corte, a multidão acusa os judeus de envenenar os poços e de atrair a cólera celeste, acabando por se lançar sobre as judiarias, sobretudo em Barcelona. No ano de 1367, em Valhadolide oito sinagogas são queimadas. E 1391, Castela e Aragão são fustigadas por frades a pregar contra os deicidas. Há vários mortos, e muitos começam a fugir para Tunes e Alexandria. Em resultado disso, em 1412 são promulgadas as Leis de Valhadolide no reino de Castela como medidas de proteção. Em 1415 uma bula do papa Bento XIII vem confirmar essas leis. A partir de então os judeus de Castela deixam de ocupar cargos governamentais e administrativos, ou seja, tudo aquilo que lhes concedesse poder sobre os cristãos.

Em Portugal os reis da dinastia de Avis são indulgentes para com os judeus, e não o escondem. No entanto, as sublevações são inevitáveis. O infante D. Pedro era o principal protetor dos judeus. A coisas agravaram-se, contudo, após a sua morte na batalha de Alfarrobeira, em 1449. Já a partir de 1468, as Cortes de Santarém tornam obrigatório o uso de uma estrela vermelha de seis pontas para as vestes dos judeus. Em 1480, em Braga, o converso “Mestre Paulo”, dominicano, obriga os judeus a assistirem aos seus sermões. A pouco e pouco Portugal ia seguindo o mesmo rumo que estava a acontecer em Espanha.

Em 2 de janeiro de 1492, a entrada dos Reis Católicos em Granada é uma cerimónia notável: a rainha isabel, soberana oficial do Estado, vai á cabeça receber as chaves da cidade das mãos de Mendoza. Em julho de 1492, no final do prazo dado pelos reis católicos, milhares de judeus atravessaram a fronteira, tendo D. João II permitido a entrada dos refugiados e nomeado locais onde poderiam ser integrados: Olivença, Arronches, Figueira de Castelo Rodrigo, Bragança e Melgaço. Na raia, os judeus espanhóis pagavam uma espécie de portagem e, em troca, recebiam um salvo-conduto. Àqueles que exerciam uma profissão, os funcionários régios faziam um desconto, uma vez que eram tidos como mão-de-obra útil à economia nacional: ferreiros, carpinteiros, oleiros, tecelões. A maioria destes cidadãos dirigiu-se para as grandes cidades: Lisboa, Porto e Évora. Contudo, uma parcela considerável da população fixou-se na raia, na zona de Ribacôa. Por isso mesmo, existiram comunidades hebraicas em Pinhel, Vila Nova de Foz Côa, Meda, Marialva, Numão, Trancoso, Guarda e Sabugal.

A autorização de entrada atribuída por D. João II tinha, no entanto, um prazo de validade: o salvo-conduto extinguia-se ao fim de oito meses. Os judeus poderiam viajar para outras paragens, mas o rei só lhes permitiu embarcar em navios com destino a Tânger e a Arzila. Alguns fizeram-no, mas acabaram por regressar a Portugal depois de terem sido maltratados e roubados pelos mouros. Ao longo do tempo a atitude de D. João II para com os judeus expulsos de Espanha foi ganhando contornos terríveis. Em 1493 ordenou que os filhos menores fossem retirados aos pais e enviados para São Tomé, que precisava de ser povoado. A ilha tinha então grande número de crocodilos, além de um clima hostil, pelo que a maioria das crianças foi comida pelos animais. As

D. João II morreu em 1495. Nos primeiros anos do reinado de D. Manuel a comunidade judaica viveu em paz, tendo o rei escolhido o judeu Abraão Zacuto para seu médico particular. Zacuto era também matemático e astrónomo. D. Manuel I desejava uma união da Península Ibérica, debaixo da sua coroa, naturalmente, pelo que propôs casamento a D. Isabel, filha mais velha dos Reis Católicos, como já foi dito no início

A conversão forçada começou com uma medida trágica. Na Páscoa de 1497, D. Manuel I mandou que os judeus menores de 14 anos fossem entregues a famílias cristãs de várias vilas e cidades do país. Pouco depois, a ordem estendeu-se aos jovens com 20 anos. Muitos pais mataram os seus filhos, degolando-os ou lançando-os em poços e rios, contou Damião de Góis. A perseguição não ficou por aqui. O monarca restringiu ainda o número de portos de embarque para aqueles que queriam sair do reino, obrigando-os a concentrarem-se na capital. Segundo Jorge Martins, cerca de 20 mil pessoas, oriundas de várias zonas, foram encaminhadas para o Palácio dos Estaus (futura sede da Inquisição, localizada onde é hoje o Teatro Nacional D. Maria II), ali permanecendo, sem comer e sem beber, até ao momento do embarque. A ideia de aprisioná-los nos Estaus tinha um motivo. Enquanto aguardavam pela partida para o estrangeiro, foram visitados por dois judeus conversos, Nicolau, médico, e Pedro de Castro, eclesiástico em Vila Real. Os dois homens tinham uma missão: persuadir os judeus a converterem-se ao cristianismo. Muitos acabaram por ser levados para as igrejas da Baixa e baptizados contra a sua vontade; outros conseguiram fugir e suicidaram-se, atirando-se a cisternas e a poços. 


A 19 de Abril de 1506, Domingo de Pascoela, a minoria cristã-nova sentiu, pela primeira vez em Portugal, uma inaudita violência sobre pessoas e bens. Lisboa estava então assombrada pela peste que assolava a capital desde outubro do ano anterior. Um período de seca matara os campos nos arrabaldes; escasseavam alimentos; a fome tomava conta da cidade. Os gritos deram início ao massacre. Os crentes espalharam-se pelas ruas de Lisboa; a esta multidão juntou-se, segundo o historiador António Borges Coelho, a chusma das naus da Índia, que, atiçada pela pregação dos frades, violou, matou e queimou milhares de pessoas. Arrombavam as portas das casas, em busca de cristãos-novos, perseguiam quem tentava fugir, carregavam mortos e vivos para as fogueiras que iam sendo ateadas em vários locais da cidade, como o Rossio e a zona ribeirinha. A matança e as pilhagens prosseguiram por três dias. Segundo os cronistas da época terão sido mortos entre duas mil a quatro mil pessoas; Alexandre Herculano e o historiador norte-americano Yosef Yerushalmi registaram duas mil, o número que obtém mais consenso entre os especialistas.

D. Manuel I foi informado do que estava a acontecer em Lisboa quando estava em Aviz, a caminho de Beja para visitar a mãe, a infanta D. Beatriz. D. Manuel I teve de fazer alguma coisa, dando de imediato poderes ao Prior do Crato e a D. Diogo Lobo para castigarem os culpados. O problema era identificar os culpados. Uma cidade inteira revoltara-se contra os judeus e matara aqueles que não conseguiram escapar. Para castigar os habitantes de Lisboa, D. Manuel I retirou uma série de privilégios à cidade: aqueles que se tinha provado terem participado no morticínio perderam todos os seus bens; os que não se envolveram, mas nada fizeram para deter a multidão, perderam um quinto dos seus bens; e foi suspensa a eleição dos representantes da Casa dos Vinte e Quatro.

terça-feira, 26 de maio de 2020

“O potencial risco possível hoje”



A Organização Mundial da Saúde (OMS) está a transmitir perspectivas difíceis de compatibilizar. Em causa está a possibilidade de eclosão de uma segunda vaga, com um novo pico que forçaria a novas restrições. Uma segunda vaga não pode ser um mero tema de especulação e debate fútil entre peritos. Michael Ryan, que tem a responsabilidade de liderar o programa de Emergências Sanitárias da OMS, disse: "estar ciente de que a doença pode disparar a qualquer altura. Não podemos supor que vão continuar a descer e que teremos alguns meses para nos prepararmos para uma segunda vaga. Pode acontecer um segundo pico, como aconteceu noutras pandemias, como na da gripe pneumónica". Maria Van Kerkhove, principal responsável técnica da OMS no combate à covid-19, alertou que os estudos de seroprevalência já efetuados são poucos: "se encontrar uma oportunidade, este vírus provocará surtos. Uma característica única deste coronavírus é a capacidade de se amplificar em certos ambientes fechados, com uma super-propagação, como temos visto em lares de idosos ou hospitais".

Até aqui, parecia reinar o consenso no interior da OMS, mas María Neira desfez as ilusões. Durante uma entrevista à rádio catalã RAC1, a diretora do Departamento de Saúde Pública da OMS afirmou ser "cada vez mais improvável a ocorrência de uma segunda grande vaga. Os modelos de previsão com que a organização trabalha avançam muitas possibilidades, desde novos surtos pontuais a uma nova vaga importante, mas esta última possibilidade é cada vez mais de descartar. Com estas palavras de natureza potencialmente tranquilizadora, María Neira com esta entrevista semeou mais confusão do que esclarecimentos.

Estamos perante o que se devia dizer: ‘impredizível’. O paradoxo disto está no facto de os cientistas saberem que quanto mais ruído, mais flutuações, mais indeterminações, melhor para a criatividade e inovação. A grande inovação é aquela que costuma emergir nos meandros combinatórios do acaso. Os cientistas também têm outro nome para isto: ‘serendipidade’ – aptidão de atrair a si acontecimentos favoráveis de maneira fortuita; dom de fazer boas descobertas por acaso; acontecimento favorável que se produz de maneira fortuita; acaso feliz; descoberta acidental. Um exemplo, é o caso do sildenafil (Viagra). As pesquisas farmacológicas estavam dirigidas para a geração de um vasodilatador coronário. Nos testes, percebeu-se a alta incidência de uma marcante manifestação inesperada. Já que os efeitos nas coronárias não foram satisfatórios, foi o aproveitamento do efeito colateral que veio a brilhar para contentamento de todos: produtores e consumidores.

Há circunstâncias em que fatores incontroláveis participam nos processos ligados às doenças. E é por isso que a OMS tem sido ultimamente muito criticada por dizer hoje de manhã uma coisa, e à tarde o seu contrário. Mais valia não dizer nada. Ou estamos perante um caso de estilo de linguagem, como dizer que na medida do possível não é possível dizer melhor (pois neste caso não se trata de possibilidade e sim de potencialidade); ou então trata-se de um oxímoro próprio destes tempos: o oxímoro é um recurso estilístico que consiste em reunir, no mesmo conceito, palavras de sentido oposto ou contraditório, como dizer, por exemplo: ‘silêncio ensurdecedor’.

Na saúde pública, em geral, e na epidemiologia, em particular, há ideias que é necessário escrutinar. Uma é a ideia de 'potencial', obtida em estudos populacionais, que entra no modo 'possível' ao nível individual. E esta é uma das questões cruciais para operarmos com o conceito de risco (de adquirir doenças). Em inglês há uma distinção, em antropologia médica, entre ‘disease’ (doença-processo) e ‘illness’ (no sentido de uma pessoa estar doente). Outra ideia é a de ‘promoção da saúde’ que se cruza com a outra ideia, a de 'risco’, muito trabalhada em saúde pública
Hoje vive-se numa sociedade globalizada e de risco. 

Quando ouvimos no Telejornal dizer que o vírus ‘quer’ isto e aquilo, ou ‘precisa’ daquilo e um par de botas, está-se a antropomorfizar a Natureza, como se ela girasse em função exclusivamente do nosso proveito. Os jornalistas, quer queiram ou não, desempenham o papel de educadores e podem funcionar como fator de influência para a eventual adoção de medidas 'profiláticas'. Em reportagens e em entrevistas feitas a investigadores por causa desta epidemia vírica, sobretudo a epidemiologistas, eles não se cansam de alertar para as limitações de suas abordagens diante da profusão de estudos inconclusivos para o estabelecimento de fatores de risco. Deve-se dar importância ao estudo de como jornalistas científicos e profissionais de saúde veiculam informação, para não se correr o risco de, em vez de informação, darem desinformação, o que seria prejudicial, porque nessas circunstâncias geralmente é o alarmismo e o preconceito que proliferam.

As margens de incompreensão não são desprezíveis, se levarmos em conta o fosso que existe entre o léxico e a gramática dos pesquisadores, e o público leigo recetor. Coletivamente, parece pairar uma aura de ameaça sobre todos nós, passível de ser efetivada, de modo particularizado, a qualquer instante. Em especial, se não nos precavermos de acordo com o que mandam os preceitos da prevenção em saúde, as normas de segurança no trabalho, as ideias de cautela nas actividades quotidianas. 

segunda-feira, 25 de maio de 2020

A Ordem e o Caos


A Ordem e o Caos têm desafiado ao longo de séculos a reflexão epistemológica, tanto a ocidente como a oriente de uma Eurásia produtora de grandes civilizações. A indeterminação e a incerteza têm suscitado ao longo dos tempos grandes afrontamentos por causa das contradições que elas comportam dentro de si. E a ciência, com os seus ciclos revolucionários e oscilatórios do Método, ora mais analítico, ora mais sintético, não está imune ao caráter contraditório do nosso sistema cognitivo.
Neste movimento pendular entre Oriente e Ocidente, entre o analítico e o sintético, haveria muitos nomes a mencionar de ambos os lados. Por isso ocorre-me mencionar apenas estes dois nomes: Heráclito a ocidente, na Jónia; e Lao Tsé a oriente, na China. 

O tempo e o espaço, e a fenomenologia dos sentidos, é o Real, porque o que está dentro do átomo, o mundo dos quarks, é o Nirvana. No lodo subatómico, o espaço e o tempo dissolvem-se. A realidade das nossas vidas é o Absoluto, o tal Mistério. É claro que é pela ciência que chegamos a saber quanto da nossa ignorância. Quanto mais conhecemos, mais a ciência nos empurra para o abismo do incognoscível, que vibra na fronteira entre o invisível e o indizível. A ciência cega-nos, como nos cega o Sol quando nos bate diretamente nos olhos com a sua luz.

Esta é a crueldade do nosso mundo, um minúsculo planeta, mas violento com: tempestades, erupções, tremores, epidemias, doenças. Todo o ser vivo mata e come o ser vivo. Ciclos de destruição são ao mesmo tempo ciclos de vida. Ciclos de vida são ciclos de morte, enquanto se alimenta dela. E as espécies lutam contra a morte. A Natureza é simbiótica, e toda a Terra é simbiota, uma fusão cósmica em que tudo  que é humano é divino. É ao dizer que somos divinos que abrimos a porta aos místicos, ao misticismo para entrar no tal Mistério.

Vistas bem as coisas, a ciência,ao  contrário da religião, chegou à seguinte conclusão: isto tudo a que chamamos Cosmos surgiu por autocriação, e não por criação de uma entidade a que chamamos Deus. Esta conclusão a que chegou a ciência, não significa que tenha eliminado o tal Mistério. O Mistério mantém-se, porque está para além das nossas possibilidades cognitivas. O que a ciência veio eliminar foi a pergunta que seria repetida até ao infinito: quem então criou o Criador?

Contudo, mantém-se o Paradoxo: como é que um mundo pode autocriar-se ex nihilo, do Nada? À falta de melhor termo, chamou-se a isto o Caos, em contraponto com a designação de Cosmos que quer dizer Ordem. O Caos não está somente na origem, faz parte do estado permanente do Nosso Mundo. Diz-se Nosso Mundo, no sentido que faz parte das limitações do nosso entendimento. Ora, a explicação pelo Caos traz em si o Mistério, que é a sua própria inexplicabilidade devido aos limites da lógica que dá suporte ao nosso conhecimento. Mistério significa tudo o que está para lá do concebível.

Esta é uma forma simples de traduzir a linguagem mais complicada de um Espinosa quando diz: "criatividade imanente de uma Natureza naturante"; ou de um Hegel: "uma autoprodução da Natureza que suscita a autoprodução do Sujeito". Isto é um grande mergulho nas profundezas das águas semânticas. O aparecimento de contradições, de paradoxos, e de antinomias, assinalam-nos as profundezas do Real. A realidade que conhecemos não passa de uma pequena película à superfície do mundo cognoscível. E o cognoscível implica um ser cognoscente, que coproduz. A ciência diz, por exemplo, que o que está a acontecer é produzido por um vírus com as características tal e tal. E como é que os cientistas sabem isso? Ah, é pela observação através de um microscópio eletrónico. E é assim que a realidade perde a sua substância, na medida em que é relativizada através de engenhocas por nós criadas. E esta é a questão da essência e das fundações do nosso conhecimento. A brecha nos fundamentos do conhecimento científico. Fazemos parte do Nosso Mundo. Mas para o Nosso Mundo ser conhecido teria de haver alguma distância. Como disse Thomas Nagel: entrar de paraquedas no Mundo, vindo de nenhures, para o conhecer. Mas isso é uma impossibilidade absoluta.

Para um determinista como Laplace, o estado do mundo no momento presente determina precisamente a maneira como o mundo se desenrolará. Trata-se de um mundo ordenado, no qual tudo pode ser antecipado, computado, previsto. Porém, para que o sonho de Laplace se pudesse realizar, seriam necessárias diversas condições. Em primeiro lugar, as leis da natureza deviam ditar um futuro definido, e devíamos conhecer essas leis. Em segundo, devíamos ter acesso a dados que descrevessem completamente esse mundo, de modo a impedir a ocorrência de influências imprevistas. Por fim, precisaríamos de suficiente inteligência para conseguir discernir o que nos reserva o futuro, partindo dos dados do presente. Para Laplace, parecia razoável acreditar que os acontecimentos futuros do mundo quotidiano humano seriam determinados com tanta precisão como as órbitas dos planetas.

Tivemos de esperar pelos anos 60 e 70 do século passado para que Von Neuman, Von Bertallanfy, Jacques Monod, Prigogine, Poincaré, Humberto Maturana e Francisco Varela, e tantos outros como um tal Edward Lorenz para descobrir que pequenas diferenças fazem toda a diferença, levando a grandes alterações no resultado. O fenómeno foi chamado de “efeito borboleta”, com base na ideia de que ínfimas alterações atmosféricas, como as causadas pelo bater das asas de uma borboleta, poderiam ter um grande efeito nos subsequentes padrões atmosféricos globais. Lorenz não teria feito uma grande descoberta se não tivesse cometido o erro de simplificar um número de seis décimas a três décimas. Não teria descoberto o efeito borboleta, uma descoberta que levou ao surgimento de toda uma nova área na matemática. Quando reconsideramos detalhadamente os grandes acontecimentos de nossas vidas, não é raro identificarmos eventos aleatórios aparentemente inconsequentes que levaram a grandes mudanças. Há muitas razões pelas quais o determinismo se mostra incapaz de satisfazer as condições de previsibilidade nas questões humanas. É impossível conhecermos ou controlarmos com precisão as circunstâncias das nossas vidas. Até onde sabemos, a sociedade não é governada por leis definidas e fundamentais, como a física. Na verdade, além de ser imprevisível, o comportamento humano é frequentemente irracional por depender de variados contextos que não controlamos.

Com a relatividade e a mecânica quântica já tínhamos ficado a saber que as certezas de Newton - os fundamentos da Ordem na Natureza, a separabilidade dos objetos, e a lógica dedutiva - tinham defeitos. Havia mais desordem do que ordem. E não havia fundações. Faltava ainda o tempo da Complexidade e dos Sistemas não-lineares e Autopoiéticos, em que a organização viva depende do que capta no seu ecossistema, o qual é uma organização espontânea dominada por infinita recursividade. É um sistema que retroage sobre si próprio em consonância com um ecossistema autorregulando em conjunto com as suas atividades. O princípio da recursividade é aquele em que a todo o momento se é ao mesmo tempo produto e produtor, causa e efeito. Embora possamos encontrar regularidades estatísticas em dados sociais, o futuro de cada indivíduo é impossível de prever. No que diz respeito às nossas conquistas particulares - profissão, amigos, finanças - todos devemos muito mais ao acaso do que aos nossos planos. Em todos os empreendimentos da vida real, a não ser os mais simples, não temos como evitar certas forças inesperadas ou imprevisíveis.

Existe uma assimetria fundamental entre o passado e o futuro. Essa assimetria já foi foco de estudos científicos desde a época em que Boltzmann fez a sua análise estatística dos processos moleculares responsáveis pelas propriedades dos fluidos. Foi demonstrado que em qualquer série complexa de eventos, na qual cada evento se desenrola com algum elemento de incerteza, existe essa assimetria. Essa assimetria fundamental é o motivo pelo qual, na vida quotidiana, o passado tantas vezes parece óbvio, mesmo que não tivéssemos a possibilidade de o haver previsto. É por isso que os meteorologistas conseguem informar as razões pelas quais, três dias atrás, a frente fria seguiu de uma maneira, e ontem a massa de ar quente se moveu de outra, provocando a chuva que caiu e apanhou toda a gente desprevenida, mas não conseguem prever com três dias de antecedência. E o mesmo se passa com os corretores da Bolsa. Em retrospetiva, geralmente é sempre mais fácil explicar por que um acontecimento ocorreu de certa maneira. Olhando para o passado, é fácil construir gráficos e boas explicações, mas essa sucessão lógica de eventos é apenas de uma ilusão causada pelo modo como vemos as coisas em retrospetiva. 

Podemos, todavia, ver as coisas de outra forma, não determinística. Vejamos os best sellers, seja no domínio da literatura, seja no domínio da música, em que autores, apesar de serem desconhecidos, foram bem-sucedidos, porque uma série de fatores aleatórios se conjugaram num determinado sentido, sem que o próprio, nem ninguém, fosse capaz de o explicar, a não ser, dizer: "foi sorte!" 
Por exemplo, o caso paradigmático de J.K. Rowling e o seu Harry Potter. A história está relatada na Wikipedia, e é bem conhecida. Bem, a autora teve a ideia de toda a história, baseada em acontecimentos da sua vida, em 1990 quando viajava de comboio de Manchester para Londres. Diz que quando chegou ao seu apartamento, em Clapham Junction, se lançou de imediato a escrever. No fim desse ano a sua mãe morre devido a esclerose múltipla, com uma evolução de dez anos. A morte da mãe afetou fortemente a sua escrita, intrometendo-se na própria história que estava a escrever, que era o Harry Potter.

Entretanto, um anúncio no The Guardian pedindo um professor para ensinar inglês em Portugal, fez Rowling mudar-se para o Porto. Lecionava à noite e escrevia de dia. Depois de 18 meses no Porto, apaixona-se por um jornalista português que a leva ao casamento em 1992, de que resulta o nascimento de uma filha um ano depois. Mas passado quatro meses depois do nascimento da filha, a violência doméstica obriga-a a regressar Escócia, sua terra natal, com três capítulos do Harry Potter na mala. Os anos seguintes à separação foram anos de desespero, tendo inclusivamente necessidade de recorrer à assistência social por dificuldades económicas. Ao fim de sete anos, 1996, tem o seu primeiro Harry Potter pronto, e começa a procurar um editor para publicá-lo. Ao fim de doze rejeições, lá surgiu uma pequena editora pouco conhecida – Bloomsbury – que aceitou publicar o livro. O resto é história de fadas, milhões e milhões de livros vendidos, filmes e outras coisas mais, uma marca com um valor estimado em 15 mil milhões de dólares, e uma obra traduzida em 65 línguas.
Moral da história: o trabalho dos tradicionais operadores do marketing digital, mais conhecidos por influencers (influenciadores), realmente o que é que influencia? O marketing de influência é uma abordagem de marketing que consiste em "praticar ações focadas em indivíduos que exerçam influência ou liderança sobre potenciais clientes de uma marca". Os influenciadores interferem nas decisões dos consumidores a favor de uma determinada marca. Diz-se que os influenciadores estabelecem uma relação de confiança com os seus públicos. Um digital influencer (influenciador digital) é um indivíduo que utiliza uma rede social para captar a vontade de um determinado tipo de público a consumir um determinado produto, através de publicações online, em texto ou vídeo, atractivas para os seus seguidores. Diz-se que estes novos formadores de opinião digitais causaram grandes mudanças no comportamento e na mentalidade das pessoas que se deixam facilmente influenciar. Vamos ver o que nos reserva o futuro. 

sábado, 23 de maio de 2020

1492 – 1942


1492 

Edgar Morin apercebeu-se muito cedo que a sua identidade francesa não era aquilo que parecia quando alguém lhe perguntava onde tinha nascido o seu pai e ele respondia Salónica. Então diziam: “Ah, é grego!” Não porque Salónica era turca quando ele nasceu. “Então é turco?” Não, ele era de origem espanhola… “Então é espanhol?” Não…, etc. Não sabia indicar nem compreender a sua nacionalidade de origem. Edgar Morin era descende de uma família judia oriunda da Península Ibérica, que teve de fugir para Itália durante o êxodo a seguir ao édito de expulsão dos Reis Católicos em 1492. Só mais tarde essa família se mudou para Salónica, onde viria a nascer o seu pai, cidade do Império Otomano que viria a deixar de ser depois de 1911. A cidade distinguia-se pela sua população maioritariamente judaica de origem sefardita, em consequência desse êxodo. De facto, o pai era de Salónica, quer dizer, oriundo de uma cidade de império, anterior à fase dos nacionalismos, povoada em mais de 60 por cento por sefarditas espanhóis que formavam ali uma unidade cultural. No entanto, desde há pelo menos três gerações que se haviam laicizado, comiam presunto e ignoravam o kasherA língua mais usada na cidade era o ladino, a língua derivada do castelhano falada pelos judeus sefarditas. E era a língua que o pai de Edgar Morin falava com os seus pais. Depois o pai emigrou para França, onde viria a adquirir a nacionalidade francesa por naturalização.

Um judeu famoso dessa diáspora espanhola é Isaac ben Judah Abravanel, que conheceu bem João de Torquemada e Tomás de Torquemada, este o protagonista principal da perseguição aos judeus sefarditas, e aos conversos, nome dado aos judeus que se converteram ao cristianismo, também chamados cristãos-novos, e pejorativamente marranos quando a conversão era tida como não sincera. Isaac Abravanel nasce em Lisboa em 1437. Entra ao serviço do rei Afonso V de Portugal como tesoureiro. A Família Abravanel era uma das mais antigas e distintas famílias judaicas sefarditas, que reivindicava como ascendência direta o bíblico Rei David. Viveram em várias cidades da Península,  sendo Judá Abravanel o mais antigo conhecido dessa família. Isaac possuía uma grande riqueza herdada de seu pai. Quando Arzila, em Marrocos, foi tomada pelos portugueses, e os prisioneiros judeus foram vendidos como escravos, ele contribuiu largamente com os fundos necessários para os libertar. No tempo de D. João II [1455-1495], chegou a ser acusado de conspiração com o Duque de Bragança. Avisado a tempo, Abravanel salvou-se, fugindo em sobressalto para Castela em 1483, estabelecendo residência em Toledo. A sua grande fortuna foi confiscada por decreto real. Pouco depois começou a servir a casa de Castela, para satisfação total de Isabel, a Católica [1451-1504]. Mas quando foi decretada a expulsão dos judeus de Espanha em 1492, Abravanel teve de deixar Espanha e foi viver para Nápoles, onde em breve entraria mais uma vez para os serviços do rei. Por um período curto, porque quando Fernando I morreu em 1494, Carlos VIII de França invadiu a Itália, com a pretensão angevina ao trono de Nápoles, que seu pai tinha herdado por morte de René de Anjou, em 1481, que era seu sobrinho. Depois de um período de vida errante, chegou a Veneza em 1503, onde os seus serviços foram empregues na negociação de um tratado comercial entre Portugal e a República de Veneza. E aqui morreu em 1508. Nesse ano, Fernando II de Aragão, o Católico, foi regente de sua filha Joana, conhecida como Joana, a Louca, rainha de Castela e Leão desde 1504.

A pena mais leve imposta aos marranos era o confisco dos seus bens. Os Reis Católicos, Isabel e Fernando, precisavam de receitas, e a perseguição movida aos hereges por Torquemada era uma fonte de renda que interessava ao Estado. Isabel e Fernando autointitulavam-se "protetores da Igreja e defensores da fé". A etapa seguinte era a morte na fogueira, durante os chamados autos-de-fé, após inomináveis torturas. Torquemada, no afã de obter dos Reis Católicos a expulsão definitiva de todos os judeus, promoveu em 1490 um julgamento-espetáculo, onde as vítimas, oito judeus, foram acusados de praticar rituais satânicos e de crucificar crianças cristãs. Pressionados pelo clima de crescente intolerância, em 31 de março de 1492 Fernando e Isabel publicaram então o Édito de Expulsão. Muitos fugiram para Portugal ou Norte da África, onde enfrentaram mais perseguições. E uma boa parte foi para Salónica. Mas alguns, sem alternativa, permaneceram escondidos. Em Salónica, os sefarditas, desde 1492 até 1911, nunca haviam sofrido qualquer vexame. Por isso, não carregavam na sua consciência o menor sentimento de exclusão. Em 1942, quando Edgar Morin se convenceu que o combate comunista contra o nazismo era o combate pela salvação da humanidade, tornou-se um resistente comunista. Um amigo, pensando na Condição Humana de Malraux, disse-lhe: “Você é daqueles que são deitados nos fornos das locomotivas”.

1942

Em 1942 tiveram início as deportações em massa para os campos de concentração, sendo que muitos destes eram enviados logo para os campos de extermínio. Isso seria a solução final da questão judaica, posteriormente conhecida como Holocausto. Após a invasão da Polónia, os nazis estabeleceram guetos em que judeus e alguns ciganos foram confinados até serem finalmente enviados para os campos de extermínio. Cada gueto era administrado por um Judenrat (Conselho Judaico) composto por líderes da comunidade judaica alemã, que eram responsáveis pelo dia a dia do gueto, como a distribuição de alimentos, água, medicamentos e abrigo. A estratégia básica adotada pelos conselhos era de uma tentativa de minimizar as perdas, em grande parte, cooperando com as autoridades nazis (ou seus substitutos), aceitando o tratamento cada vez mais terrível e pedindo por melhores condições e clemência. Os conselhos também eram responsáveis por fazer os arranjos para as deportações dos judeus para campos de extermínio. Portanto, o momento definidor que testou a coragem e o caráter de cada Judenrat veio quando eles foram convidados a fornecer uma lista de nomes do próximo grupo a ser deportado para os campos. Os membros do Judenrat tentavam métodos como suborno, obstrução, súplica e argumentação, até que, finalmente, uma decisão tinha de ser tomada. Alguns, como Chaim Rumkowski, argumentam que a sua responsabilidade era salvar os judeus que poderiam ser salvos, e que, portanto, outros tinham que ser sacrificados. Enquanto outros afirmam que nenhum indivíduo que não tivesse cometido um crime capital deveria ser entregue. Líderes dos Judenrat, como o Dr. Joseph Parnas em Lviv, que se recusaram a compilar uma lista foram baleados. Em 14 de outubro de 1942, todo o Judenrat de Byaroza cometeu suicídio em vez de cooperar com as deportações.

No dia 17 de março de 1942, começou a Operação Reinhard. O projeto de genocídio foi comandado pelo líder das SS e chefe da polícia de Liubliana, Odilo Globocnik. Tanto ele como o seu grande número de colaboradores eram austríacos. Nos três grandes centros de aniquilamento com câmaras de gás (Belzec, Sobibor e Treblinka), foram executados mais de 1,5 milhão de judeus e 50 mil ciganos entre março de 1942 e novembro de 1943. Ao todo, a operação levou à morte mais de 2 milhões de judeus. Os preparativos para a operação já haviam começado no final do ano de 1941, mas somente em 1942 ela recebeu o nome de Reinhard Heydrich, que havia morrido num atentado. O objetivo era o genocídio sistemático dos judeus poloneses e o confisco dos seus bens.

Himmler ordenou o início das deportações em 19 de julho de 1942 e, três dias depois, em 22 de julho, as deportações do gueto de Varsóvia começaram e se estenderam ao longo dos seguintes 52 dias, até 12 de setembro, quando trezentas mil pessoas, apenas de Varsóvia, foram deportadas para o campo de extermínio de Treblinka. Muitos outros guetos foram completamente esvaziados. A primeira revolta num gueto ocorreu em setembro de 1942, na pequena cidade de Łachwa, no sudeste da Polónia. Embora tentativas de resistência armada tenham surgido nos guetos maiores em 1943, como o Levante do Gueto de Varsóvia e do Gueto de Bialystok, em todos os casos elas não conseguiram lutar contra a esmagadora força militar nazi. E os judeus rebeldes foram mortos ou deportados para os campos de extermínio. Himmler havia encarregado Globocnik e outros, com experiência em eutanásia, para darem seguimento à operação. Os campos de extermínio recebiam por dia um comboio com 60 vagões lotados de pessoas destinadas às câmaras de gás. Depois os corpos eram depositados em enormes valas. Só um ano depois, os cadáveres foram exumados e queimados. A Operação Reinhard foi encerrada em novembro de 1943, com um saldo de mais de 2 milhões de judeus mortos.

A partir do outono de 1942, Edgar Morin passou a viver uma vida de dupla personalidade em Lyon, onde se travavam relações de simpatia com outros resistentes dos MUR (Movimentos Unidos de Resistência), simpatizantes comunistas em vias de se tornarem "submarinos" do Partido. Os militantes do Partido eram tipo Loyola: severos, implacáveis falando uma linguagem ritualizada, a que se começou a chamar "língua de pau". Com esse tipo de camaradas não se podia ter nenhum desabafo pessoal. Edgar Morin também se tornou um submarino:
«[...] Robert Antelme relatou-me, após o seu regresso da deportação, que no dia em que eu tinha uma entrevista com um certo número de responsáveis do Movimento, entre os quais François Mitterrand, a minha chegada foi anunciada com um: "atenção, é um comunista". Durante três anos, até 1948, continuei a dizer-me comunista já tendo deixado de o ser. Mudei de residência e não recuperei o meu cartão do Partido. Mas não o confessei. Em 1951 aceitei um convite para uma reunião feita pelo porteiro, que era do Partido. Eu julguei que era uma reunião de antigos combatentes da paz. Para minha surpresa tratava-se de uma célula comunista, à qual supostamente devia pertencer. Conclusão: tratava-se de um ritual de excomunhão. Estranhamente marrana. Tinha partido do Partido, embora continuasse a fazer parte dele enquanto não me submetesse à cerimónia ritualizada de excomunhão.
O marranismo ofereceu à cultura europeia moderna um Montaigne e um Espinosa. Uma prodigiosa diáspora cultural. Existiram também convertidas que, como Teresa d'Ávila, encontraram no êxtase da comunhão mística um Além da Lei judaica e da norma católica. Existiram cabalistas que camuflaram o seu culto da Sechiná, substância feminina da Divindade segundo a Cabala, com o culto à Virgem Maria. A soberania do espírito livre que não só observa o mundo, os costumes, mas também a autocondição, é a energia crítica do pensamento interrogativo de Montaigne.
Descobri que os meus ascendentes mais longínquos que consegui vinham todos de Livorno, e que uns provinham de marranos emigrados de Portugal para Amsterdam, em meados do século XVII. Outros eram originários de Aragão. Senti-me feliz por encontrar no século salónico das minhas três gerações anteriores, em vez da sinagoga, uma laicidade formada no grão-ducado da Toscânia.[...] »

sexta-feira, 22 de maio de 2020

Azar: Ele não joga aos dados



A teoria produz um bom resultado, mas dificilmente nos aproxima do segredo do Criador. Estou, em todos os casos, convencido de que Ele não joga aos dados.
Albert Einstein – dezembro de 1926.

A falta de conhecimento acerca de algo novo, como é o caso desta pandemia covid-19, frequentemente leva à disputa diferentes interpretações. Ainda não nos tínhamos libertado por completo das disputas acerca do aquecimento global, inacreditável como foi necessário tanto esforço para se confirmar o aquecimento global, cai-nos em cima um vírus novo desconhecido provocando uma pandemia como nunca vista e ainda andando aí para durar. Nada disto é raro em medicina. Até os cientistas muitas vezes interpretam erradamente as estatísticas epidemiológicas, bem como o significado de exames importantes.

Entremos então, mais uma vez, pela História. Entre 1571 e 1576, um sujeito que fora um dia celebrado em toda a Europa por ter sido um famoso astrólogo, médico dos nobres da corte, e professor de medicina na Universidade de Pavia, deambulava pelas ruas de Roma, num passo irregular, às vezes gritando para ninguém em particular ignorado por todos. Criara invenções duradouras, entre elas um precursor do cadeado com código, e da junta universal usada nos automóveis. Havia publicado 131 livros sobre uma ampla gama de assuntos em filosofia, medicina, matemática e ciências. Este sujeito acabou os seus dias pelas ruas parques de Roma, com uma renda vitalícia concedida por um Papa que tinha por ele uma grande estima. Era Girolamo Cardano [1501-1576]. 


Girolamo Cardano nasceu em Pavia, em1501. As expectativas de vida, depois de lhe terem aparecido formações nos gânglios linfáticos do tamanho de um ovo, sendo ainda um infante, não iriam além de uma semana. Tinha contraído a Peste Bubónica. Na Itália, o ano de 1501 trouxe um surto de Peste particularmente forte, com uma enorme mortandade. Num lance de sorte, sobreviveu sem maiores sequelas além da desfiguração. O seu pai era uma espécie de empresário, amigo de Leonardo da Vinci por algum tempo, e geómetra. Quando Girolamo fez cinco anos, o seu pai passou a levá-lo com ele para os seus negócios. Amarrava-lhe uma mochila às costas com pesados livros de medicina e direito, e lá iam ter com os clientes em Milão. Ainda adolescente, um de seus amigos morreu subitamente. Isso marcou-o profundamente, a pensar na transitoriedade da vida. Na sua autobiografia – De Propria Vita, Cardano afirma ter adquirido “a ambição inabalável” de deixar a sua marca no mundo. Por isso, quando chegou a idade, e contra a vontade do pai, deixou Milão e foi para Pavia tirar medicina. 

Em algum momento Cardano ter-se-á apercebido do seu talento para os jogos de apostas. Com isso ganharia dinheiro muito mais rapidamente que com qualquer outro meio. Quando apostava no resultado de dois cubinhos, apesar de a sua sorte ser como a de qualquer outra pessoa, ele acabava por ter alguma vantagem nesses jogos, pela intuição apurada que tinha para a matemática das probabilidades. Cardano trazia no sangue a habilidade para o Azar. Era uma questão intuitiva, e não racional. Assim, a sua compreensão matemática, das relações dentro dos possíveis resultados aleatórios de um jogo, transcendia a crença de que, em virtude do destino, seria inútil tentarmos compreender tais relações. 

Entretanto, começou também a ganhar dinheiro escrevendo horóscopos e dando aulas de geometria, alquimia e astronomia. Em toda a parte eram feitas apostas a jogar aos dados, e mesmo às cartas e ao gamão. Também havia quem jogasse xadrez. Cardano classificava esses jogos em dois tipos: os que envolviam alguma estratégia ou habilidade; e os que eram governados pelo puro acaso. Em jogos como o xadrez, Cardano era banal. Mas no jogo aos dados, em pouco tempo, conseguiu mais de mil coroas nas apostas – mais do que ganharia em uma década se tivesse ficado com o pai – o que lhe deu para pagar os estudos. Assim, em 1520, matriculou-se como estudante de medicina em Pavia. Pouco depois, começa a escrever um livro de jogos de azar. 

Depois de se formar, estamos em 1526, voltou para Milão em busca de trabalho. Durante a faculdade, havia escrito um artigo intitulado: “Das opiniões divergentes dos médicos”. No essencial dizia que a elite médica da época não passava de um bando de charlatães. O Colégio dos Médicos de Milão devolveu-lhe então o favor, recusando-se a aceitá-lo como membro. Isso significava que ele não poderia praticar medicina em Milão. Dispondo ainda de algum dinheiro, que havia amealhado em Pavia, compra uma pequena casa em Piove di Sacco – hoje cidade da região de Veneto e província de Pádua, na altura uma pequena aldeia – onde esperava ganhar dinheiro, pois o povoado estava tomado por doenças e não havia nenhum médico no lugar. Mas as contas saíram-lhe furadas, porque a população preferia tratar-se com curandeiros e padres. Com tempo de sobra, termina o tal livro – Liber de Ludo Aleae (Livro dos Jogos de Azar) – que só viria a ser publicado após muitos anos da sua morte, em 1663. Mas nessa altura ele ainda era um otimista, e ter tempo para escrever livros só podia ser um caso de sorte. 

O livro de jogos de azar de Cardano, tratava de cartas, dados, gamão e astrágalo (um osso do pé). Não é perfeito, mas reflete a personalidade do autor, suas ideias desvairadas, seu temperamento instável, a paixão com que enfrentava cada empreendimento – e a turbulência da sua vida e sua época. O livro considera apenas os processos – como o lançamento de um dado ou a escolha de uma carta – nos quais um resultado é tão provável quanto outro, equivocando-se em alguns pontos. Ainda assim, a obra representa o primeiro êxito na tentativa humana de compreender a natureza da incerteza. E o método de Cardano para enfrentar as questões ligadas ao acaso é surpreendente, tanto por sua eficácia como por sua simplicidade. 

Então, depois de cinco anos em Piove di Sacco, Cardano volta a Milão em 1532, na esperança de publicar o livro e tentar de novo inscrever-se no Colégio dos Médicos. Redondamente enganado de novo, tendo sido rejeitado nas duas frentes. “Naqueles dias”, escreveu ele na autobiografia: “eu carregava um desgosto tão profundo que procurei magos e adivinhos em busca de alguma solução para tantos problemas” Um dos magos sugeriu que ele se protegesse dos raios lunares. Outro o instruiu a espirrar três vezes e bater na madeira quando acordasse. Cardano seguiu todas as prescrições, mas nenhuma delas modificou a sua vida. Assim, coberto por uma capa, passou a percorrer sorrateiramente à noite as casas, tratando pacientes que não tinham como pagar os honorários dos médicos sancionados, ou que não melhoravam com os seus cuidados. Para complementar o que ganhava com esse trabalho, foi forçado a apostar novamente nos dados para poder sustentar a família. E com isso conseguia comprar comida e viver, embora numa habitação deplorável. 

Os seus rendimentos só começaram a crescer quando publicou um livro baseado no velho artigo da faculdade, alterando, no entanto, o título para: “Da má prática médica no uso comum”. O livro foi um sucesso. Quando um dia, a saúde de um de seus pacientes secretos, um famoso prior da Ordem dos Monges Agostinhos, subitamente (e provavelmente por mero acaso) melhorou,  atribuída a sua recuperação ao tratamento ministrado por Cardano, a sua fama chegou a alturas tais que o Colégio dos Médicos se viu impelido não apenas a admiti-lo como membro, mas também a elegê-lo reitor. Enquanto isso, ele continuou a publicar livros que foram bem recebidos. 


O discernimento de Cardano sobre o funcionamento do acaso, haveria de formar a base da descrição matemática da incerteza pelos séculos que se seguiriam. Com esse método simples, passou a lidar-se com mais sistematicidade problemas que, de outra forma, pareceriam irresolúveis. O trabalho de Cardano também transcendia o estado primitivo da matemática de seu tempo, pois a álgebra, e até mesmo a aritmética, ainda estavam a dar os primeiros passos no começo do século XVI – nem mesmo o 'sinal de igual' havia sido inventado. Descartes [1596-1650] ainda estava para nascer.  Isto é para que tenhamos uma ideia dos desafios com que Cardano se deparou. O 'sinal de igual' foi inventado em 1557 por Robert Recorde, um académico de Oxford e Cambridge, que, inspirado pela geometria, observou que não poderia haver duas coisas mais semelhantes que duas rectas paralelas, e assim decidiu que tais linhas deveriam denotar a igualdade. E o símbolo × para a multiplicação, atribuído a um pastor anglicano, apareceu no século XVII. 

Por volta dos seus 50 anos de idade, na década de 1550, Cardano estava no auge - era diretor da Faculdade de Medicina da Universidade de Pavia, e tinha muito dinheiro. Sua boa sorte, porém, não durou muito. Em grande medida, a queda de Cardano se deu pelo lado da sua vida menos previsível: a família. Mas, antes de abordar este lado, ainda um caso profissional, que se vem juntar aos outros. 

Niccolò Tartaglia [1500-1557] – pseudónimo de Niccolò Fontana, um matemático italiano, que deu o nome ao triângulo de Tartaglia – conhecia a regra para resolver equações do 3ºgrau. E Cardano soube disso. Então Tartaglia pediu-lhe para guardar segredo, e não o divulgar. E Cardano prometeu sob jura. Mas Cardano, quando soube que o bolonhês Scipione del Ferro já havia descoberto a fórmula primeiro, considerou-se desligado do juramento, e divulgou a descoberta no livro: Grande Arte ou as Regras Algébricas. Ora, com este acontecimento ganhou em Tartaglia um inimigo mortal, cujos escritos muito contribuíram para espalhar a lenda de um Cardano desonesto e corrompido.

A filha Chiara, que recebeu o nome da avó, aos 16 anos havia seduzido o irmão mais velho, Giovanni, do qual ficou grávida. Ela conseguiu fazer o aborto, mas ficou infértil. Isso até lhe caiu bastante bem, pois a moça era ousadamente promíscua e, mesmo depois de casada, contraiu sífilis. Mas o pior ainda estava para vir. 

Giovanni acabou por se formar em medicina. Mas logo ficou mais famoso como um criminoso barato, tão famoso que foi chantageado a se casar com a filha de uma família de trabalhadores das minas de ouro, que tinham provas de que ele havia assassinado, por envenenamento, uma autoridade da cidade. Alguns anos depois de se casar, Giovanni deu a um de seus colaboradores uma poção misteriosa para ser misturada à receita de um bolo para a mulher de Giovanni. Quando ela estrebuchou, depois de comer a sobremesa, as autoridades da cidade juntaram 2+2. Apesar da grande fortuna que Cardano gastou em advogados, para mexer os cordelinhos junto das autoridades, e do seu testemunho em defesa do filho, o jovem Giovanni foi executado na prisão, pouco tempo depois. 


Um golpe final, que o levou à prisão, veio de Aldo, o seu filho mais novo, quando o traiu fornecendo provas contra o próprio pai em troca de uma posição privilegiada, como torturador e carrasco da Inquisição, na cidade de Bolonha. Aldo, quando criança gostava de torturar animais. Essa paixão foi facilmente canalizada para torturador freelancer da Inquisição. Denunciou o pai, falsamente, de ter tirado o horóscopo de Jesus Cristo. Libertado pouco depois com a condição de parar com as suas conferências, o senado de Milão eliminou o seu nome da lista dos que tinham permissão para ensinar. Isto obrigou-o a remeter-se ao exílio. Quando Cardano deixou Milão, em finais de 1563, como escreveu em sua autobiografia, estava reduzido mais uma vez a farrapos. 

Antes de morrer, Girolamo Cardano queimou 170 manuscritos não publicados. As pessoas que vasculharam o espólio encontraram ainda 111 textos sobreviventes. Um deles era um tratado em 32 capítulos curtos: “O Livro dos Jogos de Azar”, o primeiro na história a tratar de uma coisa com que as pessoas estavam habituadas a lidar há milhares de anos: a Incerteza. Como já referido, o livro só foi visto à luz do dia em 1663, quando Descartes já cá não estava há mais de dez anos.


quinta-feira, 21 de maio de 2020

Uma lição



As pessoas à beira da morte querem partilhar recordações, transmitir conhecimentos e recomendações, para que os seus que ainda vão ficar por cá sejam felizes. Fora isso, quando o fim de uma pessoa está próximo, é muitas vezes o médico de um hospital, e mais frequente do que se pensa, no Serviço de Urgência, que tem de tomar a decisão que devia caber ao moribundo.

Tenho um caso clínico em memória. No Serviço de Urgência, entra um doente numa maca muito cianosado trazido pelos bombeiros e acompanhado pela esposa de provecta idade. Depois de estimulado, não responde, está inconsciente. A enfermeira mede-lhe as tensões. Está hipotenso, e coloca-lhe um soro numa veia, e oxigénio por sonda nasal. Ela colhe sangue venoso para análises e eu pico a artéria para determinação dos gases de sangue. Um RX ao tórax mostrou imagem compatível com pneumonia no pulmão direito. 

Não tardaram duas filhas a aparecer. O nível das tensões e do oxigénio não estavam a ser compatíveis com a sobrevivência. E então, é quando uma das filhas, como quem não quer a coisa, diz: “doutor, e os Cuidados Intensivos?” Numa família, é raro haver unanimidade quanto ao "o que fazer" numa situação destas. P
ergunto à esposa qual teria sido a sua vontade? Como queria que fosse o final da sua história? 
Entretanto tinha ao telefone outro filho, que por acaso também é médico, e quer ponderar comigo a melhor decisão. Chegámos a um acordo: Nada de Cuidados Intensivos, nem de manobras de ressuscitação. Quando voltei ao doente, que ainda estava deitado na maca, tinha acordado após a enfermeira o ter algaliado e jorrado para o saco coletor mais de um litro de urina. «Ele acordou!», disse a esposa, exultante. Ele reconhecera-a, e estava tão lúcido que até perguntara qual era a sua tensão arterial.

Foi internado na enfermaria de Medicina Interna, onde viria a morrer passado quatro dias. Mas ainda deu para saber que os Cuidados Intensivos estavam longe do que ele desejava. Ele pediu à equipa para não o "entubar", para ter a oportunidade de uma morte serena, que, em todo o caso, preferia que fosse em casa. Para ele seria uma benção. Mas para aquela filha que havia perguntado pelos Cuidados Intensivos no início, o fim não estava assim tão claro. O que mais a assustava era os médicos poderem estar enganados, e não preservarem a vida dele o tempo a que ainda tinha direito. «Não quero sofrer», disse-me ele quando me apanhou a sós. Aconteça o que acontecer, prometa-me que não me deixa sofrer. Prometo, respondi.

Quando cheguei ao hospital na manhã seguinte, perguntei como tinha passado a noite: «Não passei muito bem». Toda a enfermaria tinha ficado acordada por causa do doente ao lado, que já estava sentado numa cadeira ao lado da cama, a batalhar contra o tubo. Segundo a enfermeira, o meu doente não evacuara, embora tenha saído do quarto várias vezes para ir à sanita. Como na manhã seguinte ele ainda não havia obrado, eu disse que se sentasse na sanita e esperasse que acontecesse alguma coisa. Foi lá três vezes, e na última, depois de vinte minutos, saiu a anunciar que tinha funcionado.

Os planos de família para celebrar o seu aniversário no dia seguinte (3º dia de internamento) tiveram de ser cancelados. Na realidade, ao longo do verão ele não tinha gozado as férias que sempre gostara de passar com a família no campo, porque, entretanto, a sua saúde tinha-se deteriorado. Mesmo com a nova bengala era muito perigoso andar por lá sozinho, como ele gostava de fazer. Ele insistia em dizer que o que estava a acontecer era devido a um resfriado mal curado. Mas, na verdade, os sintomas já se arrastavam há uns tempos. «Estou com catarro por causa do resfriado» – dizia ele repetidamente. No entanto, ele próprio transparecia compreender que o que estava a acontecer era algo muito mais sério.

No quarto dia, cedinho pela manhã, quando cheguei à enfermaria a enfermeira informou-me que o doente acabava de ser levado, por um interno de SU nessa noite, a caminho da UCI. O médico tinha sido chamado de emergência porque o doente havia entrado em paragem cardiorrespiratória. Quando lá cheguei, mal tinham acabado de entrar na Unidade. Equipei-me à pressa e entrei na Unidade. E então encontrei os médicos a discutir, pois continuava em paragem cardiorrespiratória. Eu disse: «É preferível não ressuscitar». E o médico sénior da Unidade disse: «Eu também acho». O interno ainda disse: «Sem isso não haveria a menor esperança» Mas depois acrescentou - «Embora, desnecessário dizer, a máquina não iria reverter o progresso da doença, que começara a atacar a sua função cardíaca e renal». 

O médico sénior da UCI informou: « Foi por pouco! Por lei, uma vez o doente acoplado ao ventilador não seria possível desconectá-lo. A menos que, das duas uma: ou voltasse a respirar por conta própria; ou morresse. Morrer dá trabalho, mas nós aqui somos trabalhadores do viver, não do morrer ». E virou-se para o interno, concluindo: «Você nunca mais deve esquecer isto».

quarta-feira, 20 de maio de 2020

Os sefarditas


Uma lembrança a propósito das notícias sobre o abandono por parte do grupo parlamentar do PS da exigência de dois anos de residência em Portugal para atribuir nacionalidade portuguesa aos descendentes de judeus sefarditas. Um deputado do CDS havia reivindicado a manutenção de um princípio de «fazer justiça histórica a uma comunidade de pessoas que eram portuguesas de origem e foram expulsas de Portugal em função das perseguições nos séculos XV e XVI», que foi reconhecido por lei em 2013, elaborada pelo PS e pelo CDS. Então, a lei não foi regulamentada, voltando a ser aprovada pelo Governo do PSD e do CDS em 2015, ano em que o mesmo princípio de concessão de nacionalidade a descendentes de sefarditas foi aprovado em Espanha. 

Em 2014, o governo espanhol possibilitou o reconhecimento dos judeus sefarditas como cidadãos espanhóis, determinando 1 de outubro de 2019 como prazo final para os requerimentos. As regras de concessão envolviam a demonstração clara da ancestralidade sefardita através de laudo genealógico. Portugal também aprovou lei semelhante, mas sem prazo estabelecido para a requisição de nacionalidade. O número 7 do artigo 6.º da Lei da Nacionalidade, prevê a possibilidade de aquisição de nacionalidade por descendentes de judeus sefarditas portugueses. 



O Centro de Interpretação da Cultura Sefardita do Nordeste Transmontano, em Bragança, é um espaço destinado à preservação das vivências das comunidades judaicas que habitaram a região transmontana e cuja memória, ainda hoje, perdura muito viva. A informação organiza-se sob a designação: Judeus Sefarditas do Nordeste Transmontano: uma viagem no tempo e ao fundo da consciência social. Pretende ser uma revisitação daquilo que a historiografia temática dá conta do que terão sido as vivências dos judeus sefarditas que habitaram a região.

O percurso expositivo deste espaço mostra a importância da História Sefardita no território do Nordeste Transmontano, com início na época medieval com o desenvolvimento económico da região, passa pela importância e pelo lugar das dinastias financeiras brigantinas na Época Moderna, com os vários homens de cultura que em diáspora se dedicaram aos mais variados campos do saber, terminando na Inquisição e no medo incutido nas mentalidades através da perseguição religiosa. Simbolicamente, à entrada do museu encontra-se uma grande oliveira feita de pequenos círculos escuros, dentro de cada um estão inscritas as localidades da região onde existiram comunidades judaicas. No segundo piso são apresentadas as várias dimensões da vida económica e social dos judeus da região, as feiras, os caminhos, os produtos produzidos e comerciados. O início da intolerância, o arranque das perseguições e o lançar da diáspora também aqui são apresentados. Um grande ecrã táctil permite perceber a mobilidade mundial de muitas famílias judaicas da região ao longo do tempo. 



A Comunidade Sefardita de Belmonte detém um importante facto da história judaica sefardita, relacionado com a resistência dos judeus à intolerância religiosa em Portugal e na restante Península Ibérica, tendo sido instaurada uma lei que obrigava os judeus portugueses a converterem-se ou a deixarem o país. Muitos abandonaram Portugal por medo da Inquisição e outros converteram-se oficialmente ao Cristianismo, mas mantendo no seio da família o seu culto e tradições. Um terceiro grupo de judeus, decidiu isolar-se do mundo exterior, cortando o contacto com o resto do país e seguindo rigorosamente as suas tradições. Esses judeus foram chamados de Marranos, uma alusão à proibição de comer carne de porco. Durante séculos os Marranos de Belmonte mantiveram as suas tradições judaicas quase intactas, tornando-se um caso excecional e raro de uma comunidade criptojudaica. Somente na década de 70 do século XX a comunidade estabeleceu contacto com os judeus de Israel e oficializou o judaísmo como sua religião. Em 2005 foi inaugurado o Museu Judaico de Belmonte, o primeiro do género em Portugal, que mostra as tradições e o dia-a-dia dessa comunidade.

Portugal teve os primeiros grão-rabinos em finais do século XII, tendo-os mantido continuamente até 1497. Para assegurarem uma melhor colaboração social e política alguns soberanos pretenderam nomear um grão-rabino para chefiar a população judaica e, deste modo, garantirem a existência de um único interlocutor entre os súbditos judeus e o poder. Os judeus eram artesãos, e trabalhavam o couro, o cânhamo, ou dedicavam-se à ourivesaria e à encadernação de livros. No decurso dos séculos XIV e XV os judeus passaram a estar igualmente envolvidos no comércio de cavalos, especiarias, produtos de seda comprados de forma legal nos portos do Mediterrâneo. 

Os sefarditas foram responsáveis por boa parte do desenvolvimento da Cabala medieval e muitos rabinos sefarditas escreveram importantes tratados judaicos que são usados até hoje em tratados e em estudos importantes. 

Sefardita é o nome que se dá aos descendentes de judeus originários de Portugal e Espanha. A palavra tem origem na denominação hebraica para designar a Península Ibérica. Têm uma língua própria para a liturgia a que se costuma chamar “ladino”. Desde sempre que estes judeus possuíam tradições, línguas hábitos e ritos diferentes dos judeus asquenazes que habitavam a Europa central e de leste.

Os sefarditas provavelmente se estabeleceram na Península Ibérica durante a era das navegações fenícias. Sobreviveram à cristianização da Península Ibérica no tempo do Visigodos, mas tiveram de partir depois de 1492 com a expulsão no tempo dos Reis Católicos de Espanha, e com a conversão no tempo do reinado de Dom Manuel I de Portugal. Uma boa parte dos hispânicos haviam abraçado o judaísmo e não o cristianismo, como reacção às perseguições visigóticas. Os judeus reivindicavam a sua presença na Península desde tempos muito antigos. Todos eles acreditavam serem descendentes da tribo de Judá (uma inclinação muito judaica de fazer história a partir das lendas), deportada para Espanha em 587 a.C. aquando da destruição do primeiro Templo de Jerusalém por Nabucodonosor II. Segundo eles, faziam parte de uma aristocracia judaica sem qualquer responsabilidade na Paixão de Cristo visto que, nessa época, a referida aristocracia já não se encontrava na Terra Santa.

Em 1492, é difícil avançar um número exato dos judeus na Península. Houve, no entanto, quem tenha estimado um décimo da população total. Diz-se que em Espanha, cerca de 200.000 partiram; e 150.000 converteram-se ao Cristianismo. Desde a época andaluza do califado de Córdova, as comunidades judaicas e as aljamas (povoações com sinagogas) passaram a beneficiar de uma independência indiscutível, o que não fora o caso na época do reino visigótico, onde tinham sido perseguidas. No entanto, a partir do Concílio de Latrão de 1179 e de 1215, os judeus passaram a ser obrigados a usar a rodela amarela nas suas vestes. Com o Código de Leis de D. Afonso X de Castela – As Sete Partidas – e o Sínodo de Logroño de 1324, passam a ter de prestar juramento com base num texto bastante longo e humilhante sempre que, num processo, tinham de enfrentar um cristão:
“[…] E tu, judeu de palavra pérfida e empedernida, sem rei nem bispo consagrado, sem capelão, guarda a tua vil crença e a terra poluída que é a terra dos judeus, onde tu te arrastas pelo chão como uma cobra[…] vira o teu coração e o teu corpo e diz a verdade antes da tua morte se, por mero acaso, jurares em falso, Ámen. Torna a dizer antes da tua morte. Ámen."
Os sefarditas são divididos hoje em ocidentais e orientais. Os ocidentais são os chamados judeus da nação portuguesa, enquanto os orientais são sefardim que viveram no Império Otomano. Após a crise que envolveu Israel e os Países Árabes em 1967, muitos dos judeus que viviam nos Países Árabes, que eram sefardim, foram viver para Israel onde os judeus eram na sua maioria asquenazes.

terça-feira, 19 de maio de 2020

A cultura mais inventiva da história que vai de Qin Shi Huang até Zheng He





O Exército de Qin Shi Huang, ou Guerreiros de Xian, é uma coleção de esculturas de terracota do primeiro imperador da China. É uma forma de arte funerária enterrada com o imperador em 210 a.C. e cuja finalidade era proteger o governante chinês na sua vida após a morte. As esculturas só foram descobertas em 1974 por agricultores locais no Distrito de Lintong, em Xian, na província de Shaanxi.

Os soldados variam em altura de acordo com suas funções, sendo os generais os mais altos. As estátuas incluem guerreiros, carruagens e cavalos. Estimativas atuais são de que nos três poços que contêm o Exército de Terracota, havia mais de oito mil soldados, 130 carruagens com 520 cavalos e 150 soldados de cavalaria, a maioria dos quais ainda estão enterrados nas covas nas proximidades. Outras esculturas de terracota não-militares também foram encontradas em outros poços e incluem funcionários, acrobatas e músicos. As figuras de terracota eram fabricadas em oficinas por artesãos do governo. Acredita-se que utilizavam a mesma técnica dos tubos de drenagem de água daquela época. Foram feitos em partes que eram unidas depois da queima e não em uma peça só. Eram então colocadas em seu lugar, em formação militar, de acordo com a sua patente e posto. As figuras eram em tamanho e estilo natural. Variavam em peso, indumentária e penteado, de acordo com a patente. A pintura da face, expressão facial individualizada e as armas e armaduras reais utilizadas criavam uma aparência realista e mostravam a qualidade do trabalho e a precisão envolvida na sua construção. Demonstram também o poder de um monarca que podia ordenar a construção de tão monumental empreitada.

Qin Shi Huang, que governou de 247 a.C. a 221 a.C. apenas como rei, de 221 a.C. a 210 a.C. reinou como Primeiro Imperador da China. Tendo unificado a China, seguiram-se uma série de reformas para estabilizar a unidade política chinesa, ordenando projetos de construção gigantescos, como a própria Muralha da China. Apesar de Qin Shi Huang ser considerado ainda hoje como um dos fundadores da China unificada, que assim permaneceria, com certas interrupções e diferenças territoriais, por mais de dois milênios, o imperador também é lembrado como um tirano autocrático.



Zheng He [1371-1433] realizou viagens por mar pelo sudoeste asiático, tendo chegado a Moçambique e Mar Vermelho, tendo a sétima e última expedição terminado em 1433 com a sua morte na viagem de regresso a partir de Ormuz. Xuande, que foi o governante entre 1426 e 1435, foi o imperador que pôs fim às expedições.

A história global tem sido até agora, essencialmente, uma história ocidental. Com mais uma ascensão da China, desta vez de longo alcance, a longa história chinesa vai finalmente fazer parte da História, tal como Robespeierre e a Revolução Francesa, ou Neil Armstrong como o primeiro homem a pisar a Lua. Este processo está já em andamento, como ilustrou o enorme interesse que rodeou a exposição daquelas estatuetas de terracota do Exército de Qin Shi Huang no Museu Britânico, em 2007/2008.

Além da sua extraordinária longevidade e explosões de florescente criatividade, a China consolidou-se como uma grande unidade na mesma altura em que o Império Romano se fragmentava. Enquanto na China se formava o conceito de um Estado-civilização, na Europa era o conceito de Estado-nação que se gerava, da qual fazem parte atualmente 52 países, num total de 741.447.158 pessoas que ocupa um território com a área de 10.180.000 Km2. Enquanto a China, com 1.400.000.000, ocupa a área de 9.597.000 Km2.

Os imperadores chineses lutaram sempre no sentido de unir os seus reinos, díspares e divididos, num todo unitário. Tudo sobre o que Xi Jiping lidera é vasto. Ele pode inspecionar o seu império do ar – não apenas a área abrangida pelos Himalaias, o mar do Japão e o deserto de Gobi, ou o mar da China Meridional, mas todo o império económico que atravessa o globo. Os líderes chineses sempre foram muito cuidadosos para se certificarem de que o centro (o império do meio) se mantém firme. Para conseguirem isso, tornaram-se mestres em promover, de forma discreta, a unidade através da divisão.

A unidade foi sempre crucial para o sucesso da China, e, ao mesmo tempo, foi sempre um dos seus maiores desafios. No passado, a única coisa a representar simultaneamente um papel físico e simbólico na unificação do país era a Grande Muralha da China. É aqui que se pode compreender a China. Afinal, a muralha foi construída tendo por base uma ideia bastante simplista: de um dos seus lados estava a civilização, do outro estavam os bárbaros. O Reino do Meio a sul, habitado pelo povo Han; a norte o deserto da Mongólia com a Manchúria a leste e Xingiang a oeste.

Antes de a muralha existir, há uns 2500 anos, as montanhas a norte ofereciam alguma proteção aos Han, que tinham desenvolvido sociedades estabelecidas nas terras férteis da planície do Norte da China. Mas grupos armados e, ocasionalmente, exércitos inteiros de todas as três regiões encontrariam sempre algum caminho pelas passagens das montanhas até às planas terras agrícolas, e cidades como Pequim, Luoyang e Kaifeng. E assim, ao longo de séculos, os chineses viriam a desenvolver a sua quinta essência, construído em pedra – uma linha não apenas física, mas também simbólica, a separar o barbarismo da civilização.

A crença dos Han, de que a China era o centro cultural da Terra, bem como a civilização mais avançada, juntava-se à crença que o imperador da China era o único governante na Terra, mandatado pelo próprio céu, e, por conseguinte, o legítimo imperador do mundo. Isso queria obviamente dizer que não só viam os outros governantes como subordinados, como também consideravam todas as outras civilizações inferiores. Vizinhos próximos de etnias diferentes deveriam ficar sob o domínio do imperador, embora pudessem ter os seus próprios líderes locais. Estados bárbaros próximos podiam ter reis, mas tinham de reconhecer ser inferiores ao imperador chinês. E mesmo em locais mais longínquos, como Xinjiang, Java e Japão, eram considerados “estados tributários” e tinham de pagar tributo ao Reino do Meio. Esta não era uma visão do mundo propensa a fazer amigos, mas não há dúvida de que influenciava pessoas, e durante muito tempo funcionou às mil maravilhas, a avaliar pela narrativa das ‘Viagens’ de Marco Polo [1254-1324].