quinta-feira, 30 de setembro de 2021

O social-capitalismo chinês



A China ainda é comunista, ou é um social-capitalismo a caminho do capitalismo? Sete décadas após a sua fundação, como o maior país comunista do mundo, esta nação asiática tornou-se inequivocamente a maior potência económica do planeta. O PIB chinês é superado apenas pelo dos Estados Unidos. No entanto, em termos de paridade do poder de compra (PPP), já é o país mais rico do mundo. A China também possui o setor bancário mais rico e a instituição com o maior total de ativos: o Banco Industrial e Comercial da China (ICBC). E é o principal gigante comercial: produz e exporta mais que qualquer outro país, com 119 empresas na lista das 500 maiores do mundo, segundo a lista de 2019 da revista Fortune. A multinacional Huawei, a maior empresa privada da China, é líder no desenvolvimento da tecnologia 5G e a segunda maior fabricante de telemóveis do mundo. Outra empresa privada, a Lenovo, vende mais computadores pessoais que qualquer outra empresa no mundo. Enquanto isso, a Alibaba, do empresário Jack Ma, domina o comércio online, com uma faturação que supera o da Amazon, a sua rival americana. Os fundadores dessas empresas estão entre as centenas de chineses que agora fazem parte da lista de multimilionários da revista Forbes.

Assim, economicamente falando, a China está hoje mais próxima do capitalismo do que do comunismo. 
No entanto, o capitalismo fica por aqui, em tudo o resto impera a mão pesada do Partido Comunista Chinês. A "mão invisível" do Partido Comunista da China está em todos os aspetos da economia. É o Estado que controla quase todas as maiores empresas do país, que administram os recursos naturais. Ele também é oficialmente o proprietário de toda a terra, embora, na prática, as pessoas possam ter propriedades privadas. E o Estado também controla o sistema bancário.

Esses traços socialistas que persistem no modelo económico chinês, e que levaram muitos analistas a usar o termo "capitalismo de Estado", exacerbaram a guerra comercial entre a China e os Estados Unidos. Embora o conflito esteja centrado na balança comercial, que é muito favorável a Pequim, Washington e outros parceiros comerciais da China reclamam do enorme auxílio estatal que as empresas privadas chinesas recebem e que, portanto, as coloca em vantagem na comparação com os seus rivais internacionais.

Na primeira metade do século XX, sob a influência da Revolução Russa de 1917, grupos revolucionários na China passaram a criar círculos de estudos no interior do país que posteriormente se uniram para formar, em Xangai, um congresso de representantes que criou o Partido durante o Primeiro Congresso ocorrido entre os dias 23 e 31 de julho de 1921. Desde o 1º de outubro de 1949, quando Mao Zedong proclamou a República Popular da China, e o PCCh passou a comandar o “Reino do Meio” (Zhongguó, China em mandarim), o Partido tem sido a base para as transformações chinesas que possibilitaram ao país superar a sua difícil situação económica e social.

Foi em 1978, durante o governo de Deng Xiaoping, que a abertura ao mercado capitalista possibilitou a prosperidade da nação e a melhoria de vida para o povo. E assim se fortaleceu, mostrando ser possível encontrar um caminho singular para o desenvolvimento do país: um “socialismo com características chinesas”. Mas não há bela sem senão, vários jornalistas já tiveram que deixar a China para relatar a dura realidade enfrentada por muitos chineses. Um dos símbolos da repressão é o conhecido massacre da Praça da Paz Celestial (Praça Tiananmen) que ocorreu em 1989. Até hoje as informações sobre este episódio de violência estatal não são conhecidas pela população.

Xi Jinping, desde que assumiu o cargo mais importante do partido em novembro de 2012, no 18º Congresso Nacional do PCCh, o atual presidente vem adotando uma mão ainda mais firme. Assim, uma de suas primeiras ações foi intensificar a luta contra a corrupção dentro do Partido. O líder também é o responsável pela elaboração da orientação ideológica do “socialismo chinês na nova era” que foi definida como guia para os próximos anos. O pensamento do presidente tem como objetivo transformar a China num país moderno e próspero. Em 2020, os professores, ao criticarem o presidente e o partido, precisaram de ser “disciplinados”. A repressão aos protestos pró-democracia que ocorreram em Hong Kong desde 2019 também é símbolo desse controlo. A contenção violenta por parte da polícia, que prendeu mais de 7.800 pessoas, e o ataque do PCCh ao sistema judicial da cidade, acusação feita pelos manifestantes, demonstram o estilo de abordagem utilizada pelo Partido na tentativa de manter as aparências de lealdade do povo chinês.

No 19º Congresso Nacional do Partido Comunista da China, realizado no Grande Salão do Povo, em Pequim, entre 18 e 24 de outubro de 2017. 2.280 delegados representaram os cerca de 89 milhões de membros do partido. Os preparativos para o 19º Congresso Nacional começaram em 2016 e terminaram com uma sessão plenária do Comité Central alguns dias antes do Congresso. Em 2016, as organizações partidárias locais e provinciais começaram a eleger delegados ao congresso, bem como a receber e modificar os documentos do partido.

Durante o congresso, uma nova ideologia orientadora, intitulada "Pensamento de Xi Jinping sobre o socialismo com características chinesas para uma Nova Era", foi escrita na constituição do Partido. Esta foi a primeira vez desde o 'Pensamento de Mao' que um líder vivo do partido adicionou à constituição uma ideologia nomeada por ele mesmo. O Congresso também enfatizou o fortalecimento do socialismo com características chinesas, e estabeleceu prazos concretos para atingir os objetivos de desenvolvimento, como construir uma sociedade moderadamente próspera e alcançar a "modernização socialista". Também se destacou por fazer a China desempenhar um papel mais importante a nível internacional.

Qualquer que seja o tema ou o pretexto, as conversas com chineses envolvem sempre a pergunta «ni shi na guo ren?» (de que país és?) ou «ni shi na lai de?» (de onde vens?). Conta-se que na década de 1980 o correspondente de uma revista alemã costumava responder que era chinês, da etnia «yi da li da» (italiana), e aparentemente ninguém estranhava. Além da etnia han, que constitui 91,5% da população, há mais 55 etnias. A lista inclui russos, mongóis, uzbeques, cazaques, coreanos, tadjiques, quirguizes e outras etnias oriundas de territórios que entretanto se tornaram países independentes. Na última dinastia imperial, que governou de 1644 a 1912, havia apenas cinco raças – manchu, chinesa, mongólica, maometana e tibetana. Por razões políticas, a tibetana e a uigur são as mais conhecidas fora do país, mas não as maiores. Esse título pertence à etnia zhuang: 18 milhões. Os 11 milhões de etnia manchu estão em segundo lugar e a seguir vêm os hui (10 milhões), os miao (9 milhões) e os uigures (8,5 milhões), a principal etnia do Xinjiang. Os mongóis são cerca de 6 milhões e os tibetanos, dispersos por várias províncias, 5,5 milhões. Dois terços das etnias têm menos de um milhão de pessoas e a mais pequena, os lhoba, do sul do Tibete, são apenas 3000.

A República Popular da China define-se como uma nação multiétnica e a Constituição proíbe a discriminação ou opressão de qualquer minoria étnica e qualquer ato que mine a unidade entre as etnias ou instigue a divisão. Para o governo, os terroristas do Turquestão Oriental (nome de uma efémera república proclamada na década de 1940 no Xinjiang) e os separatistas tibetanos dirigidos pela clique do Dalai Lama são as principais ameaças à segurança nacional. Os uigures são uma etnia de religião muçulmana, com uma língua e cultura de origem turca. Há 60 anos representavam cerca de 90% da população do Xinjiang; hoje são 45%, contra 40% de han. Na capital, os han já são mesmo maioritários, outra fonte de ressentimento, sobretudo entre os jovens uigures que têm de procurar emprego nas fábricas do litoral. Foi aí, aliás, que a violência começou – a mais de 3000 quilómetros de distância.




Em 5 de julho de 2009, um domingo em Urumqi, capital de Xingiang, deram-se tumultos que resultaram em 140 mortos e mais de 800 feridos. Centenas de pessoas foram detidas na sequência dos violentos incidentes, entre as quais "mais de dez personalidades chave que atiçaram os tumultos", adiantou a Nova China citando o departamento de segurança pública. Dez dias antes dos tumultos em Urumqi, operários de uma fábrica de brinquedos de Shaoguan, na província de Guangdong, irromperam pelo dormitório dos trabalhadores uigures para vingar a violação de uma estagiária han, atribuída aos malvados uigures

Era mentira, diria mais tarde a polícia, mas, entretanto, dois uigures foram mortalmente espancados e dezenas de outros ficaram feridos. A fábrica empregava 18 000 trabalhadores, entre os quais 800 uigures. Diz-se que a polícia só apareceu ao fim de três horas, quando os telemóveis já tinham certamente levado a notícia – e as imagens – até ao longínquo Xinjiang. Dias depois, em Urumqi, começou a circular entre os estudantes e intelectuais uma carta pedindo um inquérito ao que se passou em Shasguan, contaria um professor uigur. Perante a falta de resposta das autoridades, cerca de 200 pessoas, a maioria jovens, decidem promover uma manifestação de protesto no centro de Urumqi. O que se passou a seguir continua confuso. Segundo o governo chinês, os distúrbios foram instigados e dirigidos do exterior, nomeadamente pela organização separatista Congresso Mundial Uigur, sediada nos Estados Unidos, e executados por bandidos armados com barras de ferro, pedras e facas. 




O Congresso Mundial Uigur acusou a polícia de ter dispersado os manifestantes com extrema violência. As autoridades afirmaram que os manifestantes se dividiram em pequenos grupos e, além de atacarem a polícia, desataram a agredir todos os han que encontravam pela frente. Dezenas de lojas e viaturas foram incendiadas. Ao princípio da noite já havia mortos. A internet, o serviço de SMS e as chamadas telefónicas internacionais foram imediatamente cortados, mas ao contrário do que aconteceu no ano anterior no Tibete, a imprensa estrangeira pôde deslocar-se a Urumqi. No hotel onde a maioria dos jornalistas ficou instalada havia mesmo ligação à internet – a única num território quase três vezes maior do que a Península Ibérica.

Centenas de pessoas foram presas. Até fevereiro de 2010, pelo menos 25 tinham sido condenadas à morte. O líder do PC chinês no Xinjiang, Wang Lequan, acabou por ser substituído e, quase um ano depois, as ligações à internet foram restabelecidas. O Xinjiang regressava à normalidade, mas as dúvidas acerca da capacidade da liderança chinesa para enfrentar este tipo de manifestações não se dissiparam. Aparentemente, as autoridades locais não se aperceberam ou desvalorizaram a indignação causada pelos incidentes na fábrica de Shaogang. No próprio dia da manifestação em Urumqi garantiram ter provas, incluindo escutas telefónicas, de que os distúrbios foram instigados por separatistas conluiados com terroristas islâmicos, mas, ao mesmo tempo, pareceram impreparadas para essa ameaça.

segunda-feira, 27 de setembro de 2021

Pisístrato




Pisístrato [600 a.C. - 527 a.C.] um aristocrata do norte da Ática, governou Atenas na fase da Tirania entre 546 a.C. e 527 a.C. O nome Pisístrato é uma homenagem ao filho de Nestor. A sua mãe era prima da mãe de Sólon, figura que promoveu reformas políticas e concedeu a Atenas um código de leis, numa tentativa de resolver os conflitos sociais, o que se revelou insuficiente. Pisístrato conquistou a fama por ter tomado um porto controlado por Mégara, com a qual Atenas travara uma guerra.

Politicamente, Atenas encontrava-se nesta época dividida em duas fações: a da "Planície", de tendência conservadora, constituída pelos eupátridas latifundiários e liderada por Licurgo, e a da "Costa", composta por mercadores e chefiada por Mégacles. Pisístrato criou uma terceira fação, a dos Montanheses, onde se incluíam elementos aristocráticos, mas também a população desfavorecida do meio urbano e camponês.

Segundo Heródoto, Pisístrato simulou um ataque, entrando na ágora de Atenas com feridas que fez em si próprio, alegando terem sido feitas pelos seus inimigos, que o teriam tentado matar. Graças a esta encenação, Pisístrato conseguiu convencer os Atenienses a conceder-lhe uma guarda pessoal, algo que na época não era permitido, dado que o seu detentor poderia apoderar-se da cidade. Ainda de acordo com Heródoto, Sólon, já então de idade avançada, teria aconselhado os Atenienses a não lhe concederem a guarda. Foi com esta guarda pessoal que Pisístrato conquistou em 560 a.C. a Acrópole, instalando a sua tirania. Contudo, o seu governo seria efémero, dado que em 559 a.C. Pisístrato foi derrubado pelas duas fações, tendo abandonado a cidade. Quando Mégacles se desentendeu com a sua fação e com a fação da Planície, este decidiu aliar-se a Pisístrato, desde que este casasse com a sua filha. 

Pisístrato partiu para o norte da Grécia, onde se envolveu no negócio de exploração da prata. Com a riqueza que adquiriu nesta atividade conseguiu formar um exército de mercenários com os quais derrotou o exército ateniense. A cidade caiu então sob o seu poder. Pisístrato governaria Atenas nos seguintes dezanove anos, até à sua morte em 527 a.C. Pisístrato tomou uma série de medidas na agricultura, comércio e indústria que em muito contribuíram para a prosperidade de Atenas, até então uma cidade de pouca importância quando comparada com Mileto e Éfeso. As leis e as formas moderadas da constituição de Sólon seriam preservadas. Como era habitual nos tiranos, Pisístrato procura proteger as classes desfavorecidas que o conduziram ao poder, isentando os mais pobres do pagamento de impostos. A estes concede igualmente empréstimos e terras. Pisístrato incentivou o cultivo da oliveira, que fornecia o azeite, umas das principais exportações de Atenas.

Pisístrato ordenou a construção do propileu da Acrópole, tendo sido reconstruído o templo de Atena. Data também da sua época o início dos trabalhos do templo de Zeus Olímpico. Durante o seu tempo a cerâmica de figuras negras de Atenas atingiu o seu esplendor, tendo atingido locais como a Jónia, Chipre, Síria, e Península Ibérica. Atribui-se a Pisístrato também a compilação da Ilíada e da Odisseia. No domínio da religião, colocou o santuário de Deméter em Elêusis sob tutela do estado ateniense. Institui novos festivais como as Grandes e as Pequenas Dionísias; por volta de 534 a.C., as Grandes Dionísias passaram a incluir um concurso de tragédias.

Agora é a História de Heródoto:
Os arautos iam de um lado para outro, repetindo a mesma proclamação. Logo divulgou-se a notícia de que Minerva conduzia Pisístrato, e os habitantes da cidade, persuadidos de que aquela mulher era realmente Minerva, prosternaram-se para adorá-la e acolherem Pisístrato.

Tendo, por essa maneira, recuperado a soberania, Pisístrato desposou a filha de Mégacles, segundo o compromisso firmado entre ambos; mas como já possuía filhos crescidos, e como os Alcmeónidas passavam por atingidos de maldição, não querendo filhos da nova mulher, teve com ela apenas contatos contra a natureza. A princípio, a jovem esposa suportou em silêncio tal ultraje, mas depois o revelou à própria mãe, espontaneamente ou premida pelas perguntas desta. A mãe comunicou o caso a Mégacles, seu esposo, que, indignado com a afronta do genro, reconciliou-se, na sua cólera, com a fação oposta. Informado do que se tramava contra ele, Pisístrato abandonou a Ática, dirigindo-se para a Erétria, onde pediu conselhos a seu filho Hípias. Este aconselhou-o a recuperar o trono, sendo o alvitre aceito. As cidades às quais Pisístrato tinha prestado outrora algum serviço cumularam-no de presentes. Várias deram-lhe somas consideráveis, mas foram os Tebanos os que mais se distinguiram pela sua liberalidade. Pouco mais tarde, tudo estava pronto para o regresso do tirano. Do Peloponeso foram enviadas tropas árgias mercenárias, e um náxio de nome Ligdâmis acorreu cheio de zelo, com homens e dinheiro para a empresa.

Partindo da Erétria para entrar na Ática, depois de uma ausência de onze anos, Pisístrato e suas tropas apoderaram-se primeiramente de Maratona, onde ergueram acampamento. Sabedores do seu regresso, seus partidários e de seu filho Hípias acorreram em grande número ao seu encontro, uns de Atenas, outros dos burgos — todos preferindo a tirania à liberdade. Os Atenienses seus adeptos nenhuma importância lhe deram enquanto estivara ocupado em levantar dinheiro para a sua volta, e mesmo depois que se tornou senhor de Maratona; mas, ante a notícia de que ele avançava desta cidade para Atenas, foram, com todas as suas tropas, reunir-se a ele. Entrementes, Pisístrato e os seus, tendo partido de Maratona num só corpo de exército, aproximavam-se de Atenas. Chegando defronte do templo de Minerva Palenide, ali acamparam. Um adivinho chamado Anfilito, inspirado pelos deuses, veio apresentar-se a Pisístrato e transmitir-lhe este oráculo: “As redes foram lançadas; à noite, ao luar, os atuns acorrerão em cardumes”.

Tal era a situação em que se encontravam os Atenienses, segundo a informação recebida por Creso. Quanto aos Lacedemônios, disseram-lhe que, depois de haverem sofrido perdas consideráveis, estavam, afinal, levando a melhor na guerra contra os Tegeatas. Realmente, no reinado de Leão e de Agasicles, os Lacedemônios, vitoriosos em outras guerras, tinham fracassado somente contra os Tegeatas. Este povo era, outrora, o menos civilizado entre os Gregos, e não faziam nenhum comércio com os estrangeiros e nem mesmo entre eles próprios; mas, depois, passaram, da maneira que vou contar, a possuir melhor legislação. Licurgo gozava em Esparta da mais alta estima. Chegando certa vez a Delfos para consultar o oráculo, assim que entrou no templo ouviu estas palavras da pitonisa: “Eis que vens ao meu templo, amigo de Júpiter e dos habitantes do Olimpo. Hesito em declarar-te um deus ou um homem; creio-te, antes, um deus”. Acrescentam alguns que foi a pitonisa quem lhe ditou a constituição ora vigente em Esparta; mas como julgam os próprios Lacedemónios, Licurgo trouxe as referidas leis de Creta, no reinado de Leobotas, seu sobrinho, rei de Esparta. 

Tal era a situação em que se encontravam os Atenienses, segundo a informação recebida por Creso. Quanto aos Lacedemônios, disseram-lhe que, depois de haverem sofrido perdas consideráveis, estavam, afinal, levando a melhor na guerra contra os Tegeatas. Realmente, no reinado de Leão e de Agasicles, os Lacedemônios, vitoriosos em outras guerras, tinham fracassado somente contra os Tegeatas. Este povo era, outrora, o menos civilizado entre os Gregos, e não faziam nenhum comércio com os estrangeiros e nem mesmo entre eles próprios; mas, depois, passaram, da maneira que vou contar, a possuir melhor legislação. Licurgo gozava em Esparta da mais alta estima. Chegando certa vez a Delfos para consultar o oráculo, assim que entrou no templo ouviu estas palavras da pitonisa: “Eis que vens ao meu templo, amigo de Júpiter e dos habitantes do Olimpo. Hesito em declarar-te um deus ou um homem; creio-te, antes, um deus”. Acrescentam alguns que foi a pitonisa quem lhe ditou a constituição ora vigente em Esparta; mas como julgam os próprios Lacedemônios, Licurgo trouxe as referidas leis de Creta, no reinado de Leobotas, seu sobrinho, rei de Esparta. Realmente, logo que assumiu a tutela desse jovem príncipe, reformou as leis antigas e tomou medidas contra a transgressão das novas. Regulamentou, em seguida, o que concernia à guerra, os enomotios, os tricados e os sissitos, e instituiu, além disso, os éforos e os senadores.

sexta-feira, 24 de setembro de 2021

De escada às costas. Ou a Escadaria do Quebra Costas




Os velhos; colocados lá em cima, nos andares mais baratos. A idade faz isto, eu bem te avisei, quando olhei para a tua casa nova e vi tantas escadas, umas para cima e outras para baixo. Agora até são ótimas, dá pra’ emagrecer e fortificar os músculos das pernas. Mas quando vocês forem velhotes? Ah! Já percebi, ides para um Lar.



«Agora, tens 80 anos e estás preso sem crime nem culpa alguma, sem participação da lei ou da polícia. Ou seja: tens muitas escadas para descer e, no regresso, cinco vezes mais escadas para subir que a subida, já se sabe, multiplica por cinco a distância — uma multiplicação de esforço cardíaco e mental; é evidente que devíamos ter pelo menos duas réguas, a que mede as subidas e a que mede as descidas; ter apenas uma e usar os mesmos critérios para falar de distâncias não apenas diferentes, mas inimigas, é pura falcatrua; descer e subir são verbos adversários. Faltam, pois, instrumentos para a ciência (duas réguas diferentes, pelo menos) e ainda elevador para os velhos das cidades europeias que vivem em edifícios de quatro andares sem elevador nenhum.» © Gonçalo M. Tavares – Escadas como prisão



Em Coimbra? Então suba a Escadaria Quebra Costas - além de ajudá-lo a se exercitar, é um lugar histórico e muito bonito na cidade. Houve lá obras recentemente. Os primeiros degraus da histórica escadaria que liga o Arco da Almedina ao largo da Sé Velha ganharam outra forma. A mudança da antiga pedra calcária de traça medieval por granito não agradou a todos. Muitos criticam o facto de a obra desvirtuar a essência daquela artéria da cidade, integrada numa zona classificada como Património Mundial da Humanidade pela UNESCO. “A pedra antiga era rústica. 

Durante a Idade Média as cidades costumavam ser construídas em locais difíceis de acesso, como falésias ou ao lado de rios difíceis de atravessar. Coimbra foi construída no topo de uma montanha, e, no ponto mais alto, encontra-se a parte mais importante da cidade, com a Universidade, o antigo Palácio Real. Para chegar a esta parte da cidade, porém, tem que se escalar a montanha. Uma das escadas mais importantes é a Escadaria do Quebra Costas. Esta escadaria existe desde o início da cidade de Coimbra. Foi construído no século VIII para ir do centro para a parte alta da cidade e do velho castelo.

O Quebra Costas liga o Arco e Torre Almedina, que costumava ser a entrada da cidade murada, à praça da Sé Velha (antiga catedral), a meio caminho do topo da montanha. É uma escada muito longa e estreita, e como o seu nome sugere, pode quebrar-nos as costas. Só não sei bem se à subida, se há descida. Ou será nos dois sentidos?


quinta-feira, 23 de setembro de 2021

Uma divagação neorrealista: à italiana e à portuguesa




Na verdade, teria preferido não ter festejado os oitentas. Mas não resisti ao convite da minha neta a assistir ao concerto de Khatia Buniatishvilli com a London Synphony Orquestra regida por Thilerman. Eu sou do tempo dos Scorpions (banda de rock alemã), Sherley Bassey e Frank Sinatra. A manhã é a melhor altura do dia. O gato faz tudo o que eu faço. Tomo a medicação, e atiro a embalagem de cartão ao ar, e o gato dá um salto e apara-a com as mãos. Agora apareço de cadeira de rodas, mas durante cinquenta anos fizera longas caminhadas. Em certos aspetos sinto-me velho, quando vejo Naomi Campbell ou Sharon Stone em programas de beneficência. Mas noutros sinto-me novo quando vejo Bono. Vou para a frente da TV. Vejo Madona quando a idade começou a pesar-lhe.
Vittorio De Sica constrói a célebre sequência que Bazin dava como exemplo: a jovem empregada entrando na cozinha de manhã, fazendo uma série de gestos maquinais e cansados, limpando as formigas com um jato d'água, pegando o moedor de café, fechando a porta com a ponta do pé esticado por causa do gato.

Quando Zavattini define o neorrealismo como uma arte do encontro – encontros fragmentários, efémeros, interrompidos, fracassados – o que ele quer dizer? Cesare Zavattini foi um roteirista italiano e um dos primeiros teóricos e proponentes do movimento neorrealista no cinema italiano: Umberto D e Ladrões de Bicicleta de Vittorio De Sica; Encontros de Paisá, de Rossellini. O neorrealismo italiano foi um movimento cultural surgido na Itália no fim da Segunda Guerra Mundial, cujas maiores expressões ocorreram no cinema. 




Considere-se a grande tetralogia de Roberto Rossellini: longe de marcar um abandono do neorrealismo, ele leva-o, ao contrário, à perfeição. Alemanha Ano Zero apresenta uma criança que visita um país estrangeiro (por isso o filme foi criticado, porque não teria o enraizamento social, que se supunha ser uma condição para o neorrealismo) e morre devido ao que vê. Stromboli põe em cena uma estrangeira que da ilha vai ter uma revelação ainda mais profunda porque não dispõe de reação alguma para atenuar ou compensar a violência do que vê, a intensidade e a gravidade da pesca do atum (''foi horrível..."), a força pânica da erupção ("estou acabada, tenho medo, que mistério, que beleza, meu Deus..."). Do mesmo modo, se a banalidade quotidiana tem tanta importância, é porque, submetida a esquemas sensoriomotores automáticos e já construídos, ela é ainda mais capaz, à menor perturbação do equilíbrio entre a excitação e a resposta de escapar subitamente às leis desse esquematismo e de se revelar a si mesma numa nudez, crueza e brutalidade visuais e sonoras que a tornam insuportável, dando-lhe o aspeto de sonho ou de pesadelo. Da crise da imagem-ação à pura imagem ótico-sonora há, portanto, uma passagem necessária. Ora é uma evolução que permite passar de um aspeto a outro: começamos por filmes de balada/deambulação com ligações sensoriomotoras debilitadas, e depois chegamos às situações puramente óticas e sonoras. Ora, é dentro de um mesmo filme que os dois aspetos coexistem, como dois níveis, servindo o primeiro apenas de linha melódica ao outro.

Obsessão, de Luchino Visconti, é visto, com razão, como precursor do neorrealismo; e a primeira coisa a tocar o espectador é a maneira pela qual a heroína, vestida de preto, é possuída por uma sensualidade quase alucinatória. Ela está mais perto de uma visionária, de uma sonâmbula, do que de uma sedutora ou apaixonada. A nova imagem, o que a constituiu é a situação puramente ótica e sonora, que substitui as situações sensoriomotoras enfraquecidas. 

Chamada de atenção para o papel da criança no neorrealismo, especialmente com De Sica (e, depois, na França, com Truffaut): é que, no mundo adulto, a criança é afetada por uma certa impotência motora, mas que aumenta a sua aptidão a ver e ouvir.




O que define o neorrealismo é essa ascensão de situações puramente óticas (e sonoras, embora não houvesse som sincronizado no começo do neorrealismo), que se distinguem essencialmente das sinestesias do antigo realismo. Talvez isso seja tão importante quanto a conquista de um espaço puramente ótico na pintura, ocorrida com o impressionismo. Objeta-se que o espectador sempre se defrontou com "descrições", com imagens óticas e sonoras, e nada mais, perseguindo-a, mais que engajado numa ação.

O neorrealismo italiano, por características comuns entre as obras e por uma ideologia difundida entre os seus realizadores, tanto estética como política, constitui um "estilo de época" do cinema. UM processo de libertação do regime fascista. Era um veículo estético-ideológico da resistência. Hasteava a bandeira da representação objetiva da realidade social como forma de comprometimento político. O seu período mais produtivo e significativo ocorreu entre 1945 e 1948. Seus temas protagonizados por pessoas da classe operária imersas num ambiente injusto e fatalista, sempre encontrando a frustração na eterna busca por melhores condições de vida, foram trazidos por influência do realismo poético francês.

Apesar de haver um certo consenso quanto às suas características, não existe uma delimitação exata quanto ao período de duração do movimento. Seguindo o paradigma observado na maior parte dos estilos estéticos da História da Arte e do Cinema, o nascimento dessa corrente aconteceu gradualmente, levando algum tempo até que se observasse o aparecimento de um filme genuinamente neorrealista. E, da mesma forma, sofreu uma decadência paulatina, sem um ponto delimitado de começo ou fim.

Roberto Rosselini, ainda durante a guerra (e, mais especificamente, no próprio campo de batalha) filma "Roma, Città Aperta" em 1945, inserindo registros de combates verdadeiros junto à dramatização. Rodado clandestinamente, como a própria resistência dos Partisans, o filme situa-se num limiar entre encenação e documento histórico. E, ainda, peça de propaganda contra o regime agonizante. No ano seguinte, realiza "Paisà", cujos 6 episódios acompanham o trajeto dos "libertadores", do sul para o norte, retratando a convivência entre italianos e aliados estrangeiros (com pessoas atuando nos papéis delas mesmas), com seus conflitos e choques inevitáveis.

Mas é com Vittorio De Sica que o neorrealismo produz uma das obras mais expressivas e emblemáticas de sua estética: Ladrões de Bicicleta, 1948, a temática dos problemas sociais, a criança, os atores iniciantes ou desconhecidos, a ambientação in loco, a ausência de apelos técnicos ou dramatúrgicos e ao mesmo tempo um intenso conflito na trama (também escrita por Zavattini). Pela história do homem recém-empregado que tem o seu instrumento de trabalho - a bicicleta - roubado, e assim ameaçado de perder o emprego. De Sica emoldura um quadro da classe trabalhadora urbana de então, assombrada pelo desemprego.

* * *



Este meu ensaio é também um pretexto para falar do livro de Álvaro Cunhal - "Até Amanhã Camaradas", sob o pseudónimo de Manuel Tiago e passado a filme em 2005 - realização de Joaquim Leitão e produção de Tino Navarro. Na sinopse do livro de autoria de Urbano Tavares Rodrigues pode ler-se:
«A humanidade profunda na austeridade de quem entrega a sua vida à causa da libertação de um povo merece todo o fluir da narração, as reações de muitas das figuras. Se é certo que o campo e os camponeses pobres e explorados, os pinhais de névoa, a desconfiança dos humildes, a bravura dos operários nas suas greves aqui aparecem, o tema central é a vida do Partido, as ligações, as casas de apoio, os contactos e precauções, por fim a prisão, a tortura, a morte. No presente um romance histórico, a diversos títulos: como obra de arte que é, como testemunho de alcance sociológico e político, como exercício moral (não confundir com moralizante, no estrito sentido apologético). Em resumo, um grande livro, inesperado e onde os sentimentos mais fortes e puros do homem encontram a simplicidade e o rigor transparente da expressão.»

Por ocasião da estreia do filme, Santiago Carrilho, o antigo secretário-geral do Partido Comunista de Espanha recordou, numa entrevista a um jornal, o seu primeiro encontro com Álvaro Cunhal, assim:  "Éramos os dois clandestinos, foi em 1944, sob a ditadura de Salazar, numa estrada de Sintra, Cunhal chegou de bicicleta, estava magríssimo". No entanto, não fez qualquer referência à reflexão que está nitidamente presente nas páginas de "Até Amanhã Camaradas", nem nos episódios televisivos ou nas cenas de "O homem da Bicicleta".

A ação do filme passa-se na década de 1945 a 1955. Inicia-se com um homem pedalando, algures, sobre uma bicicleta. Noite de temporal. Noutro local da ação, a mulher de Manuel Rato anda na lida caseira. O Homem da bicicleta chega. Bate à porta. Vem ensopado, cheio de lama e com aspeto extenuado. A Mulher vai atender.

Ao fim e ao cabo, Afonso e a bicicleta avançam em direção à “integração social” que leva à “autonomia” de cada um em prol do todo português, iniciada pela Grândola Vila Morena, entoada na madrugada do 25 de abril de 1974, e retomada na reconstrução diuturna de uma nação que, embora radicada no passado, vislumbra um futuro, sob a égide impulsionadora do Até amanhã, camaradas. Se as primeiras eleições democráticas ocorridas em 25 de abril de 1976 ainda não puderam concretizar o ideário proposto pelo comunismo, uma vez que o poder é assumido pelos socialistas, liderados por Mário Soares, a possibilidade de mudança se instaura, projetando para o futuro a concretização de uma nação que é sempre passado.




A ilustração supra, duas páginas de um livro do ensino primário, mostra como era Portugal no tempo do fascismo. Era um país oprimido por uma ditadura retrógrada de Oliveira Salazar e servida pela PIDE, uma polícia política implacável. Mas ainda assim havia quem resistisse. Os comunistas resistiam e organizavam-se para mobilizar o povo na luta pelo pão e pela liberdade, mesmo que isso lhes custasse a prisão, e em muitos casos a vida. Pessoas com nomes fictícios como Vaz, Ramos, António e Paula, militantes e funcionários do Partido Comunista, desenvolviam a sua ação na clandestinidade, não podia ser de outra maneira, reorganizando o Partido nas zonas dos arredores de Lisboa e do Ribatejo, ao mesmo tempo que preparavam jornadas de luta, com greves e marchas contra a fome.

Na biografia de Cunhal, José Pacheco Pereira diz que Cunhal criou da sua clandestinidade o mito do “homem da bicicleta”. A designação contém a visão heroica, cultivada pelo partido, de um líder jovem, enérgico, de cabelo ao vento, pedalando na noite, escapando aos algozes, fazendo da bicicleta a metáfora da bravura. Havia, na verdade, dentro do partido comunista português, os homens da bicicleta, mas Álvaro Cunhal, sem dúvida corajoso e ativo, era, segundo Pacheco Pereira, o homem da caneta, o homem da palavra, o homem das reuniões, o burocrata-mor do grupo. O alegado homem da bicicleta passou oito anos a fugir da polícia. Os anos de 1940 a 1943 foram os mais difíceis, tanto pela repressão da polícia, como pela extrema penúria em que viviam os comunistas. A miséria do racionamento, que afetou todo o País, repercutiu-se com dureza nos clandestinos da política.


Em novembro de 1940, Álvaro Cunhal saiu da prisão e encontrou o partido comunista português dividido, desorganizado e quase inativo. O pacto germano-soviético descredibilizara o PCP e desorientara os seus dirigentes. O partido, bipolarizado, entrou em severo conflito interno. E foi sobre essa indisciplina que o poder de Álvaro Cunhal se foi impondo até se tornar indisputado. No dia 4 de maio do ano seguinte ainda se deixou fotografar num passeio de barco pelo Tejo na companhia de Dias Lourenço e outros camaradas. Meses depois, entrou na clandestinidade. Abandonou a vida comum, as deambulações pela rua, as idas ao cinema, os encontros com os amigos. Tornou-se um foragido, sempre fechado, sempre a mudar de casa para fugir da polícia.

terça-feira, 21 de setembro de 2021

A normatividade sociológica



O conceito de “sociologia normativa” tem a sua origem numa piada que Robert Nozick fez em Anarquia, Estado e Utopia. Quando os sociólogos normativos estudam os problemas sociais, é frequente a tentação, quase irresistível, de partir de uma causa que gostariam que fosse, negligenciando as causas mais prováveis. E isso tem a sua razão de ser, que se prende com aquilo que agora se costuma chamar por “politicamente correto”. Como as pessoas se deixam cada vez mais amedrontar pela censura das redes sociais, deixam-se arrastar por explicações cujas conexões são popularmente mais aceitáveis. Depois da chegada das famigeradas redes sociais, as pessoas até se sentem obrigadas a fazê-lo, independentemente das provas que possam existir para o sustentar. Assim, uma das maiores vantagens das abordagens quantitativas das ciências sociais é o facto de ser praticamente impossível fazer impunemente sociologia normativa. 

Os sociólogos normativos hoje em dia sentem-se obrigados a fazer os seus estudos sob a agenda dos movimentos de causas. Assim, a questão sobre quem é responsável é uma questão separada da questão da causalidade, uma vez que o significado de causalidade ligada à causa dos fenómenos sociais não tem nada a ver com a agenda de causas. A agenda de causas tem a ver não com a causa das coisas mas com que é o culpado de um certo estado de coisas. Portanto, deveria ser possível conversar sobre o que causa o quê de modo completamente separado da questão de quem tem culpa do quê. Mas tal deixou de ser possível no terreno da agitação social nas ruas das cidades. E traduza-se 'ruas das cidades' por cidadania e dever cívico.

Até aqui, a “sociologia normativa” tem sido ligada a um certo viés de esquerda. Mas não tem necessariamente que ter um viés de esquerda. Há vários exemplos de conservadores que se agitam com grande violência, por exemplo contra o aborto, alegando que a culpa está no alegado aumento de divórcios, que por sua vez leva à baixa da natalidade. Outra alegada causa é o aumento da tolerância à homossexualidade. Ou que os nascimentos fora do casamento têm como causa o sistema de previdência social. 

A diferença entre direita e esquerda é que as pessoas à esquerda frequentemente são mais ativas na resolução dos problemas sociais. De qualquer modo, isso não as isenta de um conjunto de interesses que podem enviesar significativamente a sua razão. Isto é particularmente frustrante, pois se o plano é resolver alguns problemas sociais, atacando os seus antecedentes causais, então é muito importante ver corretamente as conexões causais. De contrário, a sua intervenção será inútil e muito possivelmente prejudicial.

As esquerdas quiseram realmente acreditar que o capitalismo tinha uma “contradição” interna. Com essa ideia, uma grande quantidade de energia foi desperdiçada em ativismo. Ora, nada mais frustrante quando se tenta mudar um certo estado de coisas quando na realidade se ataca o flanco que nada tem a ver com as causas do problema. Nunca foi colocado na equação o problema do excesso de consumismo.

Os críticos de esquerda veem o sistema de mercado com lentes muito menos lisonjeiras. No mercado, veem antes de tudo um sistema no qual os fortes exploram os fracos. Firmas com poder de mercado tiram vantagem de trabalhadores cujas oportunidades são limitadas. Os críticos de esquerda ao excesso de consumismo veem o sistema de mercado como seu promotor. E, de facto, o mercado quase depende da venda de produtos que não servem qualquer necessidade social. É a publicidade manipuladora que persuade as pessoas a gastarem o que não têm com o supérfluo, com a vaidade. E entretanto o meio ambiente vai-se degradando. Cada vez mais se vê que a recompensa não tem praticamente qualquer relação com o valor social do trabalho que é feito. E, por outro lado, vão crescendo como cogumelos escritórios de advogados cuja tarefa é ensinar os clientes a explorar brechas tributárias.

A maior parte das pessoas, obviamente, não está em qualquer extremo do espectro político. Os que estão no meio presumivelmente acreditam que a verdade real sobre o mercado está em algum lugar entre as perspetivas oferecidas pelos campos extremos. A esquerda, perdendo-se em causas espúrias, tem encontrado dificuldades para formular políticas públicas coerentes. Pode acertar nos diagnósticos, mas não tem encontrado a terapêutica mais apropriada a este capitalismo em estado agónico.

Muitos dos nossos problemas sociais permanecem marcantes porque ocorrem em áreas que estão fora da jurisdição imediata do Estado. Seja porque ocorrem na esfera privada (que envolve o exercício da autonomia individual, e também familiar. Como resultado, não há qualquer “alavanca política” óbvia que possa ser acionada para solucionar os problemas do trabalho, pois o Estado Democrático simplesmente não possui a autoridade, e o poder não quer, para intervir diretamente na relação laboral. Como resultado, as pessoas que gostariam de ver os seus problemas do trabalho resolvidos pela esquerda, ficam frustradas porque na realidade a esquerda não tem uma alavanca política efetiva. O caso em que percebi isso mais claramente é a tendência de sobrestimar os efeitos causais da desigualdade. Os Estados Democráticos perderam a capacidade de a controlar através da distribuição da riqueza. 

segunda-feira, 20 de setembro de 2021

Métis



Sociólogos de algumas 'Escolas de Teoria', ainda muito influentes nos movimentos de ação política na rua, falam como se fossem oráculos da verdade gravada na pedra. Uma das suas proposições diz que os resultados da ciência, obtidos com muito trabalho, muita observação, experimentação e reflexão, não passam de 'narrativas' semelhantes aos mitos dos antigos gregos. São apenas acordos sociais.



Chris Andersenprofessor na Faculdade de Estudos Nativos da Universidade de Albertano seu livro "Métis", centra-se na resposta à pergunta sobre quem é Métis e quem não é Métis. Jean-Pierre Vernant, em O universo, os deuses, os homens - descreve o ocorrido:
Zeus interroga Métis: ‘Tu, que de facto, podes assumir todas as formas, poderias ser um leão que cospe fogo?’ De imediato Métis torna-se uma leoa que cospe fogo. Espetáculo aterrador. Zeus pergunta-lhe depois: ‘Poderias também ser uma gota d’água?’ ‘Claro que sim’. “Mostra-me”. E, mal ela se transforma em gota d´água, ele bebe a água. Pronto! Métis está na barriga de Zeus. Mais uma vez a astúcia funcionou. 

Zeus, Júpiter ou Saturno não se contentam comer os seus eventuais sucessores, como havia feito Cronos, que agora encarna, no correr do tempo, no fluxo temporal, essa presciência ardilosa que permite desfazer antecipadamente os planos de qualquer um que tente surpreendê-lo ou derrotá-lo. Métis, grávida de Atena, está em sua barriga. Assim, Atena não vai sair do regaço da mãe, mas da cabeça do pai, que é agora tão grande quanto o ventre de Métis. Zeus dá uivos de dor. Prometeu e Hefesto são chamados a socorrê-lo. Chegam com um machado duplo, dão uma boa pancada na cabeça de Zeus e, aos gritos, Atena sai da cabeça de Deus, jovem donzela já toda armada, com o seu capacete, a sua lança, o seu escudo e a couraça de bronze. Atena é a deusa inventiva, cheia de astúcia. Ao mesmo tempo, toda a astúcia do mundo está agora concentrada na pessoa de Zeus.

Métis é o termo francês para "sangue misto", o equivalente de mestiço em português. Ora, as três províncias da pradaria do Canadá (Manitoba, Saskatchewan, Alberta) - bem como partes de Ontário, Colúmbia Britânica, Territórios do Noroeste e Estados Do Norte - são as únicas em que a ascendência da população é mista: indígena e europeia de predomínio francês. Os canadianos consideram ser uma cultura distinta, um dos três grupos de povos indígenas canadenses. Comunidades menores, que se autoidentificam como Métis, existem no Canadá e nos Estados Unidos. É o caso da Pequena Tribo da Concha dos Índios Chippewa. Há um debate até mesmo dentro da Pequena Concha sobre se os Métis devem mesmo ser autorizados a se inscrever. Embora haja muita história e território compartilhados entre os Ojibwe e os Métis de Montana. A etnogénese Métis começou no comércio de peles. É um grupo importante na história do Canadá, bem como na fundação da província de Manitoba. A Nação Métis tem a pátria em Montana, bem como no Oeste do Canadá, região que foi dividida aquando do desenho da fronteira EUA-Canadá no paralelo norte 49. Alberta é a única província do Canadá em que é reconhecida base territorial da Nação Métis; os oito Assentamentos da Nação Métis, com uma população de aproximadamente 5.000 pessoas em 1,25 milhões de acres (5060 km2).

Podendo parecer apenas um mero exercício de política identitária, todavia, na prática da vida dessas pessoas tem implicações sérias. Os grupos Métis no Canadá têm exigido, e em alguns casos receberam, muitos dos direitos que são atribuídos às minorias nacionais tradicionalmente tratados segundo o estatuto de índio. Por exemplo, ao índio é-lhe dada permissão para caçar fora das temporadas estabelecidas para caçar. A questão sobre quem conta como Métis, contudo, é um tanto complicada. Durante o período inicial de colonização do Canadá, houve um período de aproximadamente duzentos anos em que os únicos europeus que entraram no território oeste dos grandes lagos eram viajantes e comerciantes de peles. Centenas deles se fixaram ao longo dos sistemas de rios e lagos que garantiam acesso ao interior do continente.

Esses homens casaram com mulheres indígenas e tiveram crianças. Isso significou que, quando os britânicos começaram a colonizar o oeste, começando pelo que hoje é Manitoba, encontraram não apenas tribos indígenas, mas também comunidades Métis fixadas e descendentes desses homens que casaram com mulheres indígenas. Estes grupos resistiram à colonização numa série de rebeliões bem conhecidas. Por conta disso, no entanto, o termo Métis passou a ter contornos de significado com alguma ambiguidade. Assim, o termo 'mulato' é frequentemente utilizado como o termo para referir alguém de ancestralidade mista (nesse caso, europeu e índio). Ainda assim, no sentido político e constitucional, o termo refere uma minoria étnica nacional, nomeadamente a população especificamente localizada no vale do Rio Vermelho e em seu redor, que foi involuntariamente incorporada à federação canadense. O objetivo principal de Andersen, no livro, é defender esta última definição, mais restritiva, do termo “Métis”. Embora haja certamente quem conteste, é importante notar que se trata de uma posição perfeitamente razoável. 

Então, como defende Andersen, há óbvias estratégias argumentativas que podiam ser utilizadas. Por exemplo, não faz sentido usar o termo "ancestralidade mista" dado que esta definição para propósitos legais ou constitucionais, é esvaziada na medida em que toda a população canadense-francesa tem ancestralidade mista. Se seguirmos a análise influente de Will Kymlicka sobre os direitos de minorias nacionais, mostra-se então que só os Métis do “Rio Vermelho” se classificam como grupo nacional. Infelizmente, Andersen não faz nenhuma dessas coisas. Em vez disso, argumenta que a definição em termos de “ancestralidade mista”, ao se focar na herança racial, comete o mesmo erro da posição colonialista. A ideologia racial é uma ideologia insidiosa, um ‘habitus’ colonial que, profundamente arraigado, molda de forma poderosa os nossos entendimentos do mundo social. Desse modo, as pessoas que subscrevem a definição de “ancestralidade mista” estão na realidade reproduzindo a “lógica soberana da violência” do colonialismo, bem como se engajando na “biopolítica do colono”.

Em outras palavras, em vez de tentar persuadir os seus oponentes por meio de boa e sólida  argumentação, Andersen basicamente usa argumentos de autoridade ou argumentum ad hominem. Não estão apenas enganados sobre a melhor interpretação do termo; estão também infligindo violência simbólica contra o corpo do sujeito colonizado. Ou, para colocar as coisas em termos mais prosaicos: são um bando de racistas. E os Métis, como Maria Campbell, que usam o termo no sentido de “ancestralidade mista” foram “seduzidos” pela lógica do colonialismo.

O profundo relacionamento entre a sociedade canadense, subsumindo práticas racializadas em praticamente todos os setores da sociedade canadense, significa que é moldada de forma poderosa não apenas como uns são tratados por outros, mas também a forma subjetiva como cada um se reconhece. 

Dizer: “eu acredito em X, e quem discorda de mim é um racista” - não é exatamente um convite ao diálogo. De facto, é a maneira perfeita de envenenar qualquer conversa. Sem saber como defender uma posição normativa, recorre-se ao assassinato de caráter e à intimidação de quem discorda. Muitas pessoas simplesmente, não tendo bons argumentos, ou tempo e paciência para entrar num diálogo frutuoso, adotam a estratégia muito básica e primária do insulto, com a acusação de o adversário ser racista. 

sábado, 18 de setembro de 2021

Não existem raças humanas biológicas


Este artigo visa analisar as inteligibilidades sobre raça produzidas pelos processos de racialização. A
 inteligibilidade hegemónica sobre raça está baseada em características fenotípicas, principalmente cor de pele. É um fenómeno social, sistémico, estrutural em algumas sociedades. No processo de racialização, diferentes sociedades usam diferentes critérios para racializar os indivíduos. Por exemplo: Uma colega médica, vinda do Brasil para Portugal, era conotada como a médica brasileira, devido ao sotaque brasileiro e a certos vocábulos específicos, mas de resto era mais uma branca como as portuguesas; no Brasil era considerada mestiça; depois conseguiu uma bolsa e foi para os Estados Unidos estudar, onde passou a ser negra. A mesma pessoa em três sociedades é racializada de três formas diferentes. Um bom exemplo de como é a sociedade e não as características pessoais de cada um que definem a forma como os indivíduos são racializados, isto é, como lhes é socialmente atribuída uma raça. Uma vez atribuída socialmente uma raça a cada pessoa, esta serve para a discriminação, a segregação, a perseguição, o abuso e a exploração.

Há abordagens que associam o racismo com a expansão europeia. Mas esta abordagem está errada, porque não explica fenómenos parecidos em outras partes do mundo, por exemplo, o tráfico saariano de escravos africanos subsaarianos organizado por árabes, ou a maneira como os japoneses trataram os chineses e os coreanos durante a Segunda Guerra Mundial, que certamente seriam definidos como racistas se os europeus fossem os autores. É importante elaborar uma definição de racismo que não seja tão redutora e parcial, incidindo apenas e estritamente à Europa. São processos históricos, como foi o da expansão europeia da época moderna. Por conseguinte, o racismo foi praticado em todo o lado, por outros grupos em outras circunstâncias. 

A racialização – o processo de essencializar, ou reificar, um grupo étnico - pode ser positiva ou negativa, ou talvez uma mistura. Geralmente grupos que racializam outros de maneira negativa também se racializam a si mesmos de forma positiva. A distinção entre racialismo e racismo é útil precisamente porque a racialização nem sempre é feita para justificar dominação racial. O racialismo é a tendência de perceber características intrínsecas e duradouras de um grupo de suposta origem comum, como é exemplo o caso dos ciganos ou dos judeus. Ao passo que as ideologias racistas são formas de afirmação de uma superioridade de um grupo sobre outro, nem sempre maioritário, para justificar a ocupação do poder político e a dominação. Neste caso, o racismo inclui dois elementos: a dominação étnica e uma ideologia que essencializa e categoriza negativamente o grupo subordinado, justificando a sua subordinação.

O simples preconceito contra outro grupo, o etnocentrismo ou a xenofobia não constituem, necessariamente, o racialismo nem o racismo. Os grupos de origem comum quase sempre acreditam que o seu modo de vida é mais honrado que o de outros grupos, e sentem que algumas práticas de outros grupos são repugnantes. Essas posturas tornam-se racialistas quando as práticas do outro são vistas como intrínsecas a esse grupo. Os nacionalismos tendem a racializar-se mutuamente. Afirmações como “os italianos têm sangue quente”, “os holandeses são frugais” ou “os franceses são arrogantes” são exemplo do que representa a essencialização de uma nacionalidade. Mas estas representações não podem ser consideradas racistas porque não são agressivamente negativas – podendo ser acompanhados de outras afirmações positivas (“os italianos valorizam a família”, “os holandeses são bem organizados”, “os franceses têm bom gosto”), não fazem parte de ideologias enfatizando a inferioridade da coletividade assim classificada, e não acompanham práticas de dominação sistemática de algumas nacionalidades por outras.

O racialismo constitui racismo quando afirma a inferioridade como essência do outro, justificando práticas de dominação racial. Neste caso, a racialização é mais agressivamente negativa, envolvendo uma estrutura maior de afirmações inter-relacionadas e explícitas, ou seja, uma ideologia racista. Também é imposta publicamente ao grupo dominado. Não fica restrita aos sentimentos internos do grupo que se crê superior. A violência é uma maneira particularmente eficaz de categorizar o outro. O  racismo tanto pode ser ideológico, dos intelectuais, como popular, que decorre do hábito e da perceção popular, muitas vezes aproveitada e estimulada por partidos políticos de extrema direita reificando ainda mais os traços do populismo.

A crença na existência de “raças” é uma consequência do racismo; o racismo não é consequência de diferenças raciais preexistentes. O que há são grupos racializados ou raças sociais. Portanto, a reprodução acontece no dia a dia, com a recriação quotidiana das relações sociais que se racializam de geração em geração. O racismo não é somente uma ideologia, mas também um conjunto de disposições, esquemas de perceção e estratégias de ação – ou seja, um aspeto do habitus – que reforça e legitima a dominação racial. O habitus racial do grupo dominante se reproduz pela internalização das divisões raciais do mundo social, o que implica a possibilidade de mudanças e reformulações no processo de reprodução, sobretudo em circunstâncias novas.

O habitus racial é suficientemente forte para fixar instituições racializadas, porque o habitus é um determinante de longa duração na cultura das sociedades. As disposições e formas de perceção racializadas internalizam-se e perduram. No caso dos imigrantes, pessoas recém-chegadas a um país vindas de outros contextos, geralmente resistem adotar o habitus racial predominante do país de acolhimento. E isto, naturalmente, levanta imensos problemas, que exige das autoridades um esforço significativo para a integração dessas comunidades. É claro que depende sempre de circunstâncias específicas que tanto acarretam perdas como também podem acarretar ganhos para uns e outros. Em geral, a internalização do habitus racial por esses migrantes é respeitada por mecanismos de sobrevivência, mas não deixa de ser apenas superficial. As camadas mais profundas mantêm-se preservadas. E, paradoxalmente, são estas camadas que são transmitidas à geração seguinte. Daí que não deva ser surpreendente que é nas gerações seguintes, nos filhos de imigrantes já nativos no país de acolhimento, que se levantam os verdadeiros problemas de integração que vão espoletar os ressentimentos da racialização.

sexta-feira, 17 de setembro de 2021

Racialização


Joacine Katar Moreira, por estes dias volta à carga, agora com a sua cruzada contra as pinturas do Salão Nobre da Assembleia da República. Ou colocando lá uma explicação de enquadramento histórico, ou retirando dali os painéis e levando-os para um museu. Não na Casa da Democracia. Joacine Katar Moreira já fez o seu trabalho quando chamou a atenção para tudo o que se pode ver nos painéis. Ninguém de boa-fé pode passar por aquela sala sem olhar de frente para o que também está lá.




Entretanto a convergência de estudos desenvolvidos em várias escolas divergentes conseguiram um consenso num ponto: que as noções de raça não tinham uma origem natural ou biológicas, mas sim uma construção das sociedades. Esses estudos científicos, e também historiográficos, chegaram a esse denominador comum. No entanto, o ónus para a civilização ocidental ou europeia continua ainda a ser muito pesado. A partir de 1970 meteu-se na cabeça dos académicos, sobretudo franceses, que o chamado processo de 'racialização', não era um fenómeno universal, mas sim criado no que também chamavam 'mundo ocidental'. 

O termo 'racialização' surgiu na década de sessenta do século XX para exprimir o processo social, político e religioso a partir do qual certas camadas da população de etnia diferente eram identificadas em relação à maioria da população, tendo em conta que esta identificação estava diretamente associada ao seu aspeto, características fenotípicas ou à sua cultura étnica, normalmente associada a preconceitos relativamente à diferença. 

Convém distinguir os conceitos de 'racismo' e de 'racialização'Por exemplo, no caso das vítimas de racismo, estas ao sofrerem de um processo de 'racialização' estabelecem, nesse processo com as pessoas que as vitimizaram, uma relação que as distingue como raça. Mas esta distinção, de um modo geral, não tem qualquer conteúdo racista. é um processo que se desenvolve sem conteúdo ideológico, mas resultante da vivência quotidiana.

Em sociologia, 'racialização' ou 'etnização' é o processo de atribuir identidades raciais ou étnicas no relacionamento com um grupo, o qual não se identificou como tal. É um processo de significação resultante de relações socias, sem conteúdo biológico. As categorias raciais têm sido historicamente usadas como uma maneira de permitir que uma figura ou grupo opressivo discrimine outros grupos ou indivíduos que eram vistos como diferentes dos opressores. A racialização é um processo longo, e os membros de cada grupo são categorizados com base em suas diferenças percebidas em relação àquelas que são consideradas elite dentro de uma sociedade. 

Depois entram em ação os estereótipos que contribuem para a opinião do público sobre certos grupos culturais. Essas opiniões e estereótipos podem passar a ser institucionalizados. As elites sentem-se ameaçadas devido à possibilidade de mobilidade descendente ou uma percebida perda de segurança nacional; embora as ameaças possam ser imaginadas ou reais, elas são mais proeminentes quando há algum outro problema no país, como uma crise económica e desemprego.

Gera-se assim uma desigualdade socioeconómica aplicada a pessoas não brancas. E, como os brancos não são vistos racialmente, funcionam como a norma humana. Os europeus brancos criaram uma classificação para os seres humanos, que atribui valor e status social a partir das pessoas ‘brancas’, que funcionam como modelo da humanidade, o que mantém privilégios. Uma pessoa diz-se racializada quando adquire caráter racial. Ou pessoa que tem sido tratada como tal.

A racialização de sociedades historicamente surgiu a partir do século XVI, quando os europeus ocidentais desenvolveram meios técnicos e militares para conquistar sociedades na Ásia, África e América Latina. E daí resultaram extrações de riquezas, minerais e outros recursos naturais, dessas áreas usando o trabalho escravo, inicialmente de gente nativa e depois de outra gente, sobretudo africana. Durante um segundo estádio, milhões de trabalhadores, por escravidão ou por contrato de trabalho, foram transferidos para sociedades de fronteira, como as da América do Norte e do Sul, Caribe, África Oriental e África do Sul. Lá, os europeus impuseram um sistema de castas no qual a raça se tornou um limite funcional para papéis económicos e sociais.

No mundo antigo, por exemplo no Egito, não havia uma determinação sistemática ou estrita de controlo social e de papéis económicos como mais tarde resultaram no processo de racialização. O conceito de sociedade racializada não se aplica a todas as sociedades multirraciais. Mas a escravidão, como resultado da conquista, como ocorreu nos reinos muçulmanos e cristãos medievais, resultou numa escravidão como produto de um sistema económico racializado. Foi o que aconteceu na era do comércio de escravos no Oceano Índico, e no comércio de escravos no Atlântico no âmbito da colonização europeia.

Hoje argumenta-se que a identidade racial/étnica não contém categorias separadas ou autónomas. O que é chamado de 'categorias raciais' nos Estados Unidos provém na verdade de categorias étnicas racializadas. A sociedade dos Estados Unidos é considerada por alguns como uma sociedade racializada atravessada por divisões entre grupos raciais/étnicos. A Teoria Crítica da raça defende a tese de que o racismo está enraizado no tecido e sistema da sociedade americana. Há disparidades raciais entre as raças nos Estados Unidos em vários itens tais como: emprego, área de residência, instituições religiosas e outras. É o argumento da dinâmica entre privilegiados e não privilegiados. Isso significa que na prática se assume que é atribuído valor a certas características pessoais que são conotadas com a competência. 

Ora, este tipo de abordagem, digamos psicológica e social, tende a sustentar e a perpetuar estereótipos e preconceitos que alimentam o fenómeno da 'racialização'.

quarta-feira, 15 de setembro de 2021

Creso e a história da morte do filho Átis




Creso foi o último rei da Lídia, da dinastia Mermnada, (560 a.C.–546 a.C.). Submeteu as principais cidades da Anatólia exceto Mileto. O nome de Creso não foi atestado em inscrições contemporâneas na língua lídia. De acordo com J.M. Kearns, o verdadeiro nome pessoal de Creso teria sido Karoś, enquanto Krowiśaś teria sido um nome honorífico que significa "O nobre Karoś".

Creso aparece na História de Heródoto. A conversa com Sólon; a tragédia do filho Átis; Xenofonte em vida de Ciro (Ciropédia), em parte ficcionada. Creso, sobre a morte de seu pai Alyattes, enfrentou um candidato rival ao trono em Pantaleon, filho de Alyattes por uma mãe diferente. Creso prevaleceu, e vários da fação opositora foram executados, e suas propriedades confiscadas.

Enquanto a pira estava a arder, diz-se que uma nuvem passou sob Hércules e com um raio de trovão o levou para o céu. Depois disso, obteve a imortalidade... por Omphale ele tinha Agelaus, de quem a família de Creso era descendente.


Creso é creditado com as primeiras moedas de ouro verdadeiras. Com uma pureza padronizada para circulação geral. Além disso, as primeiras moedas eram bastante brutas e feitas de electrum, uma linha amarela pálida natural de ouro e prata. Encontradas em assoreamentos do rio Pactolus. Há referências ao rei Midas, famoso pela lenda de que em tudo o que pusesse a mão se transformava em ouro.

Nas culturas grega e persa, o nome de Creso tornou-se sinónimo de um homem rico. Ele herdou grande riqueza de seu pai que andava ligado à mitologia do rei Midas. No rio Pactoluso rei Midas supostamente lavou a sua habilidade de transformar tudo em que ele tocava se transformava em ouro.

Não se sabe quando exatamente Creso morreu, embora pudesse estar alinhado com a data tradicional para a conquista da Lídia em 546 a.C. por Ciro. Na Crónica de Nabonido diz-se que Ciro marchou sobre o país e matou o seu rei. Tendo colocado lá uma guarnição própria. Tudo o que resta do nome do país são traços da primeira escrita cuneiforme. Há muito se presume que LU deveria ser Lídia. E o rei que foi morto ser o Creso de Heródoto. A queda de Sardes, por assim dizer a capital da Lídia,
teoricamente pode até ter ocorrido após a queda da Babilónia em 539 a.C. Bem, o que aconteceu após o episódio na pira assinalada em ânforas? Nem gregos nem babilónios sabiam o que realmente aconteceu com Creso. 



“Notado em mim nem covardia nem fraqueza, quando eu for à praça pública ou dali voltar, com que olhos me verão? Que opinião farão de mim os nossos concidadãos? Que ideia formulará a jovem princesa que acabo de desposar? A que homem se julgará ela unida? Permiti-me, pois, ir a essa caçada com os Mísios, ou provai ser mais conveniente fazer o que desejais”. [em História de Heródoto]
Creso
, em sonho, teve uma visão da morte do filho – Átis, por uma arma de ferro. Entretanto Átis é convidado, por um estrangeiro chamado Adrasto, para uma caçada ao javali. Por esse motivo e influenciado pelo sonho, Creso apressou-se a casá-lo. Mas o filho sossega-o dizendo que não vai para a guerra, mas apenas a uma caça ao javali. Então Creso achou que o filho estava a ser mais sensato que ele. E assim lhe deu permissão para que partisse para a caçada. Logo em seguida Creso mandou chamar o frígio Adrasto, a quem se dirigiu nestes termos: 
“Estavas sob o signo da desgraça, Adrasto, que o céu me preserve de censurar-te; eu te purifiquei, eu te recebi no meu palácio, onde tens vivido confortavelmente. Creio, pois, que sou, pelos meus benefícios, merecedor de uma retribuição tua. Meu filho parte para a caça. Confio-te a guarda de sua pessoa; protege-o dos bandidos que poderão atacá-lo pelo caminho. Aliás, cumpre-te buscar uma ocasião para te distinguires; teus pais te prepararam para isso, e o vigor de tua idade o permite”.
Adrasto, a quem Creso pediu que protegesse o filho, respondeu que ficasse descansado. O filho voltaria são e salvo se isso dependesse dele. Após essa breve despedida, o príncipe e Adrasto partem com um grupo de jovens de elite e a matilha do rei, para a caça ao javali. Chegados ao Monte Olimpo procuram o javali. Não tardam em encontrá-lo. Cercam-no em encetam o ataque. Então Adrasto, ao lançar um dardo, falha na pontaria e vai atingir mortalmente o filho de Creso. Realiza-se, assim, o tão temido sonho: Átis perece trespassado por um ferro aguçado lançado por Adrasto. Imediatamente um correio é despachado para Sardes, levando ao soberano a notícia do trágico desfecho da caçada.

Creso, atordoado por tão grande desgraça, sentiu-se ainda mais infeliz e culpado, por ter sido causado logo por aquele em quem ele havia depositado confiança. Abandonando-se à sua imensa dor, invocava Deus, tomando-o como testemunha do mal que lhe havia feito aquele estrangeiro; invocava-o como protetor da hospitalidade, porque, concedendo a Adrasto um abrigo em seu palácio, alimentava, sem saber, o assassino de seu filho; invocava-o como deus da amizade, porque havia encarregado Adrasto da guarda do filho e encontrara nele o pior inimigo. Algum tempo depois, chegaram os lídios trazendo o cadáver de Átis, seguido daquele que o matara. Adrasto, de pé diante do cadáver, com as mãos estendidas para Creso, roga-lhe que o sacrifique sobre o corpo inanimado do filho, uma vez que a vida se lhe tornara odiosa, desde que, ao seu primeiro crime, acrescentara um segundo, matando o filho de quem o tinha purificado. Apesar do luto que cobria a família, Creso não pôde ouvir o discurso de Adrasto sem sentir-se tocado de compaixão.
“Adrasto, condenando-te a ti mesmo à morte, satisfazes plenamente a minha vingança. Não te culpo desta morte, pois ela foi involuntária. Não acuso senão o deus que há tempos a previu”. 
Depois de cumprir os últimos deveres ao filho, Creso ordenou que os funerais fossem realizados de acordo com a sua categoria. Terminada a cerimónia, completo silêncio reinou em torno do túmulo. Então Adrasto, filho de Górdio, neto de Midas, assassino do próprio irmão, assassino involuntário do filho daquele que o havia purificado, sentindo-se o mais infeliz dos homens, pôs termo à vida sobre os restos mortais de Átis.



O local da acrópole de Sardes, a antiga capital da Lídia
possui inclinações quase perpendiculares com cerca de 457 metros de altura. No entanto, a sua composição não é de rocha sólida, mas sim de detritos - cascalho firmemente comprimido que se desfaz ao toquePodemos destacar em seu sítio arqueológico o Templo de Ártemis, o quarto maior do mundo antigo, e um dos mais bem preservados.
 

terça-feira, 14 de setembro de 2021

Estado Social. Ou como estar sempre a descansar?


Uma ocasião um prosador poeta, confessou: "escrevo poesia para descansar da prosa; e escrevo prosa para descansar da poesia. Desse modo estou sempre a descansar". No início do século XIX ocorreu um movimento que se opunha à mecanização do trabalho e que considerava a industrialização a causa do desemprego e da miséria social. A isto se chamou ludismo – qualidade do que é lúdico ou recreativo.

O Estado Social -  Estado de bem-estar social, ou Estado-providência - coloca o Estado como organizador da Economia, num agente da promoção social. Com esta orientação, o Estado é o agente político regulamentador de toda a vida de um país: economia, saúde e saúde social. É claro que em parceria com empresas privadas e sindicatos, em níveis diferentes de concertação social, de acordo com as condições de cada país. Cabe ao Estado de bem-estar social garantir serviços públicos que protejam a população, provendo dignidade a todos os cidadãos.

O Estado de bem-estar social moderno nasceu na década de 1880, na Alemanha, com Otto von Bismark, como alternativa ao 'socialismo' e 'liberalismo económico'. Pelos princípios do Estado de bem-estar social, todo o indivíduo tem direito, do nascimento à morte, a um conjunto de bens e serviços, que deveriam ter o seu fornecimento garantido pelo Estado. Esta garantia tanto pode ser diretamente através do Estado, como indiretamente pela sociedade civil, mediante o seu poder de regulamentação. São as chamadas prestações positivas ou direitos de segunda geração, em que se inclui gratuidade e universalidade do acesso à educação, à assistência médica, ao auxílio ao desempregado, à aposentação, bem como à proteção materno-infantil e terceira-idade.

Os apoiantes deste modelo mostram como exemplo os países nórdicos, aqueles que foram mais bem sucedidos na sua implementação. Sem dúvida que foram bem sucedidos na adoção integral do Estado de bem-estar social. Por outro lado, críticos alegam que pode haver compreensão equivocada do funcionamento do 'modelo nórdico', e que os defensores do Estado de bem-estar social em outros lugares tentam copiar apenas os direitos e não as obrigações implementadas por aqueles países.

Para além da história classista, escreve Marx, em O capital, para além da história da luta de classes, escreve: "é possível ter início aquele desenvolvimento da energia humana que é um fim em si mesmo, o verdadeiro reino da liberdade". A palavra “produção” na obra de Marx abrange qualquer atividade auto gratificante: tocar flauta, saborear um pêssego, queimar os miolos refletindo sobre Platão, fazer um discurso, entrar para a política, organizar a festa de aniversário de um filho. Não existe aí qualquer implicação muscular, machista. Quando fala de produção como essência da humanidade, Marx não quer dizer que a essência da humanidade é encher linguiças. O trabalho como o conhecemos é uma forma alienada do que ele chama de práxis — uma antiga palavra grega que significa o tipo de atividade livre, auto realizável, pela qual transformamos o mundo. Na Grécia Antiga, o termo significava qualquer atividade de um homem livre, no sentido contrário ao de escravo.

No entanto, apenas o económico, em seu sentido estrito, nos permitirá ir além do económico. Ao realocar os recursos que o capitalismo tão generosamente armazenou para nós, o socialismo pode permitir que o económico passe a ocupar um lugar mais afastado do palco. Ele não há de se evaporar, mas se tornará menos evidente. Gozar uma abastança de bens significa não ter de pensar em dinheiro o tempo todo. Isso nos liberta para atividades menos tediosas. Longe de ser um obcecado por questões económicas, Marx as via como um travesti do verdadeiro potencial humano. Ele queria uma sociedade na qual o económico não monopolizasse tanto tempo e tanta energia.

É compreensível que nossos ancestrais fossem tão preocupados com questões materiais. Quando é possível produzir apenas um pequeno excedente económico, ou praticamente nenhum excedente, a morte será certa se não houver trabalho pesado e incessante. O capitalismo, porém, gera o tipo de excedente que realmente poderia ser usado para aumentar o lazer de forma considerável. A ironia é que ele cria essa riqueza de uma forma que exige acumulação e expansão constantes e, consequentemente, trabalho constante. E cria também de uma forma que gera pobreza e dificuldades. Trata-se de um sistema que se deforma a si próprio. O resultado é que homens e mulheres modernos, cercados por uma afluência inimaginável para caçadores-coletores, escravos do passado ou servos feudais, acabam trabalhando tanto e tão duramente como os seus antepassados. 

A obra de Marx tem tudo a ver com lazer humano. A boa vida, para ele, não é feita de trabalho, mas de lazer. A autorrealização é uma forma de “produção”, sem dúvida, mas não uma produção coerciva. O lazer é necessário para que homens e mulheres dediquem tempo à administração de suas próprias vidas. Assim, causa surpresa que o marxismo não atraia mais ociosos e parasitas profissionais para suas fileiras. Isso, contudo, se deve ao facto de ser preciso despender um bocado de energia na consecução de tal meta. Em suma, o lazer é algo que demanda trabalho.

segunda-feira, 13 de setembro de 2021

Lâmpsaco




Lâmpsaco era uma antiga cidade grega estrategicamente localizada no lado oriental do Helesponto, no norte da Tróade. O nome foi transmitido à cidade moderna, que se localiza nas proximidades – Lapseki. A Tróade era uma antiga região na parte noroeste da Anatólia, circundada pelo Helesponto a noroeste, pelo Mar Egeu a oeste e separada do resto da Anatólia pelo maciço que forma o monte Ida. Corresponde à atual província de Çanakkale, na Turquia. Nesta cidade, segundo Pausânias, o principal deus adorado era Príapo, considerado filho de Dionísio e Afrodite. Havia festivais em honra a Príapo, onde o povo se entregava a toda a espécie de lascívia.




Originalmente conhecida como Pitiúsa no século VI a.C., a cidade foi fundada por colonos gregos de Foceia, no século VI a.C. Pouco tempo depois tornou-se uma das principais rivais de Mileto, controlando as rotas comerciais do Helesponto. Lâmpsaco era uma das quatro cidades das costas do Helesponto. Lâmpsaco foi atacada por Milcíades (o Velho) e Esteságoras, os tiranos de Queroneso da Trácia, situada na península de Galípoli (Trácia oriental, noroeste da Turquia). Durante os séculos VI e V a.C., Lâmpsaco foi sucessivamente dominada pela Lídia, Pérsia, Atenas e Esparta. Os tiranos gregos Hípoclo e mais tarde seu filho Acântides governaram sob Dario I. Artaxerxes I atribuiu-o a Temístocles com a expectativa de que a cidade abastecesse o rei persa com o seu famoso vinho. Lâmpsaco se juntou à Liga de Delos, após a Batalha de Mícale em 479 a.C.

Caronte de Lâmpsaco (gr. Χάρων), é um dos mais antigos logógrafos e prosadores da literatura grega, havendo ainda controvérsias a respeito da época em que viveu. Segundo Jacoby, Caronte viveu décadas depois de Heródoto. Todavia, estudos mais recentes sugerem que escreveu as suas obras um pouco antes, a julgar por informações transmitidas por Plutarco. De acordo com os antigos, Caronte escreveu pelo menos 10 livros, entre eles histórias da Etiópia, da Líbia, da Pérsia, de Lâmpsaco e de outros lugares da Grécia, além de uma cronologia dos prítanes e arcontes de Esparta, de uma história de Creta com descrição das leis estabelecidas por Minos, e de uma viagem além das Colunas de Héracles, limite ocidental do mundo então conhecido. Nenhuma de suas obras chegou até nós. Dispomos apenas de alguns fragmentos e de vários testemunhos antigos, editados por Creuzer (Heidelberg, 1806) e por Muller (Paris, 1841). A melhor fonte é, atualmente, a coletânea crítica editada por Jacoby. Não há traduções sistemáticas dos fragmentos de Caronte de Lâmpsaco para o português.




Metrodorus de Lampsacus foi um filósofo grego da escola epicurista. Embora um dos quatro maiores defensores do Epicurismo, apenas fragmentos de suas obras permanecem. Um busto de Metrodorus foi encontrado em Velia, estando hoje guardado no Museu Pergamon em Berlim.

Metrodorus, logo se tornou o mais distinto dos discípulos de Epicuro, com quem viveu em termos da amizade mais próxima, e que mais tarde seguiu para Atenas, nunca tendo deixado desde que se familiarizou com ele, exceto por seis meses em uma ocasião, quando ele fez uma visita à sua casa.

Metrodorus morreu em 278/7 a.C., no 53º ano de sua idade, sete anos antes de Epicuro, que o teria nomeado seu sucessor se tivesse sobrevivido a ele. Ele deixou para trás um filho chamado Epicuro, e uma filha. A filosofia de Metrodorus parece ter sido de um tipo mais sensual do que a de Epicuro. Felicidade perfeita, de acordo com o relato de Cícero, ele fez para consistir em ter um corpo bem constituído, e sabendo que ele sempre permaneceria assim. De acordo com Séneca, Epicuro colocou Metrodorus entre aqueles que precisam de ajuda para trabalhar o seu caminho em direção à verdade.

Estratão de Lâmpsaco, 340-268 a.C., foi um filósofo grego da escola peripatética, e natural de Lâmpsaco. Sucedeu a Teofrasto à frente do Liceu, academia fundada por Aristóteles. Assumiu o cargo de diretor no ano 287 a.C. Já seu predecessor, demonstrou extremo génio separando completamente o reino vegetal do reino animal e, sobretudo, vendo que o fogo não era um elemento em si mesmo, mas uma reação de outros elementos que ardiam. O fogo não podia existir sem o que ele chamou de um substrato. Mas Estratão foi além nos métodos e recorreu à experimentação pura. Foi, de facto, um defensor do mecanicismo na natureza, negando a existência de qualquer divindade transcendendo a materialidade humana, algo verdadeiramente revolucionário naqueles tempos. Estratão ampliou e desenvolveu o pensamento de Aristóteles acerca do movimento, num livro muito influente chamado "Sobre o Movimento".