quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

Evolução territorial da Ucrânia - [1922 - 1954]

 

Por meio do Tratado de Brest-Litovsk, a União Soviética abriu mão de exercer soberania sobre grande parte do território ucraniano. Um tratado de paz assinado entre o novo governo bolchevique russo e as Potências Centrais (Império Alemão; Império Austro-Húngaro; Bulgária; Império Otomano), em 3 de março de 1918 em Brest (antigamente Brest-Litovsk), na atual Bielorrússia, pelo qual era reconhecida a saída da Rússia no conflito. O governo Bolchevique também anulou todos os acordos do Império Russo com os seus aliados da 1ª Guerra Mundial. O governo russo também perdoou as dívidas do governo otomano no acordo.

Mas a derrota dos Impérios Centrais na 1ª Grande Guerra, e ao mesmo tempo o fim do Império Russo provocado pela Revolução Russa de 1917, levou a que o território da Ucrânia fosse disputado. E assim se deu a guerra Polaco-Soviética no momento em que ressurgia o movimento nacional ucraniano que lutava pela autodeterminação em boa parte da Ucrânia [fevereiro 1919 – março 1921]. Em agosto de 1920 a Polónia venceu, e em março do ano seguinte foi firmada a Paz de Riga, com ganhos territoriais limitados para ambos os lados, que voltou a dividir a Ucrânia: a porção ocidental foi incorporada à nova Segunda República Polaca e a parte maior, no centro e no Leste, transformou-se na República Socialista Soviética Ucraniana, posteriormente unida à União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, quando esta foi criada, em dezembro de 1922.


Ganhos por parte da Ucrânia dos países vizinhos: 1939 - a Volínia à Polónia; 1945 - a Transcarpátia à Hungria; 1948 - a ilha das serpentes à Roménia; 1954 - a Crimeia à Rússia. Por outro lado a Ucrânia perdera para a Moldávia a Transnístria em 1940. 

O mapa no tracejado a roxo representa a República Ucraniana de Kiev entre 1917 e 1921. O tracejado  a verde representa em 1918 a República dos povos do oeste ucraniano e da Ruténia dos Cárpatos (os primeiros estados ucranianos no rescaldo do fim da 1ª Guerra Mundial.

A grande mancha a verde representa a República Soviete Socialista estabelecida em 1922. A verde mais claro são os territórios dados à Rússia em 1924. A parte representada a cor amarela são os territórios dados pela Polónia à Ucrânia em 1939. A cor castanha são os territórios dados pela Roménia à Ucrânia em 1940. A cor rosa é território dado pela Ruténia checoslovaca dado à Ucrânia em 1945. O círculo vermelho são ilhas romenas dadas à Ucrânia em 1948. E a roxo é a Crimeia dada pela Rússia à Ucrânia em 1954.




A industrialização soviética teve início na Ucrânia a partir do final dos anos 1920, o que levou a produção industrial do país a quadruplicar nos anos 1930. O processo impôs um custo elevado ao campesinato, demograficamente a espinha dorsal da nação ucraniana. Para atender a necessidade de maiores suprimentos de alimentos e para financiar a industrialização, Stalin estabeleceu um programa de coletivização da agricultura pelo qual o Estado combinava as terras e rebanhos dos camponeses em fazendas coletivas. A fome tornou-se generalizada. Este processo histórico, conhecido como Holodomor, levou 25% da população ucraniana a morrer de fome. Na mesma época, os soviéticos acusaram a elite política e cultural ucraniana de "desvios nacionalistas", quando as políticas de nacionalidades foram revertidas no início dos anos 1930. Duas ondas de expurgos (1929-1934 e 1936-1938) resultaram na eliminação de quatro quintos da elite cultural da Ucrânia.


Durante a 2ª Guerra Mundial, o Reichskommissariat Ukraine foi o regime de ocupação civil de grande parte da Ucrânia ocupada pela Alemanha de Hitler (que incluía áreas adjacentes da Bielorrússia moderna e da Polónia pré-guerra). Entre setembro de 1941 e março de 1944, o Reichskommissariat foi administrada por Erich Koch. As tarefas da administração incluíam a pacificação e exploração da região a benefício da Alemanha. Antes da invasão alemã, a Ucrânia era uma República Soviética. 
A ocupação nazi da Ucrânia acabou com a vida de milhões de civis com assassinatos em massa. 

O Reichskommissariat Ukraine excluiu várias partes da atual Ucrânia e incluiu alguns territórios fora de suas fronteiras modernas. Estendeu-se no oeste da região de Volínia ao redor de Lutsk, ao longo do rio Bug do Sul, para as áreas ao redor de Kiev e no leste. Territórios conquistados mais a leste, incluindo o resto da Ucrânia - Crimeia e Bacia do Donbass/Donetsk, estiveram sob governo militar até 1943-1944. Em sua maior extensão, incluiu pouco menos de 340.000 Km2. O antigo território soviético entre os rios Bug do Sul e Dniester também foi excluído do Reichskommissariat Ukraine; este foi dado à Roménia, o denominado Transnístria, governada de Odessa por Alexeanu, o governador romeno. Também abrangia várias partes do sul da atual Bielorrússia, incluindo a Polésia, uma grande área ao norte do rio Pripiate com florestas e pântanos, bem como a cidade de Brest-Litovsk e as cidades de Pinsk e Mazir. Isso foi feito pelos alemães para garantir um suprimento estável de madeira e um transporte ferroviário e fluvial eficiente.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

O fotógrafo da pós-revelação


A fotografia é o melhor meio que nós humanos encontramos para apreender a própria aparência. A imagem do Ser é a exposição irreparável da pessoa - in persona, e, ao mesmo tempo, o seu permanecer oculto precisamente na abertura da objetiva. Uma fotografia é um lugar da comunidade onde se pode reconhecer. Mas a fotografia não deixa de ser o lugar por excelência do simulacro do mundo fantasmagórico. Não é o lugar da verdade. Isso não significa que a aparência dissimule o que se descobre, fazendo-o aparecer. Aquilo que o personagem é, verdadeiramente, não é nada mais do que essa dissimulação e essa inquietude na aparência. Pois a pessoa não é, e nem tem que ser, uma essência ou substância. Nem tem de ter algum destino específico. A sua condição é a mais vazia e a mais insubstancial entidade do Ser. O que fica oculto pela aparência não é algo que esteja por trás da aparência e tapado por ela. O que fica oculto é o mecanismo do aparecimento. Ou seja, a fotografia não é mais do que a aparência da própria aparência do Ser.



A exposição transforma-se assim num valor, que se acumula através das imagens e dos media. Se aquilo que as pessoas tivessem de comunicar fosse apenas uma coisa, a coisa em si, jamais haveria mundo propriamente dito. Haveria apenas sinais e sintomas de uma pura comunicabilidade. Que dito de outra forma é apenas linguagem.


A primeira máquina fotográfica dele foi uma antiga caixa retangular cuja objetiva abria em fole, e em que a focagem e a luz eram calculadas a olho. Depois de tirada uma fotografia tinha de rodar um botão para puxar o negativo até chegar à próxima exposição marcada por um número que aparecia numa janelinha redonda. Acontece que por vezes se esquecia dessa preparação do rolo fotográfico. Resultava daí que expunha a fotografia anterior à sobreposição da seguinte. E é assim que nessas fotografias surgiam, por vezes, uns fantasmas estranhos. É aquilo a que nos livros antigos de pergaminho se designa por palimpsesto. Só que neste caso era algo que acontecia por acaso, só detectada a posteriori quando de forma inesperada se viam as fotos em papel.


Tudo isto aconteceu há muito tempo, o que também se pode chamar uma dupla exposição da realidade. A surpresa de se tornar visível qualquer coisa diferente do que se está à espera, é que sem querer se pode transformar o acaso numa obra de arte, algo nada a ver com a beleza de qualquer arranjo.

Estas fotos aqui - em "The David King Collection at Tate" – mostram os 'retoques' que se faziam para as fotografias oficiais do regime soviético, onde chegavam a eliminar completamente pessoas que apareciam nas fotos originais. 


Na entrada dos soviéticos em Berlim, que marca o fim da Segunda Guerra Mundial, o fotógrafo Yevgeny Khaldei acrescentou ao seu registo original imagens de oficiais soviéticos hasteando a bandeira vermelha sobre o Reichstag para 'esconder' os soldados que apareciam na foto original saqueando um prédio.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

O que faz as pessoas acreditarem em coisas estranhas?




Esta pergunta, que fez o título de um livro que Michael Shermer publicou em 1997, e chegou a Portugal em 2001, tinha como pano de fundo pseudociência, superstições e outras confusões do nosso tempo como, por exemplo, o negacionismo do Holocausto. Entretanto, o conhecimento na área do cérebro mais a inteligência artificial fizeram o seu caminho, onde particularmente cientistas portugueses têm dado cartas, tanto no campo da inteligência cognitiva como da inteligência emocional ou afetiva. E, no entanto, a realidade da credulidade em coisas estapafúrdias não tem diminuído, pelo contrário, basta analisar o que circula nas redes sociais. A comunidade científica não tem poupado esforços em dedicar o seu tempo a esclarecer os porquês deste fenómeno. Mas, na verdade, ainda não temos explicações sólidas e confiantes. O que se vai sabendo é que as pessoas dos grupos etários acima dos 50 anos de idade vão acreditando em quase tudo que vem à rede, apresentando dificuldade em distinguir o trigo do joio. Mas as pessoas dos grupos etários abaixo dos 50 anos de idade tendem a questionar tudo e um par de botas, acabando por não acreditar em nada, arriscando no que lhes vier à cabeça. De um modo geral, tudo o que vier da ciência, das academias, e das instituições políticas, é mesmo para arrasar.

A aparência torna-se para o homem o único lugar onde pode lutar pela verdade. É o valor facial daquilo que a formulação proposicional significante e comunicacional não consegue alcançar em toda a sua plenitude. Assim, a aparência é a única abertura do real a que temos acesso. O aspeto é o único lugar onde a comunidade se pode conhecer. É por assim dizer o rosto do mundo. A revelação do rosto é a revelação da própria linguagem. Ela não tem, por isso, nenhum conteúdo real, não diz a verdade sobre este ou aquele estado de espírito ou de facto, sobre este ou aquele aspeto do homem ou do mundo: é apenas abertura, apenas comunicabilidade. É como caminhar e direção à luz, uma janela virada para o mundo cuja luz muitas vezes nos ofusca. O homem, ao contrário dos outros animais, consegue apropriar-se da sua própria imagem dando-lhe um nome. E é assim que se separa das outras coisas, transformando o sentido da sua própria aparência numa história narrada.

Para adquirirmos a sabedoria da boa conduta de vida, é ilusório querermos valer-nos apenas da esfera cognitiva e intuitiva, porque há muita coisa na vida que é contraintuitiva, e muito mais contraintuitivo em relação ao que é retirado das equações matemáticas. Muitas vezes o erro está em não se levar em linha de conta o contexto e o circunstancial. Por outro lado, é ilusório pensar que podemos compreender coisas complexas com explicações simples. Muita gente hoje não admite reconhecer que para um leigo em determinada matéria complexa dificilmente o conseguirá compreender com explicações simplificadas. O que levou anos a ser compreendido por um especialista dificilmente poderá ser traduzido em palavras simples.

A quebra da confiança na ciência e nas instituições, a baixa humildade e alta arrogância é um panorama dos tempos atuais que infetou mais aquelas pessoas que passaram a saber mais um bocadinho, por via da ascensão social, do que as pessoas que se mantiveram no limiar de pobreza e com muito baixa literacia. As pessoas mais dependentes das instituições e com parcos conhecimentos e fraca literacia pseudocientífica, tendem a confiar mais nas instituições. Por mais paradoxal que possa parecer, é mais contraproducente, para uma boa conduta de vida, a falsa sensação de se saber alguma coisa, do que se reconhecer que não se sabe nada. O negacionismo em relação às vacinas, por exemplo, e a pulsão para o consumo e circulação da falsa informação, é mais abundante entre a classe média e média alta, do que entre pobres ou remediados.

Por fim, há que dar também uma nota negativa a uma certa arrogância de alguns cientistas quando excedem despropositadamente a sua intolerância em relação a métodos e a tratamentos não cientificamente canónicos, e que fazem parte de outras culturas em outras paragens geográficas, como é o caso dos países do denominado “Oriente”, com conhecimentos que foram consolidados pela tradição de muitas gerações ao longo de séculos, e que do ponto de vista desses povos se revelaram de extrema eficácia. Quem somos nós, os chamados “Ocidentais” para banalizarmos com tanta arrogância intolerante as opções de vida de gente com uma herança civilizacional milenar, por mais conservadora que possa ser? Até parece que o modelo da civilização ocidental só tenha virtudes, e não tenha culpas no cartório em relação aos males muito perniciosos que o planeta Terra está atualmente a sofrer em mar e terra.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2022

O cérebro na identidade de género



Identidade de género refere o género (homem, mulher, não binário) com que alguém se identifica, tendo como base os padrões (roupas, corte de cabelo, etc.) e os comportamentos (papel social) estabelecidos ou formatados pela sociedade em geral dentro de uma cultura alargada. 
Identidade de género não é a mesma coisa que sexo biológico e orientação sexual. O cérebro e os genitais têm funcionamentos distintos na construção da identidade. O sexo é biológico, o género é social. A biologia não está necessariamente ligada com a construção da identidade de uma pessoa como mulher ou homem. Nos estudos desta área também se utiliza o termo transexual para designar a pessoa que se identifica com o género oposto ao seu sexo biológico. Uma pessoa que nasceu com o sexo masculino (nasceu homem) e se tornou mulher é uma mulher trans; uma pessoa que nasceu mulher e se tornou homem é um homem trans.

Ora, um indivíduo transgénero é uma pessoa que não se identifica com o género que lhe foi atribuído à nascença por via dos seus caracteres corporais que determinam o sexo da pessoa evidenciado nos seus órgãos genitais externos (pénis e escroto; vulva e vagina). Convém não confundir este aspeto que remete para a constituição do sentimento individual de identidade, com os diferentes papeis sociais de género que não são determinados biologicamente, mas sim pelas convenções sociais dento de um determinado espetro cultural e histórico.

Assim, um indivíduo transgénero não reconhece que o corpo que tem seja o corpo com o qual se identifique (identificar-se como mulher e ter um corpo de homem; identificar-se como homem e ter um corpo de mulher). É preciso referir que a categoria transgénero nada tem a ver com homossexualidade (orientação sexual com atração por pessoas do mesmo sexo, ou género). Identidade de género e orientação sexual são dimensões diferentes que não se devem confundir. Um indivíduo transgénero pode ter as mesmas variações que as pessoas cisgénero têm em relação à sua orientação sexual (hétero, homo, bissexual). Cisgénero, habitualmente, é o termo empregado para designar as pessoas que não apresentam incongruência entre o sexo de nascimento e o género com o qual se identificam. Já o termo transgénero, genericamente, é utilizado para designar as pessoas que apresentam incongruência entre o sexo de nascimento e o género com o qual se identificam.


Até à data tem sido muito mais fácil mudar a anatomia genital de alguém do que a sua mente. Hoje, a transexualidade já não é vista pela ciência e pela Organização Mundial de Saúde como uma doença. E alguns países têm reconhecido o transexual como um terceiro género. 
O género não é uma opção. A pessoa não escolhe ser uma coisa ou outra. No entanto, importa saber que existem situações genéticas raras que não se podem confundir, como, por exemplo, é o caso da síndrome de Morris, ou síndrome de Insensibilidade Androgénica – condição de intersexualidade produzida por uma alteração genética ligada ao cromossomo X, caracterizada pela incapacidade parcial ou total da célula para responder aos androgénios – hormonas masculinas como a testosterona. Esta falta de resposta da célula prejudica ou impede o desenvolvimento da diferenciação sexual masculina, do pénis no feto, bem como, do desenvolvimento das características sexuais secundárias na puberdade, mas não prejudica o desenvolvimento de características sexuais femininas. Assim, os indivíduos que geneticamente são do sexo masculino XY, por não responderem aos androgénios terão uma composição genética de um homem, mas se desenvolverão com algumas ou todas as características fenotípicas (físicas) de uma mulher. Intersexuais não são hermafroditas. Não são pessoas com genitais masculinos e femininos ao mesmo tempo. Não é assim. O mito, o tabu e a lenda distorcem uma realidade muito mais complexa. Há mais de 40 causas diferentes para sua origem. A OMS estima em 1% a percentagem de pessoas intersexuais no mundo todo.

Tudo começa ainda no útero. Por volta da décima semana de gestação, as células que vêm formando o feto desenvolvem a genitália. Pela vigésima semana, a área do cérebro ligada à identidade de género começa a se formar. Se coincidir com o sexo biológico, nascerá uma pessoa cisgénero, ou seja, que se reconhece no sexo previamente formado. Se houver incongruência, nasce uma pessoa transgénero. Entre os 2 e 3 anos de idade, é a idade em que começam a evidenciar-se os sinais de que há algo que não bate certo. Portanto, as discrepâncias na identidade de género podem ser identificadas logo na infância. E as pesquisas podem ser desencadeadas no sentido de estudar a estrutura do cérebro correlacionada com a disforia de género. E isso é importante para prevenir os traumas psicológicos graves ligados a uma transição de género que tem de se fazer.

Estudos muito recentes na área da neurociência identificaram o lobo da ínsula como a área cerebral correlacionada com a identidade de género, ou seja, com a perceção do próprio corpo. Lobo da ínsula é um lobo profundo, situado no fundo do sulco lateral de cada hemisfério do cérebro. A ínsula tem forma triangular com vértice ínfero-anterior, separada dos lobos vizinhos por sulcos pré-insulares. Possui cinco giros (curtos e longos). Suas principais funções são fazer parte do sistema límbico e coordenar quaisquer emoções, além de ser responsável pelo paladar. Sensações corporais internas e sensações viscerais são mapeadas no sistema nervoso central pela ínsula.

Comparando o lobo da ínsula de cada hemisfério cerebral de homens e mulheres cisgénero, por imagem de ressonância magnética, verificou-se que esse lobo é mais reduzido nas mulheres quando comparado com o dos homens. E o mesmo acontece de forma invertida nas pessoas transgénero: pessoas que se identificam como mulheres com corpo de homem apresentam um lobo da ínsula mais reduzido em ambos os hemisférios cerebrais; e vice-versa, pessoas com corpo de mulher, mas que se identificam como homem apresentam uma ínsula como a dos homens cisgénero.

É importante lembrar que não existe um cérebro tipicamente feminino ou masculino. O que ocorre são ligeiras diferenças estruturais, muito mais subtis do que a diferença dos órgãos genitais, por exemplo. Por outro lado, a variação individual nas estruturas cerebrais é enorme de pessoa para pessoa, independentemente de as pessoas serem homens ou mulheres.

Os pesquisadores ressaltam também que o menor volume de substância cinzenta em uma área do cérebro não significa necessariamente que a mesma exibe um menor número de células nervosas. As diversas regiões de substância cinzenta cerebral apresentam uma massa de sinapses e de terminações nervosas que pode mudar de volume dinamicamente; por exemplo, em algum momento da vida o aumento de densidade de uma região cerebral pode ser o reflexo de mais atividade, acarretando um aumento subtil de volume de substância cinzenta local.

Em conclusão, o cérebro dos indivíduos transgénero, no que diz respeito à diferenciação sexual, não acompanha o sexo do corpo que é determinado geneticamente. O cérebro das pessoas trans, em relação ao género com que se identificam, deve sofrer alguma influência errada no decurso da sua gestação, provavelmente de ordem hormonal ou química. Há especificidades cerebrais nos indivíduos trans. Este dado é importante para combater a ideia de ideologia de género. Não se trata de uma questão de prática ideológica, na medida em que existe uma base estrutural que é detetável. Todavia, deve ter-se a noção de que ainda não se sabe tudo a respeito, e, por conseguinte, seria simplismo a mais darmos o assunto da disforia de género por concluído. Mas já é o grande passo dado quando já se sabe que é um problema biológico de raiz, e não apenas uma moda sociológica. E foi relevante ter-se encontrado 
uma diferença na ínsula de pessoas trans, área onde afinal se estabelece a fisiologia da perceção corporal. De resto a ínsula é uma região com múltiplos elementos e muitas atribuições. O que se pode afirmar é que, sobretudo numa investigação em que foram estudas mulheres trans, foram encontradas variações nesta estrutura que se correlacionam com a característica das mulheres trans. E não foi o tratamento hormonal que se mostrou relacionado ao volume diminuído da ínsula. O que se espera agora é que estes estudos prossigam começando mais precocemente na idade de modo a que a abordagem terapêutica e psicoterapêutica seja mais atempada.

terça-feira, 4 de janeiro de 2022

Postos à prova





Todos estamos a ser postos à prova, seja o elefante africano do Seremgeti, seja o lobo ibérico do Gerês. Todos estamos em vias de extinção. A natureza da Terra está a mudar. Mas a 
Natureza tem muito mais mérito do que Deus, que é uma invenção dos homens, um engano, uma fantasia. A Natureza não engana. Ao passo que Deus é um brincalhão, parece que está a gozar com  a gente que acredita nele.

Ao longe uma igreja caiada de branco. Junto ao adro o vermelho do marco do correio contrasta com o silêncio do sino do campanário lá no alto, como um espinho afiado. Poucas décadas após a sua construção está já ao abandono. Primeiro caiu o telhado sobre as vigas curvadas pelo peso dos anos. A água entra no travejamento e começa a decomposição. Ao lado, o hospital, vê-se que esteve em chamas. A derrocada de um edifício atrai sempre os mirones. 

O homem-lobo atravessa o asfalto para o outro lado da estrada de onde não vê a igreja. Mas vê uma bomba de gasolina. Se não fosse o batimento cavo do coração o silêncio seria perfeito. O asfalto brilha como se tivesse chovido. O lugar parece estar morto, nem um gato se vê para amostra. Uma paisagem de Edward Hopper, portanto.




O degelo há muito que havia acontecido. Todo o povoado se havia deslocado mais para o Norte, onde agora o povo, essa palavra ambígua, se dedica à plantação de vinha nova e frutos silvestres. A peste havia devastado a aldeia. E o povo fugiu para a cidade, invadindo as ruas, criaturas de máscara envoltas em nuvens de fumo. Antes que a putrefação dos cadáveres começasse, os corpos foram incinerados. A necrópole apenas alberga as cinzas dos mortos. Só a incineração dos cadáveres poderia impedir que eles fossem profanados.

Deve-se viver a vida olhando para a frente, mas só se pode entendê-la olhando para trás, já dizia o mestre Kierkegaard. Naquela altura a minha imaginação infantil era alimentada pelos filmes do faroeste: Bonanza, Laredo, High Chaparral. O meu primeiro velocípede foi um triciclo aos 3 anos de idade. Aos dezoito anos, foi uma motorizada Flandria em segunda mão, com um motor a dois tempos e, como vi logo depois, com defeito nos travões. Fui experimentá-la, primeiro dando um passeio pelo jardim de Arca d’Água, e depois o acidente da praxe. Aconteceu à noite, com chuva forte, numa estrada rural cheia de curvas. Um carro em sentido oposto manteve o farol alto e a luz cegou-me. Achei que ia bater bem de frente, porém no último instante saltei da moto (expressão de um eufemismo absurdo para uma manobra potencialmente salvadora, mas também potencialmente fatal). A moto foi para um lado (ela não acertou no carro, mas ficou destruída) e eu para o outro. Por sorte, eu estava com casaco de couro, capacete, botas e luvas, e mesmo que a queda me tenha arrastado uns vinte metros pela estrada, estava enlameada por causa da chuva, e como tal muito escorregadia. Não sofri sequer um arranhão.

Falemos então do homem-lobo, Marcos Rodríguez Pantoja. Foi vendido a um pastor aos sete anos e após a morte do pastor, viveu sozinho com os lobos na Serra Morena. Aos 19 anos, voltou à civilização, mas teve dificuldade para se ajustar. O seu caso foi objeto de uma tese de doutoramento em Antropologia por Gabriel Janer Manila: "He jugado con lobos". Entre os sete e os dezanove anos viveu apenas com uma alcateia que o adotou, protegendo-o de qualquer contacto humano. Fugiu aos maus-tratos humanos. Viveu com os lobos os melhores anos da sua vida. Viveu livre de qualquer tipo de maldade. Mal voltou a entrar na sociedade humana, é verdade que teve gente boa a querer ajudá-lo. Mas o que sobrou foi gente má. E ele teve que lidar de novo com a vigarice humana.




Mais tarde, tornou-se tema do filme - Entre Lobos, no qual aparece brevemente. Em março de 2018, deu uma entrevista na qual disse estar dececionado com a natureza humana e desejou poder voltar às montanhas e deixar a sociedade. Marcos perdeu a mãe, tinha apenas três anos de idade. Seu pai então casou com outra mulher, que o maltratou. Na década de 1950, eles se estabeleceram em Fuencaliente, na Serra Morena, onde se dedicaram ao fabrico de carvão vegetal. Aos sete anos, Marcos foi vendido, ou então mais benevolentemente entregue a um proprietário local que possuía um rebanho de cabras com um pastor. E com o pastor ainda teve tempo de aprender algumas coisas de animais e de lobos. Abandonado à Natureza em algum momento após essa mudança de tutela, o certo é que passou muitos dias perdido na serra, sem comer. Até que foi encontrado por uma loba, quando estava deitado a dormir no covil com as suas jovens crias. E foi com a carne que a loba trazia para as suas crias que Marcos passou a ser alimentado a pouco e pouco. 

Em 1965, passados já onze anos a viver dento de uma alcateia, acabou por ser encontrado pela Guarda Civil. Nesta altura era um ser humano apenas biológico, mas com educação de lobo. Viveu dos sete aos dezanove em completo isolamento dos seres humanos, tendo apenas por companhia uma família de lobos. A Guarda Civil levou-o para Fuencaliente à força, amarrado e amordaçado, enquanto uivava e mordia como um lobo.

Foi um padre e as freiras de um hospital que o ensinaram a recuperar a linguagem falada, bem como toda a aprendizagem de uma pessoa socializada, desde a higiene à alimentação à mesa de garfo e faca. É verdade, chegou a estar internado no Hospital de Convalescentes da Fundação Vallejo, em Madrid, até ser reintroduzido como adulto na sociedade. Todavia, não chegou a aprender a ler e escrever. Depois de ter deambulado por vários sítios acabou a residir, até hoje com 71 anos de idade, em Rante, perto de Orense, onde foi recebido por uma espécie de mecenas, Manuel Barandela Losada, que já faleceu, um polícia aposentado que o acolheu muito impressionado com a sua história.

Atualmente, Marcos é um protegido de uma família holandesa, sendo frequentemente convidado por conselhos municipais, associações e diversas organizações para dar palestras e narrar a sua experiência. E assim tem preenchido o seu tempo a ir a programas de entretenimento televisivos, inúmeros programas de televisão contando a sua história.

O estudo do caso foi realizado pelo antropólogo e escritor Gabriel Janer Manila, que entre novembro de 1975 e abril de 1976, entrevistou Marcos Rodríguez Pantoja para estudar as medidas educacionais necessárias para a sua integração. O antropólogo afirmou que as causas do abandono de Marcos não foram fortuitas, mas deliberadas e resultado de um contexto socioeconómico de extrema pobreza. A sobrevivência de Marcos foi possível graças às habilidades básicas adquiridas na fase anterior de seu abandono, bem como a sua extraordinária inteligência natural. Durante o seu isolamento, a criança aprendeu os sons dos animais com os quais vivia, e assim os ia imitando para comunicar com eles. Com isto foi perdendo pouco a pouco a linguagem humana. Ao regressar à vida humana teve de reaprender tudo de novo, passando por grandes desapontamentos com a crueldade humana, com grande animosidade até contra a malvadez humana, e contra a balbúrdia da vida humana nas cidades excessivamente ruidosas e insuportavelmente malcheirosas e poluídas. Não tinha qualquer dúvida em afirmar que a vida entre humanos era muito pior do que a vida com os lobos e outros animais. Ele considera que as dificuldades que sofreu, quando foi reintroduzido na sociedade, se deveram a terem sido introduzidas já muito para além da idade devida. É sempre penoso, quando um animal humano entra na civilização, já depois de ter atingido a idade adulta, e até essa idade ter aprendido a viver com os lobos.