terça-feira, 27 de dezembro de 2022

Walther Schwieger e o submarino U-20




Submarino alemão U-20

Wilhem Otto Walther Schwieger [1885-1917] foi o comandante do submarino da Marinha Imperial Alemã – U-20 (U-boat servisse) – que em 1915, durante a Primeira Guerra Mundial, afundou o transatlântico Lusitânia, que levou com ele 1198 passageiros para o fundo do mar. Este evento levou a que os Estados Unidos entrassem na Guerra. E em 31 de maio de 1917, Schwieger no seu U-boat U-88 afundou o navio Miyazaki Maru durante a viagem desse navio saído de Yokohama em direção a Londres, causando a perda de oito vidas. Em 5 de setembro de 1917 morreu em combate, tendo sido afundado pelo Q-Ship britânico HMS Stonecrop.



Lusitânia

Durante a sua carreira de guerra, Schwieger capitaneou três submarinos diferentes, em um total de 34 missões. Ele afundou 49 navios. Sob o comando de Schwieger, o U-20 tinha pelo menos um cão a bordo. Houve uma ocasião em que havia seis, quatro deles filhotes, todos dachshunds, produto inesperado de um ataque à costa da Irlanda.

Naquela ocasião, seguindo as regras de cruzeiro, Schwieger perseguiu e deteve um navio português. Esperou que os tripulantes fossem embora e ordenou à guarnição de peça que afundasse o barco. Era o seu modo favorito de ataque. Reservava os poucos torpedos de que dispunha para os maiores e melhores alvos. A guarnição de peça tinha boa pontaria, e disparou uma série de projéteis contra a linha de flutuação do cargueiro. Logo o navio sumiu de vista, ou, como disse Zentner, “se ajeitou para fazer um pouco de navegação vertical”. No meio dos destroços que flutuavam na superfície, os homens avistaram uma vaca nadando e mais alguma coisa. O acordeonista barbudo foi o primeiro a ver, e gritou: “Ach Himmel, der kleine Hund!” Apontou para uma caixa. Uma minúscula cabeça e duas patas de uma cadela apareciam na borda. O U-20 se aproximou; os tripulantes içaram a cadela para bordo. Deram-lhe o nome de Maria, em homenagem ao cargueiro afundado. Mas não havia nada que pudessem fazer pela vaca.

O submarino já tinha um cão a bordo, um macho, e não demorou para que Maria ficasse grávida. Ela pariu quatro filhotes. O acordeonista ficou encarregado de tomar conta dos cães. Achando que seis cães eram demais para um U-boat, os tripulantes deram três filhotes a outro navio, mas ficaram com um. Zentner dormia com ele em seu beliche, perto de um torpedo: “Assim, toda noite eu dormia com um torpedo e um filhote de cachorro.”

É irónico constar nas narrativas de que Schwieger era capaz de criar um ambiente muito humano, testemunho da sua habilidade para liderar pessoas, tanto mais imaginando nós como serão as condições dentro de um U-boat. Os navios eram atulhados, em especial no início de uma missão de patrulhamento, com dispensa de alimentos em todos os lugares possíveis, incluindo a latrina. Carnes e hortaliças eram guardados nos locais mais frios, em meio à munição. A água era racionada. Quem quisesse fazer a barba tinha de usar restos do chá da manhã. Ninguém tomava banho. Alimentos frescos duravam pouco. Sempre que possível, os tripulantes saíam em busca de comida. Um U-boat despachou um grupo de caça para uma ilha escocesa e matou uma cabra. Tripulantes rotineiramente saqueavam navios à procura de presunto, ovos, bacon e frutas. O ataque de um avião britânico deu aos tripulantes de um U-boat um inesperado regalo quando a bomba lançada errou o alvo e explodiu no mar. O abalo trouxe à superfície um cardume de atuns aturdidos.

Os tripulantes do U-20 certa vez saquearam um barril de manteiga, mas àquela altura o cozinheiro do navio não tinha mais nada à mão que servisse para fritar. Schwieger saiu às compras. Pelo periscópio avistou uma frota de barcos pesqueiros e emergiu bem no meio deles. Os pescadores, surpresos e aterrorizados, não tiveram dúvida de que seus barcos seriam afundados. Mas Schwieger só queria peixe. Aliviados, eles deram aos tripulantes todo o peixe que puderam carregar.

Schwieger ordenou ao submarino que submergisse, para que a tripulação jantasse em paz. “E então”, disse Zentner, “havia peixe fresco, frito na manteiga, grelhado com manteiga, salteado na manteiga, tudo o que pudéssemos comer”. Porém aquele peixe e seus odores residuais só podiam piorar o que a vida no U-boat tinha de mais desagradável: o ar dentro do navio. Primeiro havia a base de fedor de dezenas de homens que não tomavam banho, cujas roupas de couro não pegavam ar, e que compartilhavam um pequeno lavabo. A sanita de vez em quando exalava para o navio o cheiro de um hospital de cólera, e só se podia dar descarga quando o U-boat estivesse na superfície ou em águas rasas, para que a pressão submarina não impulsionasse material de volta para dentro. Isso costumava acontecer com oficiais e tripulantes novatos e era chamado de “batismo de U-boat”. O odor do óleo diesel infiltrava-se em todos os cantos, fazendo com que toda a chávena de chocolate e toda a fatia de pão torrado tivessem gosto de óleo. E havia ainda as fragrâncias que a cozinha continuava a exalar bem depois que as refeições eram preparadas, mais notavelmente aquele primo legítimo do cheiro do corpo masculino, o cheiro de cebola velha.

Tudo isso era agravado por um fenómeno exclusivo dos submarinos, que ocorria quando estavam submersos. Os U-boats carregavam quantidades limitadas de oxigênio, em cilindros, que injetavam ar no navio a uma proporção que dependia do número de homens a bordo. Fazia-se o ar exalado circular em um composto de potássio para expurgar o ácido carbônico, e injetava-se de novo esse ar processado na atmosfera do navio. Tripulantes de folga eram incentivados a dormir, porque dormindo consome-se menos oxigênio. Quando submerso em grande profundidade, o navio desenvolvia uma atmosfera interior parecida com a de um pântano tropical. O ar ficava desagradavelmente úmido e denso, porque o calor gerado pelos homens, pela emanação dos motores a diesel recém-desligados e pelo aparato elétrico da embarcação aquecia o casco. Quando o navio descia em águas cada vez mais frias, o contraste entre o calor interno e a frieza externa produzia uma condensação que empapava roupas e gerava colónias de bolor. Os tripulantes davam ao fenómeno o nome de “suor de U-boat”. Ele tirava o óleo do ar e o depositava no café e na sopa, produzindo vazamentos de óleo em miniatura. Quanto mais tempo o navio ficasse submerso, piores as condições se tornavam. As temperaturas internas ultrapassavam os 37°C. “Você não faz ideia da atmosfera criada gradualmente nessas circunstâncias”, escreveu um comandante, Paul Koenig, “nem da temperatura infernal que fermenta dentro da concha de aço”.

Os homens ansiavam pelo momento em que o navio subiria para a superfície e a escotilha da torre de comando seria aberta. “A primeira lufada de ar fresco, a escotilha da torre de comando aberta e o despertar dos motores a diesel, depois de quinze horas no fundo, constituem uma experiência que merece ser vivida”, disse outro comandante, Martin Niemöller. “Tudo desperta para a vida e não há alma que pense em dormir. O que todos querem é uma lufada de ar e um cigarro fumado no abrigo do passadiço.” Além disso, todos esses desconfortos eram sofridos num clima de constante perigo, com todos cientes de estarem sujeitos ao pior tipo imaginável de morte: a lenta asfixia em um tubo de aço escuro no fundo do mar. Numa das patrulhas do U-20, essa possibilidade chegou a parecer real e iminente.

Em abril de 1917, o Kptlt. Walther Schwieger recebeu o comando de um novo submarino, o U-88, maior do que o U-20 e com duas vezes mais torpedos. Poucos meses depois, em 30 de julho, foi agraciado com a mais alta condecoração da marinha alemã, uma bela cruz azul de nome francês, Pour le Mérite. Até àquela época, apenas sete comandantes de U-boat tinham recebido uma, sua recompensa por ter afundado 190 mil em arqueação bruta de navios. Só o Lusitânia correspondia a 16% desse total.

Em Londres, no velho edifício do Almirantado, a Sala 40 rastreou Schwieger e seu novo navio durante quatro cruzeiros, um dos quais durou dezanove dias. O quarto cruzeiro começou em 5 de setembro de 1917 e foi consideravelmente mais curto. Logo depois de entrar no mar do Norte, Schwieger deparou com um navio camuflado britânico, o HMS Stonecrop, pertencente a uma classe chamada mystery ships, de navios que pareciam cargueiros vulneráveis, mas estavam, na verdade, fortemente armados. Ao tentar escapar, Schwieger atirou o seu submarino para dentro de um campo minado britânico. Nem ele nem os tripulantes sobreviveram, e o submarino jamais foi encontrado. A Sala 40 assinalou a perda com um pequeno registo a vermelho: “Afundado.”

Na Dinamarca, moradores da costa continuaram a visitar a praia onde o U-20 tinha encalhado, e de vez em quando subiam nos destroços, até que a marinha dinamarquesa destruiu os restos em 1925, com uma explosão espetacular. Nessa época, a torre de comando, o canhão de convés e outros componentes já tinham sido removidos. Hoje residem num museu à beira-mar em Thorsminde, Dinamarca, num austero trecho do litoral do mar do Norte. Separada da base e coberta de ferrugem, a torre de comando fica à frente do museu, com toda a majestade de um fantasma desconsolado da aterradora embarcação que um dia andou à caça pelos mares e mudou a história.


segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

A moda com astúcia na irracionalidade dos prazeres mundanos

 


Recorte de um fresco de Pompeia

Durante muitos milénios, a vida coletiva humana evoluiu sem o culto das fantasias efémeras da moda. A prioridade esteve na curiosidade do mundo e no desbravar do terreno agreste. Nada disso impediu o gosto e o espanto pelas realidades naturais. No Egito antigo, o mesmo tipo de toga-túnica comum aos dois géneros manteve-se por quase quinze séculos com uma permanência quase absoluta; na Grécia, o peplo, traje feminino de cima, impôs-se das origens até à metade do século VI antes de nossa era; em Roma, o traje masculino — a toga e a túnica — persistiu, com variações de detalhes, dos tempos mais remotos até ao final do Império. A mesma estabilidade na China, na Índia, nas civilizações orientais tradicionais, onde o vestir só excepcionalmente admitiu modificações: o quimono japonês permaneceu inalterado durante séculos; na China, o traje feminino não sofreu nenhuma verdadeira transformação entre o século XVII e o século XIX. 

Na Idade Média, as indústrias têxteis e o grande tráfico comercial permitiram diversificar os materiais que serviam para a fabricação do vestuário: seda do Extremo Oriente, peles preciosas da Rússia e da Escandinávia, algodão turco, sírio ou egípcio, couros de Rabat, plumas da África, produtos corantes (quermes, laca, anil) da Ásia Menor. As indústrias da tecelagem e da tinturaria puderam fabricar tecidos de luxo que circularam em toda a Europa dos poderosos pela via indireta das feiras e do tráfico marítimo: lãs de Flandres e da Inglaterra, linho do sul da Alemanha, panos de cânhamo das regiões de Saône e de Bresse, veludos de Milão, Veneza e Génova. Mas sobretudo, com a expansão das cidades medievais, instaurou-se em alto grau a divisão do trabalho, uma especialização intensiva dos ofícios, que foram dotados, por volta da metade do século XIII, através das corporações de ofícios, de uma organização minuciosa e de uma regulamentação coletiva, encarregada de controlar a qualidade das obras, assim como a formação profissional. 

A moda, tal como a conhecemos, chegou bem tarde na História, no final da Idade Média. A moda do vestuário como sistema, apareceu com as suas metamorfoses incessantes, com os seus movimentos no sentido da extravagância mundana. A história do vestuário é a referência privilegiada deste fenómeno social. É antes de tudo à luz das metamorfoses dos estilos, e dos ritmos precipitados da mudança no vestir, que se impõe essa conceção histórica da moda, na esfera da aparência e do parecer. Em todo o caso, a moda não permaneceu acantonada no campo do vestuário. Paralelamente, em velocidades e em graus diversos, outros setores — o mobiliário e os objetos decorativos, a linguagem e as maneiras, os gostos e as ideias, os artistas e as obras culturais — foram atingidos pelo processo da moda. Mas até aos séculos XIX e XX foi o vestuário, sem dúvida alguma, que encarnou mais ostensivamente o processo de moda; ele foi o teatro das inovações formais mais aceleradas, mais caprichosas, mais espetaculares. Não há teoria ou história da moda que não tome o parecer como ponto de partida e como objeto central de investigação. 




No final da Idade Média, precisamente, inúmeros são os signos que dão testemunho de uma tomada de consciência inédita da identidade subjetiva, da vontade de expressão da singularidade individual, da exaltação da individualidade. O aparecimento da autobiografia, do retrato e do autorretrato “realistas”, ricos em detalhes verdadeiros, revela igualmente, nos séculos XIV e XV, a nova dignidade reconhecida naquilo que é singular no homem, embora em quadros ainda muito amplamente codificados e simbólicos. Com o novo sentido da identidade pessoal e a legitimação da expressão individual, ainda que esteja em vigor nos exclusivos limites do pequeno mundo da elite social, e mais formulada, vivida, do que doutrinal, pôde pôr-se em movimento a lógica proteiforme da moda. 

Durante a mais longa parte da história, as sociedades funcionaram sem conhecer os movimentados jogos das frivolidades. N
ão que os povos pré-históricos, mesmo fora dos trajes cerimoniais, não tenham por vezes o gosto muito vivo das ornamentações e não procurem certos efeitos estéticos, mas nada que se assemelhe ao sistema da moda. O processo e a noção de moda, em tais configurações coletivas, não têm rigorosamente nenhum sentido. Mesmo múltiplos, os tipos de enfeites, os acessórios e penteados, as pinturas e tatuagens permanecem fixados pela tradição, submetidos a normas inalteradas de geração em geração. 

A moda no sentido estrito quase não aparece antes da metade do século XIV. Data que se impõe, em primeiro lugar, essencialmente em razão do aparecimento de um tipo de vestuário radicalmente novo, nitidamente diferenciado segundo os sexos: curto e ajustado para o homem, longo e justo para a mulher. Revolução do vestuário que lançou as bases do trajar moderno. Um traje masculino composto de um gibão, espécie de jaqueta curta e estreita, unida a calções colantes que desenham a forma das pernas; por outro lado, substituiu-a um traje feminino que perpetua a tradição do vestido longo, mas muito mais ajustado e decotado. Transformação que institui uma diferença muito marcada, excepcional, entre os trajes masculinos e femininos. O vestuário feminino é igualmente ajustado e exalta os atributos da feminilidade: o traje alonga o corpo através da cauda, põe em evidência o busto, os quadris, a curva das ancas. O peito é destacado pelo decote; o próprio ventre, no século XV, é sublinhado por saquinhos proeminentes escondidos sob o vestido, como testemunha o célebre quadro de Jan Van Eyck, O casamento dos esposos Arnolfini (1434). 




A curiosidade pelas maneiras “antigas” de vestir-se e a percepção das variações rápidas da moda aparecem ainda na exigência, formulada desde 1478 pelo rei René d’Anjou, de buscar os detalhes dos trajes usados no passado pelos condes d’Anjou. No começo do século XVI, Vecellio desenha uma coleção “de roupas antigas e modernas”. Na França do século XVI, a inconstância do vestuário é notada por diferentes autores, especialmente Montaigne, em Les Essais: “Nossa mudança é tão súbita e tão rápida nisso que a invenção de todos os alfaiates do mundo não poderia fornecer novidades suficientes”. No começo do século XVII, o caráter proteiforme da moda e a grande mobilidade dos gostos são criticados e comentados de todos os lados nas obras, sátiras e opúsculos: evocar a versatilidade da moda tornou-se uma banalidade. A moda muda incessantemente, mas nem tudo nela muda. As modificações rápidas dizem respeito sobretudo aos ornamentos e aos acessórios, às subtilezas dos enfeites e das amplitudes, enquanto a estrutura do vestuário e as formas gerais são muito mais estáveis. 



Retrato de uma Jovem Mulher pela oficina de Sandro Botticelli, início dos anos 1480

Torrentes de “pequenos nadas” e pequenas diferenças que fazem toda a moda, que desclassificam ou classificam imediatamente a pessoa que os adota ou que deles se mantém afastada, que tornam imediatamente obsoleto aquilo que os precede. Com a moda começa o poder social dos signos ínfimos, o espantoso dispositivo de distinção social conferido ao porte das novidades subtis. Impossível separar essa escalada das modificações superficiais da estabilidade global do vestir: a moda só pôde conhecer tal mutabilidade sobre fundo de ordem; foi porque as mudanças foram módicas e preservaram a arquitetura de conjunto do vestuário que as renovações puderam disparar e dar lugar a “furores”. 




Amor pela mudança, influência determinante dos contemporâneos: esses dois grandes princípios que regem os tempos de moda têm em comum o facto de que implicam a mesma depreciação da herança ancestral e, correlativamente, a mesma dignificação das normas do presente social. A radicalidade histórica da moda sustenta-se no fato de que ela institui um sistema social de essência moderna, emancipado do domínio do passado; o antigo já não é considerado venerável e “só o presente parece dever inspirar respeito”.

A alta sociedade foi tomada pela febre das novidades, inflamou-se por todos os últimos achados, imitou alternadamente as modas em vigor na Itália, na Espanha, na França. Tudo o que é diferente e estrangeiro é snobe. Com a moda, aparece uma primeira manifestação de uma relação social que encarna um novo tempo legítimo e uma nova paixão própria ao Ocidente, a do “moderno”. A novidade tornou-se fonte de valor mundano, marca de excelência social; é preciso seguir “o que se faz” de novo e adotar as últimas mudanças do momento.

Certamente, as inovações permaneceram um privilégio de classe, um atributo dos grandes deste mundo. Mas o importante está em outra parte, no fato de que aqueles que estão no mais alto da hierarquia agora se vangloriam de modificar o que é, de inventar novos artifícios, de personalizar sua aparência. Tal transformação nos comportamentos da elite social demonstra a infiltração de uma nova representação social da individualidade no universo aristocrático. Não, a despeito das aparências, um fenómeno de classes, mas a penetração nas classes superiores dos novos ideais da personalidade singular. Estes contribuíram para o abalo da imobilidade tradicional, permitiram à diferença individual tornar-se signo de excelência social. Não se podem separar as variações perpétuas da moda e a personalização mais ou menos exibida do parecer, são duas faces estritamente complementares da nova valorização social daquilo que é singular. O erro das teorias da moda é ter considerado essas questões como estranhas uma à outra. Na realidade, trata-se do mesmo fenómeno: foi porque a individualização do parecer impôs-se como uma nova legitimidade social que a moda pôde ser esse teatro permanente das metamorfoses fugidias. Correlativamente, todas as mudanças, todas as vogas permitirão aos particulares, mesmo a níveis mínimos, uma margem de liberdade, de escolha, de autonomia do gosto.



A modelo argentina Milagros Schmoll desfila a moda primavera 2009

Simples e fantástico em sua formulação, a questão das origens da moda permanece incontornável: por que a moda apareceu e se desenvolveu no Ocidente e em nenhuma outra parte? Como explicar os fluxos e refluxos perpétuos das formas e dos gostos que escandem há seis séculos nossas sociedades? O notável é a pouca elaboração e interrogação teórica que essa questão despertou. Como ignorá-lo: sobre as origens e os móveis da moda, estamos surpreendentemente desprevenidos; os modelos que servem habitualmente de referência foram elaborados no século XIX, e desde então, no fundo, a teoria pouco avançou. 

A moda no tempo da modernidade enveredou pelo ethos de fausto, a extravagância aristocrática, nos antípodas do espírito consagrado à poupança, à previsão, ao cálculo; está do lado da irracionalidade dos prazeres mundanos e da superficialidade lúdica, na contracorrente do espírito de crescimento e do desenvolvimento do domínio da natureza. A sua volatilidade significa que o parecer não está mais sujeito à legislação intangível dos ancestrais, mas que procede da decisão e do puro desejo humano. Antes de ser signo da desrazão vaidosa, a moda testemunha o poder da mulher para mudar e inventar a sua maneira de aparecer; é uma das faces do artificialismo moderno, do empreendimento dos homens para se tornarem senhores de sua condição de existência. Com a agitação própria da moda, surge uma ordem de fenómeno exclusivo dos jogos dos desejos e caprichos frívolos nos exclusivos limites das conveniências e dos gostos do momento. 




Nenhuma teoria da moda pode restringir-se aos fatores da vida económica e material. Mesmo importantes, esses fenómenos não esclarecem em nada as variações incessantes e o excesso das fantasias que definem propriamente a moda. É por isso que tudo convida a pensar que esta encontra a sua força mais na lógica social do que na dinâmica económica. Nenhuma análise mais clássica: a instabilidade da moda se enraíza nas transformações sociais que se produziram no decorrer da segunda Idade Média e que não cessaram de ampliar-se sob o Antigo Regime. Na base do processo, a escalada da burguesia ao poder económico, que favoreceu o impulso de seu desejo de reconhecimento social e ao mesmo tempo as crescentes tendências de imitação da nobreza. À medida que as camadas burguesas conseguem adotar, em razão de sua prosperidade e de sua audácia, tal ou tal marca prestigiosa em vigor na nobreza, a mudança se impõe no alto para reinscrever o afastamento social. Desse duplo movimento de imitação e de distinção nasce a mutabilidade da moda.

É incontestável que com o crescimento da burguesia a Europa viu ampliarem-se os desejos de promoção social e acelerarem-se os fenómenos de contágio imitativo; em nenhuma outra parte as barreiras de classe, os estados e condições foram transpostas com tanta amplitude. Por exata que seja, essa dinâmica social não pode, contudo, explicar a dinâmica da moda, com suas extravagâncias e seus ritmos precipitados. Impossível aceitar a ideia de que a mudança de moda só intervém em razão de um fenómeno de difusão e de imitações ampliadas que desqualificam os signos elitistas. A própria rapidez das variações contradiz essa tese; no mais das vezes, as novidades andam muito mais depressa que sua vulgarização.

A turbulência da moda depende menos das ameaças que se exercem sobre as barreiras sociais do que do trabalho contínuo, inevitável, mas imprevisível, efetuado pelo ideal e pelo gosto das novidades próprios das sociedades que se desprendem do prestígio do passado. Fraqueza da abordagem clássica, que só vê nas flutuações da moda coação imposta de fora, obrigação resultante das tensões simbólicas da estratificação social, ao passo que correspondem à manifestação de novas finalidades e aspirações sócio-históricas.

Assim, a questão do motor da moda não pode deixar de levar em consideração as transformações que afetaram as disposições e aspirações da elite social. Trata-se de compreender como o alto da hierarquia chegou a investir dessa maneira na ordem das aparências, como pôde dedicar-se a destruir a ordem imóvel da tradição e entregar-se à espiral interminável da fantasia. 
Para conquistar e conservar honra e prestígio, as classes superiores devem dar e despender amplamente, devem fazer exibição de riqueza e de luxo, manifestar ostensivamente, por suas boas maneiras, seu decoro, seus adereços, que não estão sujeitas ao trabalho produtivo e indigno. Daí a necessidade, para aliviar-nos do efeito despropositado dessas formas, de novos trajes ridículos do mesmo modo fiéis ao inusitado, mas do mesmo modo contrários ao bom gosto: a moda e o artístico são antinómicos. O reducionismo sociológico encontra-se aqui em seu ponto culminante: os entusiasmos delirantes traduzem apenas nossa aspiração à estima social; só gostamos dos géneros em voga na medida em que permitem classificar-nos socialmente, “demarcar-nos”, tirar deles um proveito distintivo.

A lei do esbanjamento ostentatório e a corrida pela estima impõem-se então mais imperiosamente, tendo por consequência a mudança permanente das formas e dos estilos. A norma do esbanjamento era particularmente imperiosa; no entanto, a moda não pôde encontrar seu lugar de eclosão nesse tipo de sociedade. De facto, o imperativo de exibir riqueza não aumentou no Ocidente moderno, mas manifestou-se de modo diferente; mais exatamente, aliou-se estruturalmente à busca da diferença individual e à inovação estética. Na base do afloramento da moda, não a ascensão em grandeza do esbanjamento para exibição, e sim o aparecimento de novas exigências, de novos valores que certamente se traduziram no código imemorial da prodigalidade ostensiva, mas que daí não se deduzem mecanicamente. 




Longe de ser um epifenómeno, a consciência de se afirmar com destino particular, a vontade de exprimir uma identidade singular, a celebração cultural da identidade pessoal foram uma “força produtiva”, o próprio motor da mutabilidade da moda. Para que aparecesse o impulso das frivolidades, foi preciso uma revolução na representação das pessoas e no sentimento de si, modificando brutalmente as mentalidades e valores tradicionais; foi preciso que se desencadeassem a exaltação da unicidade dos seres e seu complemento, a promoção social dos signos da diferença pessoal.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

Os Xistos de Burgess



Os Xistos de Burgess é uma série de leitos fósseis nas Montanhas Rochosas canadenses que foi notado pela primeira vez em 1886 por Richard McConnell, do Serviço Geológico do Canadá. As suas descobertas e as subsequentes, chamaram a atenção do paleontólogo Charles Doolittle Walcott, que em 1907 reservou tempo livre para reconhecer a área. Ele abriu uma pedreira em 1910 e numa série de viagens de campo trouxe de volta 65.000 espécimes, que ele identificou como da idade do Câmbrico Médio. Em 1924, o professor da Universidade de Harvard, Percy Raymond, recolheu mais fósseis da pedreira de Walcott e mais acima em Fossil Ridge, onde fósseis ligeiramente diferentes foram preservados.



O lago O’Hara aninha-se no sector canadiano das montanhas Rochosas a mais de dois mil metros de altitude, “como uma esmeralda numa taça de montanhas”, escreveu o paleontólogo Charles Walcott em 1911



Foi o cavalo da mulher de Walcott, ao virar uma laje de xisto, que pôs a descoberto crustáceos fósseis de um tipo especialmente antigo e incomum. Caía neve – o inverno chega cedo nas montanhas Rochosas canadenses –, de modo que eles não permaneceram ali, mas no ano seguinte, na primeira oportunidade, Walcott voltou ao local. Reconstituindo a suposta rota da queda da laje, ele subiu 230 metros até quase ao topo da montanha. Ali, 2440 metros acima do nível do mar, encontrou um afloramento de xisto, do tamanho aproximado de um quarteirão, contendo uma série inigualável de fósseis imediatamente posteriores ao momento em que a vida complexa irrompeu numa profusão de tal modo exuberante que ficou famosa como explosão câmbrica. O afloramento tornou-se conhecido como os Xistos de Burgess (Burgess Shale).

Mais de 500 milhões de anos atrás, quando os Xistos de Burgess foram formados, não ficava no alto de uma montanha, e sim na base. Especificamente, era uma bacia oceânica rasa no fundo de um penhasco íngreme. Os mares daquela época pululavam de vida, porém normalmente os animais não deixavam registos, devido ao corpo mole decompor-se depois de morrer. Mas em Burgess, o penhasco desmoronou, e as criaturas em baixo, soterradas sob o deslizamento, foram pressionadas como flores dentro de um livro, e seu aspeto foi preservado em detalhes assombrosos. Tanto na quantidade como na diversidade, a coleção era inigualável. Alguns dos fósseis de Walcott possuíam conchas; muitos outros, não. Alguns eram dotados de visão, outros eram cegos. A variedade era enorme, consistindo em 140 espécies, segundo uma contagem.

Walcott morreu em 1927, e os fósseis de Burgess foram basicamente esquecidos. Por quase meio século, jazeram trancados em gavetas no Museu de História Natural Americano, em Washington, raramente consultados e nunca questionados. Até que, em 1973, um estudante de pós-graduação da Universidade de Cambridge, chamado Simon Conway Morris, fez uma visita à coleção. Ele se espantou com o que achou. Os fósseis eram bem mais variados e magníficos do que Walcott indicara em seus textos. Em taxonomia, a categoria que descreve os planos corporais básicos de todos os organismos é o filo, e ali, Conway Morris concluiu, estavam gavetas e mais gavetas de tais singularidades anatómicas – todas, surpreendente e inexplicavelmente, não reconhecidas pelo homem que as encontrara.

Com o seu supervisor, Harry Whittington, e o colega estudante de pós-graduação Derek Briggs, Conway Morris dedicou os anos seguintes a uma revisão sistemática de toda a coleção, produzindo uma monografia empolgante após outra, à medida que as descobertas se acumulavam. Muitas das criaturas empregavam planos corporais não apenas diferentes de qualquer coisa vista até então ou depois, mas estranhamente diferentes. Uma delas, de nome Opabinia, possuía cinco olhos e um focinho em forma de bocal com garras na ponta. Outra, um ser em forma de disco chamado Peytoia, assemelhava-se a uma fatia de abacaxi. Havia tantas novidades não reconhecidas na coleção que, a certa altura, após abrir mais uma gaveta, alguém ouviu Conway Morris murmurar a frase que se tornou famosa: “Porra, mais um filo!”.

O Câmbrico foi uma época de inovações e experimentações inéditas nos projetos corporais. Durante quase 4 mil milhões de anos, a vida havia vacilado, sem nenhuma ambição detectável em direção à complexidade, e aí, subitamente, no espaço de apenas 5 ou 10 milhões de anos, criara todos os projetos corporais básicos ainda em uso. O mais surpreendente, porém, foi o número de projetos corporais que não conseguiram prosperar, por assim dizer, não deixando descendentes. No todo, segundo Stephen Jay Gould, pelo menos quinze, e talvez até vinte dos animais de Burgess não pertenciam a nenhum filo reconhecido. “A história da vida”, escreveu Gould, “é uma história de retirada maciça seguida de diferenciação dentro de algumas estirpes sobreviventes, não a lenda convencional de um aumento constante da excelência, complexidade e diversidade.” O sucesso evolucionário, ao que parecia, era uma lotaria.

Uma criatura que conseguiu escapar, um pequeno ser semelhante a um verme chamado Pikaia gracilens, possuía, ao que se descobriu, uma coluna vertebral primitiva, o que o tornou o primeiro ancestral conhecido dos vertebrados posteriores, aí incluídos nós próprios. Os Pikaia não eram nada abundantes entre os fósseis de Burgess, de modo que, estiveram por um triz, próximos da extinção. Gould, em uma citação famosa, deixa claro que vê o nosso sucesso hereditário como um acaso afortunado: “Retroceda a fita da vida até aos dias iniciais de Burgess Shale e deixe que seja reproduzida novamente de um ponto de partida idêntico. Tornam-se ínfimas as chances de que algo como a inteligência humana sobreviesse com um replay”.




O livro de Gould foi publicado em 1989; aclamado pela crítica, foi um grande sucesso de vendas. O que em geral se ignorava era que muitos cientistas não concordavam com as conclusões de Gould e que a divergência se tornaria “explosiva”. Na verdade, sabemos agora que organismos complexos existiam pelo menos 100 milhões de anos antes do Câmbrico. Deveríamos ter sabido isso bem antes. Quase quarenta anos após a descoberta de Walcott no Canadá, do outro lado do planeta, na Austrália, um jovem geólogo chamado Reginald Sprigg encontrou algo ainda mais antigo e, à sua maneira, igualmente notável.

Em 1946, Sprigg era um jovem geólogo assistente do governo do estado da Austrália do Sul quando foi enviado para examinar algumas minas abandonadas nos montes Ediacaran, na cadeia Flinders, uma extensão de sertão escaldante uns cerca de 500 Km ao norte de Adelaide. A ideia era verificar se havia minas antigas que pudessem ser reaproveitadas, de forma rentável, utilizando-se tecnologia mais moderna, de modo que ele não estava interessado no estudo de rochas de superfície, e menos ainda fósseis. Mas certo dia, enquanto almoçava, Sprigg por acaso derrubou um pedaço de arenito e surpreendeu-se – no mínimo – ao ver que a superfície da rocha eslava coberta de fósseis delicados, como as impressões deixadas por folhas no lodo. Aquelas rochas antecediam a explosão câmbrica. Ele estava perante os primórdios da vida visível. 

Sprigg submeteu um artigo à Nature, que foi rejeitado. Leu-o, então, na reunião anual seguinte da Associação Australiana e da Nova Zelândia para o Progresso da Ciência, sem conseguir o apoio do presidente da associação, que declarou que as impressões de Ediacaran não passavam de “marcas inorgânicas fortuitas” – padrões produzidos por vento, chuva ou marés, mas não por seres vivos. Sem perder totalmente as esperanças, Sprigg viajou a Londres e apresentou as suas descobertas ao Congresso Geológico Internacional de 1948. E a frustração repete-se, não conseguiu despertar interesse nem crença de grandes eminências da ciência. Finalmente, por falta de um veículo melhor, publicou as suas descobertas nas Transactions of the Royal Society of South Australia. Deixa o emprego público e passa a dedicar-se à exploração de petróleo.

Nove anos depois, em 1957, um estudante chamado James Mason, ao caminhar pela floresta Charnwood, na Inglaterra Central, encontrou uma rocha com um fóssil estranho, semelhante a uma anémona moderna e exatamente igual a alguns dos espécimes que Sprigg encontrara e vinha tentando divulgar. O jovem James Mason entregou a rocha a um paleontólogo da Universidade de Leicester, que identificou o fóssil ser do período pré-câmbrico. Em homenagem a Mason, o espécime foi nomeado Chamia masoni. Atualmente, alguns dos espécimes de Ediacaran originais de Sprigg, assim como muitos dos outros 1500 espécimes que foram encontrados na cadeia Flinders desde aquela época, podem ser vistos em uma caixa de vidro, numa sala do andar superior do South Australian Museum, em Adelaide. 

Ainda há pouco consenso sobre o que eram essas criaturas ou como viviam. Ao que se pode observar, não eram dotadas de boca nem de ânus para absorver e eliminar materiais digestivos, nem de órgãos internos para processá-los ao longo do caminho. Todas as criaturas de Ediacaran eram diploblásticas, o que significa que se constituíam de duas camadas de tecido. Com exceção da medusa, todos os animais atuais são triploblásticos. Alguns especialistas acreditam que não eram animais, e sim mais semelhantes a plantas ou fungos. As distinções entre planta e animal nem sempre são claras, mesmo agora. A esponja moderna passa a vida fixada num só lugar e não possui olhos, cérebro ou um coração pulsante, mas é um animal. “Quando voltamos ao pré-câmbrico, as diferenças entre plantas e animais eram provavelmente ainda menos claras”. Tampouco existe um consenso de que os organismos de Ediacaran sejam, de algum modo, ancestrais de algo vivo hoje (exceto talvez alguma medusa). Muitos especialistas os veem como uma espécie de experiência fracassada, uma tentativa de complexidade que não foi bem-sucedida, possivelmente porque os organismos de Ediacaran foram devorados ou superados pelos animais flexíveis e mais sofisticados do período Câmbrico. A impressão era que, em última análise, eles não eram decididamente importantes para o desenvolvimento da vida na Terra. Muitos especialistas acreditam que houve um extermínio em massa na fronteira entre o Pré-Câmbrico e o Câmbrico. A vida complexa começou realmente com a explosão câmbrica. Pelo menos, essa era a visão de Gould.

Quanto às revisões dos fósseis de Burgess Shale, quase imediatamente as pessoas passaram a questionar as interpretações e, em particular, a interpretação de Gould das interpretações: “Se Stephen Gould conseguisse pensar tão claramente como escreve!”, disse Richard Dawkins, no início de uma resenha no Sunday Telegraph londrino de Vida maravilhosa, reconhecendo que o livro era “incriticável”, mas acusou Gould de se engajar numa falsa representação “grandiloquente e quase insincera” dos factos, ao sugerir que as revisões de Burgess haviam impressionado a comunidade paleontológica. “A visão que ele está atacando – de que a evolução marcha inexoravelmente rumo a um pináculo como o homem – já não o é defendida há cinquenta anos”, declarou Dawkins. Observando a frequência com que é proposta essa ideia – de que não há planos corporais novos –, Dawkins diz: “É como se um jardineiro contemplasse um carvalho e observasse espantado: ‘Não é estranho que nenhum galho novo tenha surgido nesta árvore há anos? Agora, só brotam pequenos ramos’”.

O mais estranho foi a reação de um dos heróis de "Vida maravilhosa", Simon Conway Morris, que surpreendeu muita gente da comunidade paleontológica ao investir abruptamente contra Gould em um livro próprio, The crucible of creation [O cadinho da criação]. O que aconteceu foi que os fósseis do início do Câmbrico começaram a passar por um período de reavaliação crítica. Fortey e Derek Briggs – um dos outros personagens principais do livro de Gould – aplicaram um método conhecido como cladística para comparar os diferentes fósseis de Burgess. Em termos simples, a cladística consiste em organizar os organismos com base em características compartilhadas. Fortey dá como exemplo a ideia de comparar um musaranho com um elefante. Se você considerasse o tamanho avantajado e a presa impressionante do elefante, poderia concluir que ele pouco teria em comum com o minúsculo musaranho. Mas se comparasse os dois com um lagarto, veria que o elefante e o musaranho se desenvolveram, na verdade, dentro do mesmo plano. Em essência, o que Fortey está dizendo é que Gould viu elefantes e musaranhos onde eles viam mamíferos. As criaturas de Burgess, eles acreditavam, não eram tão estranhas e variadas como se afiguravam à primeira vista. “Quase sempre não eram mais estranhas que trilobites”, diz Fortey. “Só que tivemos cerca de um século para nos acostumarmos aos trilobites. A familiaridade, veja bem, gera familiaridade.”

Cabe observar que a falha não decorreu de negligência ou desatenção. Interpretar as formas e as relações dos animais antigos com base em indícios muitas vezes distorcidos e fragmentários constitui uma tarefa delicada. Edward O. Wilson observou que, se alguém tomasse espécies selecionadas de insetos modernos e as apresentasse como fósseis no estilo de Burgess, ninguém notaria que eram todas do mesmo filo, tão diferentes são seus planos corporais. 
Portanto, os espécimes de Burgess Shale não eram tão espetaculares afinal de contas. Mas restava a velha pergunta sobre a origem deles: como foi que surgiram subitamente do nada. O facto é que a explosão câmbrica pode não ter sido tão explosiva como se pensava. Acredita-se hoje que os animais do Câmbrico provavelmente já existiam, mas eram pequenos demais para ser vistos. Outra vez, foram as trilobites que forneceram a pista – em particular, aquela aparição desconcertante de tipos diferentes de trilobites em locais totalmente dispersos ao redor do globo mais ou menos na mesma época. Assim, a aparição súbita de montes de criaturas plenamente formadas, mas variadas, longe de realçar o caráter milagroso da explosão câmbrica, sugere o inverso. Uma coisa é uma criatura bem formada como uma trilobite surgir isoladamente – isso é de facto espantoso. Aparição simultânea de muitos deles, entretanto, todos diferentes, mas claramente relacionados, no registo fóssil em lugares tão afastados como China e Nova York, indica claramente que estamos ignorando grande parte de sua história. Não poderia haver um indício mais forte da existência de um antepassado – alguma espécie-avó que iniciou a linhagem num passado bem anterior.

O motivo pelo qual não encontramos essas espécies anteriores, ao que se acredita, é que são minúsculas demais para serem preservadas. Atualmente, o mar pulula de artrópodes minúsculos que não deixaram nenhum registo fóssil. No entanto, todo o conhecimento sobre os seus ancestrais se resume a um único espécime encontrado no corpo de um peixe fossilizado antigo. A explosão câmbrica, se essa é a palavra certa, provavelmente foi mais um aumento de tamanho do que uma aparição súbita de tipos corporais novos. E aquilo pode ter ocorrido bem rapidamente, de modo que, nesse sentido, foi uma explosão. A ideia é que, assim como os mamíferos aguardaram a sua oportunidade de aparecer durante 100 milhões de anos, até que os dinossauros desaparecessem para então aparentemente irromperem em profusão por todo o planeta, talvez os artrópodes e outros triploblastos aguardassem no anonimato quase microscópico até que os organismos de Ediacaran dominantes saíssem de cena. Os mamíferos aumentaram substancialmente de tamanho após o desaparecimento dos dinossauros. No sentido geológico, a expressão "abruptamente" está a falar de milhões de anos.

terça-feira, 6 de dezembro de 2022

A Sabedoria de Kondiaronk



Kondiaronk (c. 1649–1701) (Gaspar Soiaga, Souojas, Sastaretsi), conhecido como Le Rat (O Rato), foi o chefe do povo nativo americano Wendat em Michilimackinac no Canadá francês, no tempo de Louis-Armand Lahontan (1666-1716). A área de Michilimackinac corresponde ao estreito entre os lagos Huron e Michigan (ou, a área entre as penínsulas superior e inferior de Michigan) nos atuais Estados Unidos. Liderou 
os Petune e Huron contra os seus inimigos iroqueses no tempo dos colonos franceses no Canadá. 



«O dinheiro, é um dos piores elementos da vossa “civilização”, pai dos piores comportamentos do mundo – luxúria, lascívia, intrigas, traição …» De um diálogo de Kondiaronk  com o filósofo e explorador francês Louis-Armand Lahontan.

O povo Wendat é um povo indígena das florestas do nordeste da América do Norte. Emergiram como uma confederação de tribos iroqueses ao redor da margem norte do Lago Ontário, e ocupando algum território na parte ocidental do lago.

Os Wyandot, não confundir com o Huron-Wendat, descendem predominantemente da tribo Tionontati. O povo Tionontati nunca pertenceu à Confederação Huron-Wendat. No entanto, os Wyandot têm conexões com os Huron-Wendat através de sua linhagem dos Attignawantan, a tribo fundadora dos Huron. As quatro Nações Wyandot são descendentes de remanescentes dos Tionontati, Attignawantan e Wenrohronon (Wenro), que eram "todas tribos independentes únicas, que se uniram em 1649-50 depois de serem derrotadas pela Confederação Iroquesa".




Após a derrota durante a prolongada guerra com as Cinco Nações dos Iroqueses em 1649, os membros sobreviventes da confederação se dispersaram, alguns fixaram residência no Quebec com os jesuítas e outros foram adotados por nações vizinhas, como os Tionontati para se tornarem os Wyandot. Mais tarde, eles ocuparam território que se estendia até o que é hoje os Estados Unidos, especialmente Michigan, norte de Ohio, Kansas e, finalmente, nordeste de Oklahoma devido às políticas federais de remoção dos EUA.

Eles estavam relacionados a outros povos iroqueses na região, como seus poderosos concorrentes, as Cinco Nações dos Iroqueses, que ocupavam território principalmente no lado sul do Lago Ontário, mas tinham áreas de caça ao longo do rio São Lourenço. No Canadá, a nação irmã Wyandot é conhecida como Nação Huron-Wendat. Depois de 1634, o seu número foi drasticamente reduzido por epidemias de novas doenças infeciosas transmitidas pelos europeus, entre as quais a varíola que era endémica entre os europeus. Os enfraquecidos Wyandot foram dispersos pela guerra em 1649 travada pela Confederação Iroquesa das Cinco Nações, ou Haudenosaunee, então sedeada em grande parte ao sul dos Grandes Lagos, Nova Iorque, e Pensilvânia. Evidências arqueológicas desse deslocamento foram descobertas no Rock Island II Site, em Winsconsin.

No final do século XVII, a Confederação Huron-Wyandot fundiu-se com a nação Tionontati de língua iroquesa (conhecida como Petun em francês, também conhecida como o povo do tabaco por sua principal cultura). Eles podem originalmente ter sido uma colónia dissidente dos Huron, para formar o histórico Wyandot.

Ao contrário do mito de Rousseau, ao longo de milhares de anos do último período glacial - também referido como Idade do Gelo, que decorreu entre 110.000 e 10.000 anos antes do momento presente, as sociedades que precederam o período Neolítico, eram pequenas sociedades desiguais de caçadores-recolectores. Ao passo que no início do período Neolítico formaram-se grandes cidades extremamente igualitárias. Mas mais surpreendentemente, é o facto de nesse período de transição havia sociedades que podiam ser igualitárias no verão e desiguais no inverno, ou vice-versa. Parece que os textos fundadores do Iluminismo e da Revolução Francesa, e em particular o texto de Rousseau sobre a origem da desigualdade entre os homens, foram fortemente influenciados pela crítica dos índios americanos em relação à sociedade ocidental. 

Ora, entre esses índios americanos, a personalidade de Kandiaronk destaca-se como a de um sábio, um orador brilhante que fascinou a elite ocidental francesa e perverteu a juventude ocidental à medida que as suas críticas à sociedade ocidental e à religião cristã se espalhavam dentro da sociedade em França. As desigualdades dos homens seria o preço a pagar pelo progresso técnico e pelo conforto que ele traz.




segunda-feira, 28 de novembro de 2022

Jiang Zemin





Jiang Zemin [1926 – 2022] prefeito de Xangai, Secretário-Geral do Partido Comunista Chinês [1989-2002], foi presidente da República Popular da China [1993-2003]. Depois do desastre de Tiananmen, Zemin marcou a ascensão chinesa para a impressionante explosão de energia e criatividade. Ele supervisionou um dos maiores crescimentos de PIB per capita na história humana, consumou a devolução pacífica de Hong Kong, reconstituiu as relações da China com os Estados Unidos e o resto do mundo, e lançou a China no rumo de se tornar uma potência económica global. Como secretário do Partido em Xangai, Zemin recebera elogios pelo modo como lidara com os protestos na cidade: havia fechado um influente jornal liberal no início da crise, mas se recusara a decretar a lei marcial, e as manifestações de Xangai foram debeladas sem derramamento de sangue. Um facto marcante do seu governo foram as devoluções de Hong Kong pela Grã-Bretanha em 1997 e Macau por Portugal em 1999.

Tiananmen fizera com que as relações sino-americanas retrocedessem praticamente ao ponto de partida. Deng Xiaoping havia-se retirado voluntariamente em 1989 para viver em tranquilidade os seus últimos dias. Agora, como secretário-geral, era amplamente tido como uma figura de transição — e poderia perfeitamente ter sido um candidato por conciliação no meio do caminho entre o elemento relativamente liberal – Li Ruihuan (o ideólogo do Partido) – e o grupo conservador como Li Peng (primeiro-ministro). Era o primeiro líder comunista chinês sem credenciais revolucionárias ou militares. Sua liderança, como a de seus sucessores, brotava de seu desempenho burocrático e económico, que exigia uma dose de consenso no Politburo. Por exemplo, ele estabeleceu o seu domínio na política externa somente em 1997, oito anos após se ter tornado secretário-geral.

Líderes do Partido chinês anteriores haviam conduzido a sua liderança com a aura altiva apropriada ao sacerdócio de uma mistura do novo materialismo marxista e vestígios da tradição confucionista da China. Jiang estabeleceu um padrão diferente. Ao contrário de Mao, o rei-filósofo, Zhou, o mandarim, ou Deng, o guardião dos interesses nacionais forjado no campo de batalha, Jiang comportava-se mais como um afável membro de família. Era caloroso e informal. Mao tratava os seus interlocutores com distanciamento olímpico, como se fossem alunos de graduação passando por um exame sobre a adequação de seus insights filosóficos. Zhou conduzia as conversas com a graça fácil e a inteligência superior do sábio confucionista. Deng ia direto aos aspetos práticos de uma discussão, tratando as digressões como perda de tempo.

Jiang não reivindicava qualquer preeminência filosófica. Ele sorria, ria, contava anedotas e tocava em seu interlocutor a fim de estabelecer uma ligação. Orgulhava-se, às vezes de forma entusiasmada, de seu talento para línguas estrangeiras e seu conhecimento de música ocidental. Com visitantes não chineses, regularmente incorporava expressões inglesas, russas ou até latinas em suas apresentações para enfatizar um ponto — movendo-se de uma hora para a outra entre um rico cabedal de expressões idiomáticas chinesas clássicas e coloquialismos americanos como It takes two to tango (“São necessárias duas pessoas para dançar um tango”). Se a ocasião assim o permitia, ele era capaz de pontuar reuniões sociais — e de vez em quando oficiais — desatando a cantar, fosse para contornar um tema desconfortável, fosse para enfatizar um sentimento de camaradagem.

Os diálogos dos líderes chineses com visitantes estrangeiros normalmente ocorriam na presença de uma entourage de conselheiros e tomadores de notas que não abriam a boca e muito raramente passavam anotações para seus chefes. Jiang, pelo contrário, tendia a transformar seu grupo em um coro grego; ele iniciava um pensamento, depois passava a palavra para um assessor de uma maneira tão espontânea que dava a impressão de que se estava diante de uma equipa da qual Jiang era o capitão. Com muita leitura e elevada instrução, Jiang procurava atrair o interlocutor à atmosfera de boa vontade que parecia cercá-lo, pelo menos quando lidava com estrangeiros. Ele gerava um diálogo em que as opiniões de seus interlocutores, e até de seus colegas, eram tratadas como merecedoras do mesmo grau de importância que reivindicava para as suas.

Jiang Zemin era suficientemente cosmopolita para compreender que a China teria de operar dentro de um sistema internacional, e não com a postura distanciada e dominante de Império do Meio. Zhou também compreendera isso, assim como Deng. Mas Zhou pôde implementar sua visão apenas de modo fragmentário, devido à presença sufocante de Mao, e a de Deng foi abortada por Tiananmen. A afabilidade de Jiang era expressão de uma tentativa séria e calculada de inserir a China numa nova ordem internacional e restaurar a confiança internacional, tanto para ajudar a curar as feridas domésticas da China como para suavizar sua imagem internacional.

Nem todos os observadores chineses apreciavam o projeto de se envolver com um mundo ocidental tido como desinteressado da realidade chinesa; nem todos os observadores ocidentais aprovavam o esforço de se engajar com uma China aquém das expectativas políticas ocidentais.

Jiang manteve-se discreto na presidência até ao falecimento de Deng Xiaoping, em 1997. A grande estrela do desenvolvimento económico chinês durante sua presidência foi o ministro da economia, Zhu Rongji, que modernizou a política económica do país. Após 1997 essencialmente manteve as políticas de Deng Xiaoping e Zhu Rongji. Jiang Zemin foi substituído por Hu Jintao em 15 de novembro de 2002.

segunda-feira, 21 de novembro de 2022

O planeta Terra visto do Sol


Estando no Sol, vejo oito esferas a girar à minha volta, umas mais perto do que outras mais longe, cada qual com a sua mania, mas há uma que chama mais à atenção, a terceira a contar da que está mais perto. Colocando na máquina a teleobjetiva de maior alcance verifico que é a única que é preenchida nuns sítios por florestas e muitos organismos a mexerem, outros sítios por desertos, e ainda outros por betão com muita bicharada fumegante. Não é fácil ser um organismo. Em todo o universo, pelo que sei até agora, não existe outro lugar como este lugar, um posto avançado indiscreto da Via Láctea que sustenta este pacóvio observador, ainda que com muita má vontade. Mas, eis que chego a um lugar que aina não falei - o Oceano, o Mar - melhor parar por aqui para não sofrer o verdadeiro terror das profundezas.

Do ar que respiramos, 78% é azoto; 21% é oxigénio; 1% é dióxido de carbono, argónio, vapor de água e outros gases. E, todavia, é com este 1% que estamos muito incomodados. Ora, quando o corpo humano está sob pressão, o azoto é transformado em bolhas minúsculas que migram para o sangue e os tecidos. Se a pressão mudar muito depressa – quando um mergulhador está debaixo de água do mar, e sobe rápido demais –, as bolhas presas no corpo começam a borbulhar, como uma garrafa de champanhe que acabou de ser aberta, obstruindo os vasos sanguíneos menores, privando as células de oxigénio e causando uma dor tão terrível que a vítima se contorce em agonia. A doença da descompressão é um risco profissional, por exemplo, dos pescadores de esponjas e pérolas. Noutros tempos, os trabalhadores de pontes, para construir os pilares debaixo de água, metiam-se em caixas pneumáticas, que eram câmaras secas e fechadas e enchidas de ar comprimido. Quando emergiam, após um período extenso de trabalho sob essa pressão artificial, sofriam sintomas brandos como formigueiro nas extremidades do corpo, e prurido à superfície do corpo, na pele. Mas um pequeno número desses profissionais, imprevisivelmente, sentia uma dor mais insistente nas articulações e alguns ocasionalmente acabavam por cair em agonia, às vezes para nunca mais se levantarem. Ora isto era desconcertante, ao ponto de alguns trabalhadores iam para a cama dormir, sentindo-se bem, mas acordavam paralisados, quando alguns nem sequer chegavam a acordar.

Como disse, se mesmo assim, a Terra não é meiga para a vida de um organismo como o homo sapiens viver, imagine-se todos os outros. Em todo o caso, a Terra é um lugar único, ainda que seja o único lugar onde apenas uma pequena porção é habitada pela espécie humana sapiens. Com pouca água potável para ser habitada, com uma parte surpreendentemente grande que é quente e seca, e outra que é fria húmida, ou muito elevada e íngreme demais. Admite-se que, em parte, o sapiens tem muita culpa das suas desgraças, por ser demasiadamente atrevido. Há uma imensidão de outros animais, mas a maioria está adaptada apenas aos sítios que gosta. Nas piores circunstâncias – um sapiens a pé sem água num deserto quente, rapidamente (cinco a sete horas no máximo) entra em delírio e perde a consciência para nunca mais levantar. Mas o sapiens não é mais resistente diante do frio, nas zonas geladas. Como todos os mamíferos, os seres humanos sabem gerar calor, contudo – devido à escassez de pêlos – só conseguem conservá-lo com roupa apropriada ou com outros recursos mais sofisticados. Mesmo num clima ameno, metade das calorias queimadas serve para manter o corpo aquecido. Ainda assim, as porções da Terra para o sapiens viver com tranquilidade são bem modestas, apenas 4% da superfície total se incluirmos os oceanos, ou seja, 12% da área terrestre.  

É preciso muita sorte para encontrar um planeta adequado à vida. E quanto mais avançada a vida, mais sortudo é preciso ser. Constitui uma curiosidade da física que, quanto maior uma estrela, maior a velocidade com que ela queima. Se o Sol tivesse uma massa dez vezes maior, já teria desaparecido e não estaríamos aqui agora. Também temos a sorte de orbitar à distância certa. Se orbitássemos muito mais perto do Sol, tudo na Terra teria evaporado. Se orbitássemos muito mais longe, tudo teria congelado. A descoberta de extremófilos nas fontes térmicas de Yellowstone e de organismos semelhantes em outros lugares fez os cientistas perceberem que, na verdade, certo tipo de vida poderia estender-se até mais longe – até talvez sob a superfície gelada de Plutão.

Para percebermos o que se passa, basta olhar para Vénus, o planeta mais próximo do Sol que está a 40 milhões de quilómetros. A luz solar alcança Vénus dois minutos antes de chegar à Terra. Em tamanho e composição, é muito semelhante à Terra, mas a pequena diferença na distância orbital mudou completamente a história. Parece que, nos anos iniciais do sistema solar, Vénus era só ligeiramente mais quente do que a Terra, e provavelmente possuía oceanos. Mas esses poucos graus de calor extra fizeram com que ele não conseguisse reter a água da superfície, com as devidas consequências para a temperatura e o clima. À medida que a água evaporava, os átomos de hidrogénio escapavam para o espaço. Assim, os átomos de oxigénio combinaram-se com o CO2 para formar uma atmosfera de denso efeito estufa. A temperatura na superfície de Vénus com cerca de 470° C, calor suficiente para derreter chumbo, e a pressão atmosférica 90 vezes superior à da Terra, incompatível com qualquer corpo animal.

Aida assim, estar à distância certa do Sol não é tudo, senão a Lua seria arborizada e habitável, o que não é o caso. 
A maioria das luas é minúscula em relação ao seu planeta. Os satélites de Marte - Fobos e Deimos - por exemplo, têm apenas uns dez quilómetros de diâmetro. A Lua, porém, tem mais de um quarto do diâmetro da TerraPara a vida é preciso o tipo certo de planeta. Entre outras coisas, o interior buliçoso da Terra com o seu campo magnético, e a libertação dos gases, ajudaram a formar uma atmosfera protetora das radiações cósmicas. Além disso, a tectónica das placas, em contínuo movimento, também contribui para uma orografia mais favorável à vida. Mas, por outro lado, sem a influência estabilizadora da Lua, a Terra oscilaria como um pião prestes a parar, com consequências imprevisíveis para o clima. A influência gravitacional permanente da Lua mantém a Terra girando na velocidade e no ângulo certos para proporcionar o tipo de estabilidade necessária ao longo e bem-sucedido desenvolvimento da vida. Isso não prosseguirá para sempre. A Lua está escapando do domínio da Terra a uma taxa de cerca de quatro centímetros por ano. Dentro de 2 mil milhões de anos, terá recuado tanto que não manterá mais a Terra estável. Durante muito tempo, os astrónomos pensavam que a Lua e a Terra se formaram juntas. Ou que a Terra capturou a Lua ao passar por perto. Mas o que aconteceu foi que há uns 4,4 mil milhões de anos, um objeto do tamanho de Marte colidiu com a Terra, arremessando escombros suficientes para criar a Lua. E se os dinossauros não tivessem sido exterminados por um asteroide que colidiu naquela época exata, não estaríamos agora aqui.

Quem imaginaria, por exemplo, que o silício é o segundo elemento mais comum na Terra ou que o titânio é o décimo? A abundância não está necessariamente associada à familiaridade ou à utilidade para nós. Muitos desses elementos mais obscuros são, de facto, mais comuns do que outros mais conhecidos. Existe mais cério na Terra do que cobre, mais neodímio e lantânio do que cobalto ou azoto. O estanho mal entra na lista dos cinquenta mais comuns, eclipsado por obscuridades relativas como praseodímio, samário, gadolínio e disprósio. A abundância não está relacionada à facilidade de deteção. O alumínio é o quarto elemento mais comum na Terra, representando cerca de um décimo de tudo o que está sob os nossos pés, mas nem sequer se suspeitava de sua existência até ele ser descoberto, no século XIX, por Humphrey Davy, e por muito tempo depois foi considerado raro e precioso. Mas se não fosse o carbono, a vida como a conhecemos seria impossível. Provavelmente qualquer tipo de vida seria impossível.

Outros elementos são críticos não para criar vida, mas para sustentá-la. Precisamos de ferro para fabricar hemoglobina, e sem ele morreríamos. O cobalto é necessário à criação da vitamina B12. Potássio e sódio são bons para os nervos. Molibdénio, manganês e vanádio ajudam a manter as enzimas felizes. Evoluímos para utilizar ou tolerar essas coisas – senão mal conseguiríamos estar aqui –, mas mesmo assim vivemos dentro de margens de aceitação estreitas. O selénio é vital para todos nós, com peso conta e medida. O grau em que os organismos necessitam de ou toleram certos elementos é uma consequência de sua evolução. No entanto se aumentarmos as doses, um pouquinho que seja, logo poderemos ultrapassar o limite. Ninguém sabe, por exemplo, se uma quantidade minúscula de arsénico é ou não necessária ao nosso bem-estar. Alguns especialistas afirmam que sim; outros que não. A única certeza é que arsénico demais mata. As propriedades dos elementos podem tornar-se mais curiosas quando eles são combinados. Oxigénio e hidrogênio, por exemplo, são dois dos elementos mais amigos da combustão, mas, ao se juntarem, formam a água incombustível. O oxigénio em si não é combustível, mas facilita a combustão de outras coisas. O gás hidrogénio, por outro lado, é extremamente combustível.

Ainda mais estranhos em combinação são o sódio, um dos elementos mais instáveis, e o cloro, um dos mais tóxicos. Uma porção de sódio puro na água comum, ela explodirá com força suficiente para matar. O cloro é mais notoriamente perigoso. Embora útil em pequenas concentrações para eliminar microrganismos, em volumes maiores também é letal para nós. O cloro foi o elemento utilizado em muitos dos gases venenosos na Primeira Guerra Mundial. E, como provam os olhos lacrimejantes de nadadores em piscinas, mesmo quando extremamente diluído agride o corpo humano. No entanto, reunindo esses dois elementos desagradáveis, obtemos Cloreto de sódio – o sal de cozinha comum.

Grande parte da razão pela qual a Terra parece tão milagrosa é que evoluímos para nos adaptar às suas condições. O que nos assombra não é que ela seja adequada à vida, mas o que seja a vida. Ninguém sabe ao certo. Desse modo, é possível que os eventos e as condições que levaram ao surgimento da vida na Terra não sejam tão extraordinários como gostamos de pensar. Mesmo assim, eles foram suficientemente extraordinários.


domingo, 13 de novembro de 2022

As nossas maneiras, as nossas opiniões, entre a ética e a estética



A unidade que Shaftesbury estabelece entre a ética e a estética, entre a virtude e a beleza, aparece claramente no conceito de “maneiras”. Maneiras, para o século XVIII, significa aquela disciplina meticulosa do corpo que transforma a moralidade em estilo, desfazendo a oposição entre o apropriado e o agradável. Nessas formas reguladas da conduta civilizada, dá-se uma estetização extensiva das práticas sociais: os imperativos morais já não se impõem com o peso de um dever kantiano, mas infiltram-se na aparência da experiência vivida que algumas pessoas se lhe referem com expressões como tato, savoir faire, e por vezes bom senso
Segundo Ernst Cassirer, Shaftesbury precisa de uma teoria do belo “para responder à questão da formação correta do caráter, e da lei que governa a estrutura do mundo interno”.

O sujeito, em si mesmo, é assim harmonizado através da estética. Da mesma maneira que a obra de arte, o sujeito intromete os códigos que o governam. Althusser diz que devemos funcionar sozinhos, sem necessidade de constrições políticas, ou seja, vivermos sem a legitimação das leis. Isto já Kant havia encontrado na representação estética. É o Lebenswelt social, que parece operar com o rigor de uma lei racional, mas cuja lei nunca é aplicável ao comportamento particular concreto que a apresenta.

As revoluções tiveram sempre como proveito da classe média, que teve algumas vitórias históricas na sociedade política, à custa de muita luta. Mas o dilema desta luta é a desfiguração da lei através do discurso ao ser materializado no conflito político. É assim que Hegel escreve na Fenomenologia do Espírito, com um sarcasmo dirigido ao subjetivismo, sobre a “bendita unidade da lei e do coração”. As estruturas de poder são transformadas em estruturas de sentimentos, e a estética é uma mediação vital nesta passagem como regra de comportamento social. 

E foi assim que veio o tempo de as ações morais passarem a ser classificadas principalmente como “agradáveis” ou “desagradáveis”. E assim novos hábitos éticos se instalaram e naturalizaram como regra. A ordem social passou do ponto em que estava a cada momento submetida a uma discussão apocalíptica, para o descanso, que aproveitando os frutos do trabalho, entregue às malhas do prazer. 

Foi a desilusão que Burke teve Com a Revolução Francesa que o fez seguir por outro caminho.  Para ele, a obra de arte mais gloriosa era exatamente a Magna Carta, mãe de uma constituição inglesa que passou a dizer-se "não-escrita". Constituição inglesa informal, mas inelutável. O utilitarismo puritano só cederá espaço a um esteticismo do poder quando a sociedade for redefinida como um objeto de arte, que não tem nenhum propósito instrumental além da autoapreciação. É o que nós chamamos comumente de “consenso” ou “legitimação”. A imaginação é, verdadeiramente, para Hume, “o juiz último de todos os sistemas filosóficos”. Se a crença não passa de um sentimento um pouco mais vivaz, questiona-se David Hume, não poderá a sua crença, de que as coisas são assim, sofrer o mesmo questionamento, e voltar-se contra si mesma? “Depois de meus mais cuidadosos e exatos argumentos”, confessa, “não posso dar nenhuma razão pela qual deveria manter esta perspetiva. 
 
Não pode haver nenhum apelo para além da experiência e do hábito que estimulem a imaginação; é sobre esses apoios frágeis em que tudo se assenta, e assim se baseia todo o consenso social. “A memória, os sentidos e o entendimento são deste modo, todos eles, fundados na imaginação, ou na vivacidade de nossas ideias”. Numa adenda ao Tratado, Hume reconhece o quão completamente esta “vivacidade” atravessa a rede conceptual no esforço de distinguir entre crenças e ficções: “quando eu tento explicar quase não encontro palavras que respondam inteiramente à questão, e sou obrigado a recorrer ao sentimento de cada um, de forma a lhe dar uma perfeita noção desta operação da mente. Uma ideia assente na experiência é sentida de maneira diferente de uma ideia fictícia. 

David Hume chama "imaginação" à fonte de todo o conhecimento, uma conotação bem diferente da que se tem agora, o que explica porque a filosofia anda perdida por estes dias da ciência pura e dura. Mas Hume vem depois a contradizer-se, depois de reduzir a razão à imaginação, acaba por declarar que “Nada é mais perigoso para a razão que os voos da imaginação, e nada provocou mais erros entre os filósofos”. A chave para esta aparente inconsistência está na distinção entre as formas mais confiáveis e as mais selvagens do imaginar: devemos rejeitar “todas as sugestões triviais da fantasia, e aderir ao entendimento, isto é, às propriedades mais gerais e mais estabelecidas da imaginação”. O que nos salvará da imaginação é a razão, que é apenas uma outra versão sua.

Assim não surpreende, em função do que está colocado nesse debate, que Edmund Burke comece o seu trabalho sobre o sublime e o belo tentando defender a possibilidade de uma ciência do gosto. Se a beleza é algo relativo, os laços que mantêm a sociedade coesa estão em grave perigo. A beleza, para Burke, não é somente uma questão da arte: "Para mim, a beleza é uma qualidade social; pois quando homens e mulheres, e não só eles, mas também quando os animais nos dão um sentimento de alegria e prazer ao observá-los (e há muitos que o fazem), eles nos inspiram ternura e afeição por suas pessoas; nós queremos tê-los por perto, e entramos facilmente em relação com eles, a não ser que tenhamos fortes razões em contrário."

Para Burke, tanto quanto para Hume, o que dá coesão à sociedade é o fenómeno estético da mimese, que deve ser considerado mais a partir dos costumes que das leis: “É a partir da imitação, mais que do preceito, que aprendemos todas as coisas; e o que aprendemos assim, o fazemos não só com mais eficácia, mas também com mais prazer. É isto que forma as nossas maneiras, nossas opiniões, nossas vidas. Trata-se do mais forte cimento da sociedade; uma espécie de assentimento mútuo, que cada um concede ao outro, sem constrição para si, e extremamente gratificante para todos.” A lei e o preceito são simplesmente derivados do que é primeiro constituído pela prática costumeira e a coerção, assim, é secundária em relação ao consenso. Nós nos tornamos sujeitos humanos imitando com prazer as formas práticas da vida social, e na fruição desta funda-se a relação que nos une hegemonicamente ao todo. Imitar é submeter-se a uma lei, mas de forma tão gratificante que a liberdade se baseia nesta servidão. Este consenso é menos um contrato social artificial, tecido e mantido laboriosamente, que uma espécie de metáfora espontânea ou constante produção de semelhança. O único problema é saber onde vai dar toda essa imitação: a vida social para Burke parece uma cadeia infinita de representações de representações, sem fundo nem origem. Se nós fazemos como os outros fazem, e os outros fazem o mesmo, então todas essas cópias vivem na falta de um original transcendental, e a sociedade é estilhaçada numa selva de espelhos.

Burke confessa não ver maneira de unir esses dois registos, o que coloca claramente um problema político. O dilema é que a autoridade que nós amamos, nós não respeitamos, e a que respeitamos, não amamos. “A autoridade de um pai, tão útil para o nosso bem-estar, e tão justamente venerável, acima de qualquer cálculo, impede-nos de ter aquele amor inteiro por ele, como temos por nossa mãe, em que a autoridade parental está quase dissolvida na doçura e indulgência maternais.” O paradoxo político é claro: só o amor nos ganhará realmente para a lei, mas esse amor corroerá a lei até destruí-la. Uma lei bastante atraente para envolver nossos afetos íntimos, e tão eficaz para a hegemonia, tenderá a nos inspirar um desprezo afetuoso. Por outro lado, um poder que estimula nosso medo filial, e assim, nossa obediência submissa, supostamente aliena nossos afetos e nos incita a um ressentimento edipiano.

Procurando desesperadamente uma figura reconciliadora, Burke nos oferece nada menos que a imagem do avô, cuja autoridade masculina enfraquecida pela idade ganha uma “parcialidade feminina”. Mary Wollstonecraft [1759-1797, considerada hoje uma das fundadoras da filosofia feminista] percebe rapidamente o sexismo na argumentação de Burke e o denuncia em seu Vindication of the Rights of Men. Segundo ela, as distinções que Burke faz entre o amor e o respeito estetizam as mulheres a ponto de retirá-las da esfera da moral. É o que ainda se passa hoje com a publicidade, sabendo o quanto as mulheres excitam os homens através da estética da perfeição. Tal afeto (afeção) como prazer, acaba por perturbar a ética do amor na sua intimidade com o prazer. Esta frouxidão moral consentida pelas mulheres é capturada pela imaginação libertina, argumenta Wollstonecraft. Um gosto sensual excessivo, que é quente, ofusca a argumentação crítica da razão, que é fria, como se o sexo estivesse muito distante da virtude. São estas confusões que colocam a relação da razão com o sentimento, com a relação da água com azeite.

Colocando a questão da relação entre a beleza e a virtude de outra maneira, seguindo os argumentos de Wollstonecraft, é certamente mais cativante uma imaginação libertina do que os frios argumentos da razão, para os quais não há sexo na virtude. Mas se a experiência provar que há beleza na virtude, que há encanto na ordem, o que necessariamente implica um esforço, um gosto sensual excessivo poderá ser sentimento do prazer subsumido pela razão. Para Wollstonecraft, Burke não é um esteta, o que faz toda a diferença; divorcia a beleza (mulher) da verdade moral (homem). A virtude não tem nada a ver com o sexo, nem com o gosto. 

quinta-feira, 3 de novembro de 2022

Clair Patterson e o chumbo na gasolina



Foi Harrison Brown, da Universidade de Chicago, que desenvolveu um método novo de contar isótopos de chumbo em rochas ígneas (aquelas criadas por aquecimento, e não por depósito de sedimentos). Percebendo que o trabalho seria excessivamente tedioso, entregou-o ao jovem Clair Patterson para a sua tese de doutoramento. É famosa a sua promessa a Patterson de que determinar a idade da Terra com seu novo método seria canja. Na verdade, levaria anos.

Clair Patterson começou a trabalhar no projeto em 1948. Comparada com a contribuição heroica de Thomas Midgley à marcha do progresso, a descoberta da idade da Terra por Patterson possui um toque de anticlímax. Durante sete anos, primeiro na Universidade de Chicago e depois no Califórnia Institute of Technology (para onde se transferiu em 1952), ele trabalhou num laboratório esterilizado, fazendo medições muito precisas das taxas de chumbo/urânio em amostras de rochas antigas cuidadosamente selecionadas.

O problema da medição da idade da Terra era que se precisava de rochas extremamente antigas, contendo cristais portadores de chumbo e urânio mais ou menos tão antigos quanto o próprio planeta – é óbvio que rochas muito mais novas forneceriam datas enganosamente recentes. Mas rochas antigas de facto são difíceis de encontrar na Terra. No final da década de 1940, ninguém entendia porque eram tão raras. É incrível que só quando já estávamos em plena era espacial alguém tenha conseguido dar uma explicação plausível para o sumiço delas (a solução está na tectônica das placas). Patterson teve de tentar explicar as coisas contando com materiais bem limitados. Até que lhe ocorreu a ideia engenhosa de contornar a escassez de rochas utilizando material de fora da Terra, os meteoritos. Seu pressuposto foi bem ousado - restos dos materiais de construção dos primórdios do sistema solar era aquilo que ele precisava, pois conseguiam preservar uma química interior mais ou menos intacta. Medindo-se a idade dessas rochas errantes, obter-se-ia também a idade (suficientemente próxima) da Terra.

Como sempre, nada foi tão simples como esta descrição superficial leva a crer. Os meteoritos não são abundantes, e amostras meteoríticas não são fáceis de obter. Além disso, a técnica de medição de Brown revelou-se extremamente sensível e precisou de muitos refinamentos. Acima de tudo, havia o problema de que as amostras de Patterson eram constante e inexplicavelmente contaminadas por grandes doses de chumbo atmosférico sempre que expostas ao ar. Isso acabou fazendo com que ele criasse um laboratório esterilizado – o primeiro do mundo, de acordo com pelo menos um relato. Patterson despendeu sete anos de trabalho paciente para apenas reunir amostras adequadas para o teste final. Na primavera de 1953, viajou até ao Argonne National Laboratory, em Illinois, onde pôde utilizar a última palavra em espectrografia de massa, uma máquina capaz de detetar e medir as quantidades mínimas de urânio e chumbo encerradas em cristais antigos. Quando enfim obteve os resultados, Patterson, de tão excitado, achou que estivesse a ter um ataque cardíaco.

Logo depois, num encontro em Wisconsin, Patterson anunciou uma idade definitiva para a Terra de 4550 milhões de anos (com uma margem de erro de mais ou menos 70 milhões de anos) – “uma cifra que permanece inalterada. Após duzentos anos de tentativas, a Terra enfim possuía uma idade. Cumprida sua missão principal, Patterson voltou a atenção para todo aquele chumbo na atmosfera. Ele se espantou ao descobrir que o pouco que se sabia sobre os efeitos do chumbo nos seres humanos era quase invariavelmente desconhecido ou enganador – o que não surpreendia, já que durante quarenta anos todos os estudos dos efeitos do chumbo haviam sido financiados exclusivamente pelos fabricantes de aditivos de chumbo. Num daqueles estudos, um médico sem nenhum treino especializado em patologia química realizou um programa de cinco anos em que se pediu a voluntários que respirassem ou engolissem grandes quantidades de chumbo. Depois a urina e as fezes dessas cobaias foram examinadas. Infelizmente, como o médico parece ter ignorado, o chumbo não é excretado como produto residual. Ao contrário, acumula-se nos ossos e no sangue – daí ser tão perigoso –, e nem os ossos nem o sangue foram examinados. O resultado foi a aprovação do chumbo como inofensivo à saúde.

Uma coisa era certa, Patterson sabia que tínhamos muito chumbo na atmosfera – continuamos tendo, na verdade, já que o chumbo nunca desaparece – e que cerca de 90% parecia advir dos canos de escape dos automóveis. Mas não conseguiu provar isso. Ele precisava de um termo de comparação para os níveis de chumbo na atmosfera, entre o atual e o passado em 1923, altura em que havia sido introduzido o 
Tetraetilchumbo, ou chumbo tetraetila, o aditivo para gasolina cuja fórmula é Pb(C₂H₅)₄. Faz com que a octanagem da gasolina seja elevada, pois é resistente à pressão, porém é tóxico e libera partículas de chumbo no ar. Ocorreu-lhe, então, que núcleos de gelo poderiam fornecer a resposta. Sabia-se que a neve que cai em lugares como a Gronelândia se acumula em camadas anuais distintas (porque diferenças sazonais de temperatura produzem mudanças ligeiras na coloração do inverno para o verão). Contando retroativamente essas camadas e medindo a quantidade de chumbo em cada uma delas, Patterson poderia calcular as concentrações globais de chumbo em qualquer época por centenas, ou mesmo milhares, de anos. A ideia tornou-se a base dos estudos de núcleos de gelo, em que se fundamenta grande parte do trabalho climatológico moderno.

Patterson descobriu que antes de 1923 quase não havia chumbo na atmosfera, e desde aquela época o seu nível crescera de forma contínua e perigosa. Sua missão de vida era fazer com que o chumbo fosse eliminado da gasolina. Para isso, tornou-se um crítico constante e, muitas vezes, ruidoso da indústria do chumbo e seus interesses. A campanha se mostraria infernal. A Ethyl era uma corporação global poderosa, com muitos amigos em altos cargos. (Entre seus diretores estiveram o juiz da Suprema Corte Lewis Powell e Gilbert Grosvenor, da National Geographic Society.) Patterson de repente viu suas verbas de pesquisa serem suspensas ou negadas. O American Petroleum Institute cancelou um contrato de pesquisa com ele, bem como o Serviço de Saúde Pública dos Estados Unidos, uma instituição do governo supostamente neutra.

À medida que Patterson se tornava incómodo, a direção de sua instituição via-se repetidamente pressionada pelos executivos da indústria do chumbo a calá-lo ou demiti-lo. De acordo com Jamie Lincoln Kitman, escrevendo em The Nation em 2000, os executivos da Ethyl supostamente ofereceram o patrocínio de uma cátedra no Caltech “se Patterson fosse posto na rua”. Absurdamente, ele foi excluído do painel do Conselho Nacional de Pesquisa americano de 1971 para investigar os perigos do envenenamento atmosférico por chumbo, embora fosse então sem dúvida o maior especialista em chumbo atmosférico. Patterson tem o mérito de nunca ter hesitado nem cedido. Seus esforços acabaram levando à promulgação do Clean Air Act, lei antipoluição atmosférica de 1970, e finalmente à suspensão da venda de gasolina com chumbo nos Estados Unidos em 1986. Quase de imediato, os níveis de chumbo no sangue dos norte-americanos caíram 80%. Mas como o chumbo fica para sempre, quem está vivo hoje possui cerca de 625 vezes mais chumbo no sangue do que a população de um século atrás. A quantidade de chumbo na atmosfera também continua aumentando, sem nenhum impedimento legal, cerca de 100 mil toneladas métricas ao ano, como resultado principalmente da fundição e de atividades industriais. Os Estados Unidos também proibiram o chumbo na pintura de interiores, 44 anos depois da maior parte da Europa. A solda de chumbo só foi removida dos recipientes de alimentos norte-americanos em 1993.

Quanto à Ethyl Corporation, continua firme e forte, embora a MGM, a Standard Oil e a Du Pont não tenham mais participação acionista. Em fevereiro de 2001, a Ethyl ainda alegava “que as pesquisas não conseguiram mostrar que a gasolina com chumbo representa uma ameaça à saúde humana ou ao meio ambiente”. Em seu site, a história da empresa não faz nenhuma menção ao chumbo – ou mesmo a Thomas Midgley –; menciona-se simplesmente que o produto original continha “uma certa combinação de substâncias químicas”. A Ethyl deixou de produzir gasolina com chumbo, embora, de acordo com os demonstrativos da empresa de 2001, o chumbo tetraetila ainda representasse 25,1 milhões de dólares em vendas em 2000 (de um total de 795 milhões de dólares), valor superior aos 24,1 milhões de dólares em 1999, mas bem distantes dos 17 milhões de dólares em 1998. 

Patterson morreu em 1995, com 73 anos. E o mais intrigante é que ele não ficou famoso. É bem possível que ele tenha sido o geólogo mais influente do século XX. No entanto, quem é que ouviu falar de Clair Patterson? A maioria dos livros didáticos de geologia não o menciona. Dois livros populares recentes sobre a história da datação da Terra chegam a grafar errado o seu nome. Em todo o caso, graças ao trabalho de Clair Patterson, em 1953 todos podiam concordar com a idade da Terra.