quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

Dualismo cognitivo, não ontológico


A autoconciência é diferente da consciência. A consciência em primeira pessoa é a premissa das relações interpessoais, e são dessas mesmas relações que depende a nossa natureza como pessoas. Se considerarmos os animais não humanos, apesar de muitos dos quais serem conscientes, é duvidoso que sejam autoconscientes. Tomemos o exemplo da dor. A dor é algo que podemos ver num outro, é um conhecimento que podemos ter na terceira pessoa, assim como podemos saber se alguém está alegre ou deprimido. Mas saber “como é” sentir uma dor é um conhecimento veiculado pelo entendimento, ou seja, é consciente e na primeira pessoa. “Saber como é” ter uma dor, apenas justamente o podemos saber tendo-a. A ideia da “essência de uma dor”, é algo interior, aquilo que os filósofos de língua inglesa designam por “qualia”. É a qualidade dos fenómenos internos que precisam de uma autoconsciência - 
a consciência das criaturas como nós que podem dizer o que estão sentindo - para percepção imediata e criteriosa do próprio estado fenomenológico. É esta subjetividade da existência de um self que consagra o Eu no uso da nossa linguagem. É a atribuição na primeira pessoa dos estados mentais que legitima a crença de que há algo mais no nosso estado mental consciente que está vedado aos meios externos da ciência física. O processo interno apresenta-se tal como ele é dentro de nós, e isso mostra algo que jamais pode ser observado por outro, na medida em que apenas está disponível pela via introspetiva. 

Mas há aspetos distintos no que diz respeito aos qualia. Ver a cor vermelha é uma experiência visual distinta de sentir uma dor, degustar um vinho, ou cheirar um perfume. Descrever a cor vermelha de uma maçã, por exemplo, pode ser partilhado com outros quando acompanhado de um ato ostentatório. Nós podemos mostrar a uma criança uma maçã vermelha e dizer: "isto é o vermelho", para lhe ensinar as cores. Coisas vermelhas são coisas que são assim; e ver a cor vermelha é uma experiência visual que se tem quando olhamos para alguma coisa assim. Olhar a cor vermelha é diferente de olhar a cor verde porque as coisas vermelhas são diferentes das coisas verdes. Neste exemplo de qualia há um certo carácter externo que é diferente quando falamos de dores, ou sabores, uno cenário que é totalmente interno, ainda que um observador externo possa percecionar sinais indiretos, quando os manifestamos no nosso comportamento, ou o tentamos exprimir através da linguagem. Isto vem ao encontro de John Locke, e creio já no sentido abordado por Aristóteles, sobre as qualidades secundárias. Será que elas realmente estão ali, nas coisas que parecem possuir, ou será que estão apenas na nossa cabeça?

O que se pode dizer é que existem modos de conceptualizar estas questões, que em termos filosóficos continuam ainda abertos a muita controvérsia. São usados conceitos para os quais as ciências físicas empíricas pouco podem contribuir. O que podemos fazer é acertar conceitos por acordo mútuo, no respeito por uma intersubjetividade em que a autoridade reside justamente no nível da primeira pessoa. 
Quando lhe pergunto, “O que você fará?”, a minha pergunta busca uma resposta. É algo bem diferente da pergunta “O que ele fará?”, e as duas questões não são instâncias substitutas de um simples esquema “O que x fará?”. Uma pergunta busca uma decisão, a outra busca uma previsão e, ao buscar decisão, estou me dirigindo ao Eu do outro. Para fazer isso, comprometo-me àquelas “razões independentes de desejos” formadas por conceitos que não têm papel nenhum na descrição do mundo físico: conceitos como direito, dever, justiça, virtude, pureza, que informam nossas trocas interpessoais. A pergunta “porquê”, nas relações interpessoais, não é aquele tipo de pergunta que possa ser respondida por um neurologista. O que nos interessa é o que está na mente do outro. 

O “Eu” permite identificar a mim mesmo na primeira pessoa que estou apto a viver a vida de um ser racional, e este facto me situa na rede de relações interpessoais da qual derivam os preceitos básicos da racionalidade. A ciência não me pode dizer quem eu sou. Mas as pessoas, além de serem sujeitos, também são objetos que podem ser encontrados no mundo do aqui e agora. O Eu e o Tu são do domínio da intencionalidade (na expressão da fenomenologia husserliana) ou seja, da consciência de alguém para alguém. É o mundo da vida, o mundo aberto à ação.

Há uma diferença entre o mundo vivido, o mundo que se nos manifesta, e ao qual nós reagimos por via das nossas percepções e sensações, razões e motivos que comandam as nossas ações; e o mundo da ciência, que é o relato que emerge da tentativa sistemática de explicar o que observamos. Os dois mundos não são comensuráveis. Não existem correspondências diretas entre estes dois mundos. Assim, a fenomenologia das qualidades secundárias na primeira pessoa, não figuram assim com tanta facilidade nas teorias da física, como figuram na nossa linguagem comum. Uma coisa são os qualia; outra coisa são comprimentos de onda de luz refratada. Wilfrid Sellars distingue o espaço da lei, no qual eventos são representados de acordo com as leis da física, do espaço dos afetos e razões, em que os eventos são representados de acordo com as normas de justificação e raciocínio que governam a ação humana. Esses dois pontos de vista são incomensuráveis: isto é, não podemos deduzir de um deles uma descrição do mundo como visto pelo outro. O mundo da vida é irredutível ao mundo das leis da ciência física. É o caso, por exemplo, da música. Uma sinfonia do ponto de vista do músico, ou do melómano, é incomensurável com o ponto de vista do especialista em acústica.

A autoconsciência seria sempre seria deixada para trás por parte de qualquer relato puramente físico. Seriam uma espécie de resíduo irredutível de uma explicação neurológica. As razões para isso são muitas, mas as duas mais importantes são a fenomenologia em primeira pessoa e a intencionalidade. Os dualistas cognitivos argumentam que a introspecção revela um caráter interior irredutível dos nossos estados mentais, os qualia, que não são acessíveis a qualquer teoria física. Além disso, os estados mentais têm a característica peculiar de “direcionalidade” sui generis que não podem ser reduzidos a qualquer relação entre eventos físicos ou coisas.


segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

Copy-paste de Countdown de Alan Weisman



A cada quatro dias há mais um milhão de pessoas no planeta. Mais pessoas e menos recursos. Alan Weisman examina como podemos encolher a nossa pegada humana coletiva para que não empurremos mais espécies - incluindo a nossa – para fora da existência. A resposta: reduzir gradualmente e não violentamente o número de humanos no planeta cujas atividades, indústrias e estilos de vida estão a prejudicar a Terra.
Definir uma população humana ideal para a Terra é um conceito explosivo. Weisman, um dos mais brilhantes escritores ambientais, relata-nos uma viagem pelo mundo, desde os assentamentos de Israel e das planícies do México até às movimentadas ruas do Paquistão e cidades do Reino Unido. Em busca de respostas, ele fala com muita gente: líderes religiosos, demógrafos, ecologistas, economistas, engenheiros e agrónomos.
Sahel

A Líbia, com 6 milhões de pessoas, ocupando o nº 17 em tamanho do território, apenas o nº 103 em população, tem petróleo, mas não tem água. As nascentes do norte da Líbia são contaminadas pela água do mar, a água potável desses 90% chega pela obra-prima de Muammar Kadhafi, o “Grande Rio Feito pelo Homem” – a maior rede de canais ligados a mais de mil fontes perfuradas que entram num aquífero que dista a 500 metros da areia, no sul. A água que eles extraem é a que se acumulou quando o Saara estava repleto de plantas e animais, um período que terminou há cerca de 6 mil anos, quando o eixo da Terra sofreu um ligeiro desvio. Tais acontecimentos alteraram profundamente o Norte de África.

O Saara está crescendo rumo ao cinturão semiárido em direção ao sul, conhecido como Sahel, que separa o deserto das savanas tropicais da África Central. Contornando a parte superior do continente africano, o Sahel tem 965 quilómetros de largura em seu ponto mais largo – pelo menos por enquanto.

No Níger, nação do oeste africano, ao sul da Líbia, Al-Haji Rabo Mamane é chefe de Bargaja, uma vila do Sahel, com 2 mil habitantes, a 20 quilómetros ao norte da fronteira com a Nigéria. Um homem de 70 anos e cavanhaque branco, ajusta a sua djalabiya azul-celeste ao redor dos calcanhares descalços, endireita seu gorro azul e bordado, sagrado, e começa a falar; tem 17 filhos, ainda vivos, mas já perdeu outros tantos. Ele está sentado num belo tapete azul e verde, debaixo de um toldo de palha. Os últimos anos têm sido difíceis. Em 2010, poucas lavradas no Níger chegaram à colheita. O milhete, cereal básico, secou todo e morreu nas espigas, com a antecipação da grande seca. O mesmo aconteceu com o amendoim. O sorgo, geralmente tolerante ao calor, cresceu, mas não produziu sementes. O gado ficou sem pasto. 


“Então, nossas crianças começaram a morrer.” O World Food Programme tentou levar alimento humanitário via aérea para 5 milhões de pessoas desesperadas, mas Mamane ainda perdeu três – apesar de que, como chefe, ele pôde mandar uma esposa ao centro de saúde administrado por médicos franceses, em Maradi, capital da região e segunda cidade mais populosa do Níger. Lá, ela os viu morrer de malnutrição, um após o outro. Ela é a esposa mais jovem. “Eu me casei com ela quando ela tinha 12 anos, quando estava fresca”. Todos os seus bebés morreram; um tinha três anos, outro tinha dois. Um morreu depois de apenas uma semana. Em 2011, ele perdeu mais dois. Duas de suas outras esposas estavam amamentando; malnutridas, elas ficaram anémicas e seus seios secaram. Os bebés morreram de anemia e do oportunismo da malária. “Minha esposa mais jovem ainda estava tão aborrecida que eu pensei em me divorciar dela, para lhe dar outra chance com outro homem. Mas, felizmente, ela está grávida novamente.” Um murmúrio de aprovação surge entre os homens que estão à sua volta.

Ele tampouco tem certeza do número de esposas. Embora o Corão lhe permita até quatro esposas, contanto que possa cuidar delas com responsabilidade; ao longo dos anos, algumas esposas ficaram, algumas partiram. Algumas delas também morreram. Uma, ele sabe, tem três filhos ainda vivos. Três de nove partos. Seu filho mais velho, Inoussa, agachado na beirada do tapete do pai, veste uma djalabiya azul-marinho, com gorro de prece roxo, e faz uma soma na terra, com o dedo. “Ano passado, esta vila perdeu 180 crianças. Inoussa, de 42 anos, tem três esposas que lhe deram onze filhos, seis ainda vivos. Ele é considerado rico, pois tem um hectare inteiro só para ele, para lavrar. Há cinquenta anos, todos tinham dois hectares, mas a terra foi tão fracionada entre os tantos filhos que os dois hectares que um dia alimentaram uma família de vinte agora precisam sustentar sessenta ou setenta. “Temos esses problemas, que não sabemos como resolver”, diz o pai. “Temos gente demais”, responde Inoussa. Olhos franzidos se voltam para ele. “Sim”, diz ele, “choramos porque estamos a ser esmagados pelas nossas próprias crianças.” Por toda a sua vida, ele ouviu que todo nascimento é uma bênção. Deus dá, contudo Deus também tira.

Há dois anos, quando pararam de trabalhar por três dias para rezar pela alma do último filho morto, eles tomaram uma decisão: ir à clínica em Maradi, com as três esposas para começarem a tomar a pílula do planeamento familiar. Inoussa não tentou esconder isso na vila, e os outros homens não esconderam o seu desconforto quanto ao que ele havia feito. Ele não tentou convencê-los: “Eles puderam ver os resultados com os seus próprios olhos". As três esposas eram muito magras, mas agora ganharam peso. Ninguém engravida há dois anos. Isso é bom, porque ter onze filhos é um grande teste para a resistência delas.

À medida que ele explica isso, os outros homens parecem perplexos. No Níger, cada mulher tem, em média, de sete a oito filhos – a taxa de fertilidade mais alta da Terra. As suas esposas deveriam ter-lhe dado 21 filhos, mas pararam sem chegar nem à metade disso. A poucos metros de onde os homens estão conversando, duas das esposas do chefe estão sentadas no chão de terra, perto da porta, ouvindo. Nenhuma delas pesa mais de 40 quilos. Na região rural do Níger, os melhores alimentos, como ovos, vão para os homens. Em seguida, as crianças são alimentadas. Em épocas difíceis, as mulheres mal comem. Hassana, a esposa mais alta e mais velha, está amamentando um filho chamado Chefiou, de quatro meses. Ela tem dois outros, um casal. Mas uma mãe também mantém a contagem de suas perdas. O primeiro, um menino, morreu com quatro anos. A segunda, uma menina, com um ano e sete meses. O terceiro e o quarto viveram. O quinto morreu aos três anos. O sexto, com um ano. Eram meninas. Ela pousa Chefiou em seu colo e limpa os olhos com a bainha de seu hijab florido. “É muita tristeza ter e perder um filho. Deus dá vida, depois tira. Mas eu não posso ir contra a vontade de Deus. Porque sei que Deus também poderá tirar a minha vida quando Ele quiser.” Ela já ouviu falar sobre planeamento familiar. Isso não lhe interessa. "Quando chega uma crise de alimento e uma doce criança morre, você tem de continuar tendo outras, enquanto puder. Se eu parasse, e se as que eu tenho não sobreviverem? Não teria nada." Mas será que apenas três não têm uma chance melhor porque haveria mais alimento para eles?

“Se nós pudéssemos garantir comida suficiente, eu não teria de ter sempre um em meu útero e outro nas minhas costas, então, sim. Mas essa garantia não existe.” Ela desvia o olhar para a sua colega esposa, Jaimila, encolhida num outro canto, com um khimar azul sobre uma saia de batik escondendo a sua gravidez. “Além disso, se houvesse menos crianças e mais comida, os maridos simplesmente correriam para ter mais esposas, e as esposas irão competir umas com as outras, para terem mais filhos. Então, novamente, não haverá comida suficiente.” Ela se casou tarde, aos 16 anos. Jaimila, nem tanto, pois tinha 12 anos quando casou com o chefe, e seus três bebés morreram. Ela não se lamenta por não ter a oportunidade de encontrar um marido mais jovem, em vez de ter filhos de um homem de setenta anos? “Mas ele é o chefe”, responde, intrigada pela pergunta.

Há um dizer no Níger: um velho com dinheiro é um jovem. As esposas de outros homens perdem até mais bebés, e mais depressa, pois o chefe tem mais terras e animais. Embora, ultimamente, ninguém tenha muito. “Se eu ainda tivesse meus três, ou se Deus me der mais três, depois deste, talvez eu possa parar, algum dia. Mas eu teria de ir até Maradi, para ter as pílulas. E ele logo estará velho e não vai querer. Então, eu deixo a ideia de lado.”

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

A verdade da arte acerca da realidade


A verdade acerca da realidade é daqueles temas que tem ocupado a mente humana ao longo de milénios. É razoável dizer que uma obra de arte é verdadeira se acreditarmos que a ação retratada é verosímil. As obras de arte representacionais, como é o caso do retrato de uma pessoa representada por um pintor, representam estados de coisas, ou objetos, retratados de uma certa maneira. Isto prende-se naturalmente com o conceito de verdade, porque podemos perguntar: “Essa pessoa existe de facto no mundo?” Ou se um objeto representado existe e se realmente existe da forma como é representado. Ou ainda se uma representação de um determinado tipo de coisas nos oferece um exemplo representativo desse tipo de coisas. Se assim for, podemos dizer que a obra é verdadeira, ou verdadeira relativamente a um determinado aspeto.

As obras de arte, se conseguem retratar situações de que tivemos experiência, de tal modo que essa representação parece apoiar-nos acerca da explicação da experiência que tivemos, então é plausível a verosimilhança da situação retratada. Também se diz, em especial acerca da narrativa de ficção, que, devido à sua capacidade para descrever várias situações imaginárias alternativas, nos pode elucidar sobre a forma como devemos viver.

Estamos em Paris na viragem do século XX, onde jovens artistas e escritores vindos das mais diversas partes do mundo se encontram para novos caminhos à procura da verdade na arte. Entre muitos mais, são exemplos:

Cézanne [1839-1906], Matisse [1869-1954], Proust [1871-1922], Gertrude Stein [1874-1946], Pablo Picasso [1881-1973], Georges Braque [1882-1963], Derain [1880-1954], Juan Gris [1887-1927], Appolinaire [1880-1918], Francis Picabia [1879-1953], Ezra Pound [1885-1972], Ernest Hemingway [1899-1961], James Joyce [1882-1941]. 



Cézanne defrontou-se com o escárnio para com as suas pinturas. Quando os críticos "oficiais" de arte, contemporâneos de Cézanne, viram pela primeira vez as suas pinturas, disseram que ele era absolutamente louco; a sua arte era uma distorção deliberada da natureza. Cézanne acreditava que a vista não bastava. Era preciso reflexão. O que Cézanne intuía era que as nossas impressões exigem interpretação. Sempre que abrimos os olhos, o cérebro entrega-se a um ato espantoso de criação. Hoje a neurociência diz que são as células no córtex visual que constroem silenciosamente as imagens das coisas que pretendemos ver. A visão seria incompleta sem o ato voluntário da nossa perceção. E em base disso, muitos afirmam que a realidade não anda por aí à espera de ser testemunhada; a realidade é construída pela mente. Mas, mesmo que todas as pessoas do meu país ou do mundo inteiro acreditem em algo, o facto de o acreditarem não o torna verdadeiro. O facto de em tempos passados toda a gente pensar que era verdade que a Terra não se movia, é falso dizer que a Terra estava parada quando toda a gente pensava que a Terra estava parada, e que passou a mover-se quando as pessoas começaram a pensar que se move. 

Em 1903, Gertrude Stein deixa a faculdade de medicina de John Hopkins no Maryland, apenas a um semestre da licenciatura em medicina, e muda-se para Paris, instalando-se na casa do irmão que acabara de comprar um quadro de Cézanne. Gertrude Stein e o irmão visitavam frequentemente os Matisse que constantemente retribuíam as visitas. De vez em quando madame Matisse convidava-os para almoçar, o que acontecia principalmente quando recebia alguma lebre de presente. Lebre estufada feita por madame Matisse à moda de Perpignan era algo fora do comum. Tinha também vinho de primeira, um pouco pesado, mas excelente. Mas de quem se tornou realmente próxima foi de Picasso. As paredes da casa do irmão começavam a ficar repletas de quadros dele, Leo era um bom patrono dos pintores, e um dia Picasso não teve como dizer não a um pedido de Gertrude, que lhe fizesse um retrato. Picasso lutou com o retrato de Gertrude como nunca tinha lutado com outra pintura.

Bem, Stein pousou para este retrato, que se vê aqui na imagem, umas 90 vezes. Dia após dia, Stein regressava ao apartamento de Picasso no alto das colinas de Montmartre. Muita coisa aconteceu durante esse tempo, muita conversa sobre filosofia, William James e Einstein, e claro, mexericos da vanguarda. Um dia, de repente, Picasso irritou-se, e cobriu de tinta toda a cabeça dizendo: “já não posso olhar mais para ti”. E deixou assim o retrato. Picasso só concluiu o quadro meses mais tarde (1906) depois de ter ido passar uns tempos a Espanha. Quando regressou a Paris o estilo que trazia já era outro. Pegou de novo no retrato de Gertrude Stein, e aplanou a testa, dando-lhe a tez de uma máscara primitiva. Era parecida com um retrato de mulher que Picasso havia visto no apartamento dos Stein, da autoria de Cézanne. Como sabemos agora, Cézanne viria a revelar-se o precursor de toda aquela malta de pintores.

Stein confidenciaria mais tarde: “Ver as coisas de maneira diferente é realmente difícil. Tudo nos impede: os hábitos, a escola, a razão. De facto, existem muito poucos génios no mundo”. William James era o seu herói. James visitou uma vez o apartamento dos Stein em Paris. E viu as paredes repletas de Cézanne, Matisse e Picasso. "Eu disse-lhe" - disse ele enquanto olhava para os quadros e suspirava - "que devia manter a mente sempre aberta".

Gertrude Stein, ao contrário da geração de escritores que a precedeu, dizia que as nossas palavras eram simbólicas, e não como espelhos da realidade. E mais tarde Chomsky viria a dar-lhe razão. A abordagem dos behavioristas à linguagem estava absurdamente errada. Chomsky demonstrou com grande eloquência que as estruturas que governam a linguagem vinham de dentro da mente. Uma segunda ideia de Chomsky era que determinadas frases contêm dependência a longa distância de outras palavras muito anteriores na frase. A estrutura da linguagem – uma estrutura que as suas palavras compõem – faz parte da estrutura do cérebro.

A neurociência sabe agora que a mente depende da carne. As emoções são produzidas pelo corpo. Por efémeros que pareçam, os nossos sentimentos estão na realidade enraizados nos movimentos dos músculos, nas palpitações e nas entranhas das vísceras. A mente é corpórea, e não apenas cerebral. Nós somos corpo e alma, ou corpo e mente, conforme o gosto das palavras, ou o odor dos sovacos do carrasco quando chicoteia a alma do escravo. As subtilezas da alma perdem-se se ignorarmos as subtilezas do corpo. E as subtilezas do corpo perdem-se se ignorarmos as subtilezas da alma. E é isso que acontece quando a arte e a ciência sofrem de incompreensão mútua.

Há muitas maneiras diferentes de descrever a realidade. A verdade da arte é diferente da verdade da ciência. A ciência não consegue descrever a nossa experiência concreta. E a arte é inútil para descrever os quarks, os genes ou as galáxias. Há pelo menos uma coisa que podemos dizer: não é possível reduzir a arte à física.


quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

O sofrimento


Cada indivíduo tem uma escala pessoal de sofrimento, que está relacionada com uma escala pessoal de necessidades: uns resistem melhor à dor, outros são mais sensíveis, uns são mais fortes emocionalmente, outros choram por tudo e por nada. As mesmas situações podem provocar em cada um de nós emoções diversas, sofrimentos diferentes. Todos precisamos ou desejamos diferentes coisas; e mesmo quando necessitamos das mesmas coisas, a intensidade dessa necessidade varia. Por conseguinte, tudo parece ser o resultado das leis cegas da natureza e do comportamento humano, e não o resultado de qualquer arbítrio divino. Há uma abundância de mal no nosso mundo. Se podemos preveni-lo, então temos a obrigação moral de o fazer. Richard Swinburne, um filósofo britânico, estabelece uma distinção entre mal moral (todo o mal causado deliberadamente pelos seres humanos ou permitido por negligência) e mal natural (todo o mal que não sendo produzido por seres humanos, resulta das puras leis da natureza). Não é propriamente o mal natural que ocupa os debates entre teístas e ateístas. É o ato intencional e deliberado de causar o mal, ou seja, o mal moral que mereceu a maior atenção de Kant, e o qual ele nunca acreditou que alguma vez pudesse ser erradicado.

É naqueles raros momentos de epifania, ou de tremenda desgraça, que somos tomados pela crença em Deus, ora benevolente, ora castigador. Mas, se pensarmos bem, é difícil imaginar realmente um mundo sem qualquer tipo de sofrimento. E podemos apresentar um conjunto de argumentos para mostrar que para termos algo que consideramos um bem, temos de arcar com coisas que consideramos um mal. A hipótese de um Deus benevolente é muito menos plausível do que a hipótese de que não há qualquer Deus e que o bem e o mal que temos ora resulta da operação em cadeia das leis da natureza, ora do próprio comportamento humano. Teríamos indícios da existência de Deus se depois de termos descoberto através da medicina a possibilidade biológica de tantas doenças, e ainda assim, depois de termos descoberto isso, verificássemos com espanto que nunca ninguém tinha tido uma doença mais grave do que uma constipação. Ou se depois de um grande terramoto, ou de cheias tremendas, por milagre ninguém tivesse morrido. Isso sim, seria motivo para pensar que há Deus. Mas, sendo o contrário o que acontece, logo será mais lógico não alimentarmos o pensamento esperançoso de um Deus em nosso auxílio.

Ser tolerante é aceitar o direito de alguém ter posições ou ideias ou convicções diferentes das nossas, ainda que possam estar erradas. Mas a falsa tolerância pode abrir as portas ao mal absoluto como foi o caso do nazismo. E o fanatismo, como é exemplo o dos jihadistas, consiste em usar sistematicamente o sentimento de ofendido para eliminar o outro. Mas a tolerância tem a ver com a aceitação das posições do outro, e não a aceitação do relativismo epistémico. Não é tolerável a afirmação de que o Holocausto não existiu ou que um certo indivíduo é menos inteligente do que outro por mero preconceito racista. Também não é tolerável o intolerante. 

Não é raro sermos confrontados com dilemas éticos. O utilitarismo é a corrente de pensamento que melhor tem lidado com os dilemas éticos, ao contrário dos deontologistas. Para um utilitarista pode haver circunstâncias em que a única maneira de minimizar as más consequências, isto é, de evitar um mal maior, é infringir uma lei moral. Considerando as consequências, pode ser seguramente melhor que morra um em vez de vinte. Como pode a morte de vinte ser melhor do que a morte de um? Para um deontologista há proibições que são absolutas, ainda que ao cumpri-las possamos produzir um resultado pior do que se não cumpríssemos. No cenário de estares a ver um terrorista que vai matar 20 pessoas e ao mesmo tempo teres a possibilidade de matares o terrorista e assim salvares 20 pessoas – se fores um absolutista moral puro vais recusar-te a matar o terrorista porque obedeces ao princípio absoluto de que não deves matar; mas se fores um utilitarista não vais ter dúvida nenhuma de que o valor da vida de 20 pessoas é muito superior ao valor da vida de uma só, e por isso deves matar o terrorista.

Isso não significa que para um utilitarista não exista uma forte obrigação de não matar seres humanos. O que admitem é exceções: em casos justificados de autodefesa; ou em caso de terminar o sofrimento misericordiosamente a quem o suplique. E se alguém está a ser torturado até à morte, e se sabemos que essa pessoa não quer ser um mártir religioso, mas ter uma morte misericordiosa, o utilitarista acha que não prejudica essa pessoa ao abreviar-lhe a morte, uma vez que morrerá de qualquer maneira pela tortura, só que em grande sofrimento. O utilitarista argumenta que lhe terá prestado um bem, feito um favor.

Se Deus, o suposto Criador do mundo, existe realmente, e se é de facto infinitamente bom e infinitamente justo, ao mesmo tempo que é omnipotente (ou seja, pode tudo), omnipresente (ou seja, está em toda a parte e tudo presencia), e omnisciente (ou seja, sabe tudo), então, como pode haver tanto mal num mundo criado e controlado por uma entidade assim? Se Deus existe, se é assim perfeito e se tem estas qualidades, porque razão não impede o mal? Se Deus tem todas estas qualidades que os teístas afirmam que tem, ou seja, é omnipotente e perfeitamente bom (entre outras), então como pode permitir que haja tanto mal no mundo? Se Deus é perfeitamente bom e sumamente justo, então porque razão não criou os humanos como seres igualmente perfeitos e justos? Ou então, porque não os deixou iguais a todos os outros animais, longe do bem e do mal? Se for verdade que Deus é o responsável pelo livre-arbítrio dos seres humanos, poder-se-á dizer que a decisão que Deus tomou quanto à atribuição desta faculdade aos humanos foi uma decisão perfeitamente boa e justa? Se Deus conhece as verdades morais e, portanto, sabe o que é absolutamente bom, então, como pôde tomar uma decisão que compreendia o sério risco de permitir a existência do mal no mundo? Para os ateístas esta objeção é importantíssima, sendo a sua crítica dirigida não ao livre-arbítrio (que também consideram um bem), mas à atribuição a Deus da perfeita bondade. 
Se Deus pode fazer as pessoas de tal modo que, nas suas escolhas livres, tanto podem preferir o que é bom como o que é mau, também podia fazer as pessoas de tal modo a escolherem sempre livremente o bem. Por que não o faz? Se não há nenhuma impossibilidade lógica de um homem escolher livremente o bem numa ou em várias ocasiões, também não há uma impossibilidade lógica para que ele escolha livremente o bem em todas as ocasiões. Deus não esteve numa alternativa de escolhas entre o autómato inocente e o ser livre de escolhas em que por vezes pode estar a malfeitoria. Esteve aberta para Ele a possibilidade obviamente melhor de fazer seres que agiriam sempre livremente, mas seguiriam sempre o bem. Claramente, não ter contemplado esta possibilidade, revela a inconsistência da Sua omnipotência e suma bondade. 

Os ateístas argumentam que não é próprio de um ser omnisciente, conhecedor das verdades morais e perfeitamente bom, permitir que haja qualquer possibilidade de o mal se instalar, ou, pelo menos, não impedir a propagação do mal, a partir do momento em que começa a manifestar-se. Com efeito, espera-se de um Deus perfeitamente bom e omnipotente que, mal constate que essa liberdade não foi bem usada, que acarreta muitos males, tire como conclusão dessa constatação a urgência de impedir o mal. Ainda que tal decisão acarrete a suspensão temporária da liberdade humana, vale a pena se é dela que o mal decorre. Ora, como sabemos, o mal existe. Pelo menos, um tal Deus com os referidos atributos, não pode existir.

Os teístas, ao apelarem ao livre-arbítrio, e ao afirmarem que os seres humanos são livres, não estando sujeitos à determinação de Deus — procurando, assim, desresponsabilizar Deus pelo mal —, ao afirmarem que Deus não controla e não pode controlar os seres humanos, estão a negar implicitamente a omnipotência de Deus. A única hipótese que resta ao teísta é afirmar que Deus fez os homens tão livres que deixou de os poder controlar. Mas isto implica na mesma que Deus não é, afinal, omnipotente. Por outro lado, se os teístas estivessem a sugerir que o livre-arbítrio não passa de uma indeterminação do agente, então deixaria o ato para o bem ou para o mal entregue ao acaso. Neste caso como seria possível afirmar a importância da liberdade? Tudo isto carrega uma série de inconsistências, como, por exemplo, um Deus omnipotente criar seres que não pode controlar. Mas também seria uma incoerência dizer que Deus criou seres com toda a liberdade de escolher o que fazer, e ao mesmo tempo ter o poder de os controlar. 

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

Esther Bejarano – sobrevivente de Auschwitz



Estando em Portugal por estes dias, com a banda de hip hop Microphone Mafia sediada em Colónia, Esther Bejarano, 75% judia 25% ariana, é uma sobrevivente de Auschwitz com 95 anos de idade. Envolveu-se em várias associações antifascistas, e no Comité Internacional de Auschwitz. Atualmente ainda se apresenta como cantora, especialmente desde 2009 com aquele grupo de Colónia. Escreveu vários romances autobiográficos.

Com o começo da guerra, a emigração já estava fora de hipótese, e assim teve de trabalhar como forçada numa floricultura. Entretanto seus pais foram assassinados pelos nazis em novembro de 1941. E sua irmã em Auschwitz, em dezembro de 1942. Ela disse mais tarde numa entrevista:
Inicialmente eu não soube como meus pais morreram; só descobri depois. Encontrei os seus nomes num livro onde estavam listados os nomes dos que haviam sido levados nos transportes de Wroclaw para Kovno. Os nazis haviam registado burocraticamente os seus crimes. E quando eu percebi que meus pais tiveram que se despir numa floresta, e depois de serem alinhados com outras vítimas na borda de uma vala comum, foram abatidos caindo simplesmente na vala uns por cima dos outros - isso foi para mim mais horrível do que qualquer coisa que experimentei em Auschwitz.” 
Pouco tempo depois, as condições no Neuendorf Landwerk também se tornaram mais rígidas. Os regulamentos na floricultura só lhe permitam trabalhar no armazém. Em abril de 1943, o campo de trabalho foi fechado e ela foi enviada para o campo coletivo de Berlim na Grosse Hamburger Strasse. De lá, foi deportada para Auschwitz em 20 de abril de 1943. Chegada a Auschwitz, depois de uma viagem terrível de comboio em vagões de gado, onde os mais debilitados morreram pelo caminho, foi tatuada com o número 41948. 

A sua sorte foi ter formação musical, o que lhe valeu ser poupada aos piores martírios do campo. Esther sabia tocar piano e flauta e gostava de cantar. Nos blocos, cantava temas de Schubert, Bach e Mozart para algumas prisioneiras mais velhas que em troca lhe davam comida. Quando os alemães decidiram criar uma orquestra feminina no campo e a sua primeira responsável, a prisioneira polaca Zofia Czajkowska, perguntou entre as mulheres mais velhas se conheciam quem quisesse integrar o grupo, falaram-lhe de Esther e de duas amigas dela. 
"Naquele estranho mundo, em que a alimentação era pouco mais que pão e uma água que fazia as vezes de sopa, houve audições para escolher quem iria integrar a orquestra. Disse que sabia tocar piano, nem me lembrei da flauta. Mas a maestrina disse que piano não havia ali. Contudo, havia uma concertina e se eu soubesse tocá-la, poderia ficar. Nunca tinha pegado num acordeão, mas disse que sim, que sabia tocar. E tentei tocar Bel Ami, um tema popular na época. Consegui tocar os acordes certos. Foi como se fosse um milagre”. 
Esther adoeceu com febre tifóide, e baixou à enfermaria. A pedido do líder das SS, Otto Moll, foi transferida para a enfermaria cristã, onde recebeu melhores cuidados. Quando voltou depois de quatro semanas, no entanto, o seu lugar como tocadora de acordeão estava ocupado. Então teve de mudar para o gravador. Pouco tempo depois contraiu tosse convulsa. Após seis meses na orquestra, juntamente com outras 70 mulheres, foi transferida para o campo de concentração de Ravensbrück, em novembro de 1943.

Bem, só quando o cerco dos Aliados se começou a fechar é que se iniciaram as marchas forçadas das prisioneiras de Ravensbruck, em direção a outros campos. Ao longo dessa caminhada de dias, as que não conseguiam acompanhar a cadência eram mortas. Foi então que Esther Bejarano e mais cinco prisioneiras decidiram fugir.

A guerra estava perdida para os alemães e pouco depois da fuga, as jovens encontraram os primeiros soldados norte-americanos. Deram-lhes comida e alojamento. Pouco depois, chegavam também os primeiros elementos do Exército Vermelho e o encontro entre os dois grupos militares foi de grande alegria.
“Um soldado soviético trouxe um retrato gigante de Adolf Hitler para o meio da praça. Um outro gritou ‘precisamos de música, quem sabe música?’. Peguei num acordeão e juntei-me a eles, todos à volta da fotografia. Um soldado soviético e outro americano pegaram-lhe fogo. A imagem ardia, os soldados e as raparigas do campo de concentração dançavam à sua volta e eu tocava acordeão. Nunca vou esquecer esta imagem”. 
Esther Bejarano diz que nunca voltou a tocar ou a cantar as marchas militares e outras músicas que faziam parte do repertório da Orquestra Feminina de Auschwitz. E admite que durante muito tempo não voltou a falar do que vira e vivera no campo de concentração e de extermínio. Acabou por mudar-se para Israel e por lá casou, mas abandonou o país por discordar do modo como o governo israelita lida com os palestinianos. Regressou à Alemanha. E foi aí que voltou a falar e a sentir que tinha de continuar a falar sobre Auschwitz. Porque na loja onde trabalhava, um dia, deparou-se com um cartaz de um novo partido nazi. “Nós pensávamos que depois de 1945 eles tinham acabado, que já não existiam. Não sabíamos como, mas achávamos que era assim. Como era possível aquilo?”.

Em junho de 2009, a banda de hip hop Microphone Mafia sediada em Colónia, entrou em contacto com Esther Bejarano. A Microphone Mafia pertence à primeira geração de músicos de hip-hop alemães e surgiu nos anos 90 como uma banda de hip-hop com mensagens de intervenção política comprometida com o antifascismo, e ligada à Confederação Sindical Alemã. Eles têm procurado chamar a atenção das semelhanças que alguns grupos de jovens na Alemanha têm com os nazis. Da parceria com Esther Bejarano resultou em 2012 um álbum conjunto Per La Vita, no qual seus filhos Edna e Jorem Bejarano também participaram. O álbum foi um sucesso. E as atuações ao vivo tiveram muita assistência. O projeto foi continuado em 2013 com La Vita Continua. Em apenas três anos, a banda fez mais de 170 concertos. Em 2017, ocorreu uma viagem a Cuba, documentada com um livro ilustrado. Em 2013, a sua biografia Memories apareceu na Editora Laika, em Hamburgo. Dos vários capítulos, que vão da orquestra feminina em Auschwitz à banda de rap contra a direita, ainda faz parte uma entrevista com Antonella Romeo.

terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

A inviolabilidade da vida humana


Não é de agora que movimentos e organizações abolicionistas, nomeadamente a Amnistia Internacional (AI), lutam contra a pena de morte, pela inviolabilidade da vida humana. Há quatro décadas que a Amnistia Internacional lançou a campanha para a abolição da pena de morte no mundo. Nessa altura, apenas 16 países tinham abolido a pena de morte. Hoje, o número subiu para 104, constituindo um enorme e claro progresso relativamente à sua abolição. O relatório anual da Amnistia Internacional de 2016 sobre a pena de morte regista 1032 execuções e um total de 3117 sentenças. Em 2017 regista 993 execuções em 23 países. Em 2018, 36 países ainda haviam praticado a pena de morte, com a China à frente com 2400 e a Índia em último com 1 caso. Mas 50 países ainda mantinham em vigor a pena de morte, se bem que já não era praticada há pelo menos dez anos. E 6 países aboliram a pena de morte para crimes comuns, mas mantinham-na para crimes contra a humanidade, ou crimes de guerra – Brasil, Equador, Chile, Guatemala, Burkina Faso e Cazaquistão. 


Em que lugar fica o valor da vida humana? A pena de morte não é aceitável para a maioria da sociedade portuguesa. Portugal foi o primeiro Estado soberano da Europa moderna a abolir a pena de morte. Antes de Portugal apenas se regista o Grão-Ducado da Toscana em 1786. Em 1852 é abolida para crimes políticos; e em 1867 para crimes civis, exceto por traição durante a guerra, pelo que continuava no Código de Justiça Militar. Em 1870, por via de decreto com força de lei, declarava-se expressamente que era abolida a pena de morte nos crimes civis em todas as províncias ultramarinas. Foi readmitida em 1916, quando Portugal entrou na Guerra, apenas para traição em tempo de guerra (indispensável apenas no teatro da guerra). Em 1976, a Constituição da República Portuguesa determina a abolição total da pena de morte.

Em direito criminal, a pena deve ser uma sanção com natureza preventiva, repressiva e retributiva, de valor moral correspondente à culpabilidade do arguido. Ao longo da história estiveram em vigor, e ainda estão em alguns países, penas cruéis, como a mutilação de membros, morte por lapidação (apedrejamento), crucifixão, enterramento, morte na fogueira, etc. Os abolicionistas consideram ilegítima a pena de morte com os seguintes fundamentos: A vida é o bem supremo do Homem e, por isso, apenas Deus pode dispor dela; a execução da pena de morte torna irreparável um eventual erro judiciário, como, aliás, tem acontecido, em várias ocasiões, sobretudo nos EUA; A pena de morte é contrária ao fim das penas, que é a reinserção social do delinquente. Os defensores da pena de morte justificam-na dizendo que ela é o único meio de legítima defesa do Estado ou da sociedade, para impedir a prática dos crimes mais violentos.

Na nova redação do Catecismo (Nuova redazione del n. 2267 del Catechismo della Chiesa Cattolica sulla pena di morte – Rescriptum “ex Audentia SS.mi”, 02.08.2018), lê-se o seguinte:

2267. Durante muito tempo, considerou-se o recurso à pena de morte por parte da autoridade legítima, depois de um processo regular, como uma resposta adequada à gravidade de alguns delitos e um meio aceitável, ainda que extremo, para a tutela do bem comum.

Hoje vai-se tornando cada vez mais viva a consciência de que a dignidade da pessoa não se perde, mesmo depois de ter cometido crimes gravíssimos. Além disso, difundiu-se uma nova compreensão do sentido das sanções penais por parte do Estado. Por fim, foram desenvolvidos sistemas de detenção mais eficazes, que garantem a indispensável defesa dos cidadãos sem, ao mesmo tempo, tirar definitivamente ao réu a possibilidade de se redimir.

Por isso a Igreja ensina, à luz do Evangelho, que a pena de morte é inadmissível, porque atenta contra a inviolabilidade e dignidade da pessoa, e empenha-se com determinação a favor da sua abolição em todo o mundo.
A redação anterior dizia: "A doutrina tradicional da Igreja, desde que não haja a mínima dúvida acerca da identidade e da responsabilidade do culpado, não exclui o recurso à pena de morte se for esta e única solução possível para defender eficazmente vidas humanas de um agressor”.

Isto será mais um progresso ou desenvolvimento da doutrina católica de admitir a moralidade da pena de morte em si mesma, independentemente do facto de aquela constar ou não da legislação penal e da sua aplicação concreta? Será mesmo uma rotura com a doutrina? Em outubro de 2017, o Papa Francisco, por ocasião do XXV aniversário do Catecismo da Igreja Católica, aludiu à necessidade de mudar o texto do Catecismo, no que respeitava à pena de morte. Disse então o Papa: “Por isso é necessário reiterar que, por muito grave que possa ter sido o delito cometido, a pena de morte é inadmissível, porque atenta contra a inviolabilidade e dignidade da pessoa”. Ora, estas afirmações, em linha com a nova redação do Catecismo, com data de 2 de agosto de 2018, levam-nos a interpretar que o Catecismo, até essa data, não estava em conformidade com os princípios da inviolabilidade da vida humana.

O que o Papa Francisco quer significar é que a Palavra de Deus é uma realidade dinâmica, sempre viva, que progride e cresce, porque tende para uma perfeição que os homens não podem deter, fortalece-se com o decorrer dos anos, cresce com o andar dos tempos, desenvolve-se através das idades. Mas não significa de modo algum uma mudança de doutrina. O que está na mente do Papa Francisco é afirmar agora a imoralidade da pena de morte em si mesma; e não apenas a imoralidade da aplicação concreta da pena de morte. São estas subtilezas semânticas, por ventura metafísicas e teológicas, que fazem toda a diferença. Mas se não atendermos a essas subtilezas, podemos concluir que estamos perante uma coisa nova, uma mudança, não estamos mais perante o mesmo dogma. Estamos perante uma rotura com tudo o que, a este respeito, a Igreja sempre ensinou, e não de um simples progresso.

O Papa João Paulo II, na sua encíclica Evangelium Vitae (EV) de 1995 — depois de expor o seu ensino sobre até onde pode ir a legítima defesa, e sobre o problema da pena de morte — aborda a questão do carácter absoluto e sem exceções do quinto mandamento não matarás. Levado à letra, contudo, o mandamento “não matarás” tem valor absoluto quando se refere à pessoa inocente. A morte direta e voluntária de um ser humano inocente é sempre gravemente imoral.


Eichmann, um dos principais organizadores do Holocausto, que havia fugido para a Argentina depois da Guerra com nome falso, acabou por ser localizado em 1960 pela Mossad, que o levou para Israel a fim de ser julgado. E assim foi condenado à morte e executado em 1 de junho de 1962. Este julgamento teve um grande aparato e acompanhado com interesse por todo o Ocidente. Hannah Arendt, que a propósito escreveu o livro intitulado “Eichmann em Jerusalém – A banalidade do mal”, quis dizer com este título que Eichmann encarnava o mal desprovido de pensamento, nunca tendo tido uma gota de pensamento acerca do que andava a fazer. E isso chocou-a e surpreendeu-a, porque contradizia a nossa retórica a respeito do mal moral. Eichmann personificou a agência do mal da forma mais extrema alguma vez praticada, sem um pingo de responsabilidade nem juízo.

O que diferencia o nazismo do bolchevismo, que encobriu o problema do mal com a capa da hipocrisia, é o facto de o nazismo ter assumido às claras que a “Lei da Natureza" era a criação de uma raça de senhores, implicando logicamente o extermínio de todas as raças declaradas inaptas para a vida. Ao passo que para o bolchevismo o que estava em causa era a “Lei da História", a criação de uma sociedade sem classes, implicando logicamente a liquidação de todas as classes moribundas.
Assim, as vidas individuais tornaram-se supérfluas através da sua conversão em matéria inanimada utilizada para alimentar os mecanismos de extermínio, e assim acelerando o movimento das “Leis ideológicas da Natureza e da História”. O mal humano a esta dimensão, demonstrado nas experiências conduzidas nos laboratórios dos campos de concentração totalitários, pôde expandir-se ilimitadamente por toda a Terra, porque lhe faltava a autorreflexão a título individual, solitária, da consciência do remorso.

No núcleo da abordagem moral do comportamento humano está o “Si próprio” de cada um de nós. No núcleo da abordagem política está o Mundo. E a preocupação com o Mundo, ao fazer o “Si” transitar da esfera do pensamento para esfera da ação, sequestra a preocupação de se salvar a si próprio. A esfera da ação é o campo do agente obediente e cumpridor do dever, que logicamente o despe de qualquer sentido de responsabilidade ao nível da sua consciência, e como tal perde o sentido das consequências da ação. 

É em momentos como este que não resistimos a voltar a Sócrates e a tudo o que Platão escreveu acerca dele, um condenado à morte sob pressão da opinião pública da Atenas de um tempo distante. Ainda assim nada que se possa comparar com a Berlim de Hitler. E Sócrates disse, segundo Platão: “É melhor sofrer a injustiça do que fazê-la”. Sócrates “ajuizou da sua situação e decidiu permanecer e morrer em Atenas por vontade dos homens e não por vontade dos deuses. Em todo o caso, no derradeiro momento antes de ingerir a cicuta, pediu a um dos seus discípulos que desse de ex-voto a Asclépio um galo com a maior crista que encontrasse.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

A vida


Numa afronta à visão mecanicista do Universo, Bergson esgotava salas de espetáculo a falar sobre élan vital, farsa e evolução criativa, a turistas intelectuais. As leis da física eram excelentes para a matéria inerte, mas a nossa consciência, a nossa memória, não podiam ser reduzidas ou dissecadas experimentalmente. Proust foi um dos muitos intelectuais que assistiram às duas palestras na Sorbonne entre 1891 e 1893. Já em 1913, a presença de Bergson na Universidade de Colúmbia provocou o primeiro engarrafamento automóvel de sempre na cidade de Nova Iorque.

Proust leu o Matter and Memory de Bergson, em 1909, quando estava a começar a escrever Do Lado de Swann. Bergson havia casado com uma prima de Proust em 1892. No entanto, apenas há registo de uma conversa entre Bergson e Proust, em que discutiram a natureza do sono. Esta conversa é relatada em Sodoma e Gomorra. No entanto, para Bergson, Proust nunca passaria de um primo que lhe oferecera uma excelente caixa de tampões para os ouvidos. Quando Proust começou a escrever Em Busca do Tempo Perdido, Bergson já era uma celebridade. Proust tinha a certeza de que cada leitor que lesse o seu romance iria reconhecer em si próprio o que ele diz. Isto seria a prova da sua veracidade. Isto era o que Bergson se fartava de insistir: "a realidade é melhor compreendida subjetivamente, quando acedemos às suas verdades intuitivamente". E Proust serviu-lhe a ideia na forma de um bolo amanteigado, aromatizado com raspa de limão e em forma de concha.

Em 1911, a psicologia não fazia a menor ideia de como os sentidos faziam a ligação com o interior da caixa negra. Mas Proust sabia que os sentidos do olfato e paladar suportavam um fardo de memória muito particular. Hoje não há psicólogo, ou neurologista, que não saiba que o cheiro e o paladar são singularmente sentimentais. São os únicos sentidos que se ligam diretamente ao hipocampo, o centro da memória de longo prazo do cérebro. Daí o facto de estes sentidos serem os melhores para convocar o nosso passado. Todas as memórias estão repletas de erros. A nossa lembrança do passado é imperfeita. O exemplo mais paradigmático disto são as histórias de mulheres abusadas sexualmente no passado. Mesmo que as suas histórias sejam invenções, elas acreditam genuinamente nelas. Por isso não de trata do caso de estarem a mentir. A memória é um processo incessante, não um repositório de informação inerte. 

Embora a ciência seja sempre o nosso método principal para investigar o Universo, é ingénuo pensar que a ciência, por si só, pode resolver tudo, ou que tudo possa sequer ser resolvido. Sabemos agora o suficiente para sabermos que nunca saberemos tudo. É por isso que precisamos da arte. Ela ensina-nos a viver com o desconhecido. Só o artista pode explorar o inefável sem nos oferecer uma resposta, porque às vezes não há resposta. Quando nos aventuramos para lá dos limites do nosso conhecimento, tudo o que temos é a arte. É claro que os artistas devem escutar o seu chamamento e não ignorar as descrições inspiradoras da ciência sobre a realidade. Mas, ao mesmo tempo, a ciência tem de reconhecer que as suas verdades não são as únicas verdades. Nenhuma área do conhecimento  tem o monopólio. Todo o conhecimento se mistura com sonhos, preconceitos, esperanças e sentimentos. 

Apesar de gostarmos de imaginar a vida como um relógio suíço, concebido por um relojoeiro cego, a verdade é que na evolução da vida na Terra nada é previsível. A biologia molecular, confrontada com a indisciplina da vida é obrigada a respeitar o caos. Aconteceu aos biólogos o mesmo que aconteceu aos físicos. Estes tiveram que aceitar a irrealidade fixa do espaço e do tempo. O mundo era indeterminado e incerto. Na biologia, como seria de esperar, o motor da evolução era a mutação aleatória com erros de edição em catadupa. Em 1968, o geneticista japonês – Mottoo Kimura descobriu que o ADN, ou melhor, o genoma, mudava a uma taxa cem vezes superior à prevista pelas equações da evolução. A mudança do ADN era de tal ordem que a seleção natural não podia ser responsável por todas as adaptações. 

Mas então se não era a seleção natural a impulsionar a evolução do nosso genoma, então o que era? Era o caos – respondeu Kimura. Isto provocou uma tempestade no seio dos neodarwinistas, tendo chegado ao ponto de lhe chamarem um criacionista. Grande é o poder da incompreensão constante. A seleção natural é importante, mas não é a única. Afinal a vida era muito descuidada. No interior das nossas células pedaços de proteínas ou ácidos aminados flutuam sem destino ao sabor das interações aleatórias. Parecendo um paradoxo, a individualidade era filha do caos. A diversidade é praticamente infinita. Para todos os efeitos, cada um de nós é único, irrepetível. Até os gémeos homozigóticos são únicos, sendo diferentes nos detalhes. 
A descoberta de que a biologia floresce na desordem é uma mudança de paradigma. Quanto mais sabemos, quanto mais a ciência avança, menos a vida se parece com um relógio. O caos está por todo lado. A vida é altamente irregular, desordenada e mais ou menos imprevisível. Tal como aconteceu tantas vezes na história da ciência, a ideia fixa da ordem determinista demonstrou não ter pernas para andar. Estamos mesmo condenados a ser livres, como sentenciou Sartre. Todas as tentativas reducionistas para resolver a vida fracassaram. Não é bem assim: não somos totalmente livres, nem totalmente determinados; somos indeterminados. O mundo está cheio de contingências, mas nós somos capazes de decidir o nosso caminho. É a nossa autodeterminação. A vida está repleta de liberdade de movimentos, uma plasticidade que desafia qualquer determinismo.

O paradigma científico que começou com o sonho iluminista, que ainda vigora, sentencia: "se uma coisa não pode ser quantificada ou calculada, então não pode ser verdadeira". E dado que este paradigma tem demonstrado ter sido bem-sucedido na explicação de muita coisa, seria de esperar que pudesse explicar tudo. Mas a realidade é bem mais complexa para esperarmos uma coisa dessas, a começar pela nossa própria mente, com a qual formulamos as nossas proposições: a vida é apenas química; e a química é apenas física. Somos uma espécie de poeira a acumular-se lentamente no caos.

No processo de construção do “Eu”, emergência é a palavra chave. Eu ou consciência: um processo que emerge das profundezas do ser. Mas como é que o Eu emerge? Se a mente é um conjunto de “esboços múltiplos”, como diz Daniel Dennett, portanto, bocados ou fragmentos de sensações, como chegamos ao pensamento? Bem, Dennett não tem outra escapatória senão dizer que o Eu é ilusório, um fantasma na máquina. Recorrendo às experiências da visão cega, na verdade, os portadores da doença com este diagnóstico, veem. O que lhes falta é a consciência de que veem. Os pacientes de visão cega são incapazes de aceder conscientemente àquilo que o cérebro está a fazer quando está a ver. É isto que imprime um fascínio tão pungente aos doentes que padecem de visão cega: têm a consciência divorciada das sensações.

O cérebro é o maior nó do Universo. Cada um dos neurónios está ligado a milhares de outros neurónios. É desta conectividade interativa e recursiva que emerge a consciência. Já é possível mapear onde ocorrem determinadas experiências percetivas, mas não onde ocorre, por exemplo a atenção, ou a consciência, e muito menos o local onde se esconde o Eu, porque estas são propriedades emergentes que não têm uma origem única. A neurociência está agora a ser realista quanto ao que as suas experiências podem explicar. Definir a consciência apenas em termos de oscilações no córtex cerebral é muito pouco para dar conta da imensidão que é a nossa subjetividade. Sentimos o Eu como um todo, e a neurociência só consegue ver pedaços, ou fragmentos. Ora, se a ciência nos divide em pedaços, temos de recorrer à arte para reunir de novo esses pedaços.


domingo, 16 de fevereiro de 2020

Eutanásia. A complexidade e os paradoxos da consciência humana


O Parlamento português, no próximo dia 20 de fevereiro, vai debater e está prevista a primeira votação na generalidade dos projetos de lei a favor da despenalização da morte assistida ou eutanásia, apresentados, desta vez, pelos partidos: Iniciativa Liberal, Bloco de Esquerda, PS, PAN e PEV. Todos eles limitam a eutanásia a situações excecionais e muito restritas. Para além de voluntária, ou seja, exclusivamente a pedido do próprio doente reiteradamente, o doente tem de estar numa situação que obedeça a certos critérios. É claro que esses critérios só podem ser validados medicamente, e por mais do que um médico.

Não há dúvida que qualquer aprovação de um destes projetos provoca uma mudança profunda na lei portuguesa. Mas isso não pode nem deve ser motivo para alarme ou sobressalto social. A despenalização da eutanásia (mais abaixo se especificam diferenças entre mais do que um tipo de eutanásia), que é o que o Parlamento português pretende legislar, já existe em alguns dos países mais desenvolvidos do mundo. Atualmente em Portugal, é proibida qualquer participação na morte antecipada a pedido de doentes terminais em grande sofrimento por doença incurável para a qual a medicina nada mais tem para oferecer para a mitigação desse sofrimento. Quem o fizer pode ser punido com uma pena até três anos de prisão. Todas as propostas deixam de fora os menores de idade e pessoas incapazes de tomar uma decisão inequivocamente voluntária e consciente.

O que está em causa é alguém estar a sofrer horrivelmente devido a uma doença, da qual vai morrer inexoravelmente, só não sabe quando, a passar por um sofrimento físico e psíquico insuportável, e ter a consciência clara de que esse sofrimento se irá acentuar até que a morte sobrevenha. Atualmente, em Portugal, como é punida por lei a assistência a um pedido de eutanásia, em particular por um profissional de saúde, das duas uma: ou o médico ajuda o doente a morrer clandestinamente, e se arrisca a ir parar à prisão; ou então apenas resta ao doente continuar a sofrer e sentir-se desprezado no seu sentimento de perda da sua dignidade humana. Porque para muitos não é só a dor física que é intolerável. É também a “qualidade de vida” perdida em troca por mais tempo de vida indesejado. E quanto mais rica tenha sido essa “qualidade de vida”, menos fará sentido valorizar semanas ou meses de vida adicionais. Quando começamos a sentir o vazio de toda a nossa autoestima, o fim parece perfeitamente razoável e até desejável para muitos de nós. Para muitos de nós a qualidade de uma vida digna vivida com plena autonomia, é muito mais importante que a “quantidade de vida”.

No século XVI quando Thomas More publicou a sua Utopia, More retratava a eutanásia para os que estão desesperadamente doentes como uma das instituições importantes de uma comunidade ideal imaginária. Nos séculos seguintes, os filósofos britânicos (em particular David Hume, Jeremy Bentham e John Stuart Mill) puseram em questão a base religiosa da moralidade e a proibição absoluta do suicídio, da eutanásia e do infanticídio. Eles apresentaram como principais razões a seu favor a misericórdia para com pacientes que sofrem de doenças para as quais não há esperança e que provocam grande sofrimento e, no caso da eutanásia voluntária, o respeito pela autonomia. Atualmente, certas formas de eutanásia gozam de um largo apoio popular e muitos filósofos contemporâneos têm sustentado que a eutanásia é moralmente defensável. A oposição religiosa oficial (por exemplo, da Igreja Católica Romana), no entanto, manteve-se inalterada, e a eutanásia voluntária activa continua a ser um crime na maior parte dos países. No século XVIII Immanuel Kant, embora acreditasse que as verdades morais se fundam na razão e não na religião, pensava, não obstante, que “o homem não pode ter poder para dispor da sua vida”.

Há argumentos a favor e contra a eutanásia igualmente respeitáveis, mas é necessário estabelecer algumas distinções: 

  • Eutanásia voluntária - eutanásia executada por A a pedido de B, para benefício de B. Há uma relação íntima entre a eutanásia voluntária e o suicídio assistido (praticado, por exemplo, na Suiça), em que uma pessoa ajuda outra a acabar com a sua vida obtendo o fármaco letal e colocando-o à disposição dessa pessoa para que se suicide sem a interferência de mais ninguém. Por exemplo, coloca-se um copo com a substância diluída na frente do doente, incluindo uma palhinha no caso de se tratar de um tetraplégico, e o doente sem mais ajuda de ninguém ingere o líquido contido no copo.
  • Eutanásia involuntária - Embora os casos claros de eutanásia involuntária possam ser relativamente raros (por exemplo, em que A mata B sem o consentimento de B para o impedir de cair nas mãos de um carrasco sádico), houve quem defendesse que algumas práticas médicas largamente aceites (como as de administrar doses cada vez maiores de medicamentos contra a dor que eventualmente causarão a morte do doente, ou a suspensão não-consentida do tratamento, equivalem a eutanásia involuntária.
Quer se trate de eutanásia voluntária, quer involuntária, ambas poderão ainda ser subdivididas em activa ou passivaA pode matar B, digamos, administrando-lhe uma injecção letal; ou A pode matar B negando-lhe ou retirando-lhe o tratamento de suporte à vida. Os casos do primeiro género são vulgarmente referidos como eutanásia “activa”, enquanto os casos do segundo género são frequentemente referidos como eutanásia “passiva”. 

Há alguns problemas em distinguir entre matar e deixar morrer, ou entre eutanásia activa e passiva. A administração de uma injecção letal seria matar; enquanto que não pôr um paciente num ventilador, ou tirá-lo, seria deixar morrer. No primeiro caso, o paciente morre devido a acontecimentos postos em acção pelo agente. No segundo caso, o paciente morre porque o agente não intervém num curso de acontecimentos já a decorrer e que não é produzido por ele. É plausível que um agente que mata causa a morte, enquanto um agente que deixa morrer permite apenas que a natureza siga o seu curso.

Devem os médicos fazer esforços “heróicos” para acrescentar mais umas quantas semanas, dias, ou horas à vida de um doente terminal sofrendo de cancro? A maior parte dos autores concorda que há alturas em que o tratamento de suporte à vida deve ser retirado e se deve permitir que um doente morra. Este ponto de vista é partilhado mesmo por aqueles que veem a eutanásia ou o termo intencional da vida sempre como incorreto.

Atualmente, a distinção entre meios de suporte à vida que são vistos como normais e obrigatórios e meios que não o são é a maior parte das vezes expressa em termos de meios de tratamento “proporcionais” e “desproporcionais”. Um meio é “proporcional” se oferece uma esperança razoável de benefício para o doente; é “desproporcional” se não o faz.

A administração de analgésicos cuja finalidade é exclusivamente minorar o sofrimento ao doente, ainda que se possa admitir que indiretamente lhe pode abreviar a morte, é formalizada pelo Princípio do Duplo Efeito. São Tomás de Aquino, a quem é atribuída a origem do Princípio do Duplo Efeito, aplicou esta distinção entre consequências diretamente desejadas e meramente previstas às ações de autodefesa. Se uma pessoa é atacada e mata o atacante, a sua intenção é defender-se a si mesma, não matar o atacante. O médico pode “admitir” ou “permitir” que uma consequência (como a morte da pessoa) ocorra, embora essa consequência não seja desejada por ele.


Entre eutanásia ativa e passiva há as seguintes diferenças: 1) Na eutanásia ativa, o médico faz alguma coisa que provoca a morte do paciente. Mas por regra o médico só o faz a pedido do próprio paciente. O médico que administra a um paciente com cancro uma injeção letal provocou, com o seu gesto, a morte do seu paciente, sem dúvida; e a causa da morte foi o ato médico. 2) Na eutanásia passiva, o médico não faz nada e deixa o paciente morrer. Pode fazê-lo mesmo que não seja a pedido, e o que resulta é a morte devido ao mal de que padece.