domingo, 30 de outubro de 2022

Que sabedoria emana da experiência?


Em pleno século XXI esta é uma pergunta incisiva: Podemos fazer o mesmo tipo de abordagem que fizemos para a Ásia em relação à África subsariana? Os autores ditos pós-modernos incutiram a ideia que o folclore, as histórias, as máximas sábias, a tradição, a arte e a religião contêm e exprimem mundividências. O material contém de facto mundividências associadas aos povos e línguas de diferentes partes de África, dos iorubas da Nigéria e Benim, aos zulus de KwaZulu-Natal. Caso associemos um sentido alargado e extremamente indefinido à dita “sabedoria”, permitindo-nos abranger qualquer mundividência com essa designação, então seria sabedoria a mundividência implícita em Homero (por exemplo), baseada na interação entre as divindades do Olimpo e a humanidade, assim como as tradições indígenas australianas, que são antigas e elaboradas. 

Todas as culturas e civilizações orientais desenvolveram corpos de pensamento na forma de debates detalhados e escritos, em quase tudo como metafísica, epistemologia, ética e política. São exemplos o Advaita Vedanta, o confucionismo e o budismo. Kungzi (VI a.C.), a quem os missionários portugueses do século XVI chamaram Confúcio, é a primeira das figuras a indignar-se com a crise de sua época. Confúcio pregava a reestruturação social de sua civilização, tendo como modelo o passado ideal dos Zhou, mas através de uma metodologia totalmente inovadora. Confúcio examinou as causas da corrupção de sua sociedade, e concluiu que a degradação era promovida pelo não cumprimento das vontades da natureza. No entanto, o próprio Confúcio achava que a sua proposta ética não podia fundamentar-se em nenhum critério religioso.

Xunzi acreditava que a cultura era uma construção humana para sua própria preservação, e apenas aqueles que não fossem instruídos tornar-se-iam elementos perigosos. Um mínimo de noção de civilidade tornava qualquer ser mais sociável. O Ser, mau por natureza, “precisava de professores e leis” para ser modificado. No entanto, se tal mister fosse alcançado, haveria uma harmonia perfeita. Xunzi aperfeiçoou, ainda, a questão da retificação dos nomes. Introduzida por Confúcio, ela tratava da necessidade de verificar como eram aplicados e entendidos certos conceitos, conceções e termos empregues no discurso filosófico, social e político. O objetivo não era apenas o de criar definições específicas para cada palavra, mas também, de torná-la compreensível e acessível a todos; e, por fim, de garantir a sua aplicabilidade no quotidiano, evitando confusões. O embate das ideias de Mêncio com as de Xunzi nos dá um exemplo perfeito da capacidade de interpretação variada que estes autores possuíam.

No período Han (III a.C. — III d.C.), quando o Confucionismo foi adotado pelo Estado como filosofia oficial, a China passou por um período de grande renovação cultural e intelectual derivada destas propostas. No entanto, a escola dos letrados sofreu, também, grandes deturpações, transformando-se inclusive numa espécie de “religião estatal”, algo que Confúcio provavelmente lastimaria. O principal desvio, no entanto, foi a transformação do comportamento ritual em um separador da cultura chinesa em relação ao resto do mundo. Confúcio foi capaz de elaborar uma proposta, em muitos aspetos invejável, para a resolução de problemas sociais que parecem atravessar a existência humana com persistência e tenacidade, sobre os quais apenas a vontade íntima é capaz de se sobrepor.

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Será correto colocar as mundividências identificáveis nas tradições africanas na mesma categoria das obras de Platão ou Kant? No mínimo, será preciso dizer que há uma grande diferença aqui. Ora, o que está aqui em causa é a questão da visão pós-colonial dos arautos do chamado politicamente correto. É uma tentativa de tornar o uso inequívoco de termos como uma perspetiva desacreditada, a sustentada pelos colonizadores brancos do passado, de que as culturas africanas são “inferiores”. O “rei da África ocidental” seria suficiente, só por si, para mostrar a mentira dessa perspetiva. Muitos autores pós-modernos foram beber inspiração ao sentido de pertença das terras nativas por parte de pessoas que se formaram nos departamentos de estudos culturais de algumas universidades ocidentais, sobretudo do Reino Unido e Estados Unidos.

Um autor, como Blyden chamou orgulhosamente “negritude”, a prontidão com que a sua sofisticação política e cultural agarrou a oportunidade para se expressar. Edward Wilmot Blyden III (19 de maio de 1918 - 10 de outubro de 2010) foi um diplomata, cientista político e educador nascido na Serra Leoa. Ele se destacou como educador e colaborador do discurso pós-colonial sobre o autogoverno africano, e do não alinhamento do Terceiro Mundo. Ele é um intelectual africano, digamos assim, no sentido de ter nascido e de ter vivido em África; mas o seu pensamento emerge do mesmo contexto geral da filosofia ocidental.

Este tipo de ponto de vista leva os proponentes do conceito de “filosofia africana” a afirmar que negar a sua existência representa “uma destituição implícita de África”, e até “a sugestão de um insulto”. Porém, adotar esse ponto de vista defensivo é perder a oportunidade de responder à questão-chave: “Há alguma coisa a um tempo distintamente africano e fundamentalmente filosófico na cultura ou tradição africana?”

A taxinomia de um outro autor, Henry Odera Oruka, das práticas culturais e intelectuais africanas que, segundo ele, obedecem a uma tradição africana incluem mundividências tradicionais, provérbios sábios, pontos de vista políticos, e o estudo “hermenêutico” da gramática das línguas africanas. Por conseguinte, o termo “filosofia africana” procura outro significado, e pretende tê-lo por razões que se prendem com a identidade pós-colonial, e não com a verdade ou a compreensão per se. Esta controvérsia não é uma questão de os filósofos de outras partes do mundo rejeitarem a admissão no seu clube, por razões que não são intrínsecas à questão do objeto e método da filosofia; os principais filósofos africanos, como Paulin Hountondji, Kwasi Wiredu e Kwame Anthony Appiah, opõem-se à abordagem etnofilosófica.

É mais persuasivo observar que se pode dizer que as tradições e perfis que estruturam as sociedades e as relações sociais, e as justificações oferecidas para essas tradições, constituem uma ética do ponto de vista da etnografia. O conceito de ubuntu é um conceito de interesse significativo para o pensamento ético da tradição humanista. É uma definição da existência moral humana, em termos de mutualidade, um reconhecimento da interconexão entre pessoas, que é essencial e, consequentemente, constitutiva, definidora e criadora da própria humanidade. “Humanidade” — expressamente no sentido combinado de “humano” e de “humanitário” — é exatamente o que ubuntu quer dizer nas línguas angunes como o zulu, o xossa e o ndebele: -ntu é “humano” e o prefixo ubu- faz o trabalho que o sufixo “-idade” desempenha em português, nomeadamente, forma um substantivo abstrato a partir de um concreto.

É a gentileza, a bondade, a generosidade, a cordialidade, a compaixão, o cuidado, atitudes e ações humanitárias, e o reconhecimento da interdependência que confere um direito livremente reivindicado de reciprocidade — e, simultaneamente, uma obrigação voluntariamente aceite. O resumo mais breve destes valores humanísticos é a asserção “Sou por causa de ti”. Apesar de ser um conceito antigo, a sua saliência contemporânea deve-se à promoção levada a cabo pelo autor Jordan Kush Ngubane em meados dos anos 1950, e a sua adoção por parte do arcebispo Desmond Tutu, quando era presidente da Comissão da Verdade e da Reconciliação, depois do fim do apartheid na África do Sul. Emergem, sem dúvida, da natureza essencialmente social dos seres humanos, fazendo da reciprocidade uma atitude evolutivamente vantajosa.

terça-feira, 25 de outubro de 2022

Deng Xiaoping




As fervilhantes cidades chinesas, os booms de construção, os engarrafamentos monstruosos, o dilema não comunista de uma taxa de crescimento ocasionalmente ameaçada pela inflação e, em outras ocasiões, encaradas pelas democracias ocidentais como um baluarte contra a recessão global — tudo isso era inconcebível na insípida China maoista de comunas agrícolas, economia estagnada e uma população usando roupas padronizadas e professando fervor ideológico extraído do “Pequeno Livro Vermelho” de citações de Mao que havia destruído a China tradicional e deixou o entulho como blocos de construção para uma modernização completa.

Deng Xiaoping [1904-1997] teve a coragem de basear a modernização na iniciativa e resistência dos chineses individualmente. Ele aboliu as comunas e promoveu a autonomia nas províncias para introduzir o que chamou de “socialismo com características chinesas”. A China de hoje — como a segunda maior economia mundial e o mais amplo volume de reservas em moeda estrangeira, e com inúmeras cidades exibindo orgulhosos arranha-céus — é um testemunho da visão, da tenacidade e do bom senso de Deng Xiaoping.

Deng trilhou um caminho indeciso e improvável para chegar ao poder. Fora o secretário-geral do poderoso Comité Central do Partido Comunista até sua prisão, em 1966, acusado de ser um “companheiro de jornada do capitalismo”. Em 1973, havia regressado ao Comité Central mediante a intervenção pessoal de Mao e contra a oposição dos radicais no Politburo. Embora Jiang Qing o tenha publicamente vilipendiado pouco depois de seu regresso a Pequim, ele foi claramente importante para Mao. Este, num comportamento atípico, pediu desculpa pela humilhação de Deng durante a Revolução Cultural.

A China era um país pobre, dissera ele, necessitado de mudanças científicas e de aprendizagem com países avançados — o tipo de confissão que os líderes chineses nunca haviam feito antes. A visitantes australianos convidou-os a observar o lado atrasado da China em suas viagens, não apenas as realizações do país, mais um comentário sem precedentes para um líder chinês.

Deng chegou a Nova York em abril de 1974 como parte de uma delegação chinesa, tecnicamente chefiada pelo ministro das Relações Exteriores, para uma sessão especial da Assembleia Geral das Nações Unidas que lidava com o desenvolvimento económico. Deng havia sido designado para substituir Zhou Enlai, o primeiro-ministro, e, de certa forma, exorcizá-lo. Um substituto informal de Zhou, que permaneceu, porém, com o título largamente simbólico de primeiro-ministro. Pouco depois de Mao ter iniciado a Revolução Cultural em 1966, Deng havia sido destituído de seu Partido e de suas posições no governo. Ele passara os sete anos seguintes primeiro numa base do exército, depois no exílio na província de Jiangxi, cultivando legumes e trabalhando meio período como operário em uma oficina de consertos de tratores. Sua família foi considerada ideologicamente incorreta e não teve proteção alguma dos Guardas Vermelhos. Seu filho, Deng Pufang, foi atormentado pelos Guardas Vermelhos e empurrado do topo de um prédio na Universidade de Pequim. Mesmo com as costas quebradas, Deng Pufang teve negado o atendimento médico em um hospital. Após o episódio, ficou paraplégico.

Entre os inúmeros aspetos extraordinários do povo chinês está o modo como muitos deles conservaram um comprometimento com sua sociedade independentemente de quanto sofrimento e injustiça ela possa ter-lhes infligido. A Revolução Cultural é tratada, às vezes obliquamente, como uma espécie de catástrofe natural que teve de ser suportada, mas não é algo sobre o qual se fale como tendo determinado a vida da pessoa depois disso.

De sua parte, Mao parecia ter refletido muito dessa mesma atitude. Ele mandou chamar os quatro marechais do exílio quando precisou de conselho sobre como posicionar a China diante da crise internacional de 1969. Desse modo também Deng voltou aos altos escalões de governo. Quando Mao decidiu tirar Zhou, Deng era a melhor — senão a única — reserva estratégica disponível para dirigir o país.

Homem compacto e rijo, Deng entrava no ambiente como alguém impulsionado por alguma força invisível, pronto para o trabalho. Deng raramente perdia tempo com amenidades, tampouco achava necessário suavizar os seus comentários envolvendo-os em parábolas, como Mao tendia a fazer. Ele não cobria a pessoa de solicitudes, como Zhou fazia. Zhou entendia inglês sem tradução e ocasionalmente falava a língua. Depois de 1974, emergindo da devastação da Revolução Cultural, Deng, com algum risco pessoal, uma vez que Mao continuava no poder, começou a moldar uma modernização que iria transformar a China numa superpotência económica.

Em 1974, quando Deng regressou de seu primeiro exílio, não dava a impressão de que seria uma figura de relevância histórica. Ele não articulava nenhuma grande filosofia; ao contrário de Mao, não fazia qualquer asserção arrebatadora sobre o destino único do povo chinês. Seus pronunciamentos pareciam enfadonhos e muitos giravam em torno de detalhes práticos. Deng falava da importância da disciplina entre a classe militar e da reforma no Ministério da Indústria Metalúrgica. Fez uma solicitação para aumentar o número de vagões, e impedir os condutores de beber no trabalho e regularizar as paragens de almoço. Esses eram discursos técnicos, não transcendentes.

Na esteira da Revolução Cultural e dada a presença ameaçadora de Mao e da Gangue dos Quatro, o pragmatismo comum era uma posição ousada em si mesma. Por uma década, Mao e a Gangue dos Quatro haviam defendido a anarquia como meio de organização social, a “luta” sem fim como meio de purificação nacional. Após a Revolução Cultural ter elevado a busca do fervor ideológico a selo de autenticidade, a conclamação de Deng a uma volta à ordem, ao profissionalismo e à eficiência era uma proposição ousada. Em 26 de setembro de 1975, em comentários intitulados “A prioridade deve ser dada à pesquisa científica”, Deng tocou em diversos temas que seriam sua marca registada: a necessidade de ênfase em ciência e tecnologia para o desenvolvimento da economia chinesa; a profissionalização da força de trabalho chinesa; e o encorajamento do talento e da iniciativa individuais — precisamente as qualidades que haviam sido paralisadas pelos expurgos políticos, o fechamento de universidades durante a Revolução Cultural e a promoção de indivíduos incompetentes com base na ideologia.

Acima de tudo, Deng insistia que a China enfatizasse a competência profissional acima da correção política (mesmo ao ponto de encorajar as buscas profissionais de indivíduos “excêntricos”) e recompensar os indivíduos por se destacar em seus campos de atuação. Isso era uma mudança radical na ênfase de uma sociedade em que funcionários do governo e unidades de trabalho haviam ditado até os mínimos detalhes educacionais, profissionais e pessoais nas vidas dos indivíduos por décadas. Se Mao levava as questões para a estratosfera das parábolas ideológicas, Deng subordinava as buscas ideológicas à competência profissional.

Deng definia as prioridades chinesas tradicionais como “a necessidade de conquistar a consolidação, a estabilidade e a unidade”. Embora sem ocupar uma posição de poder supremo, com Mao ainda ativo e a Gangue dos Quatro permanecendo influente, Deng falou duramente sobre a necessidade de superar o caos reinante e “pôr as coisas em ordem”.

Em 8 de janeiro de 1976, Zhou Enlai sucumbiu à longa batalha contra o cancro. Sua morte evocou uma manifestação de pesar público sem precedentes na história da República Popular. Deng aproveitou a ocasião do funeral em 15 de janeiro para louvá-lo por suas qualidades humanas. Após as manifestações em memória de Zhou, Deng foi expurgado outra vez de todas as funções. Só escapou de ser preso porque o Exército de Libertação Popular o protegia em bases militares, primeiro em Pequim, depois no sul da China. Cinco meses depois, Mao morreu. Sua morte foi precedida (e, na visão de alguns chineses, profetizada) por um catastrófico terramoto na cidade de Tangshan.

Deng Xiaoping emergiu de seu segundo exílio em 1977 e começou a articular uma visão da modernidade chinesa, depois do curto período de Hua Guofeng que havia realizado um ato de transcendentes consequências. Um mês após a morte de Mao, Hua Guofeng se aliou com os moderados — e vítimas altamente influentes da Revolução Cultural — para prender a Gangue dos Quatro. Deng retomou os cargos no establishment político e militar, mas em todos os aspetos da hierarquia formal era subordinado de Hua Guofeng. Hua mantinha todos os cargos-chave, que herdara de Mao e Zhou: era o presidente do Partido Comunista, primeiro-ministro e presidente da Comissão Militar Central. Contava com o benefício do endosso explícito de Mao.

O Partido Comunista devia se mostrar menos intrusivo e o governo tinha de ser descentralizado. Deng enfatizava a importância da descentralização em um país vasto com imensa população e diferenças regionais significativas. Mas esse não era o principal desafio, a tecnologia moderna tinha de ser introduzida na China, dezenas de milhares de estudantes chineses seriam mandados para o exterior (“Nada temos a temer com a educação ocidental”).

Deng prevaleceu porque havia ao longo das décadas construído ligações dentro do Partido e especialmente no Exército de Libertação Popular, e porque operou com destreza política muito maior do que Hua. Como um veterano de décadas de lutas internas no Partido, aprendera como fazer argumentos ideológicos servir a propósitos políticos. Os discursos de Deng durante esse período foram obras-primas de flexibilidade ideológica e ambiguidade política. Sua principal tática era elevar os conceitos de “procurar a verdade nos factos” e integrar “teoria e prática” ao “princípio fundamental do Pensamento de Mao Zedong” — proposição raramente apresentada antes da morte de Mao.

Deng rompeu com o precedente estabelecido por Mao minimizando sua própria capacidade em lugar de se apresentar como um génio em determinado campo. Ele incumbia seus subordinados de inovar, depois endossava o que funcionava. Conforme elaborava sua visão doméstica, Deng crescia aos olhos do mundo. Em 1980, sua ascensão foi completa. No Quinto Congresso do Comité Central do Partido Comunista em fevereiro de 1980, os seguidores de Hua Guofeng foram rebaixados ou removidos de seus cargos; os aliados de Deng, Hu Yaobang e Zhao Ziyang, foram indicados para o Comité Permanente do Politburo. As maciças mudanças de Deng não foram atingidas sem significativas tensões sociais e políticas, culminando enfim na crise da praça Tiananmen de 1989. Mas, Deng havia domado e reinventado o legado maoista, lançando a China de cabeça em um rumo de reforma que iria, no devido tempo, arrogar para si uma influência que seu desempenho e sua história o autorizavam a fazer.

quarta-feira, 19 de outubro de 2022

Direitos Humanos e diferenças culturais



Existirão diferenças irredutíveis entre as tradições culturais europeias e asiáticas e as suas crenças sejam elas religiosas ou políticas? Será que estarão irremediavelmente divididos quando se trata de direitos humanos? É verdade que os porta-vozes dos governos de vários países asiáticos têm discutido a pertinência e o fundamento dos direitos humanos universais. Fazem-no frequentemente em nome de “valores asiáticos” específicos, que diferem das prioridades ocidentais. Insistem muitas vezes em afirmar que o apelo à aceitação universal dos direitos humanos reflete a imposição dos valores ocidentais sobre as outras culturas.

Os direitos humanos na China são um tema altamente contestado, e são revistos periodicamente pelo Comité de Direitos Humanos das Nações Unidas. O governo da República Popular da China tem discordado com frequência. A Amnistia Internacional regularmente tem apresentado evidências de que a República da China viola as liberdades de expressão, movimento e religião de seus cidadãos e de outras pessoas de sua jurisdição. As autoridades da República da China afirmam definir os direitos humanos de maneira diferente, de modo a incluir os direitos económicos e sociais, bem como os direitos políticos, tudo em relação à “cultura nacional” e ao nível de desenvolvimento do país.

Que fundo de verdade se poderá atribuir a essa grande dicotomia cultural entre as civilizações ocidentais e não ocidentais a respeito da liberdade e dos direitos? O conceito dos direitos humanos universais no sentido amplo do Iluminismo, de direitos de todo ser humano, é na realidade uma ideia relativamente nova, tão difícil de encontrar no Ocidente como no Oriente antigo. As preferências de Platão e de Santo Agostinho pela ordem e pela disciplina, mais que pela liberdade, eram semelhantes às prioridades de Confúcio.

Se procurarmos tais filiações como pano de fundo do pensamento contemporâneo, podemos encontrar relações semelhantes nas culturas não ocidentais. Confúcio não é o único filósofo da Ásia, nem mesmo da China. As tradições intelectuais são muito variadas na Ásia, e muitos autores deram ênfase à importância da liberdade e da tolerância, chegando alguns a ver nisso a própria definição do ser humano. A linguagem da liberdade é muito importante, por exemplo, no budismo, que nasceu e se desenvolveu na Índia para em seguida se estender ao sudeste asiático e ao leste da Ásia, China, Japão, Coreia, Tailândia e Birmânia. Esta abordagem contrasta realmente com a ideia central de Confúcio: a disciplina.

O imperador indiano Asoka, que viveu na Índia no século III a.C. e comandou um império maior que o dos outros reis indianos, interessou-se pela ética pública e praticou uma política “esclarecida” depois de se horrorizar com a visão das carnificinas nas suas vitoriosas batalhas. Converteu-se ao budismo e contribuiu para transformá-lo numa religião mundial, enviando emissários, portadores da mensagem budista, ao exterior, tanto ao Oriente como ao Ocidente. Espalhou pelo território lousas nas quais estavam gravados os princípios de uma vida boa e os deveres do indivíduo e do estado. Essas inscrições conferem particular importância à tolerância face à diversidade: considera-se que “cada ser humano” tem direito a essa tolerância — que diz respeito às liberdades individuais e às maneiras de viver — por parte do estado e dos outros indivíduos. Muitos outros autores da antiguidade e da idade média (além de contemporâneos) em diferentes regiões da Ásia também se empenharam, segundo os mais variados registos, em favor da tolerância.

Colocam-se frequentemente questões particulares a respeito da tradição islâmica. Em razão dos conflitos políticos contemporâneos, em particular no Médio Oriente, descreve-se muitas vezes a civilização islâmica como fundamentalmente intolerante e hostil à liberdade individual. No entanto, a diversidade inerente a cada tradição também se encontra no islamismo. Os sábios árabes foram recetivos à filosofia grega e às matemáticas indianas, e por sua vez, empenharam-se em difundir os frutos de seu trabalho intelectual por todo o velho mundo.

Um sábio judeu como Maimónides, no século XII, fugiu de uma Europa intolerante (onde nasceu) e da perseguição dos judeus em busca da segurança que lhe oferecia o Cairo e a proteção do sultão Saladino. Al-Biruni, o matemático iraniano que escreveu o primeiro livro geral sobre a Índia no início do século XI (além das suas traduções para o árabe de tratados indianos de matemática), foi um dos primeiros antropólogos do mundo. Observou e insurgiu-se contra o facto de que “a depreciação dos estrangeiros é comum a todas as nações - umas e outras entre si -”, e dedicou grande parte de sua vida a favorecer a compreensão mútua e a tolerância. Existem naturalmente outros teóricos islâmicos e dirigentes que foram intolerantes e hostis aos direitos individuais, mas devemos levar em conta o alcance da diversidade no interior das tradições islâmicas. Não se pode pretender que a civilização islâmica se oponha de forma genérica à tolerância ou à liberdade individual.

Por causa da história particular do século das Luzes, do capitalismo de mercado e do estado social, os direitos humanos são muito mais celebrados na maioria das sociedades ocidentais que em muitos países da Ásia e da África. Mas trata-se de uma característica do mundo contemporâneo, e não de uma dicotomia antiga. É bastante importante não apresentar uma distinção moderna como uma oposição antiga, em virtude da qual a pretensa “essência” das culturas asiáticas ou o suposto “fundamento” dos costumes do Oriente se oporia a uma presumida “natureza” da civilização ocidental.

Os partidários dos direitos humanos, assim como os seus opositores, podem tirar proveito de um estudo e de uma compreensão mais profundos das diferentes culturas e civilizações, com suas respetivas diversidades e seus elementos heterogéneos, segundo os diferentes períodos da história.

Os governos e os representantes dos governos, ou os chefes religiosos, não têm o monopólio da interpretação dos valores ou das prioridades morais. A diversidade de opiniões em cada cultura reflete-se nas dissidências contemporâneas a que temos vindo a assistir a partir da aceleração do século XXI devido à globalização e à conexão instantânea por via da Internet.

quarta-feira, 12 de outubro de 2022

A entrada da China e da volatilidade ocidental numa nova era



Há 2500 anos, mais ano menos ano, o mestre chinês, que no Ocidente é tratado pelo nome de Confúcio, já colocava em questão o paradigma da universalidade dos saberes e da diversidade dos seres, tópicos fundamentais para a elaboração de sistemas éticos. Poderia, então, estar capacitado a dar uma resposta ao problema dos direitos humanos, tal como entendemos hoje, no Ocidente, que acusa a China de deixar muito a desejar no que respeita a direitos humanos?

Porque será que ainda hoje as sociedades se pareçam tão estranhas? Na China, muitos dos códigos que ainda remontam a Confúcio não se parecem com os códigos europeus desde a democracia aos direitos humanos. A resposta é: tudo tem a ver com a cultura. Parece então óbvio que nos remetamos à questão das culturas. Tomemos como exemplo a noção de individualismo como contraposição ao forte sentido gregário dos chineses. Enquanto no individualismo a afirmação do indivíduo sobre a sociedade é uma meta primordial, no confucionismo é a vinculação do individuo à família o fator determinante da sua formação moral e social. No Ocidente, a questão da Liberdade é entendida como egoística e antropocêntrica, concentrada no indivíduo. Na Ásia, a restrição íntima do individualismo é considerada a base da Liberdade social, através do equilíbrio comunitário. Como afirmou Confúcio: “o autocontrolo raramente leva ao mau caminho”.

Cada sociedade produziu uma cultura específica pela necessidade de respostas aos mesmos problemas, mas em interação com ambientes diferentes. Logo, isso nos remete para a ideia constante de que todos os seres são iguais, mas cada um tem o seu próprio espaço e, por conseguinte, cada um desenvolve a melhor forma de viver nele. Isso, porém, não quer dizer que os chineses acreditassem sempre que o meio fazia a pessoa: ele o influenciava, com certeza, mas todos possuem a capacidade de mudar o seu destino. Assim, a cultura é vista, portanto, como a melhor forma de interagir com o ambiente: e no momento que ela atinge sua conformação ideal, ela pode ser modificada de acordo com a necessidade, mantida como padrão, ou deixada cair em desuso, caso os novos tempos o exijam. O que não muda, portanto, são os pressupostos sobre as quais as culturas são construídas: a busca simultânea do equilíbrio harmónico do indivíduo na sociedade, e da sociedade no seu meio juntamente com os demais.

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Antiguidade, é o momento histórico que no Ocidente precede a Era Moderna. E onde fica então a tradicional Idade Média? Fica na Antiguidade assim, dividida em dois períodos distintos: 1) O primeiro período da civilização greco-romana que termina com o fim do Império Romano do Ocidente no século V, e substituído pelos hábitos dos Bárbaros Germânicos; 2) O segundo período que é o período de excelência da grande cristianização da Europa que termina no século XV com Constantinopla a substituir o cristianismo pelo islamismo.

Uma vez que sabemos que houve o estabelecimento de contactos intelectuais profundos dos gregos do período helenístico com o Oriente, depois das conquistas de Alexandre Magno que se haviam estendido até à Índia, estabeleceu-se um corredor cultural da Ásia Central até ao Mediterrâneo, produzindo os seus efeitos na literatura e no imaginário destas civilizações. Um texto budista intitulado Milinda-Panha mostra como se estabeleceu um diálogo entre um rei grego (Menandro) e o sábio Nagasena acerca do budismo. Algum tempo depois, quando Roma assume o controlo da Europa, Filóstrato envia seu Apolónio de Tiana para estudar filosofia e magia com os indianos. Os chineses receberiam as suas primeiras informações sobre o Ocidente através do historiador Sima Qian, e Roma conheceria, com maior precisão, as origens da seda por Plínio, o Velho.

As diferenças intelectuais entre Ocidente e Oriente não pareciam ser tão problemáticas até ao final do século XVIII. Que, entretanto, vivia-se o período do Iluminismo da Era Moderna que havia começado no século XV com a Renascença e a Ciência a que todo o mundo se submeteu numa submissão, que hoje quer que se diga colonial. Mas aqui, o interesse dos árabes pela filosofia grega, é manifesta. Veja-se um Averróis e um Avicena. Ou ainda, veja-se o fascínio dos europeus pela “Tartária”, nome dado à China na época da sua dominação pelos mongóis. Muito antes de Marco Pólo, missionários nestorianos já divulgavam o cristianismo pela China; João de Carpino (1245-47) e Guilherme de Rubroeck (1253–55) foram também preparar o terreno para a chegada dos europeus no século XIII. O Livro de Pólo (1271–95), portanto, só viria a se tornar o mais famoso justamente por suas fantasiais e pelo tom aventureiro, se comparado às descrições de João de Montecorvino (1289-1328) ou André de Perusia (1307-30), bem mais realistas e precisas.

A ação jesuítica, principalmente a partir do século XVI, dinamizaria por completo esta relação. Um movimento em torno da tradução de obras clássicas chinesas seria iniciado, e uma estreita relação intelectual e científica se estabeleceu entre a Europa e a Ásia. Leibniz, fascinado pela China, chega a propor a existência de paralelos entre o pensamento ocidental e o neo/confucionismo. No século XVIII, Malebranche cria o seu Diálogo de um Filósofo Cristão e de um Filósofo Chinês; Voltaire empreende a divulgação da “miragem chinesa”, uma visão idílica do pensamento e da vida no império celeste baseada em suas leituras sobre Confúcio e nas cartas jesuíticas. Montesquieu iria criticar severamente esta posição, baseando-se igualmente naquilo que pensava conhecer sobre a China.

Mas depois, no século XIX, poucas vozes, como Schopenhauer ou Nietzsche, assumiriam com coragem compromisso com o pensamento asiático. Todo este movimento guarda uma profunda relação com o desenvolvimento da prática colonialista surgida neste século, que necessitava criar a ideia de hierarquia cultural para salvaguardar o valor e a importância de suas descobertas. Já não era apenas fé em Deus, mas também a fé na Ciência, que deveriam ser espalhados pelas culturas submetidas. A demarcação destas fronteiras encontrou ressonância no panorama da filosofia ocidental. E se algum autor parecia simbolizar esta tendência, esse seria Hegel. A consequência direta desta postura será a grande e geral inconsciência intelectual do século XX acerca da China, que somente a duros golpes políticos e após um grande esforço académico irá deslocar-se do atoleiro conceptual para reacender a necessidade de reflexão.

No final do século XIX, japoneses e chineses começaram também a diferenciar o pensamento ocidental do oriental. Um neologismo, Zhexue (em japonês Tetsugaku, que significa algo próximo a “estudo aprofundado”, “estudo com sagacidade”) começou a ser empregue para designar as formas de pensar advindas da Europa, em oposição às clássicas Jia (escolas) que compunham a tradição oriental. Note-se que, antes disso, o pensamento ocidental era classificado igualmente como Jia, sem uma notória dificuldade em aceitá-las como uma das formas do Tao (caminho). O contexto colonialista impunha, porém, uma necessária separação.

Em torno da década de 1930 alguns especialistas ocidentais e asiáticos começaram a construir um movimento de aceitação do pensamento oriental pela via filosófica. Isto significava demonstrar a validade do pensamento chinês, japonês e indiano como filosofias através justamente das estruturas de análise ocidentais. A proposta consistia em identificar a presença dos conceitos e métodos filosóficos no discurso das antigas “doutrinas”, a existência de ideias que pudessem contribuir para o enriquecimento da Filosofia, e os processos pelos quais os valores intelectuais foram estabelecidos nestas sociedades. Esta atitude foi uma excelente oportunidade de gerar aceitação, no Ocidente, dos sistemas de pensamento asiáticos.

A série “Science and Civilization in China”, organizada por Joseph Needham e publicada em Cambridge a partir da década de 1950, serviu de base — sem qualquer exagero — para a reformulação de toda a História da Ciência. Esta linha continua a encontrar alguns obstáculos. O primeiro deles é o problema de terminologia. Muito se contesta a inadequação da transliteração de termos chineses para as línguas ocidentais, provocando uma série de enganos interpretativos. Há também uma forte tendência a busca específica, nos textos chineses, de valores tidos como importantes na cultura ocidental, em detrimento daquilo que pudesse vir a ser de interesse legitimamente autóctone. Isso tem redundado numa abordagem superficial e pouco interessante da filosofia chinesa, que muitas vezes é confundida e suplantada por publicações de cunho esotérico e sensacionalista cujo principal atributo é apenas o de transmitir as deformações intelectuais propostas por autores desinformados.

Em contraposição a esta linha de estudo desenvolvida nos centros de língua inglesa, a Escola Francesa buscou abordar o problema do pensamento chinês por uma via completamente diversa. Sob a liderança de Marcel Granet, o mais famoso dos sinólogos franceses, desenvolveu-se a conceção de buscar compreender o pensamento chinês por si próprio. Isso significava afastar-se do problema “é ou não é filosofia” para demonstrar que o pensamento chinês possuía valia simplesmente pelo que representava historicamente, por sua profundidade conceptual (do qual os franceses adquiriram a consciência de seu desconhecimento) e pela construção de uma lógica alternativa à nossa. Esta orientação abriu uma nova perspetiva intercultural para a Europa, posto que ela se propunha a entender o cerne do pensar chinês, sua estrutura e funcionamento, e sua forma de lidar com o real — algo bastante distante do alcance da maior parte dos especialistas no início do século XX.

Em seu livro “O pensamento Chinês”, de 1934, Granet afirmava:
“A China Antiga, mais que uma Filosofia, teve uma Sabedoria. Esta se exprimiu em obras de características muito diversas. Raríssimas vezes assumiu a forma de exposição dogmática. Aliás, quase nada sabemos de positivo sobre a História Antiga da China”.
Seria muito fácil atribuir aos chineses uma mentalidade “mística” ou “pré-lógica”, se interpretássemos ao pé da letra os símbolos que eles reverenciam. Ademais, a injustiça que estaria presente num preconceito desfavorável. Com esta postura, a Academia francesa começava a se livrar da incómoda herança cristã e eurocêntrica que havia dominado o panorama dos estudos sinológicos ocidentais. No campo da Filosofia, a abertura gerada estimulou o interesse pela China, que se via desvinculada da necessidade de comprovar sua “validade científica”. A civilização chinesa possuía o seu próprio valor. A curiosa distinção empregada por Granet, “mais que uma filosofia, uma sabedoria” parece significar que este saber chinês, embutido em sua própria lógica, adquiriu uma eficácia comprovada histórica e intelectualmente, motivo pelo qual tal distinção só poderia ser feita por alguém, justamente, que tenha uma visão finita do que é filosofia.

O pensar chinês é um conjunto completo, orgânico, com um ritmo autêntico de funcionamento. O pensar, pois, é imanente, e essa imanência é a própria natureza. O aprofundamento no conhecimento do Oriente deu uma base mais segura para a sua interpretação. A quebra de uma hierarquia intelectual a priori tornou possível o diálogo entre saberes diferentes, e tanto europeus quanto chineses conseguiram realizar um trabalho mais profundo e menos analógico.

segunda-feira, 10 de outubro de 2022

Jürgen Habermas



Jürgen Habermas [Nascido em 18 de junho de 1929] teórico crítico alemão defensor da racionalidade comunicativa na esfera pública, é um dos filósofos que mais referências teve na viragem para o século XXI. Contrário aos paradigmas do pós-modernismo e pós-estruturalismo do século XX, o pensamento de Jürgen Habermas sofreu uma guinada novamente para o paradigma iluminista, a que ele próprio chamou “projeto iluminista”. Tal propósito consiste em reforçar os princípios da racionalidade do Iluminismo na filosofia política e do direito. Reaviva Immanuel Kant, bem como Hegel e Karl Marx. 

Em “Mudança estrutural da esfera pública” (1962), Habermas definiu a esfera pública como um lugar onde pode acontecer o diálogo racional. Diálogo racional é concebido como racionalidade comunicativa, um conceito que ele elabora em “A teoria da ação comunicativa” (1981). Habermas colocou sua própria teoria em prática, tendo mantido diálogos famosos com defensores de posições ostensivamente opostas às dele. Inseriu nessas conversas Michel Foucault e Jacques Derrida, a quem acusava de um perigoso relativismo com consequências negativas para a ética; e, em 2007, Habermas discutiu a questão da religião com o então cardeal Joseph Ratzinger (1927-), que viria a ser o Papa Bento XVI, partindo de sua posição de “ateísta metodológico” confesso.

Habermas enquanto adolescente, tal como a maior parte dos adolescentes alemães que cresceu durante a Segunda Guerra Mundial, foi integrante da Juventude Hitleriana. Aos quinze anos de idade, viu-se implantado na frente ocidental da Alemanha durante os meses finais de guerra. A suástica era pouco adequada a Habermas, uma vez que suas tendências de esquerda e sua deformidade física (lábio leporino) faziam dele o tipo de pessoa que os nazis gostariam de exterminar.

O Julgamento de Nuremberga que julgou os crimes de guerra da Alemanha forneceu a Habermas uma epifania que resultou em sua campanha para ressuscitar os valores do Iluminismo. Filmagens de documentários revelando as atrocidades dos campos de morte nazis revoltaram Habermas a tal ponto que ele se tornou especialmente focado em qualquer traço de totalitarismo que pudesse resistir na cultura alemã.

Enquanto estudava na Universidade de Bona para obter o doutoramento (1951-54) Habermas encontrou um traço como esse na republicação de 1953 do livro de Martin Heidegger "O que é metafísica?" Nele, Heidegger escreveu: “As obras que estão sendo distribuídas hoje em dia como a filosofia do nacional-socialismo nada têm a ver com a verdade interior e a grandeza desse movimento (ou seja, o encontro entre tecnologia global e homem moderno), mas foram todas escritas por homens pescando nas águas turvas do totalitarismo. Para Habermas (e incontáveis outros), aqui estava o facto perturbador da filosofia alemã: Heidegger era, para muitos, o maior filósofo do século – mas era também um nazi (assim como metade dos professores de filosofia da Alemanha). Lidar com Heidegger tornou-se elemento essencial do projeto de Habermas à medida que ele examinava as ruínas do pensamento alemão. A única esperança para a filosofia alemã, do seu ponto de vista, era promover a democracia liberal baseada no princípio do diálogo. 

Em seu ensaio, Work and Weltanschauung: The Heidegger Controversy from a German Perspective [Trabalho e Weltanschauung: a controvérsia Heidegger de uma perspetiva alemã] (1989), ele observa que a visão de Heidegger da Segunda Guerra Mundial era: Os vitoriosos eram os Estados Unidos e a Rússia, semelhantes em sua essência, que agora dividiam a hegemonia mundial. Portanto, a Segunda Guerra Mundial, na visão de Heidegger, não havia decidido nada de essencial. Este é o motivo pelo qual o filósofo se preparou, após a guerra, para perseverar como um quietista nas sombras de um destino ainda não conquistado. Em 1945, restava para ele somente retirar-se da dececionante história do mundo.

Habermas defendeu a tese The Absolute and History: On the Schism in Schelling’s Thought [O Absoluto e a História: sobre o cisma no pensamento de Schelling] em 1954. Em 1956, tornou-se assistente de Theodor Adorno, uma das cabeças mais brilhantes da Escola de Frankfurt, e deu aulas sobre o programa da Teoria Crítica de pendor marxista. Em 1962, Habermas se tornou “professor extraordinário” (ou seja, um professor sem uma cátedra específica) de filosofia na Universidade de Heidelberg e, em 1964, assumiu a cátedra de filosofia e sociologia em Frankfurt, antes ocupada por Max Horkheimer. Em 1971, tornou-se diretor do Instituto Max Planck, em Starnberg, e trabalhou lá até 1983, quando retornou ao seu cargo em Frankfurt e foi nomeado diretor do Instituto de Pesquisa Social. Ele é ainda professor visitante permanente da Universidade de Northwestern, nos Estados Unidos, e Professor Theodor Heuss na The New School, em Nova York. 

O pensamento de Habermas pode ser descrito como amplamente marxista, embora ele talvez seja mais bem entendido como um seguidor de Sócrates. Isso porque, para Habermas, o diálogo é tudo, e, como Sócrates, ele é um defensor do diálogo público. Tendo declarado a sua oposição inicial ao revisionismo do Holocausto, ele adentrou a Historikerstreit (disputa de historiadores) de 1986, na qual historiadores de direita argumentavam que o Holocausto não era excecional – apenas mais um em uma longa lista de massacres europeus. Nesse debate público, travado na imprensa, Habermas desafiou ferozmente tal visão.

Onde críticos como Karl Popper veem em Hegel uma tendência historicista com orientação para o totalitarismo (como em Platão e Marx, na visão de Popper), Habermas, sempre sensível ao veneno da tirania, vê em Hegel o último em uma linha de pensadores iluministas que começou com Kant, e insere-se a si mesmo nessa tradição, tirando de Hegel (como fez com Heidegger) aquilo que lhe parece útil às suas pesquisas. Habermas nunca recorre à ideologia; no entanto, não é avesso a usar ferramentas de análise marxista para dar sentido à situação na qual nos encontramos desde o fim da Guerra Fria e o colapso da União Soviética. Habermas toma emprestadas teorias de intersubjetividade da metafísica e uma compreensão da linguística e das teorias dos atos da fala de J. L. Austin, P. F. Strawson, Stephen Toulmin, John Searle e Ludwig Wittgenstein, de modo a tentar explicar como a comunicação pode acontecer na esfera pública. Ação comunicativa dando a esses temas consideração teórica e prática em estudos de sociologia, direito, política e filosofia.

Habermas, junto com Karl-Otto Apel é o criador da ética do discurso. Trata-se de um programa ambicioso que pretende combinar a ética deontológica de Kant com as exigências da racionalidade comunicativa em suas aplicações práticas, tais como o discurso político – por exemplo, na elaboração de políticas ou tomada de decisões. Com este fim, Habermas propõe o princípio do discurso: “Somente as regras morais que possam ganhar um parecer favorável de todas as pessoas afetadas como participantes de um discurso prático estão aptas a reivindicar validade”. Uma vez que isso tenha sido estabelecido, as bases para a racionalidade comunicativa terão sido lançadas: “Essa explicação do ponto de vista moral privilegia o discurso prático como a forma de comunicação que assegura a imparcialidade do julgamento moral e ao mesmo tempo o intercâmbio universal das perspetivas participantes”. Justification and Application: Remarks on Discourse Ethics [Justificação e aplicação: observações sobre ética do discurso], 1991.

A confrontação de Habermas com Heidegger, e a sua contínua desconfiança de tendências niilistas no pensamento moderno, levaram-no a criticar o pós-modernismo e o pós-estruturalismo como movimentos que haviam abandonado o projeto iluminista baseado na razão e na ciência, em favor de uma série de posições relativistas de valor ético questionável. Em "O discurso filosófico da modernidade" (1985), Habermas confronta Foucault e Derrida. Esperando provocar um diálogo, ele faz uma crítica esmagadora à continuação empreendida por Derrida da filosofia final de Heidegger: “O ser humano como ser dirigido à morte sempre viveu em relação com o seu fim natural. Mas agora é uma questão do fim de sua autocompreensão humanista: no desabrigo do niilismo, não é o ser humano, mas a essência do ser humano que vagueia cegamente.” Na visão de Habermas, a filosofia de Derrida é não somente niilista, mas também destrutiva em última análise: “Heidegger prepara a conclusão de uma época que talvez nunca termine, em um sentido histórico-ôntico. A melodia familiar da autossuperação da metafísica também dita o tom para a empreitada de Derrida; destruição ganha um novo nome: desconstrução.” Derrida respondeu em Is There a Philosophical Language? 

Em janeiro de 2004, quinze meses antes de se tornar papa, o cardeal Joseph Ratzinger iniciou um diálogo escrito com Habermas a respeito do papel da religião na sociedade. Esse diálogo foi publicado em Dialética da secularização: sobre razão e religião (2005). Habermas sempre seguiu a insistência de Hegel sobre o direito da filosofia ao “ateísmo metodológico”, o pressuposto de nada no caminho da crença religiosa. Ele também descreve a si mesmo como aluno de Max Weber, no sentido de que ele é um “surdo tonal na esfera religiosa”. No entanto, o onze de setembro levou Habermas a observar que a sociedade secular precisava de um novo entendimento da convicção religiosa. (Anteriormente, como acontecia provavelmente com a maioria dos filósofos, ele havia considerado a religião um assunto a ser estudado no que dizia respeito a estágios do desenvolvimento humano.)

Em Dialética da secularização, Habermas defende que o Estado secular está fundado na razão prática. Ratzinger, por sua vez, defende que há um fundamento moral pré-político que justifica o Estado. Ele conclui que razão e fé precisam uma da outra: a fé informa a razão para ajudar a raça humana a evitar o tipo de arrogância que leva à criação de armas nucleares ou à visão de pessoas como produtos. Habermas conclui que a existência dos que creem e dos que não creem continuará, e cada um deles deve aceitar este fato sobre o outro. O que ambos os grupos precisam de lidar é: por um lado com a destruição de velhas certezas éticas por parte da ciência; e por outro, com a existência de um novo tipo de terrorismo que exige um diálogo global.

Dois milénios e meio depois que os pré-socráticos buscaram a razão, procurando respostas diferentes daquelas oferecidas pela mitologia, a razão e a religião continuam a debater-se; mas na racionalidade comunicativa de Habermas, e no pensamento filosoficamente sofisticado de Bento XVI, elas podem ser vistas menos como polos opostos e mais como complementares entre si. Todas as tentativas de descoberta de fundamentos últimos para "as coisas" foram goradas. Há agora um novo caminho que se abre para a Sabedoria, sem o rasto dos cadáveres deixados pela filosofia e pela ciência, não se encontrando coberto por certezas nem suposições fundamentais, sejam elas de natureza ontológica ou de abstração transcendental.


segunda-feira, 3 de outubro de 2022

A cultura chinesa e a sua forma de pensar



O facto de as mundividências de pensamento dos chineses diferirem, em alguns aspetos, das dos europeus, não significa que os chineses tenham um mecanismo cerebral de raciocínio diferente dos europeus. Duas civilizações distintas, e, no entanto, nada diferem em tudo o que é lógico, como 2+2 = 4. Lendo Confúcio, com um pouco de boa vontade encontraremos um raciocínio apuradamente lógico-formal. 

A escrita chinesa é pictográfica, em que os símbolos podem representar conteúdos com mais do que um significado, ou mais do que uma ideia. E a cosmologia chinesa é processual, centrada num movimento criativo dialético que se manifesta através da oposição complementar entre yin e yang. Por conseguinte, a geração dos seres e das coisas regula-se essencialmente pelo Li (ordenação ou princípio) e materialmente pelo Yi (mutação que promove a variabilidade). Foi assim, pois, que áreas como a medicina, matemática, química, entre outras, evoluíram significativamente desde a antiguidade, criando um legado acessível até aos dias de hoje. A ciência tradicional chinesa nada tem de mística ou mágica, baseia-se num sistema formal. Confúcio e Mêncio ocasionalmente serviam-se de expedientes formais para fixar pequenas sequências de raciocínio.

Uma coisa deve ser considerada: não há nenhuma cultura que possa reivindicar o monopólio do saber. O facto de haver maneiras diferentes de pensar sobre muitas coisas como, por exemplo, a moral e a ética, não significa que os europeus tenham legitimidade em reivindicar qualquer tipo de superioridade. O pensamento chinês possui uma singularidade própria que demarca diferenças em relação ao conhecimento desenvolvido no Ocidente. Organicista, quase “fechado em si próprio”, o pensamento chinês não deixou de ser abrangente e universal. Gerou uma ciência comprovadamente eficaz. O que é importante é não sermos tentados a enquadrá-lo dentro das balizas culturais ocidentais. Precisamos, no entanto, de conhecer melhor as suas origens.

Historicamente, o século VI a.C. é fundacional daquilo a que no Ocidente chamamos hoje ‘pensamento chinês’, quando num contexto de crise social se iniciou a criação de uma série de escolas preocupadas em formular propostas de reforma política e cultural que pudessem retomar a ideia de uma antiga harmonia perdida. No entanto, não se pode desprezar que há sempre nestes casos uma continuidade de linhas de diálogo empregadas em seu desenvolvimento desde séculos mais remotos em que é a transcendência que predomina como fonte de equilíbrio entre o material e o etéreo, ou seja, o equilíbrio entre opostos.

Foi durante os séculos II a.C. e I a.C. que a dinastia Han protagonizou a exegese dos textos clássicos tendo levado a uma geração de pensadores chineses a formular propostas filosóficas que condensassem os saberes das antigas escolas (confucionista, taoista, cosmogonista, entre outras). Desta forma se criaram textos cujo conteúdo demandava, necessariamente, algumas explicações complementares para a sua compreensão. Neste contexto é que surgem o Huainanzi, de Liu An, e o Chunqiu Fanlu, de Dong Zhong Shu, que pela primeira vez ordenam e sintetizam, de forma cosmológica, este acervo conceptual antes disperso e fragmentado entre os textos antigos.

Esta cosmologia tem uma importância fundamental para o pensamento chinês, pois ela constitui a estrutura de todas as suas ciências e nos permite compreender os paradigmas sobre os quais os pensadores clássicos montaram as suas propostas. Tão importante quanto é o fato desta ser uma cosmologia, e não uma cosmogonia, criada com base numa observação do material físico. A China, aliás, parece se destacar entre as civilizações por ser, talvez, a única que não possui um mito de criação autêntico. Somente na época dos Han é que um mito deste género viria a fazer parte da tradição, tendo sido importado provavelmente das áreas que haviam sido recentemente conquistadas no sul do território.

Tudo no Universo possui um Li, ou princípio. Li também pode ser traduzido como forma ou estrutura. O princípio pode ser inferido pela perceção de uma forma subjacente na matéria, determinada pela conformação dos veios da pedra de jade. Os antigos chineses acreditavam que o princípio de algo já estava contido na matéria e podia ser imaginado, portanto, antes da sua manifestação. Como o diamante, o jade só pode ser lapidado de acordo com os veios da pedra, senão esfacelar-se-á. Se o pensamento grego está impregnado do espírito do oleiro, que trabalha a massa amorfa da argila, primeiro moldada e logo formada inteiramente segundo a ideia do artesão, o pensamento chinês é marcado pelo espírito do lapidário, que experimenta a resistência do jade e emprega toda a sua arte tão somente em tirar partido do sentido destes pedaços de matéria bruta, para extrair o que nela preexistia e da qual nada podia se ter ideia antes de ser descoberta.

É o vazio que conforma a matéria, é o nada que ordena o que existe. Trinta raios ligam a roda ao eixo. A utilidade do eixo está no vazio da roda. O barro vai ao forno para fazer um pote, mas a utilidade do pote está no vazio. Fazem-se janelas e portas num quarto, mas a utilidade de um quarto reside no vazio. A analogia da pedra de jade foi utilizada pelos chineses para demonstrar que o vazio é o gerador da forma na matéria. Assim, Qi (vazio e matéria) é a oposição básica que gera energia, ou seja, a dualidade universal composta por yang e yin.

Tudo no universo tem o seu oposto. Se não o tiver, não existe. Por yang e yin tudo se manifesta. Só existe matéria por causa do vazio e vice-versa. O taiji nos mostra, porém, que um engendra o outro. Um possui a semente do outro, e no movimento cíclico de mutação universal, eles se alternam constantemente no poder. Somente da cópula destes dois é que pode haver a geração da natureza: da junção de macho e fêmea é que nasce o filho; o um gera o dois, o dois gera o três e o três gera as dez mil coisas — e todas as coisas possuem yin, possuem yang e a mistura dos dois gera o Qi (harmonia).

Tao significa a via, O caminho. É a regra pelo qual se alcança a harmonia perfeita com a natureza, a compreensão de todo este sistema e o funcionamento adequado para com o mesmo. É atingir o Li supremo, através da descoberta do Li pessoal. Cumprir o Tao é cumprir o ciclo da existência, é compreender o que essa manifestação particular do Li no ser humano (shen, ou “espírito”) tem de fazer, e fazer por ela própria; é encontrar o ritmo da existência. Tao, portanto, pode ser, inclusive, todo o sistema cósmico. Mas estas são apenas aproximações que podemos fazer de um termo intraduzível, inclusive para os próprios chineses. Encontrar o Tao será, pois, a grande busca daqueles autores que, depois do século VI a.C., se propuseram a solucionar os problemas da sociedade chinesa através de suas formulações teóricas. Para o eminente Confúcio, divisor de águas deste pensar filosófico chinês, a resposta apareceria no primeiro capítulo do Zhong Yong, texto coligido pelo seu neto Zisi. Laozi, o grande mestre da escola taoista, iria afirmar, porém, que trilhar o Tao consiste exatamente na prática de uma ação isenta de propósito (wu-wei), ou seja, suster todas as coisas em seu estado natural.


Bom, para amenizar um pouco a transcendência das coisas, deixo aqui um apontamento para mostrar a perplexidade e a incompreensão do pensamento de Mao Zedong por parte dos ocidentais no tempo da Guerra Fria e da Revolução chinesa. Na primeira conversa entre Mao e o presidente Nixon, em fevereiro de 1972, Nixon cumprimentou Mao por ter transformado uma antiga civilização. Mao respondeu: “Eu não fui capaz de mudá-la. Só fui capaz de mudar alguns lugares nos arredores de Pequim.” Após uma vida inteira de lutas titânicas para extirpar as raízes da sociedade chinesa, não era pequeno o pathos na resignada admissão de Mao quanto à omnipresença da cultura chinesa e do povo chinês. Mao, com a sua insistência em virar o antigo sistema de pernas para o ar, não conseguiu escapar ao eterno ritmo da vida chinesa. Quarenta anos após a sua morte, depois de uma jornada violenta, dramática e intensa, os seus sucessores voltaram a refazer uma sociedade cada vez mais próspera, voltando a recuperar a doutrina confucionista.


Emblemático da Revolução Cultural foi o “Pequeno Livro Vermelho” de citações de Mao, compilado em 1964 por Lin Biao, mais tarde designado sucessor de Mao e morto em um obscuro acidente aéreo quando atravessava o país, alegadamente após uma tentativa de golpe. Todos os chineses eram obrigados a carregar um exemplar do “Pequeno Livro Vermelho”. Os Guardas Vermelhos, brandindo os seus exemplares, “confiscavam” prédios públicos por toda a China, com a autorização — ou ao menos a tolerância — de Pequim, desafiando violentamente as burocracias das províncias.

Mas os Guardas Vermelhos não estavam mais imunes ao dilema das revoluções se voltando contra eles mesmos do que os quadros que supostamente deveriam purificar. Ligados mais por ideologia do que por treinamento formal, os Guardas Vermelhos se dividiram em fações perseguindo suas próprias preferências pessoais e ideológicas. Conflitos entre eles se tornaram tão intensos que, em 1968, Mao dissolveu oficialmente os Guardas Vermelhos e encarregou líderes partidários e militares leais de restabelecer os governos nas províncias.

Que alguns desses alvos fossem indivíduos mortos havia séculos não diminuiu o furor do ataque. Alunos e professores revolucionários de Pequim caíram sobre a aldeia natal de Confúcio, jurando pôr fim à influência do antigo sábio sobre a sociedade chinesa de uma vez por todas, queimando livros antigos, destruindo placas comemorativas e arrasando os túmulos de Confúcio e seus descendentes. Em Pequim, os ataques dos Guardas Vermelhos destruíram 4.922 dos 6.843 assim designados “locais de interesse cultural e histórico”. A própria Cidade Proibida foi, segundo se conta, salva apenas com a intervenção pessoal de Zhou Enlai. Uma sociedade tradicionalmente governada por uma elite de literatos confucionistas agora se voltava a camponeses rústicos como fonte de sabedoria. As universidades foram fechadas. Qualquer um identificado como “especialista” era suspeito, a competência profissional sendo um conceito perigosamente burguês.