sábado, 30 de setembro de 2023

A geopolítica euroasiática no tempo da guerra dos 7 anos [1756 - 1763]


A Guerra dos Sete Anos, entre 1756 e 1763, uma série de conflitos internacionais, esmagou a primazia francesa, mas substituiu-a por um vazio que acabou por desencadear uma explosão geopolítica. De um lado – França + Império Austro-Húngaro e seus aliados (Saxónia, Império Russo, Império Sueco e Espanha); e do outro lado – Inglaterra + Portugal + Prússia + Eleitorado de Hanôver. Em Versalhes/Paris governava Luís XIV. Em Viena, a monarquia Habsburgo era governada por Maria Teresa. Na Prússia era rei Frederico II, o Grande.




A fronteira entre as potências europeias e o Império Otomano tinha recuado e avançado várias vezes desde os primeiros anos do século XVIII. No entanto, embora os otomanos tivessem sido obrigados a recuar desde a sua última grande invasão da Europa, na década de 1680, já tinham recuperado território perdido antes da década de 1730 e estabilizado a sua defesa contra o avanço da Áustria
nos Balcãs.
No Norte, onde enfrentavam a expansão endémica da Rússia, os acessos ao mar Negro – ainda um lago otomano e o escudo estratégico das suas províncias do Norte – continuavam sob controlo dos seus vassalos no Canato da Crimeia. Nas costas do Norte de África e do Levante, as potências marítimas europeias mostravam pouca vontade (ou não tinham meios) para perturbar a supremacia otomana que aí ainda subsistia. Mais a leste, em redor do mar Cáspio, as movimentações russas em direção ao sul a partir do delta do Volga tinham feito poucos progressos, apesar da existência de um tráfico comercial dinâmico que ligava as cidades russas ao Irão, à Ásia Central e ao Norte da Índia.

A década de 1740 foi um período turbulento na Índia, marcada por invasões iranianas, afegãs e maratas que atingiram o coração do Império Mogol. E ao mesmo tempo, antigos tributários do litoral – sobretudo Bengala – reclamavam maior autonomia. As companhias concessionárias dos britânicos, holandeses e franceses tinham fortalezas e feitorias espalhadas pelas costas do Sul da Ásia, e tinham entrado em conflito umas com as outras. Mesmo assim teria sido absurdo prever em 1750 que a luta por um império nas planícies do Norte da Índia terminaria com o triunfo de um imperialismo europeu e não asiático. No maior império de todos, onde mandava a dinastia Qing, o perigo de uma convulsão geoestratégica parecia pouco provável. A dinastia Qing estava a preparar a destruição final do poder militar nómada nas estepes da Ásia Interior, que era a maior ameaça de sempre à ordem na Ásia Oriental. Sinkiang, ou Turquestão Oriental, foi conquistado no final da década de 1740. O Império Celestial tornar-se-ia ainda mais impermeável à perturbação do exterior, e menos disposto a fazer quaisquer cedências a visitantes importunos batendo à sua porta marítima. Pelo menos era o que parecia na altura.

A maioria dos Estados europeus era instintivamente expansionista. Numa época pré-industrial, o poder equivalia à posse de território e à população que este continha, ou a um monopólio comercial sobre produtos tropicais, com a sua promessa fulgurante de um excedente de metais preciosos. A ambição dinástica e a desconfiança recíproca faziam aumentar a bitola territorial. Na Europa Ocidental, os conflitos entre a França, a Espanha, a Grã-Bretanha e a Holanda durante o século XVII tinham girado em torno da questão de se saber se seria a Grã-Bretanha ou a França a potência dominante efetiva no acesso marítimo aos prolongamentos atlânticos da Europa na América do Norte e do Sul.

No Leste europeu havia a disputa de quatro estados soberanos: Rússia; Áustria; Polónia; Império Otomano. A impressão da fraqueza polaca e otomana aguçava a sede de territórios por parte da Áustria e Rússia. Mas, apesar de a França ter visto negada a sua hegemonia absoluta no reinado de Luís XIV, continuava a ser o árbitro da diplomacia europeia. Tinha a maior população, a maior receita pública e o exército mais forte de toda a Europa. Juntamente com um grande prestígio cultural, um comércio bem desenvolvido, uma marinha de guerra impressionante e o aparelho de diplomacia e serviços secretos mais sofisticado, esses factos constituíam uma combinação aparentemente imbatível. Mesmo que não conseguisse dominar a Europa, a França podia esperar regular os assuntos do continente de formas que garantissem a sua própria preeminência.

A França apoiou uma fação na Polónia para conter o incipiente domínio da Rússia e as ambições dos czares Romanov na Europa. Aliou-se à Prússia para manter a pressão sobre a Áustria, e ao Império Otomano para impedir a expansão não só da Áustria, mas também da Rússia. A França dispunha da Espanha, por via da aliança Bourbon, para a defesa do status quo no Mediterrâneo que incluía a Itália. E assim, a armada francesa juntamente com a espanhola também fazia frente à armada britânica. E isso também serviam para limitar as expectativas marítimas da Grã-Bretanha na bacia do Atlântico.

Em meados da década de 1750 a precária estabilidade que o domínio francês sustentava começou a desfazer-se. A força destrutiva era o poder crescente da Grã-Bretanha e da Rússia, numa altura em que o poderio militar francês atingira o seu limite prático sob o antigo regime. A Rússia já não podia ser excluída da Europa; enquanto o poder financeiro da Grã-Bretanha era então suficiente para custear uma marinha vencedora, dois exércitos americanos e os apoios necessários aos seus aliados na Europa. O resultado foi uma guerra continental e marítima que vergou a diplomacia Bourbon.

A desintegração política da Polónia, uma vasta e mal organizada república aristocrata que se estendia do Báltico ao mar Negro, foi um problema para a França. A Polónia era essencial para a diplomacia francesa no Leste da Europa. A sua sobrevivência limitava o domínio da Prússia e aumentava a sua dependência da boa vontade da França. Mas a partir de 1750 os reis eleitos da Polónia eram já fantoches da Rússia.

Numa espantosa inversão de antagonismo histórico, as monarquias Bourbon e Habsburgo resolveram as suas divergências e uniram esforços para reprimir uma Prússia insurgente. A aliança franco/austríaca juntou os dois Estados mais poderosos da Europa. Mas há sempre surpresas nestas coisas, através de uma resistência tenaz, e de uma série de vitórias extraordinárias, Frederico II, o Grande, humilhou os seus poderosos inimigos. A burocracia militarista que criara revelou-se um adversário à altura de uma França distante e de uma Áustria mal organizada. Frederico II não podia vencer completamente. Mas com o auxílio financeiro britânico e com os danos que os britânicos estavam a infligir aos interesses atlânticos da França, ele resistiu o tempo suficiente para levar os seus inimigos à mesa das conversações. 

Um novo czar fascinado com Frederico desistiu da guerra contra a Prússia. A paz que se seguiu em 1763 foi na verdade uma trégua de esgotamento. Os franceses foram expulsos do continente americano, mantendo as suas ilhas caribenhas, ricas em açúcar, e a sua plataforma de pesca na Terra Nova, nas ilhas de S. Pierre e Miquelon. Luisiana foi cedida à Espanha, que perdeu a Florida para a Grã-Bretanha. Mas a verdadeira decisão do Tratado de Paris foi que a França deixaria de ser o árbitro da Europa. O sistema francês fora quebrado. Os trinta anos seguintes assistiram à demolição progressiva do antigo equilíbrio geopolítico na Eurásia e no Mundo Exterior. A expansão dos britânicos já não podia ser travada.


sexta-feira, 29 de setembro de 2023

A força de vontade



Conatus é uma palavra do latim que foi muito usada pelos filósofos racionalistas do século XVII para caracterizar a força que a vida tem em perseverar. Diz Espinosa: cada coisa esforça-se, tanto quanto está em si, por perseverar no seu ser. Mas Schopenhauer [1788-1860] chamou-lhe vontade - princípio fundamental da natureza, a força cega, incontrolável, que move o mundo. Persistência inata de uma coisa para continuar a existir e se aprimorar. Esta "coisa" pode ser a mente, a matéria, ou uma combinação de ambos. 

É verdade que este termo já vinha da Antiguidade, mas só posteriormente teve a devida atribuição e o seu aprimoramento em subtileza. Primeiro Aristóteles e depois Cícero e Diógenes Laércio aludiram, cada qual, a uma conexão entre o conatus e outras emoções, em que estas são induzidas por aquele. Os seres humanos não desejam fazer alguma coisa por acharem que é bom fazê-lo. Pelo contrário, se o desejamos fazer, então é porque é bom. Em outras palavras, isso significa que o desejo humano é uma tendência natural que é legitimada pelo conatus.

Thomas Hobbes [1588–1679], também trabalhou o conceito de conatus, embora fora da influência dos autores clássicos.  Em vez de os seguir criticou as definições anteriores por falharem em explicar a origem do movimento. Trabalhar para este fim tornou-se o principal foco da obra de Hobbes nesta área. De facto, Hobbes reduz todas as funções cognitivas da mente às variações conativas. Hobbes descreve a emoção como o início do movimento. A vontade é a soma de todas as emoções. O conatus é a vontade de sobreviver custe o que custar. 

Em Espinosa [1632–16779], 
Conatus é um tema central. Cada coisa, à medida que existe em si, esforça-se para perseverar em seu ser. É a força para resistir à destruição. Cada coisa opõe-se a tudo o que lhe possa tirar a existência. Resistência à destruição em termos de um esforço para continuar a existir. O esforço de perseverança é a essência verdadeira de cada coisa. Vida e Natureza são um só, unificados por leis. Contrário à maioria dos filósofos do seu tempo, como Descartes, rejeitava a hipótese do dualismo mente-corpo. Não pode haver liberdade absoluta e incondicional da vontade, uma vez que todos os eventos no mundo natural, incluindo as escolhas e ações humanas, são determinadas por leis naturais. A liberdade é considerada no sentido de não ser restringida em contexto. Portanto, Espinosa coloca o conatus no lugar do livre-arbítrioOs animais evitam ferimentos, protegem-se quando ameaçados e curam-se a si mesmos quando feridos.

Uma pedra é um pedaço de matéria térrea. Um lago é uma porção de água. Um gato, até que esteja morto, não é um pedaço de gato. A individualidade de um gato é parte da sua natureza viva. O gato esforça-se para persistir na sua existência única. Pertence à essência do ser gato a persistência na sua existência. Esse esforço é um esforço do ser que envolve num só corpo e mente. Mas concebido no âmbito do mental, esse esforço é o que dizemos quando dizemos vontade. Às vezes, referimo-nos com a palavra desejo, especialmente quando descrevemos pessoas. Enfatizamos o elemento da consciência para dizer que as pessoas estão cientes da sua própria vontade, ou desejo, que em última razão é seu e de mais ninguém.

A ciência moderna veio fragmentar tudo ao máximo da redução da matéria. Tudo é reduzido à matéria. E a matéria é fragmentada em moléculas. As moléculas são fragmentadas em átomos. E assim sucessivamente pequeno até ao infinito em energia distribuída no espaço e no tempo. Mas para o filósofo os organismos vivos são outras coisas portadoras de algo mais como a sua identidade individual. E é este o problema da ‘consciência’ que resiste a qualquer tentativa de ser materializada pela ciência física. Consciência na medida em que é ciente de si própria. Uma identidade que atravessa o espaço e o tempo por via da memória. Essa é a nossa natureza, e esse é o nosso lugar no esquema das coisas.

Estamos naturalmente propensos a nos enganar, pois “a mente humana, todas as vezes que ela percebe uma coisa na ordem comum da natureza, não tem um conhecimento adequado nem de si mesma, nem do seu corpo, nem dos corpos exteriores, mas somente um conhecimento confuso e parcial. É dessas perceções confusas que derivam muitas das nossas crenças ordinárias. Nos termos de Espinosa na sua obra “Ética”: 
«Os homens enganam-se quando se consideram livres, e esta opinião depende somente do seguinte: de que eles são conscientes de suas ações e ignorantes das causas pelas quais elas são determinadas. Esta, portanto, é a sua ideia de liberdade: que eles não conhecem as causas de suas ações. Porque quando eles dizem que as ações humanas dependem da vontade, essas são palavras das quais eles não têm nenhuma ideia, já que nenhum deles sabe o que é vontade e como ela move o corpo; aqueles que se vangloriam do contrário e inventam uma morada e habitáculos para a alma provocam ou riso ou desgosto.»

De onde vem essa ordem natural das coisas? É essa a questão em Espinosa a que ele chama Deus ou Natureza. As causas dentro de um corpo que leva ao desejo ou à vontade é essa tal força chamada conatus. O Cosmos e as Causas na Natureza  não deixam de ser a causa da força dos nossos desejos ou vontades. As cadeias que nos prendem podem ser ou externas, operando sobre nós desde o lado de fora, tal como as causas que afetam uma pedra, ou internas, operando dentro e através de nós, como as operações do desejo. E quanto maior o conatus, mais internas são as cadeias. Ao juntarmos as nossas cadeias em nós mesmos, tornando-nos conscientes de sua força sobre nós, também nos livramos delas, obtendo a única liberdade que nós podemos e devemos desejar.


quinta-feira, 28 de setembro de 2023

Filosofia - Kant, Hegel, Marx



A questão da Crítica da Faculdade do Juízo é uma questão epistemológica e de filosofia da mente, de grande importância. A realidade é algo mais do que o que é apresentado através da estimulação dos sentidos. Para Kant, um juízo, é um ato mental de síntese. É uma articulação entre aquilo que nos é sensível – a percepção das coisas – e a sua representação que é conceptualizada com recurso à razão lógica. Há nesse ato mental de síntese a participação também daquilo a que chamamos intuição ou espontaneidade na unidade da autoconsciência. O objeto da Crítica da Faculdade do Juízo não são os juízos que fazemos quando fazemos matemática, mas os juízos ditos reflexivos de certo e errado; porque fazemos o que fazemos ou a sua finalidade, e por aí fora.

A mente não é uma substância. Nem deve ser entendida no quadro de uma metafísica da substância. A caracterização kantiana do mental é remetida para capacidades ou faculdades. Os juízos estéticos são apenas reflexivos. Um juízo é algo que se faz como o exercício de uma capacidade. Mas o argumento central da Crítica da Razão Pura, que aparece na Dedução Transcendental das Categorias, remete para a aplicabilidade das categorias à experiência. Kant estabelece uma relação entre a síntese discursiva do juízo e a síntese da multiplicidade do sensível.

É essencial também compreender a relação do juízo com a lógica, e para isso é preciso compreender o que Kant entendia por «lógica». A parte da Crítica da Razão Pura intitulada Lógica Transcendental, que contém a Analítica Transcendental e a Dialética Transcendental, abre com uma separação entre lógica geral e lógica transcendental. A primeira (a lógica geral) teria, segundo Kant, chegado completa da lógica aristotélica. Estaria feita e acabada de uma vez por todas. Mas a segunda - lógica transcendental - é de alguma forma o assunto da própria Crítica. É teoria do conhecimento e teoria da mente. A lógica geral é formal. É formal tanto quanto se abstrai do conteúdo da cognição. Lida somente com a forma do pensamento geral ou discursivo. A conceção kantiana de lógica tem a ver com as operações da mente.


A separação entre a filosofia e a ciência, devido à suposta ligação entre a ciência e um certo racionalismo afastado pela filosofia, não pode ser considerada consumada no próprio Kant. Pese embora a divisão do trabalho entre os teóricos da forma, os teóricos do sujeito - que analisam como a mente ou espírito opera nas suas várias vertentes; e os teóricos do conteúdo, os cientistas - que produzem conhecimento de primeira ordem. A Crítica da Razão Pura é uma obra de teoria da ciência e de teoria do conhecimento de acordo com a qual fazer teoria da ciência é um empreendimento central para compreendermos o que significa representar e conhecer racionalmente o mundo.

Hoje, com o alvoroço dos ativistas contra o capitalismo por causa da descarbonização da  emergência climática por causa do aquecimento global, está a voltar a curiosidade de saber que relação tinha Marx, afinal, com a filosofia. O Capital - a sua obra magna, é muito complexo, desde logo porque aí se discute tudo, desde a zoologia à política. Marx não tinha propriamente respeito por fronteiras disciplinares e era um leitor omnívoro. Desde a questão do valor de uso e valor de troca das mercadorias, até aos temas do fetichismo da mercadoria e das capacidades que o capitalismo tem de segregar ilusões sobre a sua própria natureza. Mas o Manifesto Comunista (1848), que foi encomendado pela Liga dos Comunistas, uma organização de trabalhadores, e escrito em parceria com Engels, que é ao mesmo tempo uma declaração de princípios teóricos e um exercício de propaganda política, não é um bom ponto de partida para conhecer Marx, dada a sua natureza panfletária, não necessariamente o melhor guia para o pensamento mais sofisticado de Marx.

Para compreender Marx é preciso conhecer Hegel. O trabalho de Marx tem lugar no contexto do movimento dos chamados Jovens Hegelianos, que não viam necessidade de interpretar a filosofia de Hegel como condutor para um conservadorismo político. Marx aceita a ideia de Feuerbach, de que Deus é inventado pelos homens à sua imagem. Mas em contraste com Feuerbach, Marx defende que não basta desconstruir teoricamente a alienação religiosa, mas é preciso compreender porque os homens caem nas malhas da religião. Só depois disso se podem transformar as condições materiais que provocam essa queda.

Marx introduz um novo socialismo, um socialismo mais científico, com o objetivo de substituir o socialismo em construção a que chamava socialismo utópico. Ao moralismo e à compaixão Marx opõe a compreensão científica e a transformação das condições materiais, fazendo acontecer o fim do Estado, o fim da propriedade privada, o fim da sociedade de classes, numa crítica do capitalismo. Os defeitos do capitalismo são para Marx a ineficiência, a exploração e a alienação dos homens.


Marx, na Ideologia Alemã (1845–1846), que é talvez a mais completa apresentação do que se chamaria «materialismo histórico», é um texto escrito em coautoria e não publicado em vida. Aí se começa a desenvolver a conceção materialista da história e os conceitos de que se necessita para ela, tais como condições materiais, meios e materiais de produção. É nesses termos que se descreverá a existência histórica desses seres produtivos que são os humanos na sua relação com a natureza. Os homens distinguem-se dos outros animais a partir do momento em que criam os seus meios de subsistência e a sua vida material. Os meios materiais de produção evoluem, as estruturas sociais e económicas ascendem e decaem historicamente. A estrutura económica é uma questão do desenvolvimento das forças produtivas. A superestrutura política, legal e cultural é explicada pela estrutura económica. O texto é escrito em polémica com os Jovens Hegelianos e contra a interpretação de Hegel feita por estes.
Uma primeira parte, mais longa, é escrita contra Ludwig Feuerbach; a segunda, contra Bruno Bauer; a terceira, contra Max Stirner.

Na obra "O Capital" - A ditadura do proletariado seria uma fase transitória em que o proletariado suprimiria todas as outras classes e a propriedade privada desapareceria, tornando-se social. Com isso, a função do poder político estaria terminada e o Estado desapareceria. O capitalista quer acumular mais capital. O seu objetivo é o lucro. Ora, este lucro, para Marx, vem exclusivamente do trabalho não pago ao trabalhador. O trabalhador é por isso roubado. O interesse do trabalhador reside em melhorar salário e condições de trabalho, o interesse do capitalista reside em aumentar o lucro. Hoje a questão premente parece ser a da repetição das questões de Marx no novo cenário da globalização. Marx concorda com Hegel em muita coisa na análise da História e também num ponto essencial quanto à conceção de consciência: as formas da consciência não surgem fora da História. Elas desenvolvem-se na interação dos homens com a natureza e com os outros homens.

O materialismo clássico, o da Grécia Antiga, tem para Marx a virtude de compreender a natureza. Para Marx, a natureza do mundo é fundamentalmente física. No entanto, não tem lugar para a enorme importância da sociedade e da História, para a interação dos humanos entre si. Mas para compreender a humanidade Marx precisará de Hegel. Será Hegel a fonte do seu arcaboiço conceptualmente humanístico, que não lhe é fornecido pela sua oficina do materialismo histórico, pela sua dialética materialista.


terça-feira, 26 de setembro de 2023

O cérebro humano não é um computador





Os nossos julgamentos e decisões são limitados pela posição que ocupamos no tempo e no espaço, bem como nossos interesses e conhecimento adquirido. Uma vez que um considerável corpo de evidências experimentais sugere que as funções cerebrais podem ser influenciadas de forma determinante pelo contexto, os autores desenvolvem um arcaboiço teórico plausível para guiar um entendimento mais profundo dos caprichos da mente humana, bem como do cérebro de onde ela emerge, com o conceito de cérebro relativístico.

Na base de experiências laboratoriais com ratinhos, e tendo como pressuposto de que dispomos de um ponto de partida para o conhecimento de um modelo de mundo proveniente da genética, e acrescido das memórias vivenciadas entretanto acumuladas, é postulada, como teoria, a hipótese do cérebro relativístico. Antes da chegada dos sinais que o corpo vai captando do meio ambiente e envia para o cérebro, dispomos de instruções antecipatórios sobretudo no córtex cerebral, mas em parte também no diencéfalo. Tais disposições antecipatórias enviam sinais para todo o corpo no sentido de guiar a sua exploração do meio ambiente. É a atividade elétrica de neurónios entre o córtex e o tálamo que modela o comportamento. E é assim que o estado interno do cérebro se ajusta ao mundo exterior. Nesse sentido, o cérebro relativiza o modelo que antecipou a fim de impor as suas condições ao mundo que o circunda.

Ronald Cicurel e Miguel Nicolelis - um matemático e um neurocientista - juntaram-se para potenciar as suas capacidades a fim de irem mais além do ponto crítico que ainda divide os cientistas que estudam o cérebro e os caprichos da mente humana. Ainda existem questões controversas no campo da neurociência, como por exemplo a possibilidade de os computadores digitais simularem completamente as funções mais elaboradas do cérebro humano. Combinando os conhecimentos matemáticos à volta dos algoritmos, com os conhecimentos neurobiológicos e evolucionários, estes dois investigadores refutam que uma máquina de Turing, não importa quão sofisticada, possa algum dia realizar tal simulação. 

A partir dessa tese, Ronald Cicurel Miguel Nicolelis propõem uma nova teoria para descrever o funcionamento do sistema nervoso humano, a que lhe dão o nome de hipótese do cérebro relativístico. É baseada em décadas de descobertas e achados neurofisiológicos, e psicológicos, que desafiam o dogma da Máquina de Turing. Tentam contrariar a hipótese pseudocientífica de que a simulação de seres humanos por máquinas está para breve. Na opinião dos autores, a crença de que máquinas digitais podem simular todos os comportamentos humanos não passa de mais uma utopia. 

Aquilo que pensamos ser a realidade resulta de encontros e desencontros entre dois sinais espaciotemporais – um gerado dentro do cérebro e o outro proveniente da transdução de estímulos do mundo exterior. A tão procurada verdade absoluta não existe, porque o cérebro não é um mero escravo daquilo que lhe chega captado pelos órgãos dos sentidos. Essa colisão neurofisiológica sintetiza o princípio da contextualização. A forma como o cérebro responde como um todo, seja em resposta a um estímulo sensorial, seja para produzir um comportamento motor particular, depende do seu estado global interno a cada momento. O que o cérebro faz é interpretar sinais sensoriais ao longo dos seus diferentes estados dinâmicos internos. O nosso cérebro influencia decisivamente a maneira como cada um de nós constrói um modelo de realidade. O nosso cérebro, dada a sua peculiar infraestrutura anatómica e fisiológica, cria uma variedade enorme de comportamentos por meio de propriedades emergentes de seus circuitos neurais.

Hoje sabemos que a produção da fala depende da ativação simultânea de várias áreas corticais e subcorticais do cérebro. A razão pela qual acidentes vasculares cerebrais produzem afasia é porque eles destroem, além da massa cinzenta, grandes porções da substância branca subjacente, que contém os feixes densos de fibras nervosas que conectam uma enorme rede de regiões cerebrais com o lobo frontal. A principal consequência dessa destruição maciça de cabos nervosos essenciais de comunicação é uma desconexão funcional catastrófica da rede neural responsável pela produção da fala. Assim, o paciente com um AVC que tenha atingido a conhecida área de Broca, perde a fala não pela destruição de uma única área cortical, mas sim como resultado de uma destruição irreparável das vias de comunicação do lobo frontal. Portanto, a ideia de que o córtex está dividido rigidamente em áreas funcionais especializadas, e que algumas dessas regiões processam informação unimodal, não corresponde totalmente ao que acontece realmente. 

O cérebro molda-se às solicitações do meio interno do corpo e do ambiente que lhe chegam pelos vários canais sensitivos. É uma estrutura multidimensional, mas como se fosse feita de plasticina para ser moldada numa configuração ótima de processamento de informação que levará, a cada momento da nossa existência, à génese da melhor solução neuronal possível para a realização comportamental. As áreas que se reforçam em diferentes regiões do córtex, para tarefas especializadas, não são imutáveis. Podem-se alterar rapidamente, de acordo com a tarefa a que o cérebro tem de corresponder.

Não existem fronteiras espaciais absolutas, ou fixas, entre as áreas corticais mais ou menos especializadas. O córtex é um continuum espaciotemporal neuronal. Funções e comportamentos são alocados ou produzidos por meio do recrutamento particular desse continuum de acordo com uma série de restrições, entre as quais se encontram a história evolutiva da espécie, o layout físico do cérebro determinado pela genética e pelo processo ontogenético, o estado da periferia sensorial, o estado dinâmico interno do cérebro, restrições do corpo que contém o cérebro, o contexto da tarefa, a quantidade total de energia disponível para o cérebro e a velocidade máxima de disparo de um neurónio. Neste sentido, o cérebro não é um mosaico hierárquico de áreas discretas, segregadas, altamente especializadas e virtualmente autónomas.


O conceito de relativismo nas ciências sociais e humanas tem má fama, e a controvérsia, extremamente acirrada, continua. Dessa forma, não é surpresa que o pensamento relativístico tenha gerado um intenso debate, envolvendo visões extremamente contraditórias sobre o que a prática da investigação científica de facto significa. Uma vez que todas as descobertas emergem de uma interação entre a mente e a natureza, os cientistas devem guardar uma certa reserva de ceticismo quanto às suas certezas. 
O conjunto de restrições fisiológicas que o processo da evolução natural impôs ao sistema nervoso desempenha o papel equivalente àquele que a luz tem na teoria da relatividade. Há uma constante biológica universal da qual não podemos fugir, e ao redor da qual os modelos cerebrais se criam. A evolução das espécies animais em termos gerais, e a dos mamíferos e primatas em particular, tem de ser considerada como a fonte dos limites ao redor do quais giram os mecanismos responsáveis pela génese da mente. A evolução natural define os limites biológicos para o corpo que o cérebro habita. E é daqui que temos de partir para a realização daquilo a que chamamos mente humana. Devido aos limites operacionais dos olhos, ouvidos, pele, língua e nariz, nós vemos, ouvimos, tocamos, provamos e cheiramos apenas uma pequena fração do mundo que existe à nossa volta.

O processo evolutivo também garantiu ao cérebro humano acesso a um precioso vislumbre de experiências passadas. Isso se dá porque vestígios das características de um planeta Terra que já não existe mais, enterrados dentro de nossos circuitos cerebrais, continuam a influenciar o modo como a mente opera, uma vez que eles ajudaram a moldar o espectro de estratégias neurofisiológicas e comportamentais que utilizamos para garantir a realização de nossos objetivos mais fundamentais, como sobreviver e reproduzir — e extrair o maior prazer possível dos breves interlúdios que separam essas duas tarefas árduas.

A capacidade de criar ferramentas poderosas, que trabalham em todas as escalas da natureza, expandiu consideravelmente o alcance e o impacto que o corpo humano pode ter no universo. Ao combinar essa capacidade de criar ferramentas com um potencial para aprender e adaptar por toda a sua existência, o cérebro humano especializou-se na fina arte de incorporar ou assimilar os próprios artefactos que ele cria como uma extensão contínua dos modelos mentais que definem o corpo que ele silenciosamente habita. Em vez de ser um pintor fiel e passivo das cenas criadas no mundo exterior, ou um espelho, o cérebro humano impõe o seu arcaboiço probabilístico em tudo o que o corpo é capaz de captar e manipular. Informação multissensorial que apenas capta uma amostra limitada do mundo exterior através da atividade elétrica interna que define o ponto de vista próprio do cérebro que foi formado por uma história individual longa e aleatória de encontros prévios. São esses encontros que preenchem aquilo que é designado por memória emocional, o repositório do que é encontrado a cada instante e catalogado como agradável ou desagradável, e que confere significado às sensações traduzidas na forma de emoções e sentimentos.

É assim que nem o nosso sistema nervoso, nem a mente humana que emerge dele, podem ser comprimidos na forma de um algoritmo computacional clássico. Por conseguinte, o cérebro humano como um todo é simplesmente não computável. Não existe nenhuma equação que poderia gerar coisas como beleza, prazer e boa poesia, para mencionar apenas três exemplos que provavelmente fazem parte de uma lista infinita. Para uma inteligência de máquina, tal máquina terá de se resignar a ser assimilada por um modelo cerebral e se transformar numa mera extensão do sentido do "eu" de alguém feito de sangue, carne e osso. Evidentemente, se a mente humana é não computável, existe pouca esperança de que físicos teóricos sejam capazes de produzir uma teoria reducionista radical o suficiente para extrair uma Teoria de Tudo.

segunda-feira, 25 de setembro de 2023

A ascensão e queda do Terceiro Reich

 



William Lawrence Shirer [1904-1993] foi um jornalista e escritor americano que cobriu diretamente o início da II Guerra Mundial. Este seu livro foi publicado em 1960. É 
um completo relato que vai do surgimento de Hitler na vida pública alemã até ao fim da Segunda Guerra em maio de 1945. Em 1969 publica A Queda da França – O Colapso da Terceira República com a mesma metodologia deste livro, onde relata os acontecimentos políticos da França de 1870 até 1940, com o armistício que marca a derrota da França. Publicou diversos outros livros sobre a Segunda Guerra, sobre a política europeia, e sobre Gandhi, que conheceu pessoalmente. 

Pelos fins de 1937, devido à mudança de função do jornal para a reportagem de rádio, transferiu-se de Berlim para Viena, que ele conhecera como jovem correspondente uma década antes. Apesar de ter passado na Alemanha a maior parte do período dos três primeiros anos cruciais, o seu novo posto, destinado a fazer a cobertura desse lado da Europa, permitiu-lhe uma boa perspectiva do Terceiro Reich e da sua relação com os países vizinhos que vieram a se tornar vítimas da agressão de Hitler, exatamente antes e durante a época em que a agressão teve lugar. 

Foi então para Viena precisamente na altura da anexação da Áustria por parte da Alemanha nazi. O que mais o assombrou foi o facto de na altura, à medida que os acontecimentos estavam a ocorrer mesmo à frente dos seus olhos, nem ele nem ninguém estar a compreender verdadeiramente o impacto que iriam ter nos anos seguintes. As conspirações e as manobras, as perfídias, as decisões fatais e os momentos de indecisão, e os dramáticos encontros dos participantes principais que modelavam o curso dos eventos, ocorreram clandestinamente, por baixo da superfície, escondidos dos olhos inquiridores dos diplomatas estrangeiros, dos jornalistas e dos espiões. Daí terem permanecido durante anos grandemente desconhecidos para todos, salvo para uns poucos que tomaram parte neles.

Para relatá-los, ele teve de aguardar que se aclarasse a confusão dos documentos e o testemunho dos principais atores sobreviventes do drama, a maioria dos quais não estava livre na época — muitos tinham ido parar aos campos de concentração nazis. Apesar de ser um relato de conhecimentos a posteriori, ainda assim foi útil, talvez, para um narrador de semelhante história, como ele, ter estado presente pessoalmente quando as principais crises e reviravoltas ocorreram. Desse modo, aconteceu que ele estava em Viena na noite memorável de 11 para 12 de março de 1938, quando a Áustria deixou de existir.

Durante mais de um mês, a Viena tão barroca, mas ao mesmo tempo de uma vida cultural e científica memorável, foi assaltada de uma forma impensável, de que resultaram profundas transformações. Kurt von Schuschnigg, que era o chanceler austríaco, classificou aquelas primeiras quatro semanas como as quatro semanas de agonia. Desde o acordo austro-alemão de 11 de julho de 1936, em que Schuschnigg, num anexo secreto ao tratado, fizera concessões de largo alcance aos nazis austríacos, que Franz von Papen, embaixador alemão especial em Viena, continuava o seu trabalho de sapa contra a independência da Áustria. Num longo relatório ao Führer no fim de 1936, ele falava de seus progressos. E um ano depois fez a mesma coisa, desta vez acentuando que somente submetendo o chanceler Schuschnigg à mais intensa pressão novos avanços podiam ser realizados. Seu conselho, apesar de pouco necessário, logo seria tomado de modo mais literal do que se poderia supor.

Os nazis austríacos, financiados e instigados por Berlim, empreenderam uma autêntica campanha de terror. Explosões ocorriam quase diariamente em alguma parte do país, e nas províncias montanhosas as demonstrações de massa, frequentemente violentas, enfraqueciam a posição do governo. Foram descobertos planos reveladores de que os assassinos nazis se preparavam para matar Schuschnigg. Tal com já haviam feito ao seu predecessor (Engelbert Dollfuss, em julho de 1934). Em documentos rubricados por Rudolf Hess, o delegado do Führer, estava claro que os nazis austríacos preparavam uma revolta geral para a primavera de 1938 e que, quando Schuschnigg tentasse reprimi-la, o exército alemão entraria na Áustria para impedir que o “sangue alemão fosse derramado por alemães”. Segundo Papen, um dos documentos falava da sua própria morte ou da do seu adido militar, general Muff, pelos nazis locais, como pretexto para a intervenção alemã. Papen estava marcado, pela segunda vez, para ser assassinado pelos truculentos nazistas, por ordem dos dirigentes do partido em Berlim. Papen recuperou o suficiente para perceber que Hitler evidentemente decidira agir mais drasticamente na Áustria, agora que se vira livre de Neurath, Fritsch e Blomberg. Realmente, Papen resolveu guardar cópias de toda a sua correspondência com Hitler “em lugar seguro”, que passou a ser a Suíça. “As campanhas difamatórias do Terceiro Reich” eram demasiado bem conhecidas por ele para lhe pôr a vida em risco em junho de 1934.

Nos últimos meses, o curso da diplomacia europeia não favorecera a Áustria. Mussolini se aproximara mais ainda de Hitler desde o estabelecimento do Eixo Roma-Berlim e não estava tão preocupado com a manutenção da independência da Áustria, como estivera na época do assassinato de Dollfuss, quando remeteu quatro divisões para o Passo Brenner, a fim de atemorizar o Führer. Tanto a Inglaterra, há pouco comprometida com Chamberlain numa política de apaziguamento de Hitler, como a França, acossada por grave discórdia política interna, haviam recentemente demonstrado pouco interesse em defender a independência da Áustria, no caso de um ataque de Hitler. E agora, com Papen, extinguiram-se os líderes conservadores do exército e do Ministério do Exterior alemães, que vinham exercendo alguma influência limitadora às desmedidas ambições de Hitler. Schuschnigg, homem de mentalidade estreita, mas em certo sentido inteligente, e que se achava bem informado, teve poucas ilusões acerca do agravamento da situação. Chegara a época da grande crise, sentia exatamente como sentira quando teve de promover o apaziguamento do ditador alemão, depois de os nazis terem matado Dollfuss.

Papen, embora destituído do cargo, a 5 de fevereiro de 1938 foi-se encontrar com Hitler que se encontrava na Kehlsteinhaus em Berchtesgaden, exausto da sua luta com os generais. Mas a energia de Hitler era inesgotável, e logo o embaixador demitido começou a interessá-lo com uma proposta, que ele já lhe apresentara antes, quando se encontravam em Berlim. Porque não tratar do assunto diretamente com Schuschnigg? Por que não convidá-lo a vir a Berchtesgaden para uma conversa particular? Hitler achou a ideia interessante. Esquecido de que acabara de afastar Papen, ordenou-lhe para regressar a Viena a fim de organizar o encontro.



Kehlsteinhaus (Ninho da Águia) no cume da montanha Kehlstein em Berchtesgaden, oferecida pelo partido nazi alemão ao Führer aquando do seu 50º aniversário. O acesso ao elevador era feito através de um túnel.
Schuschnigg prontamente aquiesceu. Mas, em virtude da fraqueza de sua posição, estabeleceu certas condições. Devia ser informado, com antecedência, dos pontos precisos que Hitler desejava discutir e devia estar seguro, de antemão, de que o acordo de 11 de julho de 1936, no qual a Alemanha prometia respeitar a independência da Áustria e não interferir em seus assuntos internos, seria mantido. Além disto, o comunicado do fim da reunião devia reafirmar que ambos os países continuariam a aceitar as consequências do tratado de 1936. Schuschnigg não queria dar oportunidade de o leão entrar em sua casa. Papen saiu apressadamente a fim de conferenciar com Hitler.

Então Papen voltou a encontrar-se com Schuschnigg com a resposta afirmativa do Führer: de que o acordo de 1936 continuaria inalterado, e que ele simplesmente pretendia discutir “certas falsas interpretações e pontos de conflito que ainda persistiam” desde que foi assinado. Isto não era tão preciso como o chanceler austríaco havia solicitado, mas disse que estava satisfeito com a resposta. O encontro foi marcado para a manhã de 12 de fevereiro. Esta data tinha o seu significado especial: a chacina dos social-democratas austríacos pelo governo de Dollfuss, do qual havia participado 
Schuschnigg. A 12 de fevereiro de 1934, 17 mil homens das tropas do governo e da milícia fascista dirigiram o fogo da artilharia sobre os apartamentos dos trabalhadores, em Viena, matando um milhar de homens, mulheres e crianças, e ferindo uns três mil a quatro mil. As liberdades democráticas foram suprimidas e daí em diante a Áustria foi governada, primeiro por Dollfuss, e depois por 
Schuschnigg, como uma ditadura clerical/fascista. Certamente mais branda que a variedade nazi, mas ainda assim, privou o povo austríaco de suas liberdades políticas e submeteu-o à maior repressão de que havia conhecido sob os Habsburgo nas últimas décadas da monarquia. 

Na noite anterior, Schuschnigg, acompanhado do seu subsecretário para os negócios estrangeiros, Guido Schmidt, partiu num comboio especial, sob o mais rigoroso sigilo, para Salzburgo, de onde tomaria um automóvel na fronteira, na manhã seguinte, para se dirigir a Berchtesgaden e encontrar-se com Hitler na montanha. A viagem veio a ser fatal. A manhã de 12 de fevereiro de 1938 estava muito fria, mas Papen lá estava na fronteira para receber Schuschnigg. Papen assegurou que Hitler estava em excelente disposição nesse dia. E, em seguida, disse: «O Führer esperava que o dr. Schuschnigg não desse importância à presença em Berchtesgaden de três generais que haviam chegado completamente por acaso: Keitel, o novo chefe do OKW; Reichenau, que comandava as forças do exército na fronteira bávaro/austríaca; e Sperrle, encarregado da força aérea nessa área. Schuschnigg terá respondido que não se importaria, já que de especial não tinha “muito que escolher na questão”. Intelectual jesuiticamente treinado, mantinha-se em guarda.

Mesmo assim, ele não estava preparado para o que iria suceder. Hitler, envergando uma túnica parda das tropas de assalto, com calças negras, e ladeado pelos três generais, deu as boas-vindas ao chanceler austríaco na entrada da vila. Schuschnigg sentiu que era uma saudação amigável, mas formal. Dentro em pouco, viu-se a sós com o ditador alemão no espaçoso gabinete do segundo andar, cujas grandes janelas descortinavam os imponentes picos nevados dos Alpes e, além, a Áustria, terra natal de ambos.

Kurt von Schuschnigg, de 41 anos de idade, era, como todos que o conheceram haviam de concordar, um homem de maneiras impecáveis, no velho estilo austríaco, e para ele não era artificial começar uma conversação com graciosas referências a respeito da paisagem magnífica, do belo tempo que fazia e de palavras agradáveis acerca da sala que, por certo, havia sido palco de muitas conferências importantes. Adolf Hitler atalhou-o bruscamente: “Não nos reunimos aqui para falar da bonita vista ou do tempo.” A seguir, começou a tempestade: "Vocês fazem tudo para impedir uma política amigável. A história inteira da Áustria é justamente um ato ininterrupto de alta traição. Assim foi no passado e hoje não é diferente. Semelhante paradoxo histórico deve agora ter seu fim, com bastante atraso. E neste momento posso dizer-lhe diretamente, Herr Schuschnigg, que estou inteiramente decidido a pôr um fim a tudo isso. O Reich alemão é uma das grandes potências e ninguém levantará a voz se ele resolver seus problemas fronteiriços.

Chocado pela explosão de HitlerSchuschnigg tentou mostrar-se conciliatório e ainda permanecer em seu terreno. Respondeu que discordava sobre a questão do papel da Áustria na história alemã “A contribuição da Áustria nesse aspecto é enorme”, insistiu. Hitler volta à carga: "Absolutamente nenhuma. Repito, absolutamente nenhuma. Toda a ideia nacional foi sabotada pela Áustria durante a história; e, na verdade, toda esta sabotagem constituiu a principal atividade dos Habsburgo e da Igreja Católica. Seja como for, digo-lhe mais uma vez que as coisas não podem prosseguir dessa forma. Tenho uma missão histórica a cumprir e a cumprirei, pois a providência me destinou para isso; quem não estiver comigo será esmagado. Escolhi o caminho mais difícil jamais trilhado por qualquer alemão. Realizei a maior façanha da história da Alemanha, maior que a de qualquer outro alemão. E não pela força, tenha em conta. Tenho sido acompanhado pelo amor de meu povo. 

É evidente que a deformada versão da história austro/germânica, dada por Hitler continuava inalterada, remontava à sua juventude em Linz e Viena. Após uma hora de conversação, Schuschnigg pediu a seu interlocutor para enumerar suas queixas, e que faria tudo para remover os obstáculos a uma melhor compreensão, tanto quanto fosse possível. Hitler ainda ripostou: "Isso é o que diz, Herr Schuschnigg. Afirmo, porém, que resolverei o chamado problema austríaco de uma forma ou de outra." Lançou em seguida uma diatribe contra a Áustria por fortificar a fronteira contra a Alemanha, acusação que Schuschnigg refutou. Hitler deu novamente, pela última vez, a oportunidade a Schuschnigg de chegar a um acordo. Ou encontravam uma solução, ou então os acontecimentos seguiriam o seu curso. Que condições exatamente propunha o chanceler alemão? Hitler respondeu que podiam discuti-las nesse dia à tarde”.

Durante o almoço, Hitler aparentava estar “num excelente estado de espírito". Seu monólogo alongou-se a respeito de cavalos e de casas. Estava para construir o maior arranha-céus que o mundo jamais vira. “Os americanos verão”, comentou para Schuschnigg, “que a Alemanha está construindo maiores e melhores edifícios que os Estados Unidos”. Quanto ao oprimido chanceler austríaco, Papen notou que ele se mostrava “aborrecido e preocupado”. Fumante inveterado, não lhe haviam permitido fumar na presença de Hitler, mas depois do café, no salão contíguo, Hitler desculpou-se e Schuschnigg pôde pela primeira vez apanhar um cigarro. Conseguiu também contar a seu subsecretário do Exterior, Guido Schmidt, as más notícias, que logo seriam piores.

Quando a Alemanha recompôs suas tropas na Renânia, em 1936, Schuschnigg vislumbrou com alguma preocupação a possibilidade de Hitler invadir a Áustria. E chegou a assinar acordos de não agressão com Hitler, um dos quais comprometia a Alemanha a não se intrometer nos assuntos internos austríacos. Contudo, muitos políticos austríacos eram a favor dos nazis e influenciavam as decisões do governo. Enquanto isso, Hitler pressionava a Áustria num acordo que pedia a amnistia dos assassinos de Dollfuss e a revogação da proibição sobre a recomposição do partido nazi austríaco. Em consonância com 
Wilhelm Miklas, o presidente austríaco, Schuschnigg anunciou a amnistia dos assassinos de Dollfuss e o ingresso de três ministros nazis ligados a Hitler. 

A seguir, Hitler fez uma declaração pela rádio estatal, dizendo que os povos de língua alemã não poderiam e nem deveriam viver separados da Alemanha, com referências explícitas à Áustria e à Boémia checa. Dias depois, Schuschnigg declarou ao Parlamento que não concederia mais nada à Alemanha e que a Áustria deveria ser um país livre e independente. Vários pró-nazis austríacos reagiram com manifestações, algumas violentas. Schuschnigg dirigiu-se aos operários e simpatizantes do partido social-democrata, mas o apelo não é atendido. Em março, o chanceler apela para um referendo no qual a população austríaca decidiria sobre a liberdade da Áustria. Hitler e o partido nazi alemão repudiam a iniciativa de Schuschnigg, que pediu apoio a Mussolini, mas este lhe afirmou que um plebiscito seria um erro, afirmando: Se o resultado é positivo, dirão que foi manipulado; se o resultado é contrário, será insustentável para o governo; se for incerto, será inútil.

Contudo, Hitler já havia decidido pela invasão da Áustria. Tendo enviado primeiramente a Roma o príncipe Phillip von Hessen, para que garantisse que Mussolini não interviesse em favor da Áustria em nenhum caso, a Alemanha deu prosseguimento à operação, que ficou conhecida como Operation Otto. Com a pressão dos ministros austríacos pró-nazis Glaise-Horstenau e Seyß-Inquart sobre Schuschnigg e o presidente Miklas, estes decidiram revogar o referendo. Hitler declara abertamente que Schuschnigg deveria ser demitido e que em seu lugar deveria ser nomeado o ministro Seyß-Inquart, o qual teria pedido uma intervenção militar alemã para "acalmar" a situação austríaca.


Schuschnigg,1935

Com tamanha pressão, Schuschnigg demite-se. O presidente Miklas se nega a nomear Seyß-Inquart como chanceler austríaco, mas sofre grande pressão e dois dias depois acaba por demitir-se também. Suas funções passam para o novo chanceler pró-nazi. Schuschnigg tentou em vão ser exilado; foi preso pelos nazis, obrigado a viver em regime semiaberto numa pequena propriedade rural durante 16 meses, chegando a sofrer humilhações de soldados da SS. Foi posteriormente enviado para o campo de concentração de Dachau. Posteriormente fo transferido para o campo de Sachsenhausen.

Em abril de 1945 foi transferido para a Província de Bolzano, próximo do Lago Pragser. Foi libertado pelas tropas americanas a 5 de maio de 1945. Como Schuschnigg, vários austríacos foram presos porque não aceitaram a anexação da Áustria. Um grande exemplo foi o de Otto de Habsburgo, filho do último imperador austríaco, Carlos I. Em 1947, Schuschnigg foi viver para os Estados Unidos da América. Em 1948, é professor de Direito Internacional no Missouri, na Universidade de Saint Louis. Em 1968 retornou à Áustria, aderindo ao partido popular austríaco - Österreichische Volkspartei. Faleceu em Mutters, perto de Insbruck, em 18 de novembro de 1977, com 79 anos.

sábado, 23 de setembro de 2023

Emaranhamento quântico



Será que a consciência é algo que a Física não tenha nada a dizer? Ou será que a questão da consciência passa pela sua implementação prática para ser compreendida? Até que um modelo seja desenvolvido por engenharia reversa, os físicos da conceção mecanicista atestam que a consciência não se qualificará para ser estudada pelos físicos. Mas a física quântica nega essa negativa. Ela insinua algo além do que habitualmente consideramos física, além do que habitualmente consideramos o “mundo físico”.

Desde o teorema de Bell que o elemento humano é uma das componentes fundamentais da física. 
O teorema de Bell é o legado mais importante do físico teórico John Stewart Bell. Publicado em 1964, estabelece a distinção absoluta entre a mecânica quântica e a mecânica clássica. Ou seja, não existe regime de variáveis ocultas locais que possam reproduzir todos os resultados da mecânica quântica. Na física clássica, a interferência humana, e o da sua livre escolha, era problema que não se colocava. Mas agora, a misteriosa mecânica quântica, infinitamente pequena, estende-se a objetos maiores, e nos mostra o estranho mundo em que estamos metidos.

Cientistas do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia dos Estados Unidos exibiram em 2008 o primeiro dispositivo num chip que podia ser razoavelmente descrito como um “computador quântico”. Iões aprisionados num circuito associado num computador podem executar pelo menos 160 operações diferentes, embora com uma acuidade de apenas 94%. Para qualquer uso prático, a precisão teria de ser enormemente melhorada, e um computador quântico prático teria de ligar muitos desses dispositivos por emaranhamento quântico.

Em 2011, um artigo na revista Nature reportou um esforço cooperativo de cientistas de cinco laboratórios diferentes para mostrar interferência com moléculas orgânicas grandes. A maior delas continha 430 átomos. Isso estabeleceu um novo recorde em colocar objetos individuais em dois lugares diferentes ao mesmo tempo. Além disso, contrariando a ideia inicial relacionada com a temperatura, o facto de moléculas terem temperaturas internas de várias centenas de graus centígrados demonstrou que as funções de onda posicionais não sofreram decoerência quântica quando acopladas com movimentos térmicos internos. 

Análises de pesquisadores da Universidade de Genebra e da Universidade de Bristol mostraram em 2009 que experiências ao nível quântico, que estabeleciam uma violação da desigualdade de Bell, eram possíveis com olhos humanos como detetores num local. Como o olho humano não pode detetar confiavelmente um fotão isolado, um dos dois fotões gémeos é amplificado, clonando-o por emissão estimulada. O que se alega aqui não é somente que pode haver emaranhamento entre dois sistemas microscópicos, mas também que pode haver emaranhamento entre um objeto microscópico e um sistema humano macroscópico. Ainda que seja assim, pela perda de fotões para o ambiente, o que seria de se esperar era que o emaranhamento se desmanchasse. 

Ao nível quântico, dois objetos quaisquer, que interajam, tornam-se emaranhados. Depois disso, o que quer que aconteça com um deles influencia instantaneamente o outro, não importa quão distantes estejam um do outro. Isso tem sido exaustivamente demonstrado com pares de partículas microscópicas, e até mesmo com dispositivos quase macroscópicos. Objetos emaranhados é algo complexo. Há uma conectividade que é universal. Isso é, obviamente, uma asserção que vai muito além de qualquer coisa demonstrável. O emaranhamento complexo seria essencialmente emaranhamento nenhum. No entanto, estudos recentes sugerem que o emaranhamento persiste por mais tempo do que os cálculos convencionais haviam demonstrado. Os eletrões permanecem emaranhados de dez a cem vezes mais tempo que o esperado. Parece que ninguém dava importância a uma molécula magneticamente sensível que as aves possuem e usam como bússola. 

A maioria dos físicos aceita tacitamente que a mecânica quântica, em última análise, esbarra no problema da observação consciente. No entanto, os físicos enfrentam o problema partindo do princípio de que eles devem lidar com o mundo físico como sendo independente do observador humano. Não há nada que conheçamos mais intimamente que a experiência consciente. Todavia, é muito difícil de explicar. É um hiato explicativo com o qual Kant já se havia deparado, tendo-o remetido para um conceito muito particular e a que lhe deu o título de "Transcendental". 

Na conversa corrente, “consciência” tem a ver com a nossa perceção do mundo de livre vontade. Não se pode saber como é "ser consciente" de outro modo sem ser através do nosso sentido de presença na primeira pessoa. No entanto, sabe-se o que é quando observamos objetivamente alguém consciente na terceira pessoa. Seja como for, as duas perspetivas são diferentes uma da outra. Sendo que na perspetiva da terceira pessoa é aquela que é relacionada com a experiência por parte de um observador. Será que a observação da consciência através de uma experiência física poderá ser feita por um robô? É claro que ainda se pode manter em aberto o que se entende por “observação”.

O enigma quântico surge a partir da premissa de que experimentadores podem escolher livremente entre dois tipos de experiência. No entanto, escolher a esquerda, ou a direita, gera resultados contraditórios. Assumimos que os experimentadores têm “livre-arbítrio” para fazer tal escolha. Mas em termos quânticos o livre-arbítrio dos experimentadores é negado. Isto é, as escolhas são sempre determinadas pela eletroquímica dos seus cérebros. Para fugir desse enigma, umas vezes nega-se o livre-arbítrio, outras vezes não, seguindo o princípio da indeterminação de Gödel e do gato de Schrodinger, a negação da determinação contrafactual. Essa negação deve incluir a premissa de um mundo que conspira jogando aos dados.

As discussões atuais sobre o livre-arbítrio são mal colocadas quando se concentram mais estreitamente em questionar se as escolhas que fazemos são de certo modo predeterminadas pela eletroquímica do nosso cérebro. Essa questão do livre-arbítrio transcende o enigma quântico. Mas o “livre-arbítrio” aparece constantemente em conexão com o enigma quântico. Há as causas últimas e primeiras. E há as causas intermediárias. O livre-arbítrio é do domínio das causas intermediárias. Há margem de manobra para além da genética e do meio ambiente que é contingente e contextual. O livre-arbítrio também é contingente e contextual.

Para estudar cientificamente o livre-arbítrio não basta estudar apenas o cérebro, porque a maior parte dos seus efeitos precisam de um corpo de carne, de sangue, de água e até de ar. É neste sentido que podemos dizer que a consciência não está no cérebro, ou não se observa no cérebro, embora seja gerada no cérebro, mas observa-se numa pessoa de corpo inteiro. O livre-arbítrio, tal como a consciência, não se encaixa imediatamente na realidade do cérebro. É como se fosse um fantasma à espreita em qualquer lugar do corpo. E é por parecer um fantasma que a maioria dos físicos dizem que a consciência não passa de uma ilusão. Mas, embora não possa demonstrar a outra pessoa como é a sensação de dor que estou a sentir agora numa perna cruzada, essa pessoa sabe que a dor pode existir, e com toda a certeza não é destituída de sentido.

Embora seja difícil encaixar o livre-arbítrio numa visão de mundo científica, nós mesmos não podemos duvidar dele seriamente. Nós, com o nosso senso comum, ficamos perplexos com a resistência mostrada pelos físicos em relação à realidade óbvia do livre-arbítrio. Negar o livre-arbítrio ficando-se no pressuposto da eletroquímica do cérebro, não deixa de ser, ou arbitrário, ou aleatório. Irá dar ao mesmo, porque se entra num ciclo vicioso. A teoria quântica, ao contrário da física clássica, não é uma teoria do mundo físico independente das livres decisões tomadas pelo experimentador, ou seja, pelo seu livre-arbítrio. Recordando o enunciado definidor da interpretação de Copenhague, feito por Pascual Jordan, as observações não só perturbam o que deve ser medido, como as produzem. Aqui “observação” é um termo aberto, mas a criação da realidade física por qualquer tipo de observação é difícil de aceitar. No entanto, não é uma noção nova.

O mundo tem um conteúdo, tem coisas, tem substância. Chama-se fenomenologia à forma como nós acedemos ao mundo, que é o seu aspeto. Mas, para depois darmos significado ao aspeto ou à aparência que as coisas se nos apresentam, precisamos da linguagem. Esse é o processo de consciencialização do mundo físico exterior e do mundo subjetivo interior. Há verdades, mas não verdades absolutas ao nível das nossas convicções. A realidade, que tem a ver com a verdade, é uma dimensão do mundo que não pode ser fundada somente na subjetividade a priori do sujeito; mas também não pode ser apenas a fundação das coisas no mundo tal como elas são. Há sempre alguma incompletude em todo o conhecimento humano. No processo cognitivo da ciência física é o mundo que tem de se adaptar à matemática produzida pelo nosso cérebro. Mas, na medida em que a matemática é uma criação humana, devíamos acreditar no oposto, sermos nós a ter de nos adaptar ao mundo em si, o mundo real.

sexta-feira, 22 de setembro de 2023

O cérebro não é a mente - pensamento, linguagem, mundo



 Kant, Hegel e Husserl - autores fundamentais para começarmos a compreender a filosofia necessária para penetrarmos neste mistério que é a fenomenologia da mente, em que a mente não é o cérebro, e que a inteligência artificial nunca conseguirá reproduzir na sua totalidade a inteligência natural.

Para chegarmos à realidade dispomos da perceção e da linguagem. A perceção tem a ver com a referência das coisas por via dos sentidos e da experiência; a linguagem tem a ver com o suporte da Razão. Não podemos ter certeza de que estamos certos acerca do que é a realidade. Pode ser que sim, mas não podemos garanti-lo, concluíram os céticos. Como perguntou Frege nos Fundamentos da Aritmética (1884), ironicamente e com uma certa estupefação: será mesmo possível que alguém pense que a quantidade de cálcio no meu cérebro é relevante para compreender a verdade do teorema de Pitágoras? Ou como Husserl, por seu lado, observa nas Ideen II: os lobos do meu cérebro não aparecem na minha consciência, logo, não são, por essa razão, objeto de análise para a Fenomenologia.

Kant tinha argumentado que, em princípio, qualquer conclusão a que cheguemos por meio de qualquer uma de nossas faculdades não será sobre a realidade. Nenhuma forma de cognição, tendo em vista que ela deve operar em certo âmbito, poderá colocar-nos em contacto com a realidade. Por princípio, pelo facto de o nosso cérebro ter estruturas específicas, é ele que modela a forma como vemos a realidade e não a realidade que modela o nosso cérebro. O exemplo do membro fantasma do amputado diz-nos que o cérebro continua com a representação de um corpo inteiro. 

Kant, ao contrário dos primeiros céticos que continuavam a associar a verdade com a realidade, redefiniu a verdade como um conceito epistemológico subordinado à subjetividade. Mas se a mente, em princípio, está dissociada da realidade, então não faz sentido dizer que a verdade corresponde a uma relação entre o cérebro e a realidade. A verdade deve ser tão somente uma relação interna de coerência. Como a Razão, em tese, está separada da realidade, entramos em polémica. O ponto em Kant é que ele considera que nada podemos saber de tudo o que esteja fora do nosso cérebro. Kant rejeita a objetividade. Estando a Razão tão distante da realidade, o resto são detalhes.

Para Hegel a Razão é fundamentalmente uma função criativa, não cognitiva. Ela não vem a conhecer uma realidade preexistente; é ela quem traz à existência toda a realidade. De maneira mais destacada, a razão de Hegel opera por meios dialéticos e contraditórios, e não de acordo com o princípio aristotélico da não contradição. Opondo-se à crença de Kant de que as categorias subjetivas da Razão são necessariamente imutáveis e universais, Hegel argumentava que essas próprias categorias estão sujeitas a mudanças.

Então Hegel começou por dizer, em termos de um místico, que tanto se podia provar que o universo teve um início no tempo, como igualmente provar, com a mesma consistência, que o universo é eterno. Pode-se provar que o mundo é composto de partes mais simples e, também, que não é; que somos dotados de livre-arbítrio e que o determinismo estrito é verdadeiro. As antinomias de Kant mostram não que a Razão seja limitada, mas que precisamos de um novo e melhor tipo de razão, que acolha as contradições e veja a realidade total como algo que evolui a partir de forças contraditórias. O Nada só existe porque existe o Ser
Se tudo evolui graças ao choque das contradições, então o que é metafisicamente e epistemologicamente verdadeiro em certa época será contradito pelo que é verdadeiro em outra, e assim por diante. Para Hegel, a mente e todo o ser do indivíduo são uma função das forças mais profundas do universo operando sobre ele e por intermédio dele.

A um nível bruto, ou mais básico da nossa subjetividade, existe a consciência de algo que tem a ver com as nossas experiências interiores que damos pelo nome de sensações. E é perdida temporariamente, quando nos encontramos a dormir sem sonhos, ou anestesiados, que nos dizemos inconscientes. É da consciência que partimos para a perceção do mundo exterior. E foi quando apareceu Husserl com as suas investigações lógicas. Mas foi o último Husserl, o Husserl da Krisis, que corrigiu o apelo à origem da consciência, ao mundo da vida. Autores como Merleau-Ponty, e muitos outros, vieram depois e aproveitaram o seu caminho.

Heidegger disse que a ciência não pensava. Mas o que ele queria dizer era que a ciência não se metia no mistério do Ser. As ciências apenas se interessam com o modo do Ser. Como ele existe. Os métodos científicos exploram o ente do Ser. Ao contrário de Heidegger, Wittgenstein chega à filosofia através da lógica e da matemática. O seu primeiro e único livro em vida, de 1921–1922, o Tratado Lógico-Filosófico, resulta dos estudos, feitos com Bertrand Russell, sobre os fundamentos da lógica e da matemática. A linguagem e a lógica são temas essenciais do Tratado. No entanto, aquilo que interessa a Wittgenstein é a linguagem em geral, tal como esta permite o nosso pensamento sobre o mundo, e não apenas questões técnicas de filosofia da lógica ou da matemática.

Apesar da suposta divisão entre o primeiro e o segundo Wittgenstein, é inevitável ouvir nele ecos da Crítica da Razão Pura de Kant, ecos da ideia de delimitar o cognoscível a partir de dentro. É inevitável recordar o propósito da Dialética Transcendental da Crítica da Razão Pura em que Kant se ocupa a desfazer as ilusões (naturais) da Razão. Mas talvez não seja inevitável em qualquer circunstância: é claro que estes ecos não serão ouvidos se se chegar a Wittgenstein a partir da filosofia de língua inglesa, uma tradição em que histórica e conceptualmente ressoa sobretudo o empirismo, a tradição de John Locke, George Berkeley e David Hume. Embora considere que o empirismo está muito próximo de ser a orientação acertada em filosofia, e que é extremamente importante considerarmos, ao pensarmos sobre o pensamento, o que nos inclina a sermos empiristas, Wittgenstein é, decididamente, tal como Frege (o seu «mestre»), um anti-empirista.

Por infelicidade não há nada mais difícil de reproduzir em literatura do que um homem que pensa. Um grande descobridor, quando certa vez lhe perguntaram como conseguia ter tantas ideias novas, respondeu: “pensando nisso o tempo todo”. E com efeito, pode-se dizer que as ideias inesperadas só aparecem porque esperamos por elas. Constituem em grande parte um resultado positivo do caráter, de inclinações constantes, de ambição persistente, de ocupação incansável. Como deve ser monótona essa persistência!

Por outro prisma, a solução de uma tarefa intelectual não acontece de modo muito diferente do que quando um cão, levando um bastão na boca, quer passar por uma porta estreita; ele vira a cabeça para a esquerda e a direita, até o bastão entrar, e nós agimos de modo muito parecido, apenas com a diferença de que não tentamos fazer isso de modo inconsciente, mas, pela experiência, já sabemos mais ou menos como proceder.

E embora uma cabeça inteligente tenha muito mais habilidade e experiência nos movimentos do que uma cabeça tola, a solução também para ela chega de forma inesperada, acontece de repente, e sentimos com vago espanto que os pensamentos se fizeram por si, em vez de esperarem pelo seu autor. Essa sensação de assombro é o que muita gente chama atualmente de intuição, depois de antigamente a chamarem inspiração, e acreditam dever enxergar nela algo de supra pessoal; mas é apenas algo impessoal, isto é, a afinidade e solidariedade das próprias coisas que se encontram dentro de uma cabeça.

Quanto melhor a cabeça, tanto menos se percebe dela nesse processo. Por isso o pensamento, enquanto não está acabado, é um estado muito miserável, parecido com uma eólica de todas as volutas do cérebro; e quando fica concluído, já não tem a forma de um pensamento, como se experimentou, mas tem a forma de algo pensado, o que infelizmente é impessoal, pois o pensamento se dirige para fora e se comunica ao mundo. Praticamente não se consegue surpreender o momento entre o pessoal e o impessoal, quando alguém pensa, e por isso o pensamento é um fato tão embaraçoso para os escritores, que estes o preferem evitar.

O homem sem qualidades, porém, estava refletindo. Pode-se deduzir que ao menos em parte isso não era assunto pessoal. O que era, então? Um mundo que entra e sai; aspetos do mundo que se vão juntando numa cabeça. Não lhe ocorrera nada de importante; depois que se ocupara da água como exemplo, nada lhe ocorrera senão que a água é um ente três vezes maior que a terra, mesmo que se considere apenas o que todo mundo reconhece como água, rio, mar, lago, fonte. Por muito tempo se acreditou que é aparentada com o ar.

[de O Homem Sem Qualidades, Robert Musil]

quinta-feira, 21 de setembro de 2023

Como será o mundo em 2052?



Pouco mais de um ano após milhares de alemães se entusiasmarem a derrubar o Muro de Berlim à marretada, Tim Berners-Lee, um cientista de computação britânico da Organização Europeia de Pesquisa Nuclear, enviava do seu escritório na fronteira entre a França e a Suíça a primeira comunicação bem-sucedida entre um Protocolo de Transferência de Hipertexto e um servidor, criando assim a rede mais famosa do mundo, a World Wide Web. Tinha começado a era da Internet.

Como teria sido o dia da queda do Muro de Berlim, se já houvesse as redes sociais que há hoje, ninguém pode dizer. As redes sociais que sabemos passaram a ajudar e a coordenar manifestações políticas um pouco por todo o mundo. Mas ainda hoje, alguns regimes repressivos astutos, como os do Irão, China, Rússia - também têm usado essas ferramentas para vigiar e reprimir. Para entender porque é que as barreiras ao poder se tornaram mais frágeis e porosas, precisamos examinar transformações mais profundas – mudanças que começaram a se acumular e acelerar mesmo antes do fim da União Soviética que por sua vez datou o fim da Guerra Fria. Os maiores desafios ao poder na nossa época procedem de mudanças essenciais experimentadas pela grande maioria dos habitantes do planeta – em como vivemos, onde vivemos, e por quanto tempo e com que grau de bem-estar.

Se não aparecer, entretanto, mais nenhum grande "cisne negro" no caminho do "Aquecimento Global", em 2052 farei 100 anos, tanto faz, vivo ou morto. E a população mundial será quatro vezes mais do que era 100 anos antes. Esse aumento populacional – assim como a sua estrutura etária, distribuição geográfica, longevidade, saúde, bem como os seus maiores níveis de informação, educação e consumo – tem tantas implicações que nenhum indivíduo sozinho consegue vislumbrar se estiver demasiado apegado às notícias difundidas pelos órgãos de informação padronizados que se costumam designar apenas por “média” [Meios de Comunicação Social].

E o que é que as notícias têm passado nos últimos tempos: catástrofes naturais; recessão económica; Guerra na Ucrânia. Todo o tipo de ameaças, desde assaltos à mão armada, traficantes de droga e seres humanos, violência doméstica, terrorismo. E, todavia, a Terra se move. Uma coisa é o mundo que nos é dado pela matemática. Outra coisa é o mundo visto pelos olhos de cada um, o mundo que em vocabulário kantiano é o mundo dado pelos sentidos, mas que não é o mundo da realidade. Um facto surpreendente é que os dados estatísticos não coincidem com a perceção que temos da realidade através dos noticiários que nos entram nas nossas casas diariamente pelos órgãos de comunicação social, para simplificar, a televisão.

Na Ásia, em 1980, a percentagem da população a viver na extrema pobreza era estimada em 77%. Em 1998 tinha caído para 14%. E neste século XXI, para além de continuar a descer na China, também está a descer na Índia, no Brasil, e também em alguns países de África. Entre 1970 e 2006, a pobreza na África também declinou numa percentagem que ninguém estava à espera. Numa rigorosa análise estatística, a redução da pobreza é notavelmente generalizada: não pode ser explicada como algo que ocorreu apenas nos países grandes, ou num conjunto de países que possuam alguma característica geográfica ou histórica que os beneficie. Países de todo o tipo, incluindo aqueles com inconvenientes históricos e desvantagens geográficas, experimentaram reduções na pobreza. Na América Latina, em 2013, e pela primeira vez, o número de pessoas pertencentes à classe média ultrapassou a população pobre.

Segundo o Banco Mundial, entre 2005 e 2008, da África Subsaariana à América Latina e da Ásia à Europa de Leste, a proporção de pessoas que vivem em extrema pobreza (aquelas com renda inferior a 1,25 dólar por dia) caiu pela primeira vez desde que existem estatísticas sobre pobreza global. Considerando que a década incluiu a crise económica que começou em 2008, a mais profunda desde a Grande Depressão de 1929, esse avanço é ainda mais surpreendente. Apesar da crise, as economias dos países mais pobres continuaram a expandir-se criando mais emprego. Uma tendência já com mais de três décadas, em que 660 milhões de chineses saíram da pobreza. 

É claro que ainda há dois mil milhões de pessoas que vivem em condições intoleráveis. E ter uma renda de três ou cinco dólares por dia, em vez de 1,25 dólar que o Banco Mundial assume como a linha de extrema pobreza, ainda significa ter uma vida de luta e privação. Mas também é inegável que a qualidade de vida aumentou mesmo para os mais pobres e vulneráveis. Segundo o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) das Nações Unidas, que combina indicadores de saúde, educação e renda para dar uma medida global do bem-estar, os padrões de vida têm aumentado desde 1970 por toda a parte no mundo.

Agora vejamos o que está a acontecer à classe média dos países desenvolvidos. Este é o outro lado da equação do desenvolvimento sustentável. O progresso dos países pobres contrasta claramente com a situação da classe média na Europa e nos Estados Unidos. Uma classe média que desfrutou durante décadas de crescimento e prosperidade, mas que está agora a perder. Há todo um oceano de trabalhadores e funcionários, que apesar de trabalharem e auferirem o seu salário já não conseguem cumprir todas as obrigações financeiras para sustentar todos os compromissos de acordo com a qualidade de vida que tinham alcançado desde os anos 1970, que para além disso passaram a viver mais anos. Foram as principais vítimas das crises financeiras deste sáculo XXI. 

Foi neste século que a Internet alcançou a sua maturidade com as redes sociais, quando aconteceu a chamada Primavera Árabe. Teve como ponto de partida a Tunísia, o país do norte de África com o melhor desempenho económico e o mais bem-sucedido em fazer ascender os pobres para a classe média. Na realidade, este é o motor que move muitas das transformações políticas destes tempos, como aquele que tem vindo a acontecer na Europa, onde mais uma vez é a França onde tal radicalização tem a maior expressão. A classe média francesa é uma classe média impaciente, porque também é a mais bem informada. Quer manter os diretos já adquiridos nem que seja a ferro e fogo. E não há governo que o consiga deter, tanto mais quando são os próprios governos que dão os piores exemplos pela via da grande corrupção. A intolerância popular em relação à corrupção é muito poderosa para derrubar governos, muito mais do que as oposições institucionalizadas. U
ma pessoa mais bem alimentada é uma pessoa mais saudável. Como mais bem informada também é mais instruída. E tudo isso faz com que tenha melhores relações. E uma pessoa bem relacionada tem mais poder, porque a união faz a força.

quarta-feira, 20 de setembro de 2023

O Oeste e o Leste da Eurásia na Revolução Industrial



Podemos começar por reconhecer que em finais do século XVIII emergiam dois potentados comerciais nos dois extremos da Eurásia: no ocidente era a região do rio Tamisa centrada por Londres; no oriente era a região do Delta do Yangtzé centrada em Xangai.

Por conseguinte, não era toda a Europa, nem toda a China. Grande parte do Sul e Leste da Europa era pobre e atrasada, mesmo para os padrões da época. As regiões mais prósperas, para além da Inglaterra, a França, os Países Baixos, a Renânia, o Norte da Itália e partes da Catalunha também competiam no comércio internacional, só vindo depois a seguir as cidades comerciais do Sul e Leste da Alemanha, bem como o Império Austríaco. Esta era a hierarquia de lugares que Adam Smith elencava em "A Riqueza das Nações", lugares onde campeava uma economia comercial avançada. 

O Delta do Yangtzé era uma grande região de manufaturas, produzindo tecido de algodão para o resto da China, 
comparável ao coração comercial da Europa. Com uma densa população, muitas cidades e uma extensa rede de comunicações fluviais ligando-a ao médio e alto Yangtzé (uma enorme região interior) e ao resto da China (através do Grande Canal). A China beneficiava de leis que tornavam a compra e venda de terras mais fácil do que na Europa, e de um mercado de trabalho em que a servidão praticamente desaparecera (ao contrário da Europa). Numa sociedade organizada e bem regulamentada, com baixos níveis de tributação e um Estado que promovia ativamente as boas práticas (normalmente na agricultura), parecia não haver qualquer razão evidente para que o progresso material segundo os critérios de Adam Smith não continuasse indefinidamente, numa escala comparável à da Europa.

Foi a capacidade única de certas comunidades europeias para inventar e aplicar soluções tecnológicas que lhes deu o grande avanço. Como simples enunciação isso é inegável. Mas o que tornou os europeus tão precoces em termos tecnológicos? Afinal, em capacidade de invenção a Europa estava muito atrás da China. Também não era óbvio que o contexto institucional para a mudança tecnológica fosse muito mais favorável na Europa do que noutros lugares – na China, por exemplo. Além disso, a transformação industrial da Europa não foi o resultado de uma única grande invenção.

O crescimento da economia da Grã-Bretanha foi relativamente lento, o que indicia que o caminho foi feito de mudanças cumulativas e não de uma explosão tecnológica. A concorrência entre os Estados foi crucial para tornar a propriedade mais segura, numa economia de mercado que premiava a eficiência. A somar a tudo isto havia um tesouro inesperado chamado América. A vantagem da Europa não residia nas suas estruturas sociais ou políticas, nem mesmo no seu avanço no pensamento científico. Resultava antes do seu dote de carvão, uma sorte geológica, e da depredação das colónias.

Em meados do século XVIII o sudeste europeu já tinha começado a atrair os vizinhos otomanos para a troca de produtos agrícolas por importações manufaturadas. As exportações de seda do Irão tinham diminuído. O Irão possuía poucas matérias-primas para exportação, e muito menos manufaturas. Na Índia a situação era diferente. A indústria artesanal indiana era altamente produtiva. Talvez 60% das exportações manufaturadas mundiais no século XVIII fossem produzidas na Índia, a fábrica de têxteis do mundo. As musselinas da Índia tinham imensa procura como artigos de luxo na Europa, enquanto os seus algodões mais baratos eram reexportados para a África Ocidental para serem trocados por escravos. 

Gujarate, Malabar, Coromandel e Bengala eram regiões comerciais com fortes ligações internacionais. A terra cultivável era abundante. No entanto, ao contrário do que acontecia na China e na Europa, a margem de manobra para a construção de uma grande economia integrada estava severamente limitada. Em grande parte do subcontinente, o transporte no interior era dificultado pela ausência de vias navegáveis. As rotas comerciais no Norte da Índia foram gravemente afetadas pelo declínio do Império Mogol. A difusão de competências técnicas – elemento crucial no progresso tecnológico – sofria com as restrições de um sistema de castas baseado em ofícios. Um ambiente implacável, bem como a turbulência política que se instalou de modo geral depois de 1750, desencorajavam o investimento de longo prazo. Talvez também seja verdade que a sociedade indiana ao nível dos camponeses e tecelões fosse demasiado independente e móvel para aceitar a disciplina laboral imposta, por exemplo, aos operários fabris na Grã-Bretanha.

Na China havia poucas hipóteses de mudança. A área geográfica imediatamente ao sul do curso inferior do rio Yangtzé é a região que abrange a cidade de Xangai. 
Tem sido considerada como uma das regiões mais prósperas da China devido à sua riqueza em comércio e desenvolvimento humano muito alto. A maioria das pessoas da região fala dialetos chineses Wu como suas línguas nativas. A região enfrentava a concorrência de muitos centros no interior onde os alimentos e as matérias-primas eram mais baratos, e que também podiam aproveitar o desenvolvido sistema de transporte fluvial da China. A própria perfeição da economia comercial da China permitia que novos produtores entrassem no mercado com relativa facilidade ao mesmo nível tecnológico. Nestas circunstâncias, a mecanização – mesmo que tecnologicamente prática – pode ter estado condenada à partida. E embora a China possuísse carvão, estava longe de Xangai, e não podia ser transportado sem custos elevados. Assim, para a China como um todo, o incentivo e os meios para adotar a via rápida industrial eram escassos ou inexistentes.

As regiões mais desenvolvidas da Europa não enfrentavam estas limitações. Mesmo excluindo a questão muito debatida de se saber se as instituições comerciais, o fornecimento de crédito e de capital e a disseminação de conhecimentos úteis estavam mais bem organizados do que na China (tornando o progresso tecnológico mais provável), parece evidente que a crescente procura de alimentos, combustíveis e matérias-primas era satisfeita com maior facilidade. E os avanços tecnológicos fizeram aumentar a produtividade dos terrenos agrícolas existentes. E onde a procura de combustível era maior, esta podia ser satisfeita através de amplos fornecimentos de carvão. A Europa dispunha também da vantagem adicional do comércio colonial, cujos lucros dependiam em parte do fruto do trabalho escravo. Tinha o seu dote inesperado de terras livres, sobretudo na América do Norte. O resultado geral foi que o núcleo europeu teve mais tempo disponível para aproveitar as oportunidades do progresso técnico e uma oportunidade muito maior de dar o salto tecnológico para o uso da energia a vapor com a sua dependência do carvão.

Por volta de 1800 a Revolução Industrial já laborava a todo o vapor.
 Parte da Europa passava por uma versão intensificada de mudanças económicas. Isso acontecia na Grã-Bretanha, cuja trajetória económica foi bastante mais abrupta do que a das regiões igualmente prósperas da Europa continental. Neste caso, três fatores foram decisivos. Em primeiro lugar, nos oitenta anos depois de 1760 houve uma transferência enorme no emprego da agricultura para a indústria. No início deste período a indústria empregava cerca de 24% da mão de obra masculina; em 1840 o número já subira para 47%. Este deslocamento ocorreu sem aumentar o custo dos produtos agrícolas, a condição fundamental para a expansão industrial. Assim, enquanto em 1760 um trabalhador agrícola podia alimentar um trabalhador industrial, oitenta anos depois já podia alimentar quase três. Em segundo lugar, embora este enorme aumento da mão de obra industrial (e não um grande aumento da produtividade geral) fosse uma particularidade notável da Revolução Industrial da Grã-Bretanha, não menos terá sido a sua grande concentração na produção de têxteis, sobretudo algodões. Os ganhos de produtividade concentraram-se sobretudo na indústria têxtil.

Os britânicos foram pioneiros na utilização da energia a vapor e do carvão à escala industrial. O vapor livrou a Grã-Bretanha das limitações do uso de combustíveis que afligiram a China, e abriu caminho a processos industriais com grandes necessidades de energia. O carvão e o coque foram os meios indispensáveis para aumentar a oferta de ferro-gusa, que mais do que triplicou entre 1788 e 1806. O vapor e o ferro juntos produziam mais ferramentas e máquinas duradouras do que aqueles que se podia fazer de madeira. A energia a vapor foi também aplicada aos têxteis na última década do século XVIII, na produção de fio, ajudando a fazer baixar ainda mais os seus custos. E na década de 1820 já começava a ser usada para o transporte por água e terra – uma inovação que iria conferir enormes vantagens comerciais e estratégicas aos seus utilizadores. Os fabricantes britânicos, duma maneira geral, já tinham substituído grande parte dos produtos indianos no seu próprio mercado interno e ultrapassado a Índia.

A Índia, em 1820, já se havia tornado um importador líquido de algodões. Com a chegada da tecelagem mecânica depois de 1830, a vantagem da Grã-Bretanha em fios estendeu-se aos tecidos. Em meados da década de 1830 os artigos de algodão constituíam já mais de metade das exportações britânicas para a Índia, e a Índia já se havia tornado o segundo maior mercado da Grã-Bretanha para as manufaturas de algodão. Esta inversão foi espantosa. Ao derrubar a longa primazia da Índia no mercado mundial dos têxteis, os britânicos podiam levar o seu comércio para qualquer mercado na Ásia cuja porta estivesse aberta. O mercado da Índia tinha sido aberto à força pelo poder imperial britânico. Faltava saber se esse poder também podia ser exercido noutros mercados.