segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

A questão da Palestina no equilíbrio instável do Médio Oriente



O equilíbrio instável de forças políticas no Médio Oriente, depois da queda do Império Otomano, foi perturbado pelo impacto vulcânico da questão da Palestina. Os britânicos tinham planeado manter o seu domínio na região através de uma transição pacífica. Todos os Estados árabes seriam independentes; alguns ficariam ligados por tratado à Grã-Bretanha; os restantes reconheceriam a primazia efetiva da Grã-Bretanha, a única grande potência com força no terreno. 

A gestão da Palestina, administrada diretamente pela Grã-Bretanha sob mandato da Sociedade das Nações desde a Primeira Guerra Mundial, seria sempre difícil, quaisquer que fossem as circunstâncias. Conciliar a promessa de uma «pátria» judaica, na qual os judeus pudessem estabelecer-se, com os direitos dos árabes que já lá estavam, revelara-se uma tarefa bastante difícil. O aumento da afluência de judeus à Palestina, que fugiam da Europa Central devido à ascensão dos nazis na Alemanha na década de 1930, viria a revelar-se o maior problema para o plano inicial desenhado em 1920. Era impossível aplacar a indignação dos árabes da Palestina com a crescente migração judaica.

A dificuldade prática e embaraço político de fazer uma barragem aos refugiados judeus; a pressão diplomática dos Estados Unidos contra essa tentativa; e a dimensão e ferocidade da campanha terrorista travada por colonos judeus - destruíram qualquer hipótese de autoridade britânica. O resultado foi o pior de todos os cenários: um território ingovernável cujo controlo era disputado entre dois inimigos aparentemente inconciliáveis.

A divisão proposta pelas Nações Unidas não pôde ser implementada. A guerra que se seguiu entre judeus e árabes (palestinianos locais e os contingentes enviados pelos Estados árabes) resultou numa vitória judaica. O novo Estado de Israel tinha força suficiente para impor uma partilha territorial que lhes era mais favorável. Mas não tinha força suficiente para obrigar os Estados árabes a aceitar este resultado como condição permanente. As divisões étnicas, religiosas e sociais – um legado, em parte, do domínio otomano e europeu – estavam profundamente enraizadas. 

Os nacionalistas do Egito tinham pouco em comum com as outras nações árabes. Os egípcios menosprezavam os governantes hachemitas do Iraque e da Jordânia, considerando-os fantoches e arrivistas, e as suas pretensões à liderança do mundo árabe como absurdas e insolentes. Os reis hachemitas estavam igualmente convictos do seu direito histórico de encabeçar a causa árabe. A sua antiga ambição era um grande Estado hachemita que unisse a Síria (perdida para os franceses em 1920) e a Palestina ao Iraque e à Jordânia. A sua inimizade mais feroz, paga na mesma moeda, era para com a casa de Saud. Afinal, foi o monarca saudita que tomou os lugares santos de Meca e Medina aos seus xarifes e transformou o Reino do Hejaz numa província da futura Arábia «Saudita». Grande parte da rivalidade entre o Egito, os hachemitas e os sauditas concentrava-se na Síria, cujos conflitos religiosos e regionais a tornavam um terreno fértil para a influência externa.

O rei do Egito insistira em enviar um exército, para aumentar o seu prestígio interno e afirmar o lugar cimeiro do Egito entre os Estados árabes. Mas ele não conseguia mostrar quaisquer progressos nas negociações para a saída dos britânicos da sua enorme Zona do Canal, o símbolo visível do estatuto subalterno do Egito. Nem nas relações com os seus antigos rivais políticos. Como a diplomacia se revelava ineficaz, avançou-se para a ação direta. A luta contra os britânicos tornou-se cada vez mais violenta. As greves, os assassinatos e outros atos de terror tiravam partido da dependência britânica de mão de obra egípcia e do estado vulnerável das instalações do pessoal britânico. A retaliação e a vingança alastraram às principais cidades do Egito. Enquanto a sensação de ordem se desfazia, o rei planeava um golpe de estado para purgar o descontentamento no Exército. Mas antes que pudesse agir, o movimento dos «Oficiais Livres» assumiu o controlo do governo em julho de 1952 e obrigou-o a fugir para o exílio.

O novo regime empenhou-se em restaurar a ordem. Esmagou a Irmandade Muçulmana, um movimento islamita que gozava de amplo apoio popular. Aceitou a perda de influência egípcia no alto Nilo quando os britânicos prometeram a independência, como Estado separado, ao Sudão, rejeitando a exigência do Cairo para que se respeitasse a «unidade do vale do Nilo». Acima de tudo, conseguiu a anuência britânica para uma retirada da base da Zona do Canal através da concessão de um direito de retorno se a sua utilização fosse necessária para repelir um ataque externo (isto é, uma invasão soviética) à região do Médio Oriente. Os britânicos tinham chegado à conclusão de que, com a dissuasão nuclear que podiam exercer por ar, a base era redundante na sua forma existente, além de politicamente onerosa. O que provavelmente esperavam era que o novo regime de Nasser se concentrasse nas reformas internas. O Egito, pensavam, exerceria pouca influência no mundo árabe. Entretanto, eles reorganizariam o seu domínio em torno de uma aliança mais próxima com os Estados hachemitas e um novo pacto militar. A influência americana, que tinha sido útil para o acordo do Suez, estaria do seu lado. O Egito ficaria isolado e submisso. Mas a resposta de Nasser não veio a permitir que isso acontecesse. Na verdade, a sua espantosa revolta contra o «sistema» britânico foi o evento crucial da descolonização do Médio Oriente.

Nasser tinha todas as razões para desconfiar dos britânicos e conspirar para os afastar do Médio Oriente. O Sudão já não pertencia ao Egito. Havia grande animosidade contra Israel. O Ocidente árabe (o Mashreq) estava a ser vedado à influência egípcia e talvez até ao seu comércio. Sem mercados nem petróleo, Nasser enfrentava a estagnação interna e a crescente agitação social. Tornar-se-ia perigosamente dependente da ajuda económica do Ocidente. O seu regime era inexperiente. Nasser lançou um contra-ataque. Converteu-se ao pan-arabismo. Com aprovação saudita, apoiou a fação anti iraquiana na política síria. Incentivou a Jordânia a opor-se ao pacto. Depois, em setembro de 1955, deu-se um golpe espetacular. Nasser rompeu o embargo ao armamento imposto pelo Ocidente e negociou um fornecimento do bloco soviético. O Egito seria então uma verdadeira potência militar. No início de 1956 já tinha declarado uma guerra política aberta à influência da Grã-Bretanha no Médio Oriente. O nível crescente de violência ao longo das fronteiras com Israel serviu-lhe de vantagem. Com o que pareceu uma facilidade espantosa, ele tomou a iniciativa na política regional. Transformou o Egito no paladino da causa árabe e o sentimento panárabe numa força dinâmica. A reação em Londres foi de pânico e ira.

A Crise do Suez em 1956 resultou diretamente deste confronto. O fator decisivo foi o bloqueio em Washington de um empréstimo para pagar a Grande Barragem de Assuão, no Egito. Nasser expropriou o canal de Suez, que pertencia na altura à Grã-Bretanha e à França. Parecia um gesto de bravata, mas talvez Nasser adivinhasse que os britânicos teriam dificuldade em derrotá-lo. Já não tinham tropas na antiga base do Suez. Um ataque declarado enfureceria toda a opinião árabe. A pressão internacional (através das Nações Unidas) provavelmente não lhes traria o que realmente desejavam: a derrota política de Nasser. Este pode também ter percebido que a hostilidade implacável de Londres não era plenamente partilhada em Washington. Com efeito, a resposta, quando surgiu, revelou a fraqueza política da Grã-Bretanha. Mal dissimulada como uma intervenção entre as forças do Egito e de Israel (que invadiu a península do Sinai), a ocupação anglo-francesa do canal de Suez pretendia humilhar Nasser e garantir a sua queda. A explicação para a sobrevivência de Nasser era o enorme apoio da opinião patriótica árabe ao seu ato de desafio, que convenceu o presidente Eisenhower de que permitir uma vitória dos britânicos reforçaria o sentimento árabe contra o Ocidente, abriria a porta à influência soviética e prejudicaria os interesses americanos. Ironicamente, a fragilidade económica que ajudara a incitar os britânicos à sua luta com Nasser – o receio de que a influência deste prejudicasse as suas fontes vitais de petróleo – revelou-se então decisiva. Sem a anuência de Washington, eles enfrentariam o colapso financeiro. Os britânicos retiraram-se, humilhados. Nasser ficou com o canal. Não foi ele que caiu na armadilha política mas o primeiro-ministro britânico, Anthony Eden.

 Menos de dois anos depois da sua vitória no Suez, Nasser atraiu a Síria para uma união política, formando a República Árabe Unida. O mesmo ano (1958) assistiu ao fim do domínio hachemita no Iraque. Nasser tinha ainda de lidar com o poder americano (os Estados Unidos e a Grã-Bretanha intervieram em conjunto para impedir o derrube dos governos da Jordânia e do Líbano por fações pró-Nasser). Prometia-se um fim para a injustiça palestiniana, através do esforço coletivo de uma nação revitalizada. A solidariedade panárabe sob liderança egípcia (o novo regime iraquiano de tendências comunistas fora cuidadosamente isolado) abriu novas perspetivas de esperança. Podia negociar melhores condições com as potências estrangeiras. Podia usar a arma do petróleo (a produção de petróleo aumentou rapidamente nos anos 50). Podia até ser capaz de resolver a questão da Palestina.

Os britânicos permaneceram no Golfo e apoiaram os governantes locais contra o desafio político de Nasser. A elite árabe instruída e as suas ideias deslocavam-se facilmente entre eles. As estruturas do Estado eram fracas e podiam ser facilmente penetradas pela influência externa. Em 1960 isso já tinha começado a mudar. Novas elites locais começaram a gerir o aparelho do Estado. A união com a Síria desfez-se passados três anos. O Estado de Israel revelou-se muito mais resistente do que se esperaria, e o apoio que recebia dos americanos não mostrava qualquer sinal de diminuir: no início dos anos 60 dir-se-ia até que estava a aumentar. 

Uma ironia: a riqueza petrolífera da região estava por baixo do solo dos Estados menos inclinados a seguir o exemplo ideológico de Cairo. O desastre da Guerra dos Seis Dias em 1967, travada entre Israel e o Egito, Jordânia e Síria, foi uma lembrança dolorosa de que a riqueza mineral não era equivalente a poder, e que os petrodólares não significavam poderio industrial. Em 1970, o ano da morte prematura de Nasser, a promessa da liberdade já se havia transformado no problema árabe. Os três maiores Estados no Médio Oriente eram o Egito, a Turquia e o Irão. No Egito, Anwar Sadat, fez regressar o país a um entendimento com o Ocidente. No final dos anos 70 o Egito era já o segundo maior beneficiário (depois de Israel) da ajuda americana.

O enorme avanço do poder soviético no final da guerra e a confissão pública de Estaline dos seus planos para os Estreitos – «É impossível aceitar uma situação em que Turquia tem uma mão na traqueia da Rússia», declarou ele em Ialta – empurraram Ancara decididamente para o campo ocidental. Ao abrigo da Doutrina Truman (1947), a Turquia foi incluída na esfera da ajuda e proteção americanas, ainda que indefinidas na altura. Em 1955 já se havia tornado membro pleno da NATO. De uma forma que Kemal Atatürk dificilmente podia ter imaginado, o padrão do conflito da Guerra Fria abrira a porta para a aceitação da Turquia como parte do Ocidente. No final do século a sua pretensão a fazer parte a União Europeia era já amplamente reconhecida. Os conflitos com a Grécia e em torno do futuro do Chipre (que a Turquia invadiu e dividiu nos anos 70) dificultaram as relações. Dentro da própria Turquia, a questão fundamental durante grande parte do meio século depois de 1945 foi saber até que ponto o grandioso projeto de Atatürk de um forte Estado burocrático, com uma base industrial moderna e uma cultura secular, era compatível com a democracia representativa (a Turquia de Atatürk fora um Estado de partido único) e uma economia aberta (não dominada pelo Estado).

Entretanto em África começou a luta pela independência dos povos africanos sob o poder colonial europeu. Como no Médio Oriente ou no resto da Ásia, a descolonização em África não trouxe nada de bom. Os novos líderes africanos herdaram as fraquezas dos seus antecessores coloniais – cujo lugar ocuparam depois de uma brevíssima transição. A etnia regional ou local era muito mais forte do que o nacionalismo. Construir identidades nacionais sem vernáculos comuns representava um enorme desafio. O legado tribal do domínio colonial estava profundamente arraigado: com efeito, em muitas zonas de África, criar novas formas de etnicidade tribal foi o meio normal de adaptação à dimensão mais ampla da vida económica e social. Entretanto, a pressão para aumentar o papel do Estado era enorme, quer nos serviços sociais quer no desenvolvimento económico. A necessidade imperativa de qualquer novo regime era encontrar fontes externas de ajuda financeira e militar, antes que perdesse a sua pretensão à lealdade dos seus seguidores. Era um contexto perfeito para as maiores potências mundiais aumentarem a sua influência num novo modelo pós-colonial. Se tivessem motivos para o fazer, os meios para construir novos impérios estavam à sua disposição.

O caso do Irão foi o mais intrigante. O Irão fora ocupado por forças soviéticas e britânicas em 1941, em parte para travar as aproximações de Reza Xá à Alemanha e sobretudo para garantir o livre-trânsito dos abastecimentos da Grã-Bretanha para uma Rússia cercada de inimigos. Reza Xá abdicou e foi para o exílio. O resultado foi o desmoronamento do seu Estado autoritário. Notáveis ressentidos (a poderosa classe latifundiária), movimentos radicais nas cidades (como o Partido Tudeh), líderes tribais (dos Qashgai e Bakhtiari) e minorias étnicas (curdos, árabes e azerbaijanos) contestaram a autoridade do novo xá e competiram pelo favor das potências ocupantes. No final da guerra, esta instabilidade aumentou. O Exército Vermelho permaneceu no Azerbaijão iraniano até 1946. Os efeitos da inflação do tempo da guerra arruinaram a economia. Os apoiantes do xá competiam com os radicais e os notáveis pelo controlo do Majlis, ou parlamento. O governo enfrentava a resistência crescente de grupos tribais, provinciais e étnicos. Em 1949, contudo, o xá já estava perto de reafirmar o seu controlo, talvez porque a alternativa fosse uma maior fragmentação do Estado iraniano e um ciclo interminável de agitação social.

Mas antes que isso pudesse acontecer, eclodiu uma grande crise. Para restabelecer a sua posição, o xá quisera aumentar as receitas da principal fonte de riqueza iraniana: os vastos campos petrolíferos no Sudoeste do país, controlados pela britânica Anglo-Iranian Oil Company (a BP). Em julho de 1949, o chamado «acordo suplementar» propôs aumentar os direitos que a companhia pagava de 15% para 20%, com outros aumentos programados. Mas este acordo deparou com dois grandes obstáculos. O primeiro foi o receio entre os adversários do regime de que esta nova riqueza consolidaria o restabelecimento do poder do xá segundo os padrões anteriores à guerra. O segundo foi a oposição muito mais ampla da opinião iraniana à continuação do controlo estrangeiro de um recurso fundamental do Irão e à influência que a companhia supostamente exercia. Entretanto, enquanto a questão era debatida no Majlis, ficou-se a saber que a Aramco, a Arab-American Oil Company, oferecera uma participação de 50% nos lucros ao seu governo anfitrião na Arábia Saudita. Enquanto prosseguiam as negociações com a Anglo-Iranian, a temperatura política subiu e em março de 1951 o Majlis aprovou uma lei para nacionalizar a companhia. Poucos dias depois Mohamed Mossadeq, um antigo adversário do xá e do seu pai, tomava posse como primeiro-ministro.

O resultado foi um impasse. A proposta britânica de uma intervenção armada foi vetada em Washington, onde a abordagem de Londres era considerada imprudente e retrógrada. O grande contingente britânico foi retirado dos campos e da refinaria de Abadan. As grandes companhias petrolíferas, temendo que outros pudessem seguir o exemplo iraniano, impuseram um boicote internacional ao petróleo iraniano, que se revelou bastante eficaz. Mossadeq parecia à beira de conseguir uma revolução constitucional, mas a sua base de apoio – nunca muito coesa – começou então a desagregar-se. No Ocidente ele era visto como um perigoso demagogo, abrindo caminho para o domínio comunista. Em agosto de 1953 Mossadeq foi derrubado por um golpe militar, ajudado e financiado em parte por agentes americanos com algum apoio britânico, e substituído por um primeiro-ministro fiel ao xá. Segundo um novo acordo petrolífero, o petróleo do Irão seria vendido através de um cartel de companhias britânicas e americanas. As receitas do petróleo do xá aumentaram dez vezes entre 1954-1955 e 1960-1961. E quinze vezes em 1973-1974. O mesmo aconteceu ao seu poder militar e político. No início dos anos 60, já estava firmemente estabelecido como aliado importante do Ocidente, cujo valor como baluarte contra o avanço dos soviéticos no Sul era afetado periodicamente pelo receio de que a sua ambição de se tornar senhor do Golfo provocasse um conflito com os Estados árabes da região.



quinta-feira, 25 de janeiro de 2024

O Astrolábio e a ciência ibérica medieval




British Museum

Este astrolábio, modelo portátil do céu de 1345, é muito semelhante a um grande relógio de bolso. Era um instrumento a que os navegadores deitavam mão para saber as horas, e para saber a posição na longitude e latitude através do sol e das estrelas. 
Apesar de bastante conhecido dos gregos antigos, o astrolábio foi um instrumento particularmente importante para o mundo islâmico encontrar a direção de Meca. Não surpreende que o mais antigo astrolábio conhecido seja um islâmico do século X. No entanto, o astrolábio mostrado aqui é judeu. Traz uma inscrição em hebraico e também palavras em árabe e castelhano. Não é apenas um instrumento científico avançado, mas um emblema de um momento muito particular da história religiosa e política da Europa.

Não sabemos exatamente a quem pertencia este astrolábio hebraico em particular, mas ele nos revela muito sobre como estudiosos judeus e islâmicos revitalizaram a ciência e a astronomia ao levar adiante o legado recebido da Grécia e da Roma clássicas. O instrumento nos conta de uma grande síntese intelectual e de um tempo em que as três religiões — cristianismo, judaísmo e islamismo — coexistiam pacificamente. O astrolábio torna acessível em uma forma compacta a soma das tradições e dos conhecimentos astronómicos medievais. 

À primeira vista, este astrolábio parece um relógio de bolso antiquado e grande demais, com uma face toda de latão. É um refulgente agregado de peças de latão interligadas, com cinco discos finos sobrepostos e presos por um pino central. Em cima há diversos ponteiros que podem ser alinhados com vários símbolos dos discos para oferecer interpretações astronómicas ou ajudar a determinar a posição de quem o consulta. Um astrolábio como este se destina à latitude na qual será usado: seus cinco discos permitirão determinar com precisão qualquer posição entre as latitudes dos Pirineus e do Norte de África. No meio dessa área ficam as latitudes das cidades espanholas de Sevilha e Toledo.

Silke Ackermann, curadora de instrumentos científicos no British Museum, passou muito tempo estudando este astrolábio: «As inscrições são todas em hebraico — é possível ver com bastante clareza letras do alfabeto hebraico finamente gravadas. Mas o que há de mais intrigante nesta peça é que nem todas as palavras estão em hebraico. Algumas têm origens árabes, outras são castelhano. Assim, por exemplo, ao lado de uma estrela da constelação que chamamos Aquila — a águia — vê-se escrito em hebraico nesher me’offel — “a águia voadora”. Porém outros nomes de estrela são dados na forma árabe: Aldebarã, em Touro, tem o nome árabe al-dabaran escrito em caracteres hebraicos. E, quando se leem as letras hebraicas dos nomes dos meses, elas formam os nomes espanhóis medievais como outubro, novembro, dezembro. O que vemos aqui, portanto, é o conhecimento dos astrónomos da Grécia clássica que mapearam o céu combinado com as contribuições de estudiosos muçulmanos, judeus e cristãos — e tudo na palma da mão.»

A Península Ibérica na Idade Média era o lugar na Europa onde florescia com grande intensidade a ciência, dado que era onde os muçulmanos e judeus eruditos em conjunto com os monges cristãos melhor guardaram o espólio dos conhecimentos mais avançados da Antiguidade Clássica grega e romana. Do século VIII ao XV, a mistura dos povos dessas três religiões foi um dos elementos mais característicos da cultura da Península Ibérica. No século XIV a Península Ibérica ainda era uma colcha onde pontuava Portugal, Castela e Aragão. Castela ainda fazia fronteira com o último Estado muçulmano independente que era o o reino de Granada que residia na Alhambra. Havia grandes números de judeus e muçulmanos, e os cristãos viviam juntos com eles, mantendo os ritos religiosos separados em catedrais, mesquitas e sinagogas. 
Isso não impedia, porém, um alto grau de interação recíproca, em particular no nível da ciência. O resultado foi uma civilização vibrante, criativa e original devido a esses contactos entre as três culturas. Essa coexistência, extremamente rara naquele período da história europeia, fez toda a diferença para que fosse de Portugal e Castela dado novos mundo ao mundo, como Luís de Camões bem gravou no seu poema épico dos Lusíadas.

Essa interação colocou o Portugal medieval na vanguarda da expansão marítima, graças não apenas a esse conhecimento erudito, mas também pelas naturais circunstâncias geográficas da orla marítima entre o Mediterrâneo e o Atlântico, onde o povo nórdico e viking dava cartas na arte de melhor navegar. Não só houve uma crescente aquisição de saber científico em torno de instrumentos astronómicos como também o conhecimento na arte de navegar em alto mar oceânico.

Abraão ben Samuel Zacuto [1450-1522] foi um astrónomo de origem judaica que serviu na corte do rei Dom João II de Portugal. Zacuto teria nascido em Salamanca. Ali teria estudado e lecionado astronomia e astrologia. Quando da expulsão dos judeus de Espanha em 1492, Zacuto refugiou-se em Portugal, sabendo-se que estava a serviço de Dom João II em junho de 1493.

Era já reconhecido como um importante astrónomo antes de chegar a Portugal. No país, seu trabalho foi importante para a ciência náutica. Foi chamado à Corte e nomeado Astrónomo e Historiador Real pelo Rei, cargo que exerceu até ao reinado de Dom Manuel I. Foi consultado por este monarca acerca da possibilidade de uma viagem por mar até à Índia, que apoiou e encorajou. Mesmo assim, Zacuto sofreu a expulsão de Portugal, tal como todos os judeus que recusaram se converter ao catolicismo, que era dada através do batismo, que o rei português impôs aos que aí viviam. Morreu no Império Otomano c. 1510. Abraão Zacuto foi o autor de um novo e melhorado astrolábio, que ensinou os navegantes portugueses a utilizar, e também de melhoradas tábuas astronómicas que ajudaram a orientação das caravelas portuguesas no alto-mar, através de cálculos a partir de observações com o astrolábio.


terça-feira, 23 de janeiro de 2024

As andanças de Yehudah Halevi



Yehudah ben Samuel Halevi (em árabe transl. Abu-I-Hasan ibn Levi) nasceu em Tudela, Navarra c. 1070, foi poeta, filósofo e médico em Toledo no tempo de Afonso VI, veio a ser sepultado em Jerusalém, c. 1141. Já adolescente, Yehudah Halevi, filho de levitas, sai da Tudela cristã e empreende a longa viagem para Granada, no sul. Vinte anos tinham passado desde o massacre de Granada. Os judeus que tinham fugido já voltavam à colina de Sabika. Oravam, comerciavam e cobravam impostos, mas mostravam uma cautela diplomática na forma como desempenhavam tais deveres. Evitavam ostentações. O mais talentoso deles, Moshe ibn Ezra, vinte anos mais velho do que Halevi, pertencia a uma antiga família cortesã de Granada que sobrevivera às degolas de 1066 e voltara ao trabalho silencioso, diligente e próspero.

Halevi foi bem recebido no jardim da poesia e na casa de Moshe ibn Ezra. Guerreiros berberes de Marrocos, chamados para reforçar os Estados muçulmanos contra avanços cristãos, tiveram tanto sucesso que se voltaram contra eles e tomaram toda a Andaluzia, inclusive Granada, fazendo da região seu próprio território. Como em momentos anteriores de renovação islâmica, os guerreiros eram ascéticos, militantes, hostis à lassidão e ao luxo, e tudo isso, é escusado dizer, era nefasto para os judeus. No novo regime de puritanismo, era impensável que infiéis ocupassem cargos elevados. Os irmãos de Moshe deixaram Granada para sempre, sendo-lhes tiradas as propriedades e os bens. O poeta ali permaneceu por alguns anos mais, antes de deixar a colina de Sabika e começar uma vida difícil vagueando de fronteira a fronteira, jamais esquecendo a perdida Andaluzia. Anos depois, já na meia-idade, Halevi escreveria para Moshe versos em que recordava o tempo em que ninguém atrelava ou usava os carros das estradas errantes.

A cristandade vivia o tempo de Afonso VI de Leão e Castela, o Bravo [1047-1109]. Desde 1065, foi até à sua morte, rei de Leão; desde 1072 rei de Castela; e desde 1073 rei da Galiza, intitulado Imperator totius Hispaniæ (imperador de toda a Hispânia) desde 1077 e rei de Toledo desde 1085. Em 1109, após o falecimento do benevolente Afonso VI e enquanto se aguardava a posse de seu genro e sucessor, o rei de Aragão, ocorreu outra carnificina violenta contra os judeus.

Onde haveria um lugar seguro? Em parte alguma, pois Castela vinha dificultando a vida dos judeus, e os almorávidas, que tinham atenuado um pouco sua rudeza, estavam por isso mesmo a ponto de serem sucedidos por outra tribo guerreira, a dos almóadas, que migravam do norte de África, entre a cadeia do Atlas e o oceano, onde ocorriam ondas de limpeza puritana. Os almóadas tornariam a vida dos judeus quase insuportável, submetendo-os a ondas de violência, com destruição de sinagogas e comunidades, conversões forçadas à ponta de espada. Por ora, porém, os almorávidas se mostravam mais pacíficos, pelo menos o suficiente para que no fim da década de 1120, metesse suas coisas na carroça e pela segunda vez na vida migrasse para o sul, em direção às andorinhas da Andaluzia. O lugar onde ele pousou por algum tempo foi a cidade onde, um século e meio antes, surgira a nova poesia hebraica: a Córdoba de Hasdai.



O Al Andaluz no tempo de Afonso VI e dos Almorávidas
P - Condado Portucalense. L - Leão. C - Castela. N - Navarra. A - Aragão

Em 1085, Afonso VI, aproveitando o pedido de ajuda da taifa de Toledo, contra um usurpador, sitiou esta cidade e aceitou a sua rendição a 25 de Maio. Depois desta vitória, passou a intitular-se imperador das duas religiões. A ocupação de Toledo significou a inclusão do território entre o Sistema montanhoso central da Península Ibérica e o rio Tejo no seu reino. Desta forma, pôde iniciar uma grande atividade militar contra as taifas de Córdoba, Sevilha, Badajoz e Granada. Nestas circunstâncias, os reis das taifas decidiram pedir ajuda aos almorávidas. O emir Iussufe ibne Taxufine atravessou o estreito de Gibraltar e venceu Alfonso VI na batalha de Zalaca, perto de Badajoz. Os mouros ainda cercaram Toledo, mas não lhes foi possível tomar a cidade. Nos últimos anos do seu reinado, Afonso tentou sem sucesso impedir a consolidação da dinastia almorávida no Al Andalus. Ocuparam as taifas do sul e impuseram-lhe uma nova derrota na batalha de Uclés (1108), onde morreria o seu único filho varão, Sancho Alfonsez. A coroa passaria assim para as mãos da sua filha Urraca, enquanto Teresa herdaria o Condado Portucalense.

 Tendo imaginado uma vida serena com um mentor benevolente em Granada, Halevi conheceu bem aqueles “carros das estradas errantes”. É difícil traçar com alguma correção o mapa de suas viagens, mas, ao que parece, de Granada ele foi para Lucena, cidade andaluza cuja população era predominantemente judaica e onde ele conhecia o diretor da ieshiva. Contudo, seu judaísmo a tornava um alvo preferencial para os conquistadores almorávidas, que impunham uma tributação punitiva como preço para não tornar obrigatória a conversão ao islão. Halevi transferiu-se então para Sevilha, onde ganhou a vida como poeta de aluguer, escrevendo poemas para casamentos, enterros e qualquer ocasião na vida cada vez mais difícil dos judeus da Andaluzia. Os poemas desses anos, que ainda impressionam pelo frescor e pelo coloquialismo despojado, na maior parte dos casos nascem desse estado de inconstância: despedidas, separações, ausências, saudades. Mantido “cruelmente” em cativeiro por uma “corça” e depois forçado a partir, o amante desgostoso recorre “para socorrer-se a uma maçã/ cuja fragrância lembra a mirra de teu hálito,/ a forma de teu seio/ e a cor do rubor que tinge tuas faces”.

Em algum momento na primeira década do século XII, Halevi decidiu que já estava farto dos almorávidas e cruzou a fronteira religiosa e militar, instalando-se em Toledo, na Castela cristã. Não foi como se ele estivesse entrando numa área desconhecida, pois passara a infância em Tudela, mais ao norte, na Navarra cristã. O rei Afonso VI de Castela mostrara-se hospitaleiro aos judeus precisamente por causa do conhecimento que tinham da língua e da cultura de seus inimigos muçulmanos, mas sua hospitalidade foi além da conveniência estratégica. Havia em Toledo uma comunidade judaica grande e próspera, que agora incluía o antigo mentor de Halevi, Moshe ibn Ezra, assim como o famoso Yosef ibn Ferruziel, nobre poderoso e médico pessoal do rei. Talvez tenha sido a demanda de médicos judeus que levou Halevi a se preparar para a profissão, como meio de complementar sua renda. Entretanto, embora tenha vivido ali vinte anos, casado e com três filhos, parece que nunca houve nenhum lugar onde ele se sentisse seguro ou especialmente feliz.

A medicina era penosa; Moshe ibn Ezra tinha deixado a cidade sob a sombra de um escândalo que envolvia uma sobrinha; seu amigo Shlomo ibn Ferruziel, sobrinho de Yosef, foi assassinado numa estrada, provocando uma onda de pesar e de raiva contra os cristãos. Dois dos três filhos de Halevi morreram, uma tragédia que inspirou ao pai enlutado um de seus poemas mais belos e pungentes, escrito em três vozes: a sua própria, a de sua mulher e a da criança morta: “Mesmo que eu chorasse/ rios inteiros por minha filha,/ Ainda assim ela estaria/ Numa cova de vermes./ Profundamente sepultada./ Coberta de terra./ Criança, não há clemência,/ pois a morte se interpôs entre mim e ti”.

O judaísmo de Halevi não é místico. Longe disso, o médico (por maior que fosse sua relutância) esforça-se para explicar ao rei cazar que os judeus eram, desde a Antiguidade, peritos em astronomia, que tinham dado ao mundo calendários (adotados por todos os povos desde então para dividir o tempo) e o dia de descanso na semana (que também se tornara universal). A Torá, ele insistia, podia parecer excêntrica, mas, como os rabinos e sábios do Talmude faziam o possível para explicar, na verdade estava recheada de instruções materiais, como por exemplo as maneiras de determinar, nos animais, manchas e defeitos que os tornavam impróprios para o sacrifício e o consumo humano. Não surpreende, pois, que a atitude de Halevi em relação a questões sagradas sobrenaturais seja poética: a essência de Deus encoberta à vista da razão, ausente do mundo do trabalho, encarnada apenas em formas de nomes divinos, mas impondo verbalização e vocalização em comum, seja na oração, seja em canções ou poemas.

O fim lógico de seu afastamento da cultura muçulmana e cristã era a jornada pessoal de regresso à própria Sião. O facto de Jerusalém estar agora nas mãos dos cruzados e de os judeus terem sido massacrados ali tornava esse chamamento mais urgente. A intensificação da fé fazia Halevi prestar atenção a sua voz interior, que lhe dizia que, quando houvesse um número suficiente de judeus no monte das Oliveiras, voltado para o monte do Templo, a shechiná retornaria ao santuário em ruínas que ela abandonara, e quando ela se manifestasse, até o Messias poderia reaparecer. No Kuzari, seu alter ego rabínico dissera ao rei, como estímulo à conversão, que boas intenções de nada valiam sem ações que as acompanhassem. Por isso, ele agora censurava a si próprio com frequência, consumido pela sensação de estar apenas parcialmente vivo no exílio, que ele descrevia como uma espécie de sono. A Arca, ele escrevera no Kuzari, era um coração, e agora era evidente que o seu se achava a leste da Sefarad: da península Ibérica.

No verão de 1140, Yehudah Halevi arruma suas coisas e parte. Com ele viajam Yitzhak ibn Ezra, marido da filha sobrevivente, que deixa na Espanha a mulher e um filho, Yehudah, assim chamado em homenagem ao avô, e um certo Shlomo ibn Gabbai. O poeta faz estardalhaço ao se separar da casa, do país e da mulher de tantos anos, a quem ele não parece ser muito ligado. 
Cartas preservadas na Guenizá do Cairo mostram Halevi como objeto de algo semelhante a um culto entre os abastados, os devotos e aqueles com aspirações culturais em Alexandria e no Cairo. Essas pessoas trocam cartas em que se dizem emocionadas com a chegada iminente de Halevi, ou preocupadas com sua demora. Há uma intensa competição entre admiradores que pretendiam lhe dar mostras de hospitalidade, demonstrações de ciúme mortal quando se diz que o Grande Poeta preferiu a casa de fulano, mas, de forma inexplicável, não a de beltrano. 

Ao que parece, Halevi foi tomado de surpresa com tudo isso e, assim que se recuperou dos enjoos da viagem marítima, pôs-se a refletir. Não tinha ido para lá como um peregrino, despojado de bens e vaidades terrenas, só querendo chegar à Palestina o mais depressa possível, para ali “beijar o pó, tão doce na boca quanto o mel”, de suas ruínas sagradas? No entanto, depois de todos os sofrimentos da jornada marítima, pensar em outra viagem, quer por terra, pela rota das caravanas, quer de novo pelo mar, até Acre, parecia um tanto intimidante para seus velhos ossos. Aliás, era iminente Rosh Hashaná (o Ano-Novo), e a seguir o Dia do Perdão, daí a pouco a Festa dos Tabernáculos e logo o Regozijo da Torá (como ele não havia de regozijar-se?), uma festa atrás da outra, e ao fim de todas o mau tempo faria de uma segunda viagem pelo mar uma perspectiva aterradora. E as pessoas em Alexandria eram tão amáveis, cada qual buscando ser mais hospitaleira, sobretudo Aharon al-Ammani, o pilar da comunidade, que abrira suas portas e, bem, insistira de verdade em que ele descansasse um pouco em sua mansão, tão bela, com seu bustan de árvores bem cuidadas e fontes murmurantes…

Assim, Halevi se deixou ficar ali por mais de dois meses, com o genro e o amigo, grato pela pródiga hospitalidade que Ammani lhe proporcionava, pela excelente mesa, pela tranquilidade do pátio, onde só era incomodado pelos admiradores que batiam na porta, desejosos de tocar a fímbria de seu caftan. O inverno se aproximava, impedindo a viagem por via marítima, mas se Halevi desejava mesmo partir, tanto quanto dizia, sempre podia ir para Fustat, onde outros entusiastas, entre os quais seu velho amigo Halfon ibn Natanael, ansiavam pelo prazer de sua companhia, e conseguir um lugar numa caravana que estivesse de partida para a Terra Santa. Antes de Chanuká, ele fez a viagem Nilo acima, hospedando-se com o nagid, o chefe da comunidade do Cairo, Shmuel ibn Ananias, que tentou, sem exageros, conter toda a gente que queria cobri-lo de homenagens. Num dia de inverno, ao que parece, Halevi tentou empreender a viagem por terra, tão espinhosa, a seu modo, quanto a travessia marítima, montado num camelo sacolejante por horas sem fim, através de uma rota que o levava muito mais ao sul do que as caravanas normais. Quer por causa do desconforto, quer por se sentir mal ou nervoso, ele desistiu da viagem e voltou para Fustat, recebendo pela primeira vez comentários de censura, gestos desaprovadores e frases como “não lhe disse?” por parte daqueles que lhe haviam repetido que aquela viagem era dura demais para um idoso de sessenta e tantos anos. Afinal, o que havia de tão errado no Egito?

O poema, que tratava de duas espécies de anseio, tornou-se logo tão popular que Halevi não pôde deixar de escrever outro, para seu anfitrião al-Ammani em Alexandria, de uma sensualidade ainda mais explícita, sobre aquelas mocinhas com todos os adornos pesados nos pulsos e nos tornozelos, “carregadas de sinos argênteos de maçãs e romãs”, o cabelo “negro como a tristeza de adeuses” ou tão claros que “um olhar ao sol que neles fulge queima a vista […] sedutoras, ágeis ou esguias, eu poderia apaixonar-me por todas elas e por suas perigosas bocas rubras”.52 Na segunda metade do poema, Halevi retorna, de maneira apropriada, à devoção, imaginando a si mesmo como um peregrino descalço em Sião, inundando a terra com suas lágrimas. Entretanto, o olhar cobiçoso dos versos anteriores, vindo de um ancião, eram tão perturbadores que um cidadão que organizara a fracassada caravana por terra se queixou de sua frivolidade a al-Ammani, que, por sua vez, não parece ter se importado nem um pouco.

Durante séculos, judeus quiseram saber o que fora feito dele. Benjamim de Tudela, viajante da cidade natal de Halevi, afirmou ter visto seu túmulo perto de Tiberíades, junto do mar da Galileia. Entretanto, não houve testemunhas posteriores que confirmassem essa informação, e, em vista da fama de Halevi e da constância das peregrinações de judeus, parece improvável que esse local tenha sido objeto de incúria. Seja como for, a nostalgia judaica por Jerusalém projetou-se em Yehudah Halevi, que sofreu por ela com mais eloquência e angústia do que qualquer outro poeta judeu antes ou depois dele, uma história que poderia se igualar à intensidade daquela ânsia. No século XVI, o judeu italiano Gedaliah ibn Yahya afirmou, numa coletânea publicada em Veneza, em 1586, que Halevi havia de facto chegado às portas de Jerusalém, onde morreu espezinhado pelos cascos do cavalo de um árabe.

Será crível que Halevi tenha chegado tão longe? Supondo-se que ele tenha sobrevivido à viagem relativamente curta de Alexandria a Acre, no fim de maio ou começo de junho de 1141, teria sido possível que ele chegasse a Jerusalém perto do dia do jejum do Nove de Av, que naquele ano caiu em 18 de julho, quando a proibição da presença de judeus era suspensa para que pudessem lamentar a destruição do Templo de Salomão e do Segundo Templo? A velha prática de caminhar em torno do perímetro da cidade e de rezar junto às portas não era bem-vista pelos cruzados, mas Halevi pode ter conseguido subir o monte das Oliveiras para dali contemplar o monte do Templo, onde o Domo da Rocha tinha sido transformado numa igreja cristã. Seria bem de seu feitio, tendo chegado tão longe, querer se aproximar de uma porta e talvez até se prostrar no chão, que, segundo ele dissera repetidas vezes, teria o perfume da mirra e seria doce como o mel.

sexta-feira, 19 de janeiro de 2024

Ramsés II



Ramsés II governou o Egito pelo período incrivelmente longo de 66 anos, presidindo uma era dourada de prosperidade e poder imperial. Durante o seu reinado as enchentes do Nilo produziram uma série de safras de excepcional fartura. Foi também um prodigioso empreendedor. Logo depois de assumir o trono, em 1279 a.C., partiu em campanhas militares para o norte e o sul, cobriu a terra de monumentos e foi visto como um governante tão bem-sucedido que nove faraós posteriores adotaram seu nome. Ainda era adorado como um deus nos tempos de Cleópatra, mais de mil anos depois.

Ética e escrúpulos eram conceitos que ainda não tinham sido inventados no tempo de Ramsés II. Para poupar tempo e dinheiro, simplesmente alterava as inscrições de esculturas preexistentes, que passaram a levar o seu nome e a louvar suas façanhas. Ergueu por todas as partes do reino vastos templos como Abu Simbel, e imagens gigantescas esculpidas e talhadas diretamente nas encostas rochosas do vale do Nilo. Os americanos foram atrás,  como se vê nos rostos de presidentes americanos esculpidos no monte Rushmore.

No extremo norte do Egito, de frente para as potências vizinhas do Mediterrâneo e da Mesopotâmia, fundou uma nova capital, modestamente chamada de Pi-Ramsés Aa-nakhtu, a “Casa de Ramsés II, Grande e Vitorioso”. Um complexo memorial em Tebas, perto da moderna Luxor, esmaga qualquer veleidade dos povos vizinhos. Um templo onde seria venerado em vida e depois cultuado como um deus por toda a eternidade. Ocupa uma área imensa, do tamanho de quatro campos de futebol, contendo templo, palácio e tesouros.



Ramsés II em Luxor

Há algo de muito humilde, uma celebração do que um povo pode fazer unido, porque essa é a outra coisa extraordinária da arquitetura e da escultura egípcias, o envolvimento de um número imenso de pessoas e o facto de ser um ato coletivo de celebração da própria capacidade de realizar. Isso é muito importante. Esta escultura de sorriso sereno não é criação de um artista individual, mas uma conquista de toda a sociedade — o resultado de um imenso e complexo processo de engenharia e logística. O granito da escultura veio de uma pedreira em Assuã, mais de 150 Km ao sul, rio Nilo acima, e foi extraído em um único bloco colossal. A estátua inteira devia pesar originalmente cerca de vinte toneladas. Em seguida, o bloco foi modelado em linhas gerais, antes de ser transportado, em trenós de madeira puxados por grandes equipas de operários, da pedreira para uma jangada que desceu o Nilo até Luxor. 

Rebocada do rio, a pedra foi submetida à fase mais refinada do trabalho. Uma enorme quantidade de mão de obra e organização foi necessária para erguer uma só estátua como esta, e toda a força de trabalho precisava ser treinada, administrada, coordenada e, se não era paga — muitos seriam escravos —, pelo menos alimentada e abrigada. Para produzir esta escultura, uma máquina burocrática alfabetizada e versada em números, além de muito bem oleada, era essencial — a mesma usada também para administrar o comércio internacional do Egito e organizar e equipar seus exércitos.

Ramsés sem dúvida tinha grande habilidade e alcançou êxitos reais, mas, como todos os mestres supremos da propaganda, na falta de êxito ele inventava. Não era nada excepcional em combate, mas conseguia mobilizar um exército considerável e abastecê-lo com armas e equipamento. Fosse qual fosse o resultado das batalhas, o discurso oficial era sempre o mesmo: os triunfos de Ramsés. 

Ele compreendia muito bem que ser visível era fundamental para o êxito da monarquia, por isso ergueu todas as estátuas colossais que pôde e com muita rapidez. Construiu templos para os deuses tradicionais do Egito, e esse tipo de atividade tem sido interpretado como exibicionista, mas é preciso situar tudo isso no contexto dos requisitos da monarquia. As pessoas necessitavam de um líder forte, e para elas líder forte era um rei que fazia campanhas no exterior em benefício do Egito e era bem visível dentro do Egito. Podemos até examinar o que pode ser tido como “manipulação favorável” dos registros da batalha de Kadesh, em seu quinto ano, que terminou em empate técnico. Ele voltou para o Egito e ordenou que o registro dessa batalha fosse inscrito em sete templos, apresentando-a como um êxito extraordinário e afirmando que ele sozinho tinha derrotado os hititas. Portanto, foi tudo manipulação desonesta com finalidade política, e ele entendeu perfeitamente como usá-la.

Esse rei não apenas convenceu o povo da sua grandeza: determinou também a imagem do Egito imperial para o mundo inteiro. Mais tarde, os europeus ficariam fascinados. Por volta de 1800, as agressivas potências rivais — na época franceses e britânicos — competiram entre si para ficar com a imagem de Ramsés. Os soldados de Napoleão tentaram remover a estátua em 1798, mas não conseguiram. Há um buraco do tamanho de uma bola de tênis aberto no tronco, pouco acima do peito direito, que segundo especialistas é resultado dessa tentativa. Em 1799, a estátua estava quebrada.



Ramsés II no Museu Britânico

Quando chegou à Inglaterra, era, de longe, a maior escultura egípcia que o público britânico já vira, o que dava uma ideia da escala colossal das realizações egípcias. Só a parte superior do corpo tem 2,5 metros de altura e pesa sete toneladas. Os faraós tinham compreendido o poder da escala, e com esse propósito faziam-se temer e ser reverenciados. 
Em 1816, o busto foi removido, de forma bastante apropriada, por um homem forte de circo que se tornara comerciante de antiguidades chamado Giovanni Battista Belzoni. Usando um sistema hidráulico especialmente projetado, Belzoni reuniu centenas de operários para arrastar o busto em cilindros de madeira até às margens do Nilo, quase o mesmo método usado antes para levá-lo até o Ramesseum. É uma poderosa demonstração dos feitos de Ramsés o facto de que transportar apenas metade da estátua foi considerado uma grande façanha técnica três mil anos depois. A carga imensa seguiu para o Cairo, depois para Alexandria, e por fim para Londres. Ao chegar lá, surpreendeu a todos, provocando uma revolução no modo como os europeus viam a história de sua cultura. O Ramsés do British Museum foi uma das primeiras obras a contestarem a noção tradicional de que a grande arte começara na Grécia.

quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

Memória da Guerra



Existe em quase todos os países do mundo um Túmulo do Soldado Desconhecido. É um monumento dedicado às memórias comuns de todos os soldados mortos na guerra. Geralmente são monumentos nacionais de alto perfil. Ao longo da história, muitos soldados morreram em guerra e seus restos mortais não foram identificados. Após a Primeira Guerra Mundial, um movimento surgiu para homenagear esses soldados com um único túmulo, contendo o corpo de um desses soldados não identificados.



Porto, Praça Carlos Alberto

No Porto há um Monumento aos Mortos da Grande Guerra, na Praça Carlos Alberto. É da autoria de Henrique Moreira, e foi inaugurado em 9 de abril de 1928. Acabaria por substituir um primeiro monumento construído na cidade, em 1924, por iniciativa da Junta Patriótica do Norte. Integrando-se na tipologia: "1914. Aos Mortos da Grande Guerra. A cidade do Porto. 1918".

Ainda tenho memória de ouvir o meu avô, com quem vivi até ele partir quando eu tinha acabado de fazer dez anos, falar dos gazeados da primeira guerra, guerra em que Portugal entrou. Da Alemanha até ao antigo Império Austro-Húngaro e da Europa do Leste à Rússia, a memória e a celebração da Primeira Guerra Mundial nunca assumiram as proporções nem a permanência memorial como no Ocidente europeu. Depois da guerra, as cerimónias de celebração de suas memórias naturalmente variaram de país para país, mas os Aliados vitoriosos logo desenvolveram uma série de tradições semelhantes para lembrar o conflito e honrar os seus mortos.

De um modo geral diz-se que os túmulos do Soldado Desconhecido contém os restos mortais de homens comuns mortos na Primeira Guerra Mundial que não foram identificados. Representam o sacrifício de todos os soldados. Em 11 de novembro de 1920, a França inaugurou seu Túmulo do Soldado Desconhecido sob o Arco do Triunfo, e a Grã-Bretanha inaugurou o Túmulo do Guerreiro Desconhecido na Abadia de Westminster. A Itália seguiu o exemplo em sua comemoração do armistício no ano seguinte, 4 de novembro de 1921, no Monumento a Vittorio Emanuele II ao lado das ruínas do Fórum, em Roma.



Roma
Monumento a Vittorio Emanuele II


Em 1922, no quarto aniversário do armistício, a Bélgica enterrou cinco de seus mortos de guerra desconhecidos ao pé da coluna do Congresso, em Bruxelas. Os ex-domínios só adotaram o conceito do “soldado desconhecido” tardiamente, com a Austrália enterrando um deles em 1993, o Canadá, em 2000, e a Nova Zelândia, em 2004, cada um no National War Memorial – em cada caso, um soldado não identificado morto na frente ocidental na Primeira Guerra Mundial. O conceito de “soldado desconhecido” se manteve limitado às vítimas representativas da Primeira Guerra Mundial em toda parte, exceto nos Estados Unidos, que mais tarde concedeu honras semelhantes a mortos não identificados da Segunda Guerra Mundial e das guerras da Coreia e do Vietname, embora, neste último caso, o soldado homenageado tenha sido identificado graças à tecnologia de DNA e voltou a ser sepultado em outro lugar, sem ser substituído. É provável que a disponibilidade de testes de DNA tenha tornado o conceito dos “soldados desconhecidos” um anacronismo, garantindo a singularidade da conexão da Primeira Guerra Mundial para com a maioria das pessoas homenageadas dessa forma.



Bélgica



Otawa

A celebração da memória da Primeira Guerra Mundial continua a ter um lugar especial na Austrália mais do que em qualquer outro lugar, e dentro dela, o sacrifício de vidas australianas em Galípoli continua a ser o foco. Os 8.700 australianos que ali morreram representaram menos de um quarto das mortes dos Aliados na batalha, ao passo que, para a Austrália, os homens mortos em Galípoli representaram menos de 15% dos 60 mil mortos do país na Primeira Guerra Mundial (dos quais 46 mil caíram na frente ocidental). No entanto, desde o início, Galípoli tem ocupado um lugar central na memória de guerra da Austrália. Milhares de australianos ainda fazem a peregrinação anual à Angra do ANZAC, para ver o lugar onde seus antepassados lutaram e morreram. A Celebração ao Amanhecer, realizada na praia a cada 25 de abril, atrai enormes multidões e, normalmente, apresenta o discurso de um australiano importante. 

A Rússia acabaria por fustigar o grupo dos países da Europa Central e do Leste, fracos demais para se defender, mas, às vezes, como a Sérvia, em 1914, demasiado imprudentes ou irresponsáveis na busca de suas próprias metas nacionais para evitar conflitos com os vizinhos mais poderosos. Com bastante frequência, os europeus do entreguerras culparam o idealismo conciliador de Wilson por esse estado disfuncional de coisas. Mas, como observou Walter Russell Mead, os ideais de Wilson “ainda orientam a política europeia de hoje: autodeterminação, governo democrático, segurança coletiva, direito internacional e uma liga de nações”, consubstanciada na União Europeia. Assim, uma vez que se supere a responsabilização da Conferência de Paz de Paris por iniciar a Segunda Guerra Mundial, o legado para a Europa parece ser baseado em princípios positivos forjados no calor de 1914 a 1918, revolucionários, no longo prazo, apenas no sentido da revolução democrática. 

quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

Os que passaram os últimos dias de vida a cavar trincheiras



Ivan Kuznetsov e seus camaradas, para não mencionar seus oficiais, tinham ficado completamente desnorteados com as marchas e contramarchas na zona fronteiriça. No fim de agosto, recuaram para um lugar onde um grande contingente de conscritos civis cavava trincheiras. As tropas ocuparam-nas durante a noite e, quando amanheceu, receberam ordem para abandoná-las e recuar. Mas, já chegando a uma cidadezinha, um coronel os alcançou a galope para dizer, aos gritos, que tinham de voltar para as trincheiras.

Nos primeiros dias da Primeira Guerra Mundial o caos entre os Habsburgos instalou-se. Colunas de peças de artilharia puxadas por cavalos seguiram adiante da infantaria. Ordens e contraordens fizeram unidades marcharem em círculos. Em dramático contraste com as "frentes" quase contínuas da França, nos vastos espaços do leste havia unidades a extraviarem-se, às vezes durante dias; o paradeiro do inimigo tornava-se tema de especulação. A noite costumava chegar sem que as rações alcançassem as tropas fatigadas. O oficial de estado-maior Theodor Ritter Zeynek lamentava os kinderkrankheiten — “problemas de iniciantes” — na cavalaria, que custaram severas perdas: imprudentes faziam travessuras na frente do inimigo com o mesmo descuido que seus avós demonstraram no século XIX. Havia poucas aeronaves disponíveis de ambos os lados, e a falta de reconhecimento aéreo levou a outra série de choques aleatórios que custaram aos exércitos de Ivanov a perda de uma centena de canhões e de vinte mil soldados capturados.

Ludwig Wittgenstein era um dos tripulantes do barco de piquete austríaco Goplana, no Vístula, que abandonaram o barco diante do impetuoso avanço do inimigo. “Os russos estão nos nossos calcanhares”, escreveu ele em seu diário. “Estou sem dormir há trinta horas.” No dia seguinte, a tripulação voltou a ocupar o barco, mas apenas para recuar até Cracóvia pelo rio Dunajec. Atrás de Przemyśl, a disciplina e o moral austríacos melhoraram um pouco, enquanto as tropas de Conrad recuavam para seu próprio território, depois de romper contacto com o inimigo. Constantin Schneider notou: «O comportamento dos soldados melhora a cada dia. Carregam suas armas nos ombros, de acordo com as ordens, e não as arrastam pelo chão nem as levam como desportistas. A procura de coisas para saquear à beira da estrada parou, e nem mesmo os cavalos são arrebanhados de qualquer maneira.»

Ludwig Wittgenstein era judeu, e só viria a conhecer a realidade mais tarde, com o obsessivo encarniçamento de Hitler contra os judeus. As coisas vinham piorando para os judeus desde o fim do século XIX, e atingiram o clímax no fim da Segunda Guerra Mundial com o Holocausto. Algo de medonho se passou entre a Europa Oriental e a Europa Central. No território dos Habsburgos, um decreto do exército austríaco, digno do Terceiro Reich, proclamava que só a crueldade e a brutalidade extremas sufocariam potenciais atividades dissidentes entre os moradores. Havia uma crença generalizada de que os rutenos eram simpatizantes dos russos. Um grupo de detidos pela polícia do exército, enquanto era conduzido pelas ruas da cidade, foi atacado por uma turba aos berros de “forca para os traidores!”. Algumas tropas húngaras territoriais, ao ouvirem o clamor, tomaram os detidos na Bocianstrasse e liquidaram-nos, menos quatro, a golpes de sabre.

Soldados de todas as companhias e de todos os pelotões se misturaram. Oficiais chamavam aos berros por seus soldados. Voltaram, na maior desordem, para as trincheiras, mais uma turba do que um regimento. Centenas de soldados russos correram de um lado para outro, à procura de suas companhias, quase sempre em vão. Uma granada explodiu ao lado de Kuznetsov, deixando-o inconsciente. Ao acordar, ele percebeu que fazia um grande silêncio. Estava prisioneiro dos polacos. Posto numa carroça e levado para a retaguarda, Kuznetsov viu mortos e feridos espalhados por toda parte.

Poucos quilómetros atrás da linha da frente, a cidade de Lublin vivia um clima de excitação febril. Multidões se reuniam em frente à catedral para examinar peças de artilharia capturadas dos austríacos, com suas placas protetoras — numa delas a inscrição Ultima Ratio Regis, noutra Pro Gloria Patriae — crivadas de balas. Um jovem artilheiro russo mostrava com orgulho a civis ignorantes como era o seu trabalho, dando ordens imaginárias, carregando projéteis de faz de conta, puxando os cordéis de disparo e gritando “Fogo!”. Nuvens de poeira erguidas por milhares de botas flutuavam sobre as ruas. Na estação ferroviária, soldados deitavam-se curvados em grupos, dormindo com as espingardas ao lado e os bonés puxados sobre os olhos. “Mesmo às duas ou três da manhã”, escreveu uma testemunha, “a cidade é incapaz de sossegar; as ruas fervilham de uma gente excitada e ansiosa depois da vitória”. Ela viu uma multidão de prisioneiros austríacos escoltada pelas ruas, a maioria fitando os pés, sem olhar em volta, para evitar contacto visual com os moradores.

A população deixava a cidade em longas colunas. Em carroças, a pé, a cavalo. Todo mundo fazendo o possível para se salvar. Todo mundo carregando o que podia, o cansaço, a poeira, o suor e o pânico estampados em cada rosto, um abatimento, uma dor e um sofrimento terríveis. Os olhos estão assustados, os movimentos, medrosos: um terror medonho oprime-os a todos. Como se a nuvem de pó que levantaram ficasse presa a eles e pudesse carregá-los pelo ar. Há até carretas militares, enquanto, pelos campos, marcham a infantaria derrotada, a cavalaria perdida. Nenhum soldado carrega mais o seu equipamento completo. A horda exausta escorre pelo vale. 

A queda de Lemberg, a quarta maior cidade do império dos Habsburgos, foi uma grave humilhação, e os problemas austríacos persistiriam pelos próximos dias: perderam-se muitos canhões, inclusive alguns que simplesmente foram abandonados pelas guarnições para acelerar a fuga. A única rota de fuga dos austríacos ficava ao sul, e eles a tomaram. Os austríacos se levantaram de um salto e correram para a frente, atravessando terreno aberto sob barragem de artilharia, Rathenitz atrás deles lutando para conter sua exaltação.
 O próprio Rathenitz mal tinha começado a arranhar o chão quando sentiu um golpe no pé direito, seguido de uma dor aguda no alto da perna. Sabia que tinha sido atingido. Teve de ficar deitado a céu aberto pelas quinze horas seguintes, até escurecer, porque nenhum padioleiro teria coragem de enfrentar as saraivadas de balas que assolavam a área. Foi consolado pela companhia de um soldado que o ajudou a cavar uma trincheira. 

Os russos avançavam implacáveis, ameaçando os austríacos com um desastre absoluto. Conrad fez um apelo aos alemães para que o ajudassem. O kaiser, com suas forças no meio da crise da retirada do Marne, respondeu que nada poderia fazer naquele momento. Os êxitos russos deviam-se muito mais aos erros crassos austríacos do que à sua habilidade de comandante ou valentia, mas a humilhação de Conrad era incontestável. Os súbditos do czar nas áreas da fronteira da Galícia ficaram eufóricos quando os invasores foram rechaçados. Stanislav Kunitsky, proprietário de terras, tinha mandado os filhos para Lublin quando os austríacos invadiram a sua propriedade e passou 36 horas escondido na adega do solar com a mulher, enquanto a batalha continuava lá fora. Libertado — por enquanto — pelos cossacos, ele convidou os oficiais para um banquete em que se destacaram “uma fabulosa sopa de repolho” e uma carpa gigante do seu tanque. Enquanto o jardim de Kunitsky continuava a ser perfurado por crateras de granadas, a mesa era enfeitada com ásteres de outono.

O adido militar britânico Alfred Knox, que acompanhava o avanço russo, assistiu certa noite ao interrogatório de alguns prisioneiros de guerra austríacos. Ficou fascinado com o insistente apego do captor às regras da fidalguia: “Foi uma cena inesquecível, a sala apinhada de oficiais, uma única vela bruxuleante, e os prisioneiros. Só sargentos e alguns soldados são interrogados (...) segundo a teoria russa, o oficial é um homem de honra e não deve ser insultado com pressões para dar informações prejudiciais ao seu país.” 
Havia um nítido contraste entre a condição de oficial e a condição de soldado nas fileiras austríacas. 

Sob a pressão de derrotas, o exército incongruente e multiétnico de Conrad ficou ainda mais fragmentado. Unidades recrutadas no leste se mostraram especialmente pouco confiáveis. O 19º Landsturm de Infantaria, por exemplo, era composto dos chamados rutenos, em sua maioria ucranianos. O regimento desmoronou numa das batalhas de agosto, com soldados desenvencilhando-se de armas e equipamentos durante a fuga. Em setembro, o que sobrou do regimento foi expulso da guarnição de Przemyśl, tido como desleal demais para defender um setor.

No conflito de 1914-1918, e ainda no de 1941-1945, era motivo de desânimo e frustração para os aliados ocidentais o fato de os russos serem obsessivamente reservados sobre suas operações, e em especial sobre as derrotas. Na Grã-Bretanha, o New Statesman reconheceu em 17 de outubro o manto de mistério que envolvia os acontecimentos no leste, pelo menos no que dizia respeito ao mundo exterior. Admitiu que a batalha que se desenrola no momento pode durar muito tempo, talvez semanas. No lado dos Habsburgos, Conrad confessou com frieza a seu estado-maior que, se o arquiduque Franz Ferdinand ainda estivesse vivo, mandaria pegar e fuzilar o arquiteto daquele estarrecedor desastre militar — ele mesmo. 

Uma característica da guerra na Frente Oriental era que a logística obrigava cada lado, um de cada vez, a fazer alto em seu avanço. As intendências russa e austríaca eram igualmente fracas, e a chegada das chuvas de outono transformou as estradas não pavimentadas em atoleiros. Os russos tinham na Galícia exércitos grandes demais para sua capacidade de supri-los adequadamente, naquela região de poucas ferrovias. Faltava tudo, menos homens: soldados percorriam campos de batalha com sacos, coletando ferraduras de cavalos mortos. Sergei Kondurashkin ouviu um soldado, no meio do canhoneio, gritar de uma cabana de camponês para todo mundo: “Venham comer! Fervi umas batatas, e só Deus sabe quando nossas rações vão chegar.” Uma fila intermitente de soldados desafiou o bombardeio austríaco para correr até à cabana e aproveitar a comezaina.

No quartel-general austríaco, Alexander Pallavicini tentava ver o lado positivo, consolando-se com o pensamento de que o exército escapara de um desastre terminal: “Nenhuma notícia a não ser de pequenos encontros ao longo da linha da frente. Carroças puxadas por cavalos estropiados arrastavam-se, chacoalhando e rangendo, do campo de batalha para a retaguarda, carregadas de homens arruinados, frequentemente moribundos, prostrados em camas de palha ensanguentadas; dos três transportados em cada veículo, era raro dois chegarem vivos aos postos de triagem; e era menor ainda o número dos que sobreviviam mais tempo. Alexei Ksyunin ouviu um ferido russo conversar em termos amigáveis com um prisioneiro Habsburgo, também ferido, na mesma carroça.

O hospital de Lublin era um espetáculo medonho — mais de 2.500 feridos apertados em trezentos leitos. Homens espalhavam-se no chão, nas salas, nos corredores e nas cozinhas, muitos sem receber cuidados, porque os suprimentos estavam exauridos, assim como médicos e enfermeiras. Um homem gritou um angustiado protesto a um transeunte: “Levem-no daqui! Está pisando na gente, colocando suas botas em cima da gente.” Um soldado atingido na cabeça, agora totalmente cego, caminhava por um corredor apalpando a parede. Outro, com a cabeça enfaixada, agarrou-se a um fogareiro, os olhos turvos e sem vida, até passar um oficial. Por reflexo, ele se levantou com dificuldade para prestar continência.

Um armazém da estação de Lublin ficou superlotado de feridos que não encontraram vaga no hospital. Enfermeiras polacas andavam com cautela pela multidão prostrada, ensanguentada e gemente, distribuindo cigarros. Um russo fez um gesto para seu vizinho austríaco e disse a uma das moças. “Dê-lhe um. É gente nossa. Fala nossa língua. Ele podia ser um ucraniano.” A história pode ser verdadeira, porque na Galícia, mais do que em qualquer outro teatro de operações, os súbditos dos dois imperadores em conflito sentiam um forte vínculo de parentesco no meio da difícil situação que viviam, algemados a um conflito que ia além de sua compreensão e de sua simpatia, sob as ordens de dois bufões rivais em uniforme de gala. Num hospital de Varsóvia, o correspondente Sergei Kondurashkin perguntou a um soldado ferido porque tantos pacientes tinham sido atingidos nos braços. O homem respondeu com sarcasmo: porque os atingidos na cabeça foram obrigados a permanecer no campo de batalha. O jornalista escreveu: “Ouvem-se muitas histórias, mas acabam sendo uma só, assim como os próprios soldados são sempre os mesmos, e também as circunstâncias em que milhares, e dezenas de milhares, de soldados viveram no campo de batalha.”


terça-feira, 16 de janeiro de 2024

O fracasso do Ocidente na história do Médio Oriente



A história do Médio Oriente, desde finais do século XIX, é a história do fracasso do desenvolvimento. A descolonização, meramente formal, nunca se desdobrou em emancipação política, social, económica e cultural das populações. Muito se entenderá se lembrarmos que todas as grandes rupturas foram pontuadas por derrotas. Em 1948, por exemplo, a guerra que envolveu Israel e o Mundo Árabe, sinaliza a falência dos regimes pró-ocidentais em lidar com o desafio de um Estado colonizador. Na verdade, a importância do estabelecimento de Israel enquanto Estado judeu no coração do mundo muçulmano teve motivações que apenas tiveram um valor simbólico. 

O ano de 1956 e a Guerra do Suez marcam o fim da influência de jure do Ocidente em detrimento da afirmação de facto do Mundo Árabe. Ainda assim, os novos regimes fracassaram tanto interna como externamente. Em junho de 1967 ocorre a terceira guerra entre Israel e a frente árabe, a chamada Guerra dos Seis Dias, que simboliza o fracasso da hegemonia árabe. Depois a Revolução Iraniana em 1979 trouxe para a região a verdadeira questão do Médio Oriente, que é o domínio geoestratégico disputado no Mundo Muçulmano entre sunitas e xiitas. A aspiração de um mundo árabe secular foi gorada. O que emergiu foi a velha ideia de Jihad promovida pelos Aiatolá que impuseram no Irão, até aos nossos dias, um verdadeiro regime teocrático. A
 nítida emergência de uma alternativa islamista ao secularismo árabe. Este, porém, vivido como um sinal de esperança pelas massas árabes, acontece fora do próprio mundo árabe. E no lugar de se expandir e trazer o esperado renascimento que outorgaria aos muçulmanos árabes os recursos psicológicos, sociais e militares para se emancipar de imposições estrangeiras (tanto as reais quanto as imaginárias), a exportação da revolução islâmica provocou, no âmbito árabe, somente repressões e novas guerras perdidas.

A Guerra do Golfo de 1990/1991 contra a ocupação iraquiana do Kuwait teve conotações múltiplas. As perdas para o Irã levaram ao aprofundamento das aspirações islamistas, imunes a críticas racionalistas. Foi exatamente esse que cresceu, não obstante as sanções decretadas pelos Estados Unidos da América. Na prática, o Ocidente não conseguiu imprimir uma resposta efetiva.

Entre 1945 e 1967, quase todos os países árabes ainda dominados chegaram à independência política. Contudo, os caminhos para essa liberdade foram dramaticamente diferentes. Os impérios coloniais da França e da Grã-Bretanha seguiram rumos distintos na sua liquidação (que foi estimulada pelas novas superpotências, os EUA e a URSS). O Líbano e a Síria, ocupados conjuntamente pela França e Grã-Bretanha, chegaram à independência em 1943, ainda que desacordos adiassem sua implementação até 1946. Fora da Transjordânia, onde a influência inglesa continuou preponderante, a maior possessão colonial remanescente da Grã-Bretanha após a Segunda Guerra foi a Palestina, cuja administração se tornou cada vez mais inviável devido à luta entre a sociedade autóctone árabe (que logo após a guerra ainda constituía dois terços da população do mandato) e a comunidade sionista de imigrantes. Ambas ambicionavam agora a independência: os palestinos preferindo talvez se fundir a um Estado panárabe futuro, enquanto os sionistas militavam em favor de um Estado judeu separado. Nenhum dos dois aceitou a legitimidade do outro, e em ambos a maioria rejeitou soluções de meio-termo.

A miséria dos sobreviventes judeus do holocausto, aliado ao sentimento de culpa dos Aliados, outorgou em finais dos anos 1940 um crédito de simpatia internacional aos sionistas. Quanto aos palestinos, estes conseguiram tornar seu conflito local uma causa panárabe (e cada vez mais pan-islâmica). Na percepção do mundo árabe, o assentamento judeu da Palestina se confundia com o colonialismo ocidental, ambos destinados à erradicação. Entretanto, a Grã-Bretanha entregou a possessão à ONU, sucessora da Liga das Nações, que ordenou, em 1947, a partilha do território em dois Estados independentes, um para cada comunidade.

O Estado judeu projetado sobrepunha mais ou menos os assentamentos sionistas já existentes. Mesmo assim, incluía uma “minoria” palestina árabe hostil, que na verdade representavam 49% da população. Num território tão exíguo, a proposta só teria alguma chance, evidentemente, se ambas as comunidades se entendessem e se comprometessem a uma estrita convivência. A Agência Judaica aceitou, o lado árabe recusou. Na guerra que se seguiu a comunidade judaica na Palestina derrotou os palestinos, declarou a sua independência e expulsou os exércitos de sete Estados árabes, que imediatamente declararam guerra. Já o Estado independente palestino nunca se tornou realidade. Cerca de 750.000 palestinos fugiram em circunstâncias controversas para os países vizinhos, onde sua presença se perpetuou ano após ano e logo constituiu um problema humanitário e político de grande magnitude. Armistícios foram assinados em 1949, mas a tensão não diminuiu.

O Iémen, a única região relativamente fértil da península arábica, havia sido partilhada no século XIX entre o Império Otomano e a Grã-Bretanha, que quis controlar o Áden, porto de trânsito vital. A parte setentrional do Iémen conquistou a independência após a retirada otomana e se tornou uma monarquia religiosa (xiita zaidita) semelhante ao vizinho sunita saudita. Nos anos 1960, uma guerra civil entre o rei e a oposição republicana modernizadora provocou ali intervenções do Egito de Nasser e da Arábia Saudita. Por fim, estabeleceu-se uma república pouco estável. O sul colonizado pelos ingleses, no entanto, obteve a independência em 1967, mas se radicalizou num curso socialista filo soviético. Esta República Democrática Popular do Iémen, porém, não sobreviveu à implosão do bloco soviético. Ambos os Iémen finalmente se unificaram em 1990.

Nos anos 1950 e 1960, a Guerra Fria teve efeitos internos e regionais, e dividiu o mundo árabe em dois blocos antagónicos de Estados. Os chamados conservadores, tais como a Arábia Saudita, os sultanatos e emirados peninsulares, além da Jordânia e Marrocos, entre outros, constituíam em geral monarquias sob forte influência ocidental – agora, mais precisamente dos EUA, após a retirada britânica e francesa. Por outro lado, houve uma série de regimes ditos progressistas, originários de revoluções antiocidentais. Foi o caso do Egito, Síria, Iraque, Argélia e Líbia, alinhados à URSS, onde se estabeleceram orientações panárabes e “socialistas”. Tais governos tentaram um desenvolvimento estatal, mas os resultados dessas “ditaduras de desenvolvimento” foram desapontadores. Entre esses dois grupos de Estados, não houve amizade. Tentativas para promover a unidade árabe, tais como a Liga Árabe, estabelecida em 1945, foram incapazes de superar as diferenças e suspeitas mútuas. Forças centrífugas também operaram dentro de cada um dos grupos e contrariaram as tendências rumo à unificação.

Os anos 50 testemunharam o auge do pan-arabismo, cuja base social se encontrava no exército. A revolução mais radical ocorreu sem dúvida no Egito, onde o golpe dos Oficiais Livres em 1952 levou à emergência de Gamal Abdul Nasser. Político árabe mais carismático do século XX, Nasser se tornou emblema do pan-arabismo, tanto em seus êxitos quanto em seu fracasso final. Nasser era progressista sem ser antirreligioso nem marxista, mas levou a cabo, de facto, a industrialização e o desenvolvimento económico da agricultura egípcia sem sacrificar um certo ideal de justiça social. Seus planos logo o puseram num curso de colisão contra os velhos interesses imperiais.

Para financiar seus ambiciosos projetos de irrigação no Nilo, Nasser nacionalizou, em 1956, o Canal de Suez, provocando uma aliança entre França, Grã-Bretanha e Israel – este último inclusive sofreu incursões de fedaiyin palestinos de Gaza, apoiados pelo Egito. Na Guerra de Suez, o Egito foi derrotado e a Península do Sinai, ocupada. Porém, a pressão conjunta dos EUA e da URSS logo obrigaram sua devolução. Nasser conseguiu transformar uma derrota militar numa vitória política, e se tornou, da noite para o dia, o ídolo das massas no mundo árabe inteiro. Aproveitando o prestígio, o Egito pouco depois se uniu à Síria na República Árabe Unida (RAU). No entanto, foco de profunda instabilidade política e centro de turbulência panárabe, a Síria se sentiu insatisfeita e desfez a unificação em 1960.

A facilidade com que a guerra fria entre Israel e seus vizinhos se reacendeu ilustra a instabilidade deste quadro: aqui não houve contenção, dissuasão, nem cálculos racionais como os observados entre os EUA e a URSS. Na Guerra dos Seis Dias, Israel ocupou o Sinai, do Egito; dos restos do Estado palestino definido em 1947 mas nunca erigido, Israel ocupou a Cisjordânia jordaniana (inclusive Jerusalém oriental, terceira cidade sagrada do islão, que foi anexada) e a Faixa de Gaza; e da Síria, ocupou os Montes Golã. Israel sobreviveu e se expandiu, mas ficou com um milhão de palestinos atravessados no caminho, cuja presença no decorrer dos anos reanimou o dilema insolúvel entre Estado democrático e Estado judaico – dilema que a “limpeza étnica” dos árabes palestinos de 1948, com a retirada dos palestinos do território de Israel, parecia ter evitado.

Os Estados árabes reagiram se armando novamente e preparando a próxima investida. Esta veio em 1973, com a Guerra de Outubro (Guerra de Yom Kipur). A primeira guerra onde os árabes não foram derrotados abriu espaço psicológico para uma acomodação com Israel. Começando pelo Egito, as elites chegaram gradativamente à conclusão de que o conflito com Israel era caro demais e impossível de ser ganho. Em 1977, Sadat iniciou o processo de paz que lhe custaria a vida (ele seria assassinado em 1981, por islamistas egípcios). Suas ações individuais afetaram a solidariedade árabe e conduziram ao isolamento temporário do Egito. Aos poucos, no entanto, outros líderes árabes, vulneráveis demais para uma atuação pioneira, seguiriam seus passos.

A OLP (Organização para a Libertação da Palestina) tornou-se famosa pelas ações – entre militares e terroristas – de comandos palestinos: atentados e sequestros vistosos, mas militarmente impotentes. Politicamente, portanto, os palestinos conquistaram um lugar no mapa; militarmente, eles nunca ameaçaram Israel. O que de facto afetou Israel (e ainda apenas marginalmente) foram os contatos políticos de israelitas com líderes palestinos dos territórios ocupados. Tendo aprendido essa lição, a OLP de Yasser Arafat se engajou cautelosamente no caminho político; mais uma vez, cautelosamente e devagar demais para frear a radicalização de Israel, que se alimentou dos próprios atos terroristas palestinos que nunca cessaram completamente.

Uma combinação de circunstâncias favoráveis proporcionou, em 1991, a oportunidade para negociar um processo de paz oficial. Não obstante, ao longo de seu caminho, os palestinos tiveram que deixar de lado boa parte de sua bagagem ideológica. O que a liderança propunha já não era mais a libertação inteira da pátria árabe perdida, mas um pequeno Estado que provavelmente seria bastante dependente de Israel. Junto aos seus princípios ideológicos, os generais palestinos moderados perderam boa parte dos seus militantes. Para os mais radicais, o ganho possível no novo programa político era pequeno demais e parecia não justificar a perda do ideal e da honra implicada nas duras negociações com o adversário. O resultado foi que uma fração mais extremista tanto entre os palestinos quanto entre os israelitas estava pronta a se utilizar da violência para descarrilar o processo de paz. Estes indivíduos e grupos foram recrutados maioritariamente entre os fundamentalistas de ambas as religiões.

domingo, 14 de janeiro de 2024

Líbano



Quando o Líbano se tornou independente, na década de 1940, incluiu três regiões com diferentes tipos de população e tradições de governo: 1) a região do monte Líbano, com uma população sobretudo cristã (maronita no norte e drusa e cristã no norte e no sul); 2) as cidades do litoral de população mista, muçulmana e cristã; 3) certas áreas rurais a leste e ao sul do monte Líbano, onde a população era basicamente muçulmana xiita. A primeira dessas áreas tinha uma longa tradição de administração separada sob seus próprios senhores, e depois como um distrito privilegiado do Império Otomano. As outras, que tinham sido parte integrante do Império Otomano, foram incorporadas ao Líbano pelo governo sob o mandato da França. 

Assim, o novo Estado - Líbano - era um Estado democrático quando os franceses deixaram o país. Houve um acordo entre os líderes dos maronitas e dos muçulmanos sunitas de que o presidente da República seria sempre maronita, o primeiro-ministro sunita, e outros postos do governo e da administração distribuídos entre as diferentes comunidades religiosas, mas de modo a preservar o poder efetivo em mãos cristãs. Entre 1945 e 1958, o sistema conseguiu manter um equilíbrio e um certo grau de cooperação entre os líderes das diferentes comunidades, mas no período de uma geração as suas bases começaram a se enfraquecer. 

A população muçulmana cresceu mais que a cristã, e na década de 1970 admitia-se em geral que as três comunidades coletivamente vistas como muçulmanas (sunitas, xiitas e drusos) eram maioritárias. Alguns de seus líderes mostravam-se menos dispostos a aceitar uma situação em que a presidência e o poder último ficasse nas mãos dos cristãos. Além disso, as rápidas mudanças económicas no país e no Médio Oriente haviam levado à transformação de Beirute numa grande cidade, na qual metade da população do país vivia e mais da metade trabalhava. Beirute tornara-se numa extensa cidade-Estado; precisava do controlo de um governo forte e eficaz. O fosso entre ricos e pobres aumentara, e os pobres eram sobretudo muçulmanos; precisavam de uma redistribuição de riqueza, através de impostos e serviços sociais. Um governo baseado num frágil acordo entre líderes não estava em boa posição para fazer o que se exigia, pois só podia sobreviver se não seguisse qualquer política que perturbasse interesses poderosos.

Em 1958 o equilíbrio desfez-se, e houve vários meses de guerra civil. Na década e meia seguinte acrescentou-se um outro fator que foi o confronto entre os palestinos e Israel. Isso causou alarme em importantes elementos entre os cristãos, e em particular no seu mais bem organizado partido político, o Kata’ib (Partido Falangista). As atividades palestinas no sul estavam levando a uma forte reação de Israel, que podia ameaçar a independência do país. A presença de palestinos dava apoio aos grupos, sobretudo muçulmanos e drusos, que queriam mudar o sistema político em mãos cristãs.

Em 1975 houve um perigoso confronto entre o Kata’ib e seus aliados em Israel, e os palestinos e seus aliados na Síria. A luta séria irrompeu na primavera daquele ano, e continuou, com altos e baixos, até fins de 1976, quando se chegou a uma trégua mais ou menos estável. A principal instigadora disso foi a Síria, que mudara a política durante o período da luta. Tinha apoiado os palestinos e seus aliados no início, mas depois aproximara-se do Kata’ib e seus aliados, quando estava iminente a derrota. Estava em causar um equilíbrio de forças que contivesse os palestinos e lhes dificultasse seguir uma política no sul do Líbano que arrastasse a Síria a uma guerra com Israel. Para preservar esses interesses, enviou forças armadas ao Líbano, com uma certa aprovação dos outros estados árabes e dos EUA, e elas permaneceram lá depois do armistício. 

Grupos maronitas dominavam no norte, o exército sírio estava no leste, e a OLP dominava no sul. Beirute dividiu-se entre uma parte oriental, controlada pelo Kata’ib, e uma parte ocidental, controlada pela OLP e seus aliados. A autoridade do governo quase deixara de existir. O poder incontido da OLP no sul levava-a a um intermitente conflito com Israel, que em 1978 desencadeou uma invasão; foi detido por pressão internacional, mas deixou atrás um governo controlado por Israel numa faixa ao longo da fronteira. A invasão e a situação perturbada no sul levaram os habitantes xiitas da área a criar sua própria força política e militar: o Amal.

Em 1982, a situação adquiriu uma dimensão mais perigosa. O governo nacionalista em Israel, tendo assegurado a fronteira sul pelo tratado de paz com o Egito, tentava agora impor a sua própria solução aos palestinos. Isso envolveu uma tentativa de destruir o poder militar e político da OLP no Líbano, instalar um regime favorável lá, e depois, livre da resistência efetiva palestina, seguir a sua política de assentamento e anexação da Palestina ocupada. Com certo grau de aquiescência dos EUA, Israel invadiu o Líbano em junho de 1982. A invasão culminou num longo sítio à parte ocidental de Beirute, habitada sobretudo por muçulmanos e dominada pela OLP. 

O sítio acabou com um acordo, negociado através do governo americano, pelo qual a OLP evacuaria Beirute Ocidental, com garantias de segurança para os civis palestinos dadas pelos governos libanês e americano. Ao mesmo tempo, uma eleição presidencial resultou na vitória do chefe militar do Kata’ib -  Bechair Gemayel. Mas foi assassinado logo depois, tendo-lhe sucedido por eleição seu irmão, Amin. O assassinato foi aproveitado por Israel como uma oportunidade para ocupar Beirute Ocidental. Isso permitiu que o Kata’ib efetuasse um massacre de palestinos em larga escala nos acampamentos de refugiados de Sabra e Chatila.

Embora a invasão houvesse mostrado a impotência da Síria ou de outros países árabes para empreender uma ação combinada e efetiva, tropas sírias continuavam em partes do país, e a influência síria era forte junto aos que se opunham ao governo. A Síria e seus aliados podiam obter um certo apoio da URSS, enquanto os EUA estavam em posição de dar apoio tanto militar como político ao Kata’ib. 

A partir de Sabra e Chatila o componente americano na força multinacional foi aos poucos aumentando suas funções, de defesa da população civil para apoio ativo ao novo governo libanês e a um acordo. Nos últimos meses de 1983, a força estava empenhada em operações militares de apoio ao governo libanês, mas, após ataques aos marines, e sob pressão da opinião pública americana, retirou suas forças. Sem apoio efetivo americano, e enfrentando forte resistência dos drusos, xiitas e da Síria, o governo libanês cancelou o acordo com Israel. Um dos resultados desse episódio foi o surgimento do Amal e outros grupos xiitas como grandes fatores na política libanesa. Em 1984, o Amal tomou o controlo de facto de Beirute.

A guerra civil dilacerou o Líbano entre 1975 e 1991. Os detalhes dessa luta de várias frentes são extremamente confusos, mas as linhas gerais são bastante claras. Entre os anos 40 e 70 do século XX, o Líbano foi amplamente considerado a “Suíça árabe”. Um mundo comercial, próspero e pacífico. Esta percepção, entretanto, era enganadora. O Estado libanês conseguiu manter, desde a independência, uma frágil democracia graças ao Pacto nacional de 1944, que estabeleceu e perpetuou a dominação maronita. Essa dominação era condicional e se baseou numa partilha do poder com as outras comunidades, que receberam, cada uma, uma certa proporção de vagas (funcionários públicos, posições de poder etc.), reservadas em função de um censo dos anos 40. A maior taxa de crescimento dos muçulmanos, no entanto, abalava o equilíbrio comunitário. Esse equilíbrio, excepcionalmente, prevenia a dominação de um grupo ou seita, e abria no Líbano um espaço maior para a liberdade de expressão do que em outras partes. Beirute era o centro de todos os grandes debates literários e políticos. Mas essa liberdade também propiciou intromissões que acabariam minando tal construção.

Nos anos 60 e 70, o arranjo de 1944, que partilhara o poder entre as comunidades religiosas que constituíam a república libanesa, mas que favoreceu os maronitas e prejudicou os muçulmanos (e seitas cristãs), foi gradualmente minado pelo crescimento demográfico mais intenso dos muçulmanos. Contudo, os maronitas não estavam dispostos a reabrir a negociação. Uma fachada de prosperidade superficial e de vivacidade intelectual não pôde esconder que as tensões intercomunitárias estavam se aprofundando. O catalisador da guerra civil foi a presença de algumas centenas de milhares de refugiados palestinos, maioritariamente muçulmanos, que eram rejeitados e discriminados. O influxo, desde 1970, de milhares de guerrilheiros fugitivos da Jordânia, que usaram o sul do Líbano como novo trampolim para incursões em Israel – provocando assim retaliações israelitas – desequilibrou o frágil sistema. O Estado, destituído de órgãos neutros e quase sem exército funcional, ficou indefeso.

Alguns incidentes entre milícias em 1975 foram suficientes para desencadear um ciclo repleto de massacres e atrocidades mútuas. A guerra civil opôs inicialmente um bloco de maronitas, de direta, a um movimento sunita de esquerda, drusos e palestinos. Teoricamente, a esquerda quis reforçar os laços do Líbano com o mundo árabe (e foi então apoiado pela Síria), enquanto a direita enfatizou seu caráter idiossincrático (e foi apoiada por Israel). Mas os rótulos ideológicos mascararam mais do que desvendaram. Logo ficou claro que a situação era muito mais complexa: os maronitas eram divididos em clãs hostis; as elites sunitas privilegiadas algumas vezes se alinharam com os maronitas; cristãos ortodoxos árabes se alinharam em geral com a esquerda; os xiitas, tradicionalmente a parcela mais atrasada da população, originalmente concentrada no sul mas que a miséria e as guerras trouxeram parcialmente para Beirute, radicalizaram-se e participaram com suas próprias milícias. E os palestinos, também divididos em facções opostas, eram odiados por todos os outros.

Potências vizinhas mais fortes aproveitaram o caos para se intrometer em prol de seus próprios interesses. A Síria, apesar da sua retórica radicalmente de esquerda, não pôde suportar a ameaça de uma supremacia militar dos palestinos, mais progressistas, e mandou seu exército contra eles, o que facilitou às milícias maronitas massacrá-los em Tell al-Za’atar, Beirute, 1976. Israel interveio em 1978 para expelir os palestinos do sul do Líbano, e repetiu sua ação, muito mais maciçamente, em 1982. Nessa guerra, Israel conseguiu afastá-los de suas bases no sul e exilou a liderança da OLP de Beirute na Tunísia, provocando uma nova invasão síria na maior parte do Líbano – muito mais duradoura do que a própria invasão israelita.