sábado, 30 de novembro de 2019

A tentação de Fátima


Quando parti da Fundação Champalimaud para regressar a casa, os meus amigos e colegas que estavam ao corrente do meu cancro obrigaram-me a jurar que iria a Fátima. Em Portugal a peregrinação a Fátima é tida em elevada estima, e a ideia de estar em Lisboa de partida para o Norte, sem passar pela Cova da Iria, parecia inconcebível. Embora me tenha comprometido, não cumpri a promessa de imediato.
Ultimamente tenho-me deparado na comunicação social com testemunhos de pessoas não crentes – embora não devamos dizer ateístas, sobretudo mulheres, tendo sobrevivido a um cancro, algumas delas já com mais de cinco anos – que não resistiram à tentação de fazer uma peregrinação ao Santuário de Fátima incentivadas por familiares ou amigas crentes e com fé em milagres.

Tudo indica que é intrínseco ao género humano a posse de recursos designados por “sagrados”, que se revelam em pessoas hiper-racionais, de que nunca estavam à espera. É uma emanação que é inata quando a pessoa sente que a sua vida é ameaçada com a iminência da morte.

De facto, o percurso do peregrino apela para emoções poderosas – inquietação, confiança, surpresa, sentimento de comunhão – reforçadas pela atmosfera geral de introspeção, de fervor e de expectativa, tudo isto aumentado pela intensa cascata sensorial orquestrada pelo ritual.

Como curiosidade, a estátua original, que é a que está na Capela das Aparições em Fátima, foi oferecida por Gilberto Fernandes dos Santos em 1920, e encomendada à Casa Fânzeres de Braga, segundo as indicações da Irmã Lúcia. A obra de escultura em madeira de cedro do Brasil, foi realizada por José Ferreira Thedim [1892-1971], de uma família de escultores de São Mamede do Coronado. Thedim realizou algumas alterações na imagem, mais tarde, nos anos 50.


Este fenómeno português não é inédito, arrisco mesmo a dizer que é uma espécie de sucedâneo de outros sítios que despontaram muito tempo antes deste. Evoco o caso de Lourdes, o Santuário de Nossa Senhora de Lourdes, um dos maiores santuários marianos de peregrinação do mundo católico. Está situado no departamento dos Altos Pirenéus, região da Occitânia, França. Em Lourdes, na pequena Gruta de Massabielle junto ao rio Gave de Pau, acredita-se que a Virgem Maria terá aparecido algumas vezes a uma menina de nome Bernardette Soubirous, em 1858. As primeiras aparições da Virgem Maria em Fátima aconteceram muito mais tarde, em 1917.

De um relato a que tive acesso, em Lourdes o périplo começa por uma confissão. O peregrino tira uma senha e aguarda a sua vez numa imensa sala, parecida com o hall de embarque de um aeroporto, com confessionários parecidos com quiosques a toda a volta, com a indicação das línguas que os padres entendem para confessar os peregrinos. Depois do confesso o peregrino vai entrar no edifício das piscinas. Mas é preciso sofrer um pouco à espera da sua vez, se estiver sol, ao sol, antes de penetrar no edifício das piscinas, o verdadeiro momento da peregrinação, onde o peregrino tem de se despir e ficar apenas com uma simples toalha de banho à volta da cintura.

Toda a gente se arrepia, não só por causa da frescura súbita depois da canícula exterior, se for verão, mas por causa das reminiscências ameaçadoras que esta multidão de pessoas despidas pode despertar. O facto de estar “nu em frente do Divino” desencadeia igualmente uma emoção intensa e rara, feita de humildade e confiança. A certa altura, vem um hospitaleiro benévolo que pega no peregrino e mergulha-o repentinamente na água gelada, acompanhado de rezas em voz alta. Quem passou por isto reclama a vertigem e a angústia por que passou.

O ritual de purificação termina ao fim do dia com uma grande procissão extremamente comovedora, seguida de uma celebração em latim, legendada em várias línguas projetadas num ecrã de retransmissão. Toda a gente repete em coro as orações cantadas. É impossível as pessoas não se sentirem emocionadas, quiçá extasiadas, pelo mergulho, agora em multidão fervorosa, numa espécie de energia rara, avassaladora, não se sabendo de onde para onde. O que é certo é que as pessoas que contam isto, que passaram por isto, contam-no visivelmente num estado perturbado, mas dizendo que gostariam de poder lá voltar.

É claro, o resultado não é garantido. Mas quando funciona, funciona realmente, isto é, mobiliza todas as capacidades inatas de cura que há em nós. O mantra deles é: “é de muito fácil acesso, quase gratuito, e quase despido de efeitos secundários."

A carícia do vento



Através da saúde, apercebemo-nos de que tocamos cada vez mais em toda uma série de questões escaldantes que constituem o problema de fundo da nossa época.

Não podemos viver de boa saúde num planeta doente. É aqui que a saúde se confunde com a ecologia global. É desanimador saber que por mais dinheiro que atiremos para cima do Serviço Nacional de Saúde, nunca vamos conseguir estancar a hemorragia, se ao mesmo tempo não mudarmos de vida. É no sorvedouro de recursos que a nossa vida de consumo descontrolada de coisas que não são de todo essenciais à vida, que está a dar cabo da pouca saúde que ainda nos resta. O maior problema de saúde com que nos confrontamos é um problema de saúde pública, que tem a ver com o nosso estilo de vida desregrado. Só a partir do questionamento da vida que queremos ter é que faz sentido depois falar na água potável, na indústria agroalimentar, nas radiações, nos pesticidas ou fertilizantes. A indústria agroalimentar vai muito rapidamente ver-se obrigada a alterar o seu sistema destruidor do ambiente, e ao mesmo tempo da saúde pública.

No século XXI, as plantas continuam a ser uma arca de tesouro para a química médica. Existem milhares de espécies cujas propriedades terapêuticas ainda não foram exploradas. Atualmente, são cada vez mais as alternativas à medicina convencional ocidental, em que a utilização de “remédios” à base de plantas, que existe há milhares de anos, tem recebido por parte da gente comum uma grande simpatia. Os seres humanos sempre usaram as plantas para fins medicinais. E ao fim e ao cabo, as substâncias que no século XX foram consideradas revolucionárias, como a aspirina, morfina e até fármacos para a “cura” do cancro, eram extraídos de plantas. Hoje prevalecem as suas versões sintéticas, e um outro paradigma que resultou da revolução molecular e engenharia genética.

Independentemente dos grandes avanços científicos na medicina, a verdade é que a humanidade, em relação ao problema da saúde, parece que não saiu do sítio em que estava há 5.000 anos, quando já usava extratos da papoila dormideira para fins analgésicos. Ainda hoje, a codeína e a morfina, os seus dois princípios ativos, são substâncias que em grande escala proporcionam ao ser humano o melhor – tratar a dor crónica em doentes de cancro terminal; e o pior – no âmbito do tráfico da droga e da toxicodependência. As plantas e os micróbios sintetizam muitos compostos, conhecidos por metabolitos secundários, que utilizam para se defenderem. Ora, esses compostos têm frequentemente uma atividade biológica que pode ser explorada para fins medicinais.
Aqui no Ocidente, quando se fala em médicos da Antiguidade, vem-nos logo o nome de Hipócrates. Não lhe tirando mérito, a verdade é que há mais médicos notáveis e ainda mais antigos. Falemos, por exemplo de Imhotep, ou de Hua Tuo.

Imhotep é a primeira figura médica a destacar-se nas brumas da Antiguidade. Vejam bem, nasceu em Mênfis, Egito, em 2650 a.C., e morreu em 2600 a.C. O que se sabe sobre a vida deste médico foi retirado de textos de vários autores e de inscrições em estátuas que o representam. Viveu durante a III dinastia, e era filho de um arquiteto. É claro que nesses tempos, em que o conhecimento era escasso, quando surgia alguém extraordinário no campo do conhecimento, era um polímato. Sabia de tudo, era um sábio. Por isso foi também arquiteto e construtor da pirâmide em degraus de Sakkara. E também lhe é atribuído o primeiro texto de medicina conhecido, ou o mais antigo de que há memória. É o papiro de Edwin Smith. Bom, ainda que não passe de lenda, é obra. De resto, não pode haver provas consistentes de que tenha praticado medicina. Qualquer que tenha sido o seu percurso, uma coisa é certa: era tão respeitado que se tornou deus. Estátuas, muitas das quais chegaram aos nossos dias, mostram-no como um homem vulgar e depois como deus, usando uma barba e símbolos da divindade. Mais tarde, os governantes gregos do Egito identificaram Imhotep com o seu próprio deus da medicina - Asclépio.

Hua Tuo, nasceu em Quão, na China, em 110. É tido como o primeiro cirurgião do mundo. Morreu em 207, em Luoyang, China. Consta que foi o primeiro a utilizar anestesia. Anestesiava os seus pacientes com um pó de nome "mafai san". Proficiente em acupuntura, praticou também ginecologia e obstetrícia. Terá sido o primeiro médico a tratar uma apendicite através da cirurgia abdominal. Viveu durante a dinastia Han, um dos grandes períodos da História da China. Abria o abdómen, removia a parte atingida, limpava a cavidade abdominal, cosia a incisão e aplicava um unguento à base de ervas para ajudar a cicatrizar a ferida. Hua Tuo era tauista e não procurava fortuna nem fama. História ou lenda, foi executado quando o governador do estado de Wei desconfiou que o queria assassinar quando lhe propôs uma cirurgia devido a suspeita de tumor cerebral. Seja como for, a morte de Hua Tuo assinalou o fim de uma era na medicina chinesa. A cirurgia deixou de ser praticada na China até tempos recentes, teve que ser introduzida por médicos ocidentais. A ladainha era que ia contra os ensinamentos de Confúcio


A anestesia geral só foi introduzida no Ocidente, e de novo no mundo conhecido, em 1846, quando William Morton começou a utilizar o éter no Massachusetts General Hospital, em Boston.

sexta-feira, 29 de novembro de 2019

Explicação e compreensão


Explicamos alguma coisa à nossa neta para que ela possa compreender. E o que ela compreendeu pode, por sua vez, explicar a outros. Assim, a compreensão e a explicação tendem a sobrepor-se e a transitar de uma para a outra. No entanto, a explicação parte do todo para as partes, fragmentando-o, desdobrando proposições e significados. Ao passo que a compreensão apreende fragmento a fragmento e constrói um todo, num processo de síntese em direção a um sentido.

Tem sido aceite que a explicação encontra o seu campo paradigmático nas ciências exatas, na medida em que vai buscar o seu suporte à matemática, que é por inerência um processo demonstrativo. Quando há factos externos a observar, colocam-se hipóteses a submeter à verificação empírica, que pode ter de passar por medições e cálculos numéricos, para a construção de teorias que podem culminar em leis da natureza, ou da física.

Em contraste, na mesma linha de pensamento, coloca-se a compreensão no campo das ciências humanas. Estas ciências têm a ver com experiências, mas são as experiências humanas diretamente sentidas, pessoais, subjetivas, que depois são traduzidas em linguagem, todo o tipo de linguagem, que não se reduz apenas à língua falada.

Há um terceiro tópico a acompanhar a compreensão que em bom rigor não se separa completamente dela, que é a interpretação, e que durante o século XX se desdobrou na hermenêutica e na semiótica, ocupando a mente de alguns filósofos como Heidegger, Charles Sanders Peirce ou Gadamer. Esta dicotomia, e os sucessivos desdobramentos, é simultaneamente epistemológica e ontológica. Opõe duas metodologias e dois mundos: o mundo vivido e o mundo exterior à nossa vivência. Também não podemos esquecer que no século XX, muito produtivo em correntes, houve outras correntes com uma forma muito diversa de pensamento e que na tradição anglo-americana se veio a designar por viragem da linguagem. Numa palavra, a linguagem como forma de vida, como sistema autossuficiente nas suas relações internas. A linguagem já não é entendida como uma mediação entre as mentes e as coisas. Constitui um mundo próprio, dentro do qual cada elemento se refere apenas a outros elementos do mesmo sistema, graças à ação recíproca das oposições e diferenças constitutivas do sistema.

Cabe introduzir aqui o problema da significação como sentido e referência, à qual se dedicaram não apenas os cientistas e filósofos da semiótica, mas também os filósofos, sociólogos, antropólogos e psicólogos do estruturalismo francês, que cunharam esta ciência de semântica, uma espécie de linguística. A semiótica, a ciência dos signos, é formal ou lógica, na medida em que se funda na dissociação da língua em partes constitutivas. A semântica, a ciência da frase, diz imediatamente respeito ao conceito do sentido. A distinção entre semântica e semiótica é a chave de todo o problema da linguagem.

O termo símbolo é usado num sentido muito geral e neutro. Compreende letras, palavras, textos, imagens, diagramas, mapas, modelos e muito mais. A diferença entre os sistemas simbólicos representacionais - como a pintura, e os não representacionais - como os linguísticos, reside essencialmente nas características formais desses sistemas. Um sistema de símbolos (não necessariamente formal) tanto compreende os símbolos como a sua interpretação. E uma linguagem é um sistema de símbolos de um tipo particular.

Temos, portanto, o locutor, as palavras e as frases. Significar é o que o locutor faz, mas é também o que a frase faz. A frase não é uma palavra mais ampla ou mais complexa. É uma nova entidade. Uma frase é um todo que não se reduz à soma das palavras que a constituem. É constituída por palavras, mas não é uma função derivativa das suas palavras. Uma frase compõe-se de signos, mas em si mesma não é um signo de maior tamanho. A significação da enunciação na aceção do conteúdo proposicional – é o lado objetivo deste significado. O significado do locutor (autorreferência da frase + dimensão ilocucionária do ato linguístico + intenção de reconhecimento pelo ouvinte) é o lado subjetivo da significação.

Há necessidade de esmiuçar aqui mais uma questão: a do sentido e da referência, que foi introduzida por Gottlob Frege. Na análise do discurso podemos identificar o “Quê” do discurso; e o “Acerca de Quê” do discurso. Assim, o “Quê” do discurso – é o seu sentido. O “Acerca de Quê” do discurso – é a sua referência. Dentro de um sistema linguístico, o nível das palavras – do léxico, a questão da referência não se coloca. A palavra é um signo, e os signos apenas se referem a outros signos dentro do sistema. A questão da referência passa a colocar-se ao nível da frase.

A referência a um objeto é uma condição necessária para a representação pictórica ou para a sua descrição, mas nenhum grau de semelhança é uma condição necessária ou suficiente para qualquer delas. Tanto a representação pictórica como a descrição participam na formação e caracterização do mundo, e interagem entre si e com a perceção e o conhecimento.

Porque estamos no mundo, porque somos afetados por situações e porque nos orientamos mediante a compreensão em tais situações, temos algo a dizer, temos a experiência para trazer à linguagem. Podemos ter uma ideia mais clara dos diferentes tipos de referência, indicados por Nelson Goodman: denotação
exemplificação; a denotação, por sua vez, pode ser por representação ou descrição; e a exemplificação pode ser literal ou metafórica. 


Nelson Goodman, enquanto nominalista, defendia que nem as coisas, nem as qualidades, nem as semelhanças entre as coisas têm qualquer fundamento ontológico exterior, sendo apenas o produto dos nossos hábitos linguísticos. Para o nominalista os universais constituem mundos mas não fazem parte do real, como a beleza ou a bondade. Nem fazem parte da realidade géneros ou classes de coisas. Só as coisas são reais. O ser humano é real. Já ser humano como uma pessoa é um conceito, uma abstração conceptual. Marcelo é real. Sócrates é real. Um nominalista opõe-se a Platão, o qual, segundo o nominalista, conferia realidade independente a meras abstrações conceptuais. Um nominalista navega com os predicados apenas nas águas linguísticas. Por exemplo, o predicado “sábio”, não denota algo do domínio extralinguístico, a saber, a existência real de uma propriedade no mundo que é a sabedoria. Assim, para um nominalista, como Nelson Goodman, só existem objetos ou coisas. Tudo o resto são etiquetas linguísticas. Etiquetas essas que, de forma puramente convencional, se aplicam a vários objetos, conforme os nossos hábitos linguísticos, e o modo como organizamos as coisas por forma a melhor servir os nossos interesses.

Nelson Goodman, no seu livro “Modos de fazer Mundos”, articulado com uma forma de construtivismo relativista, defende a tese de que não há um mundo que esteja à espera de ser descoberto por nós. Pelo contrário, como somos nós que construímos mundos, não temos nada para descobrir lá fora. Nós só podemos estabelecer relações com o mundo através de esquemas. O que conta é a relação. E esses esquemas não estão à nossa disposição na natureza, somos nós que os criamos. Para um nominalista esta é que é a última instância.

Apesar de não haver qualquer instância exterior que sirva de critério para a verdade, Nelson Goodman não aceita, contudo, o tipo de relativismo segundo o qual vale tudo e tudo se equivale. Defende que há um critério geral de aceitabilidade para as diferentes versões de mundos. E esse critério é encontrado por nós, pela força de um campo assente na experiência, no hábito, e na razão. Mas Goodman coloca no mesmo plano, em igualdade de peso, nesse campo do critério, a arte, a ciência e o senso comum. Portanto a perspetiva de Goodman nada tem a ver com o relativismo desconstrucionista pós-moderno. Para Goodman o conhecimento não é exclusivamente uma questão de crenças, como na definição platónica de conhecimento: crença verdadeira justificada. A perceção, a deteção de padrões, o reconhecimento e a classificação são também atividades cognitivas. E estas atividades não só afetam as nossas crenças como são, em si, cognitivamente relevantes. Assim, as artes não têm um estatuto cognitivo periférico ou inferior ao que encontramos nas ciências.

quinta-feira, 28 de novembro de 2019

Thomas Starzl - tempos de transplantes




Thomas Starzl [1926-2017] nascido no Iowa, realizou o primeiro transplante de fígado humano, com sucesso, em 1967, e estabeleceu a importância da ciclosporina como imunossupressor de eleição para evitar a rejeição do órgão transplantado. Ingressou no programa de formação cirúrgica no Johns Hopkins University Hospital e em seguida foi trabalhar no Jackson Memorial Hospital, em Miami, onde desenvolveu uma técnica para remover o fígado que constituiu uma etapa essencial do transplante hepático.

No ano de 1963, Starzl havia realizado um transplante de fígado num rapaz de 3 anos de idade, com um fígado incompleto. A operação não correu bem, devido a uma hemorragia não controlada. Apesar de ter sido amplamente criticado, não esmoreceu. O seguinte transplante foi num homem com cancro no fígado. A operação correu bem, mas morreu três dias depois. Desta vez, foi o excesso de coagulante, para evitar hemorragias, o problema do primeiro transplante, que foi fatal.

Continuando a estudar, foi então ao terceiro transplante de fígado, em 1967, que o doente sobreviveu. Foi no mesmo ano que Christian Barnard, na cidade do Cabo, África do Sul, realizou o primeiro transplante do coração com sucesso. Em 1970, os transplantes de fígado estavam de tal modo aperfeiçoados que a taxa de sobrevivência subiu para 40 por cento. 

O primeiro transplante de pulmão realizou-se em 1963, por James Hardy, da Universidade do Mississippi, mas o doente morreu ao fim de poucos dias. A transplantação de órgãos entronca hoje num programa de saúde mais vasto que dá pelo nome de medicina regenerativa. Os primórdios das transplantações de órgãos remontam a 1954 com os transplantes de rins entre dadores e recetores com laços familiares. Foi Joseph Murray, do Brigham Hospital, em Boston, que lhe valeu o Prémio Nobel da Medicina em 1990. Transplantes em que dadores e recetores não tinham qualquer grau de parentesco só se começaram a fazer em 1962. Nos últimos anos muitas outras partes do corpo têm sido transplantadas pela primeira vez, como por exemplo o rosto. Os resultados são muito variáveis.

É claro que os transplantes não teriam sucesso se não tivessem sido acompanhados de muita investigação na área do sistema imunitário. Foi na década de 1940 que se descobriu que os fatores imunitários na rejeição dos transplantes tinham um papel determinante. Foi demonstrado pelo cientista britânico, Peter Medawar, em embriões humanos expostos a tecidos estranhos. Neste caso não havia rejeição. Entretanto, Frank McFarlane Burnet, da Universidade de Melbourne, sugeriu que as células imunitárias aprendem a reconhecer os tecidos que estão presentes como parte integrante do corpo, mas rejeitam qualquer material novo. Os dois receberam o Prémio Nobel da Medicina em 1960.

A ciclosporina, substância derivada de um fungo que se encontra no solo, foi introduzida na década de 1980. E em 1990 foi introduzido o tacrolimo, relacionado com a ciclosporina, mas cem vezes mais potente. Entretanto as técnicas cirúrgicas foram aperfeiçoadas de tal maneira que hoje já se fazem transplantes de dadores vivos com toda a tranquilidade. Apesar de se ter alargado a corte dos potenciais dadores, a realidade é nua e crua: os dadores não chegam para as encomendas.

quarta-feira, 27 de novembro de 2019

Jan van Eyck e o retrato de Isabel de Portugal



Jan van Eyck [1390-1441] é considerado um precursor, um pintor flamengo célebre pelas suas inovações na arte do retrato e da paisagem. Juntamente com Robert Campin, que trabalhava em Tournai, foi considerado um personagem-chave na criação da escola flamenga, dando ênfase à observação do mundo natural. 

Em 1425 foi nomeado por Filipe III da Borgonha, (Filipe o Bom) [1396-1467], pintor da corte da Flandres, cargo que conservou até à sua morte. A relação que mantinha com o duque era de tal importância, que este o encarregou de missões diplomáticas, sobretudo em Portugal, Espanha e Itália.

Foi em 1428 que Filipe o Bom, duque da Borgonha, o enviou a Portugal para pintar o retrato da Infanta Isabel - 
Isabel de Portugal [1397-1471], a terceira esposa de Filipe, irmã do Infante Dom Henrique [1394-1460] e Pedro de Portugal, 1º Duque de Coimbra [1392-1449], filhos de Dom João I, rei de Portugal (Mestre de Avis) [1357-1433]. 



Jan van Eyck fez-lhe este retrato, uma pintura de noivado. Retrato esse em óleo sobre madeira, em princípio executada em 1428, o original perdeu-se, existem apenas cópias, como a que é apresentada aqui aqui. 

Estamos em tempos de peste negra, e a corte portuguesa por precaução foi viver para Avis, nos aposentos da Ordem de Avis, no Castelo. A princesa, por via materna pertencia à Casa dos Duques de Lencastre em Inglaterra. A boda do casamento de Filipe o Bom, em terceiras núpcias, com Isabel de Portugal realiza-se a 10 de janeiro de 1430, em Bruges. Deste enlace resultará um filho – Carlos o Temerário. E é nesta cerimónia que Filipe é aceite na muito prestigiada Ordem do Tosão de Ouro. Ou do Velo de Ouro, que tinha por objetivo a celebração do comércio das lãs, fortuna dos Países Baixos, e o renascimento da memória dos Argonautas, numa homenagem aos feitos marítimos dos portugueses.

O Retrato de Isabel de Portugal é especialmente notável pela forma como ela coloca a mão sobre o parapeito de pedra falso. Com este gesto, Isabel estende a sua presença para fora do espaço pictórico entrando no do espectador. A partir das cópias sobreviventes pode-se deduzir que, além da moldura de carvalho real, havia duas outras "molduras pintadas", uma das quais tinha inscrições góticas a toda à volta, enquanto um parapeito de pedra falso dava apoio para que as mãos dela pudessem repousar. Este motivo ilusório foi mais tarde desenvolvido por van Eyck no seu Léal Souvenir, em que o braço do sujeito descansa na moldura inferior esquerda da pintura, como se o sujeito tivesse acabado de chegar, de repente e informalmente, para o encontro e se posicionasse casualmente. Este conceito foi depois copiado notoriamente por Petrus Christus no Retrato de um Cartuxo, em que colocou uma mosca poisada no centro da borda inferior falsa da sua tela. van Eyck já tinha ido mais longe do que isso, contudo, tendo criado no seu retrato uma série de perspetivas ilusórias.



Retrato de Homem (Autorretrato?), também conhecida como Retrato de Homem com Turbante, ou Retrato de Homem com Turbante Vermelho, datada de 1433. Encontra-se na National Gallery, em Londres desde 1851.


Gilbert Sinoué – L’enfant de Bruges © 1999, Éditions Gallimard
De regresso a casa, a sua mulher, Margaret, vem esperá-lo à porta, com a sua touca em forma de corneta parcialmente escondida por trás de uma marmita fumegante. Van Eyck está desejoso da comida de Margaret, queixando-se que passou fome em Lisboa. Petrus Christus está com eles, e pergunta-lhe se não vai entregar o retrato de Isabel ao duque. Mas van Eyck diz que vai primeiro a Gand, pois o duque está em viagem. O duque dá-lhe cem libras por ano; paga-lhe o aluguer desta casa e da outra casa em Lille. E em todas as missões tem-no recompensado muito generosamente. Não tem de que se queixar.

Gilbert Sinoué ficciona uma outra vida para Jan em Bruges, anacrónica enquanto jovem. E então deambula pelo cais, onde abundam barcos e marinheiros a chegarem e a partirem numa roda viva. Assim que as duplas portas da represa voltaram a fechar-se, as sete válvulas verteram as suas águas num fervilhar de espuma. Sob o impulso da ondulação, a embarcação elevou-se progressivamente para o azul. De um lado encontrava-se o campanário de Bruges, do utro, as grossas torres de Termuyden, de Oostkerte e de Lisseweg que pareciam uns faróis alinhados ao longo da costa. Assim que se passava a comporta, entrava-se no Lieve, o canal que conduzia a Sluys. Sluys era como sonhar acordado…

Um dia, um marinheiro havia-lhe dito esta frase que, desde então lhe ficara na memória: “Tal como os homens, todos os navios têm uma história…” Esse kog, com a sua proa em forma de colher e a sua grande vela quadrada presa à longa verga, tinha certamente uma. De que parte do mundo vinha? Provavelmente das ilhas da Frísia, a não ser que fosse do mar Báltico. O que era certo é que era o sobrevivente de uma família de navios quase desaparecidos pois era cada vez mais raro ver u kog em Sluys. O mesmo não poderia dizer-se desses navios dinamarqueses, reconhecíveis entre todos pelos seus cascos trincados, esses naviosa que arvoravam orgulhosamente o estandarte do seu porto de matrícula: Yarmouth, Dover, Hastings, La Rochelle, com o seu castelo de popa em forma de torre.

Jan gabava-se de ser amigo de D. Henrique, o nobre filho do defunto D. João I de Portugal. Desde a sua mais tenra infância que só teve uma paixão: o mar. De regresso de Veneza, o irmão, o infante D. Pedro, oferecera-lhe o livro de Marco Polo bem como uma carta de todas as partes do mundo conhecido, estabelecida segundo os relatos dos comerciantes de especiarias. Ávido de informações enviou agentes secretos à Boémia e a Viena. Adquiriu documentos extremamente preciosos. Mandou vir cartógrafos, astrónomos e timoneiros, mestres na reparação de querenas e velames. Havia vinte anos que D. Henrique havia tomado conhecimento da existência de ilhas afortunadas, mais a oeste, e decidiu lançar em sua busca duas barcas de uma vela, com três escudeiros da sua casa: João Gonçalves dito Zarco; Tristão Vaz; e Idelsbad: o narrador disto. Deram-lhe o nome de Madeira. E em seguida, introduziram a vinha importada de Chipre.

Mas o problema eram os turcos. E os árabes também. O país que conseguisse descobrir os novos itinerários marítimos para alcançar as regiões ricas do cravinho, canela e da pimenta. A título de exemplo ficamos a saber que que o cravo-da-índia, que é pago a dois ducados em java, vale entre dez e catorze em malaca. Entre cinquenta e sessenta em Calecute. É fácil imaginar os preços que atingem nos mercados de Lisboa ou de Antuérpia. Para Portugal e Espanha, essas novas vias marítimas permitiriam também vencer o monopólio de Veneza e de Génova. Mas para D. Henrique a descoberta não chegava. Era preciso dar-lhe vida. É provável que outros que outros tenham chegado à madeira primeiro. Mas a construção da primeira casa, a plantação da primeira cepa, a introdução do primeiro animal doméstico, foi pela mão dos portugueses.

Gilbert Sinoué regressa à ficção para inventar uma conspiração contra o infante D. Henrique, que está em Bruges e parte para Florença. Um homem que apesar da sua paixão ser o mar, nunca tinha antes saído de Sagres. Porque agora? Os interesses comerciais de Portugal eram representados em Florença por D. Pedro de Meneses. Há mais de vinte anos havia lutado numa expedição punitiva contra os mouros em Ceuta. Os mouros, apanhados desprevenidos, não resistiram mais do que umas horas. Porém, foi um banho de sangue. Depois da rendição da praça-forte, os soldados lançaram-se num verdadeiro saque. Foi então nessa noite que D. Henrique chegou à conclusão de que a guerra não era para ele. Ao regressar a Portugal, pediu autorização ao pai para se retirar para Sagres e dedicar-se aos estudos marítimos. Tomadas em África como a de Ceuta, de nada serviam.

Chegados então a Florença, o Palazzo dei Signori coincidia razoavelmente com a descrição dos comerciantes. Efetivamente, nada tinha, pelo menos na aparência, de um palácio, assemelhava-se mais a uma fortaleza. O mesmo não se podia dizer da Casa de Portugal, que refletia uma opulência quase extravagante. Na Casa de Portugal, em dois andares, destacavam-se janelas com arcadas geminadas. As paredes estavam cobertas de alabastro e a porta de carvalho maciço parecia a de uma catedral. O anfitrião, D. Pedro de Meneses, lançou-se nos braços do amigo, apertando-o contra o peito. Vinte anos haviam passado, desde a tomada de Ceuta. Ora, o infante D. Henrique corria perigo, e estava alojado na residência de Cosme de Médicis, no centro da conspiração. Tinham de avisar D. Henrique da tramoia que tinham descoberto e aconselhá-lo a sair da cidade o mais depressa possível.

Ao avistar-se com D. Henrique na casa dos Médicis, D. Pedro de Meneses pôs o Infante D. Henrique a par de tudo, que corria grande perigo de ser assassinado. Mas o Infante, tranquilizou-o dizendo que há mais de trinta anos os seus marinheiros arriscavam todos os dias a vida por ele. E não iria ser ele a fugir na única vez em que a sua própria vida se encontrava em perigo. Médicis não sabia de nada. Eis senão quando, batem à porta. Médicis deteve-se subitamente. Era um criado esbaforido, despenteado, dizendo que a doença de Fiesole se alastrava a Oltrarno. As ruas estavam juncadas de pessoas agonizantes. Era a peste negra.

O perfil do Infante contratava bastante com porte voluntarioso d florentino. A mistura de Norte e de sul conferia ao Infante uma expressão simultaneamente rígida e calorosa, alegre e melancólica, em todo o caso carregada de nostalgia. A tez morena, rosto longo e olhos sombrios. Ao que se acrescentava esse forte bigode castanho-avermelhado que caía discretamente sobre as comissuras dos lábios. Pressentia-se o desapego do asceta e a lucidez do solitário. Envolto naquele longo fato preto, fazia lembrar mais um monge do que um príncipe.
Ao meio-dia, na piazza del Duomo, Jan van Eyck avança, pensativo, enquadrado por Idelsbad e D. Pedro de Meneses. O drama que se desenrolava Oltrano estava em todas bocas e por toda a parte se fazia a mesma pergunta: em que momento o mal atravessaria o rio?  De repente D. Pedro, com grande espanto exclamou: "Olhem quem está ali, Lorenzo Ghiberti, o grande escultor!". Ghiberti estava junto à Porta do Paraíso, uma das portas do Baptistério que ele vinha trabalhando levava já dezassete anos.
Mas sobre a nave del Domo, flutuava a sombra gigantesca da cúpula de Brunelleschi, majestosa, aérea, sublime. No alto havia uma abertura, através da qual jorrava uma torrente de luz. Ainda faltava a clarabóia, que havia de selar a cúpula.
Em 1441, quando Jan van Eyck faleceu, Antonello da Messina ainda tinha 11 anos de idade, e nessa altura ninguém adivinharia que iria ser ele o pintor a introduzir as técnicas de Jan van Eyck em Itália, e por essa via considerado o melhor pintor da Renascença ItalianaOs seus trabalhos eram muitas vezes confundidos com trabalhos de artistas flamengos, devido ao seu detalhismo e solene rigor, à harmonia dos tons e das cenas representadas, à delicadeza das cores, aspectos típicos dos "Primitivos Flamengos", como Jan van Eyck e Rogier van der Weyden. Mas onde se formou ninguém sabe. Continua um mistério. Como foi que conseguiu descobrir a técnica de van Eyck? Atualmente, ninguém está em posição de o explicar com certeza.


terça-feira, 26 de novembro de 2019

Culturas e civilizações


Este é um tema em que não há consensos, o que não nos deve surpreender. Em primeiro lugar, existe uma diferença entre civilização no singular e civilizações no plural. No meio dos pensadores alemães não é trabalhado o conceito “civilização”. Dão primazia ao conceito de “cultura”. Talvez por “civilização” ter sido inventada pelos franceses. Dá vontade de dizer que é cada um a puxar a brasa à sua sardinha. Os pensadores alemães do século XIX traçaram uma clara distinção entre civilização: que implicava tecnologia e fatores materiais; e cultura: que envolvia valores, ideias e características intelectuais e morais de uma sociedade. A partir do século XX, a oposição “civilizado” versus “bárbaro” perdeu o seu sentido clássico, e o que passou a existir foi “muitas civilizações”, cada uma delas civilizada à sua maneira.

Assim, dentro do âmbito meramente histórico, das muitas civilizações podemos começar a elencá-las sem a preocupação de as esgotar, nem de as mencionar por ordem de importância: chinesa, hindu, europeia, maia, inca, asteca, eslava, japonesa, egípcia … A civilização é assim o mais elevado agrupamento cultural de pessoas com afinidades que passam pela língua, a história, a religião, costumes e instituições, que permita uma autoidentificação espontânea por parte e cada uma das pessoas. A civilização japonesa será uma exceção quanto ao facto de as civilizações em regra comportam mais do que um Estado. O Japão é uma civilização que é um Estado. Vários especialistas distinguem uma civilização ortodoxa, centrada na Rússia e separada da cristandade ocidental em resultado da sua linhagem bizantina. Aqui não entrou o Renascimento, ou a Reforma, nem o Iluminismo.

Esta abordagem tem como implícito que cada pessoa comporta níveis diferentes de identidade, e graus diferentes de intensidade identitária: Exemplificando: uma pessoa de Braga, pode dizer que é: um bracarense; um minhoto; um português; um católico; um europeu; e ao mesmo tempo identificar-se como um benfiquista. Mas a civilização será o nível mais amplo de identificação, como, por exemplo, dizer que se identifica com a civilização ocidental; ou com a civilização de matriz judaico-cristã; ou com a civilização de matriz celta; ou com a civilização de matriz greco-romana. Das cinco religiões mundiais com mais crentes, só o budismo não está associado a grandes civilizações. Na terra onde surgiu não sobreviveu ao hinduísmo. E para onde migrou, para oriente, não ocupou o lugar nem do confucionismo, nem do islamismo. Podemos assim concluir que a virtual extinção do budismo na Índia e a sua adaptação e importação nas culturas existentes na China e no japão significam que o budismo, embora sendo uma grande religião, não esteve na base de uma grande civilização. Mesmo o Tibete, a Mongólia e o Butão, é considerada uma segunda área do budismo, dado que aderiram à variante lamaísta do budismo maiano. E quanto à civilização judaica? A maior parte dos especialistas de civilizações, raramente a mencionam. Até neste aspeto é considerado uma exceção, para não dizer extravagância, uma vez que não sabemos se devemos falar de Israel – uma religião, uma língua, costumes, literatura, uma base territorial e política; daí não se poder considerar a civilização hebraica do tempo de Salomão como uma civilização extinta; para além de não sabermos como enquadrar os judeus da diáspora, que engloba uma amálgama de alta finança conspirativa, de pogroms em grande escala no passado, ou de antissemitismo no presente.

São tudo termos aceitáveis para um habitante de Braga cujos antepassados consta sempre terem sido daqui, dado se perder no esquecimento do tempo qualquer hipótese de migração. Embora cientificamente se saiba que todos somos descendentes de migrantes considerados à grande escala do tempo. Ao contrário dos impérios, que surgem e caem, ou dos regimes políticos que são efémeros, vão e vêm, as civilizações permanecem e sobrevivem às convulsões políticas durante muito mais tempo.

Todos sabemos como é problemático um ocidental falar do Oriente e um oriental falar do Ocidente. Assim sendo, o Ocidente inclui a Europa, a América do Norte, A América do Sul, a Austrália e a Nova Zelândia. A utilização de “Oriente” e “Ocidente” para identificar áreas geográficas é confusa e etnocêntrica, na medida em que não há um ponto ou linha divisória leste/oeste, ao contrário do Norte/Sul, cujos pontos são os Polos e a linha é o Equador. A leste ou a oeste de quê? Tudo depende do ponto onde nos encontremos. Para os japoneses o Ocidente é a China. Para os chineses o Oeste é a Índia. Para os nova-iorquinos o Oeste é o Texas ou a Califórnia.

O Ocidente durante várias centenas de anos manteve-se num nível inferior ao de muitas outras civilizações. A China, sob as dinastias T’ang, Sung e Ming, o mundo islâmico entre os séculos VIII e XII, Bizâncio entre os séculos VIII e XI, ultrapassava a Europa em riqueza, território, poder militar e realizações artísticas, literárias, científicas e tecnológicas. Só no século XII a Europa começou a desenvolver-se. O Ocidente, como civilização de terceira geração, herdou muito das civilizações anteriores, especialmente das civilizações greco-romanas: filosofia grega; direito romano e racionalismo; língua latina; separação da autoridade espiritual da temporal; primado da lei.

Cada civilização vê-se o centro do mundo e escreve a sua história como o drama central da história humana. E os ocidentais fazem jus a esse paradigma. É precisamente o desafio do desconhecido que estimula a nossa curiosidade de o conhecer dentro de um espírito multicivilizacional. Por isso não sinto qualquer inibição de vir aqui falar dos chineses ou dos japoneses dos tempos atuais, na medida em que estamos a pressentir que vamos viver cada vez mais com a sua influência, à medida que os vamos vendo a comprar coisas por aqui. Todos os especialistas reconhecem a existência de uma única civilização chinesa distinta, que remontaria a entre 2.500-1.500 anos a.C. Enquanto o confucionismo é uma importante componente da civilização chinesa, esta é mais do que o confucionismo, e também transcende a China como entidade política.

Enquanto os chineses e os japoneses encontram novos valores nas próprias culturas, reafirmam também todo o valor da cultura asiática quando comparada, genericamente, com a do Ocidente. A industrialização e o crescimento que acompanharam este processo produziram nos asiáticos do Extremo Oriente, nos anos 1980/90, o que poderia designar-se por afirmação asiática.
Os asiáticos passaram a acreditar que iam manter um desenvolvimento económico rápido, o que iria resultar a curto prazo na ultrapassagem do Ocidente em todos os indicares económicos. Por um lado, porque acreditam que a cultura asiática é superior à ocidental, porque é uma cultura que coloca a ênfase mais na coletividade do que no indivíduo. E por outro lado, consideram que a civilização ocidental está cultural e socialmente em decadência. Em todos esses países do sudeste asiático sobressai o sistema confucionista, reconhecido pela sua frugalidade, pela aposta na família e não no individuo, e não de somenos, a importância do “autoritarismo suave”.

Em princípios do século XX os intelectuais chineses, à maneira de Max Weber, mas de um modo independente, viam o confucionismo como a fonte do atraso chinês. Em finais do século XX os dirigentes políticos chineses, à maneira dos sociólogos ocidentais, celebram o confucionismo como a fonte do progresso chinês. Na década de 80 o governo chinês começou a promover o interesse pelo confucionismo, com os dirigentes partidários a declará-lo como “a corrente dominante” da cultura chinesa. Na década de 1990 o governo de Taiwan proclamou-se “herdeiro do pensamento confucionista”. O nacionalismo promovido pelo regime chinês é o nacionalismo Han, que ajuda a suprimir as diferenças linguísticas, regionais e económicas em 90% da população chinesa. No entanto, 10% da população é de minorias étnicas não chinesas, ocupando 60 % do território.

Uma outra civilização distinta é a islâmica, nascida na Península Arábica no século VII. Mas depois muitas outras culturas distintas da arábica, como a turca, a persa e a malaia, passaram a pertencer ao mundo islâmico. Ao contrário dos confucionistas, os islamistas – muçulmanos e não muçulmanos, ou melhor, árabes e não árabes – ao voltarem-se de novo para o Islão como fonte de identidade antiocidental, ainda não encontraram o caminho que os leve a alcançar o mesmo objetivo económico conseguido pelos asiáticos extremo-orientais. São muitos os sinais de um despertar islâmico na vida pessoal: maior ênfase no trajo e nas práticas de rezar virados para Meca cinco vezes por dia, estejam onde estiverem. Muitos estadistas e governos, incluindo os Estados mais seculares, de que a Turquia é o caso mais surpreendente, têm mostrado uma maior permissividade a extremismos quanto às questões da pureza islâmica.

Mutas das características da civilização ocidental anteriormente referidas contribuíram para o nascimento de um sentimento de individualismo e de uma tradição de direitos e liberdades individuais únicos entre as sociedades civilizadas. O individualismo continua a ser um sinal distintivo do Ocidente entre todas as civilizações que ainda existem. Ora, este valor que é o mais importante no Ocidente, não é acolhido com o mesmo entusiasmo no resto do mundo, onde impera o coletivismo ou o comunitarismo, mais restrito quando limitado à família ou clã, ou mais alargado à dimensão da aldeia comunitária.

segunda-feira, 25 de novembro de 2019

Inferência Causal e Doença




Inferência Causal é o processo mental de índole matemática para penetrar nas enigmáticas relações de causa e efeito. E quando aplicada ao estudo do processo saúde-doença, entramos na disciplina da Epidemiologia. O cérebro humano, melhor do que o cérebro de qualquer outro animal, é bom a equacionar as questões de causa e efeito. Nós conseguimos armazenar uma infindável quantidade de informação que guarnece o nosso conhecimento causal. Mas ainda assim, a nossa inteligência tem os seus limites, e por isso tem falhado muito no acerto desta relação (causa-efeito), assunto muito trabalhado por filósofos durante dois mil anos – de Aristóteles a David Hume – que só há duzentos anos os matemáticos tentaram resolver o problema de uma vez por todas, criando a disciplina chamada “estatística”. Mas hoje, com a inteligência artificial a processar uma quantidade de dados muito superior ao que o nosso cérebro é suposto processar, os matemáticos prometem ir ainda mais longe, extraindo conhecimento causal do meio ambiente ainda desconhecido. O que irá possibilitar a resolução de problemas e identificar fenómenos jamais descobertos.

Até que ponto é eficaz um determinado tratamento na prevenção de uma doença, ou quais os custos de saúde envolvidos no tratamento de problemas de saúde provocados por hábitos e escolhas, como por exemplo é  caso da obesidade, ou o de fumar cigarros, são perguntas que podem ser respondidas por este método, porque são questões que têm a ver com relações de causa e efeito.

O julgamento final sobre os efeitos causais de um tratamento frequentemente dependerá do acúmulo de evidências obtidas por meio de uma série de estudos. A contribuição de cada estudo depende da capacidade do investigador, ao interpretar os resultados de um estudo que mostre uma associação consistente com uma hipótese causal, de listar e discutir todas as explicações alternativas, incluindo hipóteses diferentes ou possíveis vieses. É comum caracterizar a Epidemiologia como uma disciplina (para alguns) ou ciência (para outros), que tem como um dos seus eixos centrais de interesse a preocupação com a determinação do processo saúde-doença. A ocorrência de doenças é um fenómeno em que há interesse geral na identificação de suas causas para que obviamente possam ser prevenidas. Entretanto, inferir causalidade é uma tarefa complexa. Envolve diversas áreas de investigação. A filosofia, a sociologia e a medicina sempre se sentiram desafiadas por essa questão, enquanto a estatística só mais recentemente parece ter despertado o seu interesse por ela. Embora se identifiquem referências à ideia de causa nos trabalhos sobre experiências randomizadas desenvolvidas por Fisher no início do século XX, formalmente a contribuição da estatística para esta discussão começou com o trabalho de Rubin em 1974.

Mesmo a randomização (ou aleatorização), um mecanismo de alocação de tratamentos apenas em ambientes experimentais, alguns analistas são mais cautelosos em reconhecê-la nestes casos - ensaios terapêuticos experimentais - como apropriada para estabelecer relações de causalidade inteiramente limpa. Os ensaios clínicos servem-se tanto dos estudos observacionais como dos dados estatísticos. A experimentação nem sempre é possível quando se trabalha com populações humanas. Entretanto, a possibilidade de se estabelecer um modelo estatístico cuja formulação seja comum às abordagens experimental e observacional parece adequada, pois unificaria a ideia de causa contida nos estudos epidemiológicos. A diferença fundamental entre as abordagens concentra-se no nível de controlo que o analista, experimentador ou observador possui sobre o mecanismo de determinação da causa.

A Epidemiologia - como ciência preocupada com a frequência, a distribuição e os determinantes das doenças que acometem a população - tem desenvolvido procedimentos metodológicos baseados em modelos estatísticos que buscam identificar a etiologia das doenças. Esses modelos são, entretanto, dependentes de pressupostos que muitas vezes não podem ser escrutinados com base em dados observados. O conceito de validade tem, portanto, um papel-chave na avaliação dos efeitos causais. Por sua vez, a validade sobre a existência de uma relação de causa e efeito entre uma doença e um fator de risco é dependente das características de cada desenho de estudo que a Epidemiologia utiliza. Uma causa pode ser entendida como qualquer evento, condição ou característica que desempenhe uma função essencial na ocorrência da doença.

Historicamente, a primeira tentativa formal para a identificação das causas de uma doença deu-se com a formulação, em 1890, do que foi chamado de "Postulados de Henle-Koch". Heinrich Hermann Robert Koch foi um médico, patologista e bacteriologista alemão, um dos fundadores da microbiologia e um dos principais responsáveis pela atual compreensão da epidemiologia das doenças transmissíveis. De Koch até hoje, foram sendo feitos aperfeiçoamentos cujas modificações culminaram num conjunto de critérios que identificam uma associação entre exposição e doença, cuja exaustão não cabendo neste simples artigo, apenas me vou limitar a enumerá-los: força da associação; consistência; especificidade; temporalidade; gradiente biológico; plausibilidade; coerência; evidência experimental; analogia. 

À exceção do critério de temporalidade, nenhum outro desses nove critérios de evidência epidemiológica deve ser exigido como condição sine qua non para julgar se uma associação é causal. Pode-se dizer também que eventualmente os critérios de evidência experimental e analogia são irrelevantes e o de especificidade, impróprio. De modo diferente, a abordagem estatística sobre causalidade baseia-se na formulação de um modelo construído sob o método do contra-factual, na qual são estabelecidas hipóteses que procuram viabilizar a inferência causal. A dificuldade está, pois, na verificação de tais hipóteses, nem sempre passíveis de serem testadas por meio dos dados observados. A validade de algumas hipóteses não testáveis, por sua vez, depende do nível de convencimento que o analista consegue obter, para si próprio e para os outros, baseado numa cuidadosa análise de cada situação em particular. Sendo assim, é de grande valia que as hipóteses não testáveis adjacentes ao modelo estejam explicitadas, para que possam ser analisadas criticamente. Há falta de validade de comparação, sempre que existir diferença entre os riscos de doença entre os grupos sob comparação, independentemente do fator causal em questão. Em outras palavras, haverá confundimento sempre que o grupo de indivíduos não expostos não representar o que aconteceria com os indivíduos expostos, caso eles não tivessem sido expostos. Planear um estudo real em que tal conceito possa ser operacionalizado não parece ser tarefa simples. Entretanto, pode-se depositar umarazoável credibilidade nessa hipótese no caso de randomização, já que sob esta condição espera-se que as distribuições de eventuais variáveis confundidoras não sejam muito diferentes nos dois grupos de exposição. Sob randomização, qualquer eventual confundimento que ainda persista após ajustamentos adequados será considerado pelo erro padrão da estimativa, dado que a especificação do modelo estatístico utilizado para computar o efeito estimado e seu erro padrão esteja correta.

Assim, a atribuição de causa é dependente do estabelecimento de hipóteses que, de acordo com o estudo em questão, podem ser ou não plausíveis. As hipóteses de causa passageira - estabilidade temporal, independência, homogeneidade de unidades, efeito constante e valor estável unidade-tratamento, combinadas ou não - constituem as premissas necessárias para se estabelecer um modelo teórico de causalidade. Acrescente-se a elas ainda as questões relativas à operacionalidade peculiar a cada estudo, tais como viés de informação, viés de seleção, erros de mensuração, dados censurados e erros na especificação do modelo probabilístico de estimação, cuja consideração é fundamental para o estudo de causa. No caso de doenças contagiosas, exigem-se hipóteses especificamente sobre a exposição à infecção. A validade de uma atribuição de causa é, portanto, dependente de todas essas condições, com a agravante de em muitas situações não ser possível colocá-las à prova. Sendo assim, o modelo estatístico de causalidade devido a Rubin não deve ser visto como a panaceia da questão causal. Um mecanismo causal é uma teoria científica que procura descrever os diversos processos biológicos, químicos, físicos e sociais pelos quais o tratamento produz os seus efeitos. A complexidade por trás de um mecanismo causal parece bem representada pela máxima de Fisher, quando questionado sobre o que poderia ser feito em estudos observacionais para elucidar o caminho que separa associação, ou correlação, de causalidade: "elaboração". A elaboração, a que Fisher faz alusão,  foi interpretada como sendo a consideração, tanto quanto possível, de todas as consequências de uma hipótese causal estabelecida . Planear tudo ao pormenor para que possam ser verificadas todas as consequências. Entretanto, essa elaboração pode eventualmente ser simplificada pela construção de hipóteses causais mais específicas, de modo a que as consequências dessas hipóteses possam ser consideradas e avaliadas.

sexta-feira, 22 de novembro de 2019

O encantamento de Wittgenstein


Wittgenstein com Georg Henrik von Wright - 1950

Ninguém que entrasse em contacto com ele deixava de se sentir impressionado. Alguns sentiam-se repelidos. A maior parte sentia-se atraída ou fascinada. Poder-se-ia dizer que Wittgenstein evitava travar conhecimentos, mas precisava da amizade, e procurava-a. Ele era um amigo incomparável, mas muito exigente. Qualquer conversa com Wittgenstein era como viver o dia do juízo final. Ele era terrível. Tudo tinha de ser constantemente reexaminado, questionado e sujeito aos testes da veracidade. Isto não dizia respeito apenas à filosofia, mas a tudo na vida.                Georg Henrik von Wright

Georg Henrik von Wright [1916-2003] foi um filósofo finlandês que sucedeu a Ludwig Wittgenstein como professor da Universidade de Cambridge. Os escritos de von Wright enquadram-se nas grandes áreas da filosofia analítica e lógica. Era uma autoridade sobre Wittgenstein, tendo organizado para publicação as suas obras póstumas. Foi também figura líder da filosofia finlandesa de sua época, especializando-se em lógica, analítica, filosofia da linguagem, filosofia da mente, e no pensamento de Charles Sanders Peirce.

Peter Gray-Lucas, falando acerca de Ludwig Wittgenstein,  não era um admirador de Wittgenstein, e considerava-o um charlatão. No entanto, achava a sua personalidade irresistível. 
Era um mimo absolutamente maravilhoso. Falhou a sua vocação: deveria ter sido um artista de palco. No seu pitoresco austríaco conseguia imitar todo o tipo de sotaques, de estilos, de maneiras de falar. Era absolutamente fascinante. Recordo-me de uma noite levantar-se da sua cadeira, falando com uma voz esquisita, dizer: "o que é que nós dizemos se eu atravessar através desta parede?" Apertou os braços da minha cadeira com uma força tal que os nós dos dedos ficaram brancos. Pensei que ele ia mesmo atravessar a parede e que o teto ia desabar sobre nós. Creio que isso fazia parte do seu encanto: essa sua capacidade para evocar praticamente qualquer coisa.

Peter Gray-Lucas
Mesmo os amigos íntimos, como Peter Geach, e outros sobreviventes, testemunham o desassossego e a trepidação que sentiam quando lidavam com Wittgenstein. Geach recorda-se dos longos e intelectualmente extenuantes passeios pelos campos em torno de Cambridge que eram mais de trabalho do que de prazer: "Wittgenstein era brutalmente intolerante para com qualquer observação que ele julgasse desleixada ou pretensiosa."

Em 1910, enquanto jovem estudante de Engenharia, patenteou um novo motor de avião que antecipou o motor a jato e que foi reinventado e testado com sucesso em 1943. Em 1913 vai de férias com Pinsent para a Noruega. Entrega a Bertrand Russel as suas "Notas sobre Lógica". Mas em outubro o pai morre de cancro. Wittgenstein ansiava por solidão. Tinha o hábito de se retirar para zonas frias e inóspitas da Europa - Islândia, Noruega (onde ele próprio construiu a casa de madeira), e oeste da Irlanda. Wittgenstein produziu algum do seu melhor trabalho em isolamento. Mas, onde quer que estivesse, não conseguia interromper a torrente das ideias.

Em abril de 1914 começa a construir uma casa na Noruega. A 7 de agosto de 1914 alista-se como voluntário no exército austro-húngaro após a declaração de guerra contra a Rússia. Em 1915 fica ferido numa explosão do paiol de artilharia em Cracóvia. Em novembro de 1918 é capturado pelos italianos, ficando prisioneiro de guerra até agosto de 1919. Tendo terminado o Tractatus, é daqui que o envia para Bertrand Russel em Inglaterra, cuja publicação só se efetiva em 1922, quando finalmente um editor inglês aceita publica-lo em edição bilingue.

Durante a Primeira Grande Guerra tornou-se um combatente muito condecorado. A sua irmã Hermine lembra-se de os soldados se referirem a ele como "o dos Evangelhos". Transportava sempre consigo a edição Tolstoi dos Evangelhos. A guerra transformou-o. Quando regressou do cativeiro transferiu todo o seu dinheiro para Paul, Hermine e Helene. A irmã Margarete já tinha que lhe bastasse, tendo casado com um magnata americano Jerome Stonborough. Hermine lembra-se das agonias por que passou o irmão junto do notário, enquanto não se viu livre de toda a fortuna que por direito herdara do pai. Foi a partir desta época que passou a sofrer da síndroma psiquiátrica "obsessiva compulsiva". Adotou uma vida obsessivamente austera, combinada com a mania da limpeza e do asseio. O que está de acordo com a paixão pelo despojamento. Vida de eremita extremamente abnegada ao seu isolamento. 



Em 1926 empenhou-se na construção da casa de sua irmã Hermine, uma casa triunfantemente modernista de Kundmanngasse. O arquiteto do projeto era Paul Engelmann, um amigo de Wittgenstein. Ao interessar-se por todos os pormenores com o mais fino detalhe, foi um pesadelo para empreiteiros e construtores. Conta-se que um dia, o serralheiro lhe perguntou, por causa de uma fechadura, se um milímetro a mais ou a menos lhe fazia assim muita diferença. E antes mesmo que ele acabasse a frase, Ludwig com um "Sim!" de tal modo alto e enérgico que o homem deu um salto de susto. A casa já terminada, e pronta a ser limpa, ele entrou num salão e aninhou-se a olhar para o teto. Conclusão, era preciso levantar o teto mais três centímetros. E teve que ser. O seu instinto estava absolutamente correto e tinha de ser acatado.

AS histórias que se contam acerca de Wttgenstein nunca mais acabam, o que nos faz suspeitar que muitas delas, certamente, estão embrulhadas em papel de fantasia, contadas por aquelas pessoas que supostamente o conheceram pessoalmente. Uma boa parte delas apresenta-o como um místico do deserto, capaz de subsistir com pão, água da chuva e silêncio. Mas foi verdade que ele até 1927 esteve arredado da filosofia para ir dar aulas numa escola primária de província na Áustria. É no fim de 1927 que termina a sua travessia do deserto e se encontra finalmente com alguns membros do Círculo de Viena, onde pontuavam Moritz SchilickRudolf Carnap, um filósofo alemão que havia de influenciar muito o mundo Americano com o Positivismo Lógico, para onde emigrou em 1935. 

Schlick e o seu grupo ficaram impressionados com o seu livro, que propunha entre outras coisas uma teoria lógica dos símbolos e uma teoria pictórica da linguagem. Foi um tópico de discussão de vários encontros. Schlick havia contactado Wittgenstein pessoalmente em 1924, tendo elogiado perante o Círculo as virtudes do livro. 

Wittgenstein concordou em reunir-se com Schlick Waissmann para discutir o Tractatus e outras ideias. Através da influência de Schlick, Wittgenstein foi encorajado a considerar o retorno à Filosofia após uns 10 anos de ociosidade. Ironicamente, é em parte devido ao apoio de Schlick que Wittgensrein começou a escrever as reflexões que iriam fazer parte da segunda (e última) obra de Wittgenstein, as "Investigações filosóficas", que só foram publicadas depois da sua morte. As discussões de Schlick e Waismann com Wittgenstein continuaram até que o último achou que ideias germinais dele tinham sido usadas sem permissão por Carnap. Wittgenstein continuou as discussões por cartas a Schlick, mas a sua ligação com o Círculo de Viena terminou em 1932.



Moritz Schlick [1882-1936] era a figura central do Positivismo Lógico, e do Círculo de Viena, quem verdadeiramente organizava e coordenava as reuniões no Seminário de Matemática da Universidade de Viena. Em reuniões semanais procuravam reconceptualizar o Empirismo a partir das novas descobertas científicas, e demonstrar as falsidades da Metafísica. Estas reuniões acabaram quando Schlick foi assassinado por um dos seus alunos, Nelböck, que quando Schlick entrou no patamar de acesso às salas de Filosofia já ele lá estava à sua espera. Sacou de uma pistola automática e disparou quatro vezes à queima-roupa. Morte instantânea. Ainda hoje existe uma placa de bronze a assinalar o acontecimento. Em 1936 o anti-semitismo em Viena já estava ao rubro. 

Não faltaram artigos de jornal a manifestar o regozijo pela morte de Schlick e palavras de elogio e admiração para com o assassino. Era alegado que Schlick fora um dos principais representantes de uma nova e sinistra corrente de filosofia, uma corrente hostil à metafísica que era apoiada pelos mais básicos elementos da sociedade: judeus, comunistas e maçons. Uma filosofia que negava a existência de Deus, negava a existência do espírito, e via o homem como um mero agregado de células. Quando em 1929 o Círculo de Viena foi apresentado oficialmente, oito dos seus catorze membros eram judeus. E Leon Hirschfeld, um satirista, dava aos visitantes o o seguinte conselho: "Durante a sua estadia em Viena, tenha o cuidado de não se mostrar demasiado interessante ou original, caso contrário poderão, nas suas costas, começar subitamente a chamar-lhe judeu". Era uma cidade onde os intelectuais de descendência judaica desempenhavam um papel determinante, assimilando de forma dinâmica a sua compleição cosmopolita.

Portanto, Wittgenstein tinha regressado a Cambridge e
m janeiro de 1929 para se apresentar às provas de doutoramento. A tese era o seu livro, o Tractatatus Logico-Philosophicus, que não chegava a 20.000 palavras. Muito pouco para o padrão dessa época. Mas G.E. Moore, um dos seus examinadores escreveu: É minha opinião pessoal que a tese do Sr. Wittgenstein é uma obra de génio, ao nível dos padrões exigidos em Cambridge para o grau de doutor em Filosofia". Dez anos mais tarde, quando Moore se reformou, Wittgenstein foi nomeado para a cátedra que então ficava vaga. As concisas exclamações eram consideradas pelos seus alunos em Cambridge, e adeptos em Oxford, como se fossem as palavras de um oráculo. Aprender com Wittgenstein sem adotar as suas formas de expressão e termos favoritos, e sem mesmo imitar o seu tom de voz, o seu porte e os seus gestos, era quase impossível. Nesta altura já ele deixara de acreditar numa linguagem ideal e perfeita, como acreditava no tempo do Tractatus. A filosofia da linguagem de Wittgenstein evoluira drasticamente. Se as comunidades adotavam ou desenvolviam uma linguagem que continha contradições internas, muito bem, que assim fosse. 

Ao longo da sua vida, Wittgenstein publicou apenas três livros: O Tractatus; O glossário de alemão para crianças; e o texto de uma palestra promovida pela Sociedade Aristotélica e pela revista de filosofia "Mind". Tudo o resto foi compilado a título póstumo a partir das suas notas. Desde que regressara a Cambridge, Wittgenstein abandonara a maior parte das ideias contidas no Tractatus entre duas afirmações bem conhecidas: O mundo é tudo o que é o caso; Acerca daquilo de que se não pode falar, tem de se ficar em silêncio. Desenvolvera uma abordagem radicalmente nova. Para os filósofos, um dos grandes enigmas era a relação entre a linguagem e o mundo. Como é que uma série de letras quando colocadas  na ordem apropriada adquiriam um sentido? Mas esta visão da ligação entre a linguagem e o mundo levanta toda uma série de perguntas difíceis.

Um incidente recordado por Norman Maocolm envolve uma preleção apresentada em 1939 no Clube de Ciência Moral por G.E. Moore. Nessa preleção, Moore tentava provar que uma pessoa pode saber que possui uma sensação chamada dor - ponto de vista a que Wittgenstein se opunha, pensando que, mais do que impossível, ele era destituído de sentido. Wittgenstein não esteve no debate do Clube de Ciência Moral, mas quando ouviu falar da conferência, segundo Malcolm, "reagiu como um cavalo de guerra". Foi até casa de Moore. Na presença de Malcolm, de von Wright e de outros, Moore voltou a ler a sua conferência. "Wittgenstein atacou-o de imediato. Estava mais excitado do que alguma vez eu o vira em qualquer outro debate. Expelia fogo e falava com tremendo vigor e rapidez. A sua atuação não foi apenas impressionante, foi assustadora.

Durante o período da Guerra, Wittgenstein prestou o seu contributo no esforço de guerra na qualidade de assistente de laboratório de uma equipa médica do Guy's Hospital. Voltando a demonstrar uma vez mais o seu sentido da obrigação, embora tivesse já mais de cinquenta anos. Uma enfermeira declarou que nunca alguém produzira antes pasta de Lassar com tal qualidade. Terry Eagleton, autor de um argumento cinematográfico e de um romance sobre Wittgenstein, escreveu que ele reunia uma combinação virtuosa de monge, de místico e de mecânico. Eram célebres os seus enigmáticos aforismos, que se entregavam a um interminável processo de interpretação e reinterpretação. 

No Tractatatus Logico-Philosophicus, está a ligação entre a linguagem, o pensamento e o mundo. Em particular, Wittgenstein oferece uma teoria imagética do sentido. As proposições funcionavam como bonecos numa maquete em jogos de brincar para crianças. Mas a dada altura ele muda de ideias e passa a utilizar a metáfora da linguagem como instrumento. Se quisermos conhecer o sentido de um termo, não devemos perguntar o que é que ele designa: em vez disso, devemos examinar o modo como ele é efetivamente usado. Afinal a gramática era autónoma, ela tinha livre curso, e não estava acorrentada ao mundo dos objetos. A linguagem é pública, ela está implantada nas nossas práticas de vida. Qual era então, para Wittgenstein, o objetivo da filosofia? Muito simplesmente o de nos desembaraçarmos da confusão em que nós próprios nos envolvemos. E para explicar isto, outra metáfora: "mostrar à mosca o caminho para fora do frasco"

E foi em outubro de 1946 que se dá a cena do drama da sala H3 do King’s College de Cambridge. A célebre palestra de Popper, a convite do Clube de Ciência Moral de Cambridge, no qual Wittgenstein perdeu o controlo ao se confrontar de uma forma desagradável com Popper, um filósofo descendente de uma família judaica de Viena, tal como ele, e que havia acabado de chegar a Inglaterra vindo da Nova Zelândia onde esteve exilado no tempo da Guerra. Nesse ano havia-lhe sido concedida a cidadania britânica, dado que até aí ele era um cidadão austríaco. Wittgenstein concebia efetivamente a filosofia como uma espécie de terapia linguística, parecida com a abordagem de Sigmund Freud, um amigo das suas irmãs. As questões filosóficas são, pois, para Wittgenstein, enigmas, mais do que problemas. E foi esta questão dos problemas em filosofia, que tanto preocupava Popper, que tanto sobressaltou Wittgenstein. Wittgenstein dizia que as pessoas dizem uma e outra vez que a filosofia não progride verdadeiramente, que continuamos ocupados com os mesmos problemas filosóficos dos Gregos. Mas as pessoas que dizem isto não compreendem porque tem de ser assim. É assim porque a nossa linguagem permaneceu a mesma e continua a seduzir-nos de modo a fazermos as mesmas perguntas.

A dada altura do seu discurso introdutório Popper ataca o convite para que apresentasse "um qualquer enigma filosófico". Ora ele não podia aceitar falar partindo de um ponto do qual não concordava. Deverá ter sido aqui que Wittgenstein fez a sua primeira intervenção e se iniciou a batalha. Existiam problemas reais, defendeu Popper durante a reunião, e não apenas enigmas. Wittgenstein interveio e falou extensamente acerca doe enigmas e da não existência de problemas. Popper volta à carga dizendo que se Wittgenstein pretende recusar-se a aceitar a pergunta: "pode alguma coisa ser vermelha e verde em toda a sua extensão?", ele terá então de explicar com que fundamento o faz. Para diferenciarmos as proposições que são aceitáveis daquelas que o não são, precisamos de uma qualquer teoria do sentido. E isto tem de ser um problema, não um enigma. E Wittgenstein teria de provar o seu ponto de vista,e não reclamá-lo. Mas Wittgenstein a partir daqui ficou calado, não respondeu. Deve neste caso ter feito jus ao que postulou no seu Tractatus: assinalar o limite entre o sentido e o não-sentido, equivaleria a transgredir esse mesmo limite. "Acerca daquilo de que se não pode falar, tem de se ficar calado".

Em 1947 Wittgenstein resigna à sua cátedra em Cambridge, e vai viver por dois anos na Irlanda. Em 1950, depois de lhe ter sido diagnosticado um cancro na próstata, visita a Noruega pela última vez, e muda-se para a casa do Dr. Bevan, em Cambridge, casa onde morreu em 29 de abril de 1951. Ele ainda não conhecia a esposa do médico quando lá entrou pela primeira vez, logo após ter regressado do Estados Unidos. Ela observou: "Que sortudo que é por ter ido à América". Ele, de imediato, retorquiu com brusquidão: "O que é que quer dizer com sortudo?"

Quando a Sra. Bevan foi convidada para uma receção ao rei George VI e à rainha Elizabeth no Trinity College, Wittgenstein contraiu as feições logo que viu o casaco dela, pegou numa tesoura e retirou-lhe dois botões. Após essa operação, conta ela, ficou muito mais elegante. Não era uma questão de simples falta de maneiras, nem de um estilo lamentavelmente desastrado. Wittgenstein não habitava o mundo da conversa polida e da tagarelice social. A clareza do sentido era tudo, e ele acometia direito às pessoas, acontecesse o que acontecesse. Hermine obsevou que ele sofria de uma angústia quase patológica em qualquer ambiente que lhe fosse desagradável. Esta irmã que fora como uma mãe para ele, via nele alguém dotado de uma mente que conseguia penetrar o âmago das coisas.