segunda-feira, 31 de maio de 2021

Uma açorda





Agora que já não tenho dentes, e não quero ir ao dentista, não há nada como uma boa açorda. A Ribeira do Porto era para onde os amigos iam festejar à volta de uma mesa comendo e bebendo aqueles pratos típicos à moda do Porto. Construíram-se ali muitas amizades, no tempo em que não se dizia “Champions”, mas “Taça dos Campeões Europeus”. Faz hoje 60 anos que assisti pela primeira vez a um jogo transmitido pela televisão. Foi num café - Chave d'Outo, a preto-e-branco, a final da Taça dos Clubes Campeões Europeus, Benfica - Barcelona, em que o Benfica ganhou por 3-2, o seu primeiro título nas lides europeias. Os golos foram marcados por José Águas, Coluna, e Antoni Ramallets na própria baliza.

Há alguma amizade que não seja à volta de uma mesa com comida? Talvez também à volta do futebol, mas isso é assunto que não vem agora aqui para a conversa, enquanto tivermos na mente as imagens ainda frescas dos ingleses na Ribeira do Porto, no mesmo sítio onde outrora os antepassados desses ingleses nos vieram dar uma ajudinha para barrar a passagem aos franceses para a outra margem do rio Douro.




Esta estória é apócrifa. Um dia almocei ali no restaurante Marina, à volta de uma mesa com o 14º Dalai Lama (Tenzin Gyatso), o 266º Papa (Jorge Mario Bergoglio), e o 5º Presidente, as grandes forças unificadoras do mundo. Tiramos fotos com o Dalai Lama. É um encanto falar com o Dalai Lama. Éh Pá, Dalai Lama! Risos. Perguntei-lhe, quando era criança, o que é que a mãe cozinhava. Pergunta deslocada, porque ele só tinha lembranças dos monges. Mas tivemos uma conversa fantástica. Mesmo nas situações mais assustadoras, mesmo em pessoas com passados difíceis como o dele no Tibete, a comida pode ser uma ótima forma de abrir uma porta para experiências e prazeres partilhados. Uma das coisas fantásticas, quando conheço alguém, diz o Dalai Lama, é falarmos sobre comida. 
Vocês no Alentejo fazem uma açorda de coentros diferente desta. Põem pão na base e depois coentros por cima. Venho a Portugal e descubro que é mesmo delicioso! É isso mesmo. Tão simples. Não há dúvida de que nos unimos pela comida. Infelizmente, a comida também pode ser usada como uma arma para dividir. Acho que é a nossa função evitar isso e encontrar pontos em comum. Em vez de discutirmos, o melhor é concordarmos nas coisas de que gostamos. Eu adoro legumes. Quer sejamos: keto, paleo, vegano ou vegetariano - todos concordamos que os vegetais são uma coisa boa. 



Vossa Santidade não poderia ter dito melhor sobre o significado para os pequenos prazeres da vida, como um peixe grelhado num pequeno restaurante no Alvor - Fishermans Rest. 




A partir de certa idade é permitido pensar que nem tudo muda sempre para melhor: é o caso da saúde e da chamada "performance" física e psíquica. A propósito de açordas, ouve-se a cada passo aquela frase "não há almoços grátis". Mas eu recordo-me de uma outra frase dita pelo meu avô, que era assim: "não há fodas grátis para velhos".

Há uma grande diferença entre o correto a título individual; e o correto a título coletivo. A título coletivo é correto um velho ir ao dentista, ao oculista, ou fazer o rastreio do cancro. A título individual de um indivíduo velho, já é mais discutível não se poder comprar na feira uma dentadura postiça, ou uns óculos de ver ao perto. É legítimo a um indivíduo velho não querer meter tubos dentro do seu aparelho digestivo, só para falar fino desta vez. As referências de um velho de hoje são mais as de um avô. Quando digo isto as mulheres da casa dizem: "Fala por ti". Dizem as minhas avós. Sim, uma avó é uma avó, muita atenção. Eu sou apenas um avô. Agora, a título coletivo a questão é muito diferente. Imaginemos o surreal. O surreal, é o absurdo dos sonhos. Muitas vezes acordamos ainda envolvidos num sonho que estávamos a ter e pensamos: “que estupidez de sonho, onde é que eu fui buscar isto?” Deve ter sido com uma pergunta destas que Guillaume Apollinaire inventou o Surrealismo. Imaginemos que depois de termos coletivamente gastado uma fortuna em tecnologia para rastreios, por absurdo, ninguém quisesse fazer rastreios. Olhávamos para os aparelhos, para a estrutura montada, e dizíamos: “que desperdício, tanto dinheiro dos contribuintes deitado fora!”

Eu, um dia, quando andava entusiasmado com o budismo, quando ajudei a fundar o PAN (no princípio era só budista e dos animais), idealizei passar uns meses no Tibete, dois, três, quatro meses, isolado, afastado de tudo, sem telefones, sem nenhuma tecnologia. Mas isso era um exílio forçado, deliberado, mas completamente disparatado. Podia ser que esse período fosse convidativo à concentração. Mas depois pensei que seria cansativo. A pessoa a medir os gestos, os passos. Não havia problemas em não ir ao supermercado; em não ir cortar o cabelo ao barbeiro; em não ir aos médicos; aos dentistas. O que me iria custar era não ir aos almocinhos semanais com os meus amigos habituais.

sexta-feira, 28 de maio de 2021

Amazonas [4] - Wonder Woman 1984




Wonder Woman 1984 foi originalmente programado para um grande lançamento nos Estados Unidos em 5 de junho de 2020, mas foi adiado várias vezes, e eventualmente cancelado, devido à pandemia Covid-19. O filme estreou em dezembro de 2020, pela plataforma virtual DC FanDome. Foi lançado nos Estados Unidos pela Warner Bros Pictures em 25 de dezembro de 2020, e também disponibilizado para ser transmitido digitalmente no HBO. Nos mercados internacionais que não possuem HBO Max, o filme foi lançado nos cinemas em 16 de dezembro de 2020.
A jovem Diana Prince participa num evento atlético em Themyscira contra Amazonas mais antigas. Depois de cair do cavalo, Diana volta a montar, mas perde o seu posto. Antiope tira-a da competição.


Diana
trabalha no Smithonian Institution em Washington, DC, e secretamente realiza atos heroicos como “Mulher Maravilha”. A nova funcionária do museu Barbara Ann Minerva, uma geóloga tímida e criptozoóloga, que é mal vista pelos seus colegas de trabalho, inveja Diana.

Diana Prince (interpretada por Gal Gadot), uma grande guerreira, uma verdadeira Amazona, com vestes a condizer, voa para a sede do satélite onde luta contra Bárbara, que se transformou numa chita humanoide depois do seu desejo em se tornar uma predadora ápice. Uma luta brutal, Diana ataca Bárbara num lago onde é eletrocutada, puxando-a depois para fora do lago. Ela confronta Max e usa o seu laço da verdade para se comunicar com o mundo através dele, convencendo todos a renunciar aos seus desejos. Diana revela então a Max memórias da sua própria infância. Está infeliz por causa do seu filho, Alistair, que anda freneticamente à procura do pai no meio do caos. Max, renunciando ao seu desejo, reencontra-se com Alistair, e Bárbara volta ao normal. Algum tempo depois, Diana encontra o corpo de um homem, que era Steve. Enquanto isso, é revelado que:
 Astéria (interpretada por Lynda Carter) vive secretamente entre os homens.

 


Décadas depois de grandes lutas, Diana tenta superar a perda do seu grande amor, o piloto Steve Trevor (interpretado por Chris Pine), lutando contra o crime nas horas vagas. Até que um artefacto poderoso cai nas mãos do vigarista Maxwell Lord (interpretado por Pedro Pascal). Diana vê-se dividida, entre a realização de um sonho e a sobrevivência de toda a humanidade.


quarta-feira, 26 de maio de 2021

Amazonas [3] - Warrior Women, por Jeannine Davis-Kimball





Jeannine Davis-Kimball, agora diretora do American Eurasian Research Institute e do Centro para o Estudo do Nomadismo Eurasiano, na Universidade da Califórnia em Berkeley, estava longe de pensar na existência das enigmáticas Amazonas quando estudava a arte iraniana para a sua tese de doutoramento. Não sabia basicamente nada sobre povos nómadas antigos, e ela nunca imaginou que a sua carreira acabaria por se concentrar nas enigmáticas mulheres guerreiras que em tempos, para mais de 2.000 anos atrás, percorreram as estepes eurasianas fornecendo uma base histórica para as míticas Amazonas.

Chamaram-lhe a atenção uns relevos de pedra esculpidos num dos palácios da dinastia aqueménida, que governou a Pérsia de 559 a 330 a.C. Os relevos retratavam cenas de nómades homenageando os reis. Em contraste com outros que honravam os governantes, essas pessoas estavam montadas em cavalos, distintamente vestidas, usando botas macias e chapéus altos. Jeannine Davis-Kimball ficou intrigada com isso e intuiu que poderia encontrar alguns vestígios arqueológicos nas estepes eurasianas, ao norte do império persa. O nomadismo é baseado na criação de animais, principalmente na criação de ovelhas e cavalos, e você não encontra isso nas cidades porque os animais têm que ter pastagem em espaços abertos.

Na época, há mais de vinte anos, bibliotecas e museus americanos não tinham muitas informações sobre culturas nómadas. No entanto, Jeannine tinha visto em museus do Cazaquistão exemplares de gente que ocupou as estepes do sul da Rússia. Foi então que meteu mãos à obra começando por fazer escavações dos kurgans, que são uns montes funerários dos antigos nómadas eurasianos. Tornou-se a primeira mulher americana a colaborar em investigações arqueológicas no Cazaquistão. Em escavações realizadas em 1994 em Porkovka, localizada na Rússia perto da fronteira com o Cazaquistão, descobriu artefactos indicando que pertenciam a mulheres muito importantes dentro dessa cultura. Eram mulheres guerreiras que desempenharam um papel proeminente na sociedade nómada. Davis-Kimball descobriu que, na realidade, as mulheres guerreiras eram bastante comuns entre as antigas sociedades eurasianas e também entre outros nómadas.

A especulação de que a ideia das Amazonas possa conter um fundo de realidade vem sendo baseada nos últimos anos em descobertas arqueológicas feitas em sepulturas, que apontam para a possibilidade de que algumas mulheres sármatas participavam dos combates, ao lado dos homens. Estas descobertas levaram alguns estudiosos a sugerir que a lenda das amazonas possa ter sido "inspirada por guerreiras reais", embora esta continue sendo uma opinião minoritária entre os historiadores e classicistas.

Há personagens amazónicas na Ilíada, no poema épico da Guerra de Troia, um dos textos sobreviventes mais antigos da Europa, datado por volta do século VIII a.C. É de depreender que o mito das Amazonas já era conhecido há algum tempo antes de Homero. Ele também estava convencido de que as Amazonas não viviam nos seus limites, mas em algum lugar dentro ou ao redor da Lícia, na Ásia Menor. Troia é mencionado na Ilíada como o lugar da morte de Myrine, que mais tarde foi identificada como uma rainha da Amazónia. É em Diodorus (século I a.C.) que se pode ler que as Amazonas sob seu governo, invadiram os territórios dos atlantes, tendo derrotado o exército da cidade atlântida de Cerne que foi arrasada. Assim que as Amazonas conseguiram cavalos suficientes capturados na estepe entre o Mar Cáspio e o Mar Negro, assimilaram os Citas, e os antecessores dos Sármatas.

Plutarco também vem dizer que o deus Dionísio e seus companheiros lutaram contra as Amazonas em Éfeso. Em outro mito Dionísio se une com as Amazonas para lutar contra Cronus e os Titãs. As Amazonas também são mencionadas por biógrafos de Alexandre Magno, que relatam a rainha Thalestris lhe dando um filho. No entanto, outros biógrafos de Alexandre contestam a reivindicação, incluindo o altamente conceituado Plutarco. Suetónio fez Júlio César em seu De Vita Caesarum que as Amazonas outrora governaram grande parte da Ásia. Appian fornece uma vívida descrição de Themiscyra e as suas fortificações em seu relato do Cerco de Themiscyra de Lúcio Lucullus em 71 a.C. durante a Terceira Guerra Mitridática.

As evidências arqueológicas parecem confirmar a existência das Amazonas (Mulheres Guerreiras) entre os Sármatas. As sepulturas - Kurgans -  com corpos de mulheres sármatas armadas correspondem a cerca de 25% do total encontrado, e quase todas eram enterradas com arcos. Segundo a arqueóloga russa - Vera Kovalevskaya - enquanto os homens Citas estavam longe, guerreando ou caçando, as mulheres assumiam um estilo de vida nómada, que consistia em saberem defender-se a si próprias, bem como aos seus animais e pastos de maneira competente. Antes que a arqueologia moderna descobrisse diversas sepulturas destas guerreiras Citas, enterradas sob Kurgans na região do Altai montanhoso, e da Sarmácia, as histórias das Amazonas não passavam de fantasias míticas. Contos gregos de Amazonas a cavalo tinham sido sujeitas a muitas especulações por diversos estudiosos da filologia clássica.

Um Kurgan é um tipo de túmulo construído sobre uma sepultura, muitas vezes caracterizada por conter um único corpo humano, juntamente com vasos, armas e cavalos. Os Kurgans se espalharam por grande parte da Ásia Central e Europa Oriental, durante o terceiro milénio a.C. Os primeiros Kurgans conhecidos são datados do 5º milénio a.C. no sudeste da Europa. E os primeiros curdos datam do 4º milénio a.C. no Cáucaso, e identificados com os povos de língua indo-europeia. Os carrinhos de mão Kurgan eram característicos dos povos da Idade do Bronze e foram encontrados na Mongólia, Cazaquistão, Montanhas altaicas, Cáucaso, Rússia, Ucrânia, Roménia e Bulgária. Kurgans foram usados em estepes ucranianas e russas, seu uso se espalhou com a migração para o leste, centro e norte da Europa no terceiro milénio a.C. A classificação cita-saka-siberiana inclui monumentos do século VIII ao III a.C. A tradição dos enterros de Kurgan foi adotada por alguns povos vizinhos que não tinham tal tradição. Vários reis e chefes trácios foram enterrados em elaboradas tumbas de monte encontradas na Bulgária moderna; Filipe II da Macedónia, pai de Alexandre Magno, foi enterrado em um Kurgan na Grécia atual; e Midas rei da Frígia, o célebre rei Midas que em tudo o que tocava transformava em ouro, foi enterrado em um Kurgan perto da sua antiga capital, Gordion. Os Kurgans cita-sibirianos no início da Idade do Ferro têm montes grandiosos em todo o continente da Eurásia. Os restos arqueológicos mais óbvios associados aos Citas são os grandes montes funerários, alguns com mais de 20 metros de altura encontram-se na estepe ucraniana e russa. As mulheres foram enterradas em cerca de 20% dos túmulos da região do rio Volga inferior e médio durante as culturas Yamna e Poltavka.




No século VII a.C., os Citas cruzaram o Cáucaso e Médio Oriente com os Cimérios, desempenhando um papel importante no desenvolvimento político da região. Por volta de 650-630 a.C., os Citas dominaram brevemente os Medos do planalto iraniano ocidental. Os Citas posteriormente se envolveram em conflitos frequentes com o império Aqueménida e sofreram uma grande derrota contra a Macedónia no século IV a.C. Foram posteriormente gradualmente conquistados pelos Sármatas, um povo iraniano relacionado vivendo a leste. Na Idade Média os Citas e os Sármatas já estavam em grande parte assimilados e absorvidos pelos Eslavos primitivos. Os Citas foram fundamentais na etnogénese dos Ossetas, que se acredita serem descendentes dos Alanos. Os Citas desempenharam um papel importante na Rota da Seda, uma vasta rede comercial entre a China e a Grécia. Os Citas eram um povo bélico. Quando envolvidos em guerra, quase toda a população adulta participava, incluindo um grande número de mulheres. O historiador ateniense Tucídides observou que nenhuma pessoa na Europa ou na Ásia poderia resistir aos Citas sem ajuda externa. Os Citas eram particularmente conhecidos pelas suas habilidades, não apenas equestres, mas também no manejo do arco disparando de cima do cavalo em andamento.

Os Sármatas eram um povo que Heródoto localizou na fronteira oriental da Cítia além do rio Tánais (Don). Eram aparentados dos Citas e dos Sacas. Os numerosos nomes pessoais iranianos nas inscrições gregas da costa do Mar Negro indicam que os Sármatas falavam um dialeto iraniano norte-oriental relacionado com o sogudiano e com o osseta
O termo Sarmácia é aplicado pelos antigos escritores ao que é conhecido como Europa central e oriental, inclusive tudo o que as antigas autoridades chamavam de Cítia, sendo esse nome transferido para regiões mais a leste. A Geografia de Ptolomeu mostra mapas da Sarmácia europeia e asiática. No século III a.C. parecem ter suplantado os Citas nas planícies onde hoje é o sul da Ucrânia, onde se mantiveram dominantes até às invasões unas e góticas. Heródoto descreve a aparência física dos sármatas como louros, vigorosos e bronzeados. Os sármatas ainda eram uma força com a qual os romanos tinham que lidar no século IV. Amiano Marcelino descreve várias derrotas que os invasores Sármatas infligiram às forças romanas na província de Valéria na Panónia no final de 374, quando eles quase aniquilaram uma legião convocada da Mésia e uma da Panónia, que haviam sido enviadas para confrontar um bando Sármata que havia perseguido um graduado oficial romano chamado Equício dentro do território romano.




Na Mitologia Grega, havia um povo de mulheres guerreiras e caçadoras, as Amazonas, que viviam separadas dos homens. Estes só serviam para a procriação. De resto, ficavam com as filhas e devolviam os filhos aos homens. Corajosas e ferozmente independentes, comandadas por uma rainha, realizavam regularmente extensas expedições numa área que abrangia a Cítia, a Trácia e Anatólia, à volta do Mar Negro. Heródoto (485 a.C. – 425 a.C.) situou–as na Cítia, uma terra inóspita localizada na periferia do mundo helénico. Terras entre o Mar Cáspio e o Mar Negro. O historiador grego descreveu essas mulheres como um povo de guerreiras, hábeis cavaleiras, mestres na arte de saquear as terras circunvizinhas. Travavam constantes e acirradas batalhas contra os gregos, eram nómadas, desconheciam a agricultura ou qualquer forma de governo, não possuíam normas e dispensavam o casamento. A notável estima das mulheres em regulamentos legais matrilineares, vigorava no século V a.C. nas regiões lícias, por onde Heródoto havia viajado, e que ouvia dizer que essas pessoas eram descendentes das míticas AmazonasEm Histórias, Heródoto dá-nos um diálogo entre os Citas e as Amazonas, em que estas recusam aceitar o casamento com os jovens inimigos:
«Não poderíamos – responderam as amazonas – viver em boa harmonia com as mulheres do vosso país. Seus costumes são diferentes dos nossos: atiramos com o arco, lançamos o dardo, montamos a cavalo e não aprendemos os misteres próprios das vossas mulheres. Vossas mulheres nada disso fazem e não se ocupam senão de trabalhos femininos. Não abandonam as suas casas, e não vão à caça. Por conseguinte, a nossa maneira de viver jamais se coadunaria com a vossa.»
Décadas de descobertas arqueológicas de incontáveis locais funerários nas estepes eurasianas provam a existência de uma cultura de cavalos – Citas, Sármatas, Hititas e outras. A origem da palavra é incerta, mas os gregos antigos nunca tiveram dúvidas de que as Amazonas eram, ou tinham sido, reais. No entanto, a verdadeira região onde habitavam mantinha-se obscura. Daí que durante séculos os estudiosos acreditavam que as Amazonas eram puramente imaginárias. Mas, de facto, há uma vasta evidência arqueológica de mais de mil sepulturas nómadas de territórios da estepe que circunda o Mar Negro a norte até à Mongólia. Foram descobertos esqueletos femininos marcados pela batalha e enterrados com as suas armas (arcos e flechas, lanças) que provam que as mulheres guerreiras não eram meramente fruto da imaginação, mas o produto do estilo de vida centrado no cavalo cita/sármata. Estas mulheres acabaram por ser capazes de lutar, caçar, montar e utilizar um arco e flechas como os homens.

O professor de estudos clássicos William Blake Tyrrell, entende que o mito das Amazonas na Grécia Antiga explica a questão da dicotomia do pensamento grego e a polarização da sociedade: homem/mulher, guerra/casamento. A instituição de um governo de mulheres implicaria a destituição do Patriarcado e do Estado. E, segundo eles, isso seria a introdução do Caos na Terra. Portanto, isso era um mito, porque o papel atribuído à mulher era o de serem boas mães e esposas, e gerarem filhos aptos para a guerra.


segunda-feira, 24 de maio de 2021

Amazonas [2] - O rio, o imaginário, e a Amazónia


O primeiro europeu a percorrer todo o curso do rio Amazonas terá sido o espanhol Francisco de Orellana, entre 1539 e 1541. Orellana: nasceu em Trujillo, Espanha, em 1511, na mesma terra onde nasceu Francisco Pizarro (1476-1541); e morreu em 1546 entre o rio Amazonas e o rio Orinoco, principal rio da Venezuela. Iniciava-se, à época, a lenda de que a mítica cidade do El Dorado ficaria em algum ponto entre o Amazonas e as Guianas. Orellana afirmou ter encontrado e combatido uma tribo de "mulheres guerreiras". Francisco de Orellana, penetrou na Amazónia e no rio Amazonas pela foz do rio Orinoco. A meio do rio Amazonas teve um encontro com mulheres guerreiras que atacaram a sua embarcação. Conforme consta da Relación de frei Gaspar de Carvajal, a viagem empreendida por Orellana pelo maior rio do mundo ajudou a recriar a lenda das Mulheres Guerreiras, ou das míticas Amazonas. Inicialmente chamaram de Rio Grande, Mar Dulce ou Rio da Canela, por causa das grandes árvores de canela que existiam ali. Embora enigmática e fantástica, a expedição de Orellana, até aos dias de hoje, está repleta de fantasias e mitos, sendo motivo de muitas controvérsias e pesquisas. Entre os mitos mais comuns, no Brasil, destaca-se a corruptela do mito tupi-guarani das índias icamiabas. A belicosa vitória das icamiabas contra os invasores espanhóis foi tão alto gabarito que o facto foi narrado ao rei Carlos V, o qual, inspirado nas antigas guerreiras dos mitos gregos, chamadas Amazonas, batizou o rio com o mesmo nome - Rio Amazonas. Aventa-se a hipótese de Orellana e Carvajal terem tido um encontro com o antepassado da hoje em dia Yamurikumã. Neste caso, há um ritual onde as mulheres tomam os pertences dos homens - colares de penas, lanças, flechas, braçadeiras - ao som de cânticos entoados para provocar os homens. No ritual elas são armadas de arco e flecha, enfrentando o inimigo montadas em cavalos.

Um companheiro de Orellana - Gonzalo Fernández de Oviedo y Valdés - divulgou relatos da expedição, com descrição das riquezas e dos habitantes da região, que foram publicados em Veneza em 1556. Uma nova expedição em 1561, comandada por Ursua, tentou repetir a façanha de Orellana. Mas foi assassinado por Lope de Aguirre, o mesmo fulano que viria a tornar-se o seu sucessor. Este, por sua vez, foi tomado por uns delírios febris, que acabaram por o enlouquecer.


O imaginário europeu comportava uma diversidade de seres fantásticos: acéfalos, gigantes, sereias, amazonas – antes projetados nos extremos de uma Europa desconhecida. No caso das Amazonas, a arte renascentista contribuiu efetivamente para a disseminação do mito clássico no Novo Mundo, construindo dessa forma a imagem da Amazona americana, seu arco e flecha, sua nudez, seu corpo atraente e sua belicosidade. Dessa forma, unia elementos da tradição clássica a outros próprios dessa época. Assim, as Amazonas eram descritas como mulheres impiedosas, que tratavam desumanamente os seus prisioneiros de guerra. O mito continuava vivo no imaginário dos viajantes e exploradores do Novo Mundo. A Descoberta do Grande, Belo e Rico Império da Guiana, em 1595, foi uma obra de impacto que contribuiu com a disseminação do mito clássico em terras da América, e inspirou a sua reprodução por diversos impressores e artistas do período.

O rio Amazonas é o maior rio do mundo em volume de água e o maior rio do mundo com uma extensão perto dos sete mil quilómetros. Nasce na encosta do Nevado Mismi, na Cordilheira dos Andes, no Peru, a 5.600 metros acima do nível do mar. Recebe vários nomes e diversos afluentes em seu curso no Peru, até receber o nome de Solimões, na fronteira do Brasil, no município de Tabatinga, no estado do Amazonas, onde segue seu curso até encontrar o rio Negro, próximo à cidade de Manaus, onde recebe o nome de Rio Amazonas. Assim, o Rio Amazonas atravessa os estados do Amazonas e do Pará até chegar à foz no Atlântico, com 300 km de largura no grande Delta do Amazonas, entre os estados do Amapá e do Pará. Ao longo desse trecho ele apresenta uma inexpressiva queda de 20 mm por quilômetro. O leve desnível proporciona excelentes condições de navegabilidade, desde a sua foz até à cidade de Manaus.

O rio Amazonas possui aproximadamente 1.100 afluentes que formam a maior bacia hidrográfica do mundo, com extensão de 7.008.370 km². Percorre territórios do Peru, Brasil, Colômbia, Bolívia, Equador, Guiana e Venezuela. No Brasil o rio se estende por 3.843.402 km² e banha os estados do Acre, Amazonas, Amapá, Rondônia, Roraima, Pará e Mato Grosso. Todos os anos, com o degelo nos Andes e a estação de chuvas na região Amazónica, ocorre o fenómeno das cheias que atingem os municípios que estão nas margens dos rios Solimões, Amazonas, Tapajós, Negro, Juruá, Purus, Japurá, Madeira, entre outros. Atravessa uma das maiores florestas tropicais do mundo, a Floresta Amazónica. A flora da Amazónia apresenta grande variedade de espécies, sendo a maior biodiversidade do planeta, incluindo mais de 1,5 milhões de espécies vegetais catalogadas. O rio Negro é o segundo maior rio do mundo em volume de água e o maior afluente da margem esquerda do Rio Amazonas. Águas escuras se encontram com as águas barrentas do rio Solimões próximo da cidade de Manaus, onde correm lado a lado, sem se misturarem ao longo de 6 km.

A Amazónia Internacional corresponde à extensão de cerca de 7 milhões de km2 entre 8 países da América do Sul: Brasil, Bolívia, Peru, Equador, Colômbia, Venezuela, Guiana e Suriname, além do território ultramarino da Guiana Francesa. A Amazónia Legal, criada em 1953, é delimitada para fins políticos e económicos. Trata-se da Amazónia brasileira, que apresenta uma área de cerca de 5.034.740 km2 entre 8 estados brasileiros (Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins) e uma parte do estado do Maranhão. A Região Norte do Brasil é onde está localizada a maior parte da Amazónia brasileira.

Na região da Amazónia, entre 1.000 a.C. e 1.000 d.C. viveram ali sociedades indígenas com alto grau de desenvolvimento económico, demográfico, político e cultural. A Amazónia foi um ambiente propício para o desenvolvimento destas sociedades pré-históricas, tendo em vista que estas desenvolveram-se nas margens de grandes rios. Por isso, a Amazónia serviu como repositório sustentado de sociedades durante cerca de 2.000 anos, tendo sido desorganizadas com a chegada dos europeus. A população originária dos cacicados aos poucos foi sendo exterminada, com numerosas guerras e conflitos travados com portugueses e espanhóis. Muitos habitantes destas sociedades internaram-se nas florestas, onde teriam formado sociedades tribais diferentes. Outras desapareceram vítimas de epidemias até aí desconhecidas deles, cujos agentes foram levados para lá pelos europeus. Populações completas desapareceram de um dia para o outro nas margens dos rios. As sociedades indígenas atuais da Amazónia estão longe de representar essas sociedades complexas do período pré-histórico. Apenas restam alguns vestígios materiais.

domingo, 23 de maio de 2021

Amazonas [1] – Guerreiras da Floresta da Amazónia


Guerreiras da Floresta, nome pelo qual as mulheres da Floresta Amazónica do Maranhão chamam a si mesmas, é um grupo de mulheres que já há mais de meia dúzia de anos se batem contra os madeireiros em seu território, através de novas táticas no combate ao desmatamento em uma das últimas áreas intactas da Floresta Amazónica do Maranhão. Têm sido fundamentais para reforçar a proteção e impedir que madeireiros entrem nos territórios indígenas. Por isso mesmo, também elas sofrem ameaças, muitas vezes resultando em assassinatos como o de Paulo Paulino Guajajara, morto em 2019 numa terra indígena vizinha. O resultado: em dois anos, o desmatamento na Terra Indígena Caru caiu de 2.000 para 63 hectares. São grupos de mulheres indígenas como este, que mostram o papel feminino nas ações de conservação da Natureza.




As ações são mais sofisticadas do que à primeira vista se podia pensar: numa manhã de dezembro de 2019, no Maranhão, meia dúzia de indígenas Guajajara encheu as mochilas de comida, mapas e um drone para patrulharem uma área de 173 mil hectares de floresta primária. Tão simples como isso. Despediram-se dos filhos, sem saber quando, ou se, os veriam de novo. Esta parte do Brasil, situada numa zona de transição entre a Amazónia e o Cerrado, onde resta um dos últimos trechos de floresta intacta e contígua no Maranhão, tem sido devastada por conflitos de terra e por uma das maiores taxas de desmatamento do país na última década.

Patrulhar ativamente o território em busca de invasores não é nada novo para os Guajajara, povo indígena que tem mais de 500 anos de experiência nisso. Hoje, eles usam tecnologia de satélites e esforços coordenados com agências de fiscalização para atingir os seus objetivos. Esta abordagem é relativamente nova, e o seu uso tem crescido nos anos recentes. Mas a existência de grupos de Guardiões da Floresta, formados somente por mulheres, é algo único.

Projeto Demonstrativo de Povos Indígenas (PDPI), é um programa desenvolvido por organizações indígenas, e implementado 
pelo Ministério do Meio Ambiente do governo federal, para melhorar a proteção territorial e cultural destes povos. Inicialmente, os Guardiões da Floresta eram predominantemente homens. Mas a tarefa veio a revelar-se extremamente difícil. Vendo isso, as mulheres Guajajara entraram no Programa e formaram o seu próprio grupo, que consistia originalmente de 32 participantes. Mas o caminho para serem levadas a sério e tratadas como iguais também não foram rosas, como diz Paula Guajajara: “Para buscar parcerias, nós andávamos, conversávamos, dormíamos no chão – tudo isso para buscar melhorias para nossa comunidade. Já expulsamos muitos madeireiros. Se não tivéssemos agido, não haveria floresta em pé.” Uma vez que se uniram, houve essa mudança muito forte. Tanto no contexto da redução das invasões, quanto para despertar a consciência coletiva para a proteção do território.



As Guerreiras da Floresta também foram essenciais para estabelecer a conexão com outros grupos indígenas que buscam igualmente proteger os seus territórios, como os Ka’apor, os Awá-Guajá e outras comunidades Guajajara. Elas não só se articulam com outros grupos indígenas, como também educam as comunidades vizinhas sobre a importância da conservação ambiental. Diz Maisa Guajajara:
“Nem todas as mulheres fazem trabalho de vigilância porque sabemos que é um trabalho perigoso, mas sempre há algumas que o fazem. As guerreiras geralmente fazem mais atividades fora do território: damos palestras na região para falar sobre as invasões. E aumentamos a consciencialização nos vilarejos falando sobre a importância de manter a floresta em pé.”
As Guerreiras da Floresta, por exemplo, são parceiras do projeto Mãe D’água, que, junto com a ONG Fórum da Amazónia Oriental (Faor), dá apoio a mulheres indígenas para fortalecer as suas ações coletivas contra o desmatamento e a poluição das águas. Essas ações incluem visitas a comunidades ribeirinhas vizinhas nas quais as guerreiras explicam os seus modos de vida, como a caça e os rituais. Para as guerreiras, quanto mais as comunidades da região souberem sobre a cultura Guajajara, mais respeitarão suas ações para defender o território.

As mulheres são muito mais afetadas pelas mudanças climáticas e pela degradação ambiental do que os homens. É bem evidente que as desigualdades entre os géneros, tais como a posse da terra e o acesso à tomada de decisões quanto a estratégias do foro energético, impactam negativamente o bem-estar humano e ambiental na região. Como são as comunidades indígenas que costumam estar na linha da frente na defesa dos seus territórios, são as mulheres que enfrentam as maiores dificuldades na utilização dos recursos, e na luta pelos direitos contra grandes projetos de extração dos seus recursos. Ter mais mulheres envolvidas em tudo, nomeadamente nas decisões ambientais e climáticas, só beneficia a sociedade como um todo. Maior participação feminina na formulação de políticas públicas aumenta a eficácia interventiva nas políticas tendo em vista contrariar a catástrofe climática.

A Terra Indígena Caru, por exemplo, sofreu uma perda florestal, desde 2000, de 4%. Ao passo que o estado do Maranhão perdeu quase 25% das suas florestas no mesmo período, de acordo com dados do Global Forest Watch. Essas manchas de floresta intacta são cruciais para a implementação de soluções mais sustentáveis, através do manejo da floresta por métodos naturais no sentido de restaurar os ecossistemas. Ora, tal necessidade, implica que se coloque uma barreira firme contra o desmatamento. 
Entre 2000 e 2015, as terras indígenas demarcadas tiveram dez vezes mais perda florestal do que os territórios não-indígenas. O Brasil abriga aproximadamente 900 mil cidadãos indígenas de 305 povos diferentes, a maioria dos quais vive em terras demarcadas. Mesmo assim, mais da metade das áreas reivindicadas pelos grupos indígenas ainda não recebeu o reconhecimento formal do governo brasileiro.


sexta-feira, 21 de maio de 2021

O inconveniente de uma pessoa vitimizar-se


«Parece-me que as notícias sobre a minha morte são manifestamente exageradas.»

Este foi o comentário de Mark Twain a notícias que o davam como morto antes de o ser.

Vitimizar-se: é uma pessoa ao fazer-se de vítima queixar-se como se tivesse sido prejudicada sem o ser, apenas para despertar compaixão nos outros. Nada tem a ver com as verdadeiras vítimas, seja lá do que for. Para todos os efeitos é uma pessoa colocar-se falsamente na posição de vítima sem o ser. O que aqui importa perceber é como podemos lidar com estas pessoas. De um modo geral, uma pessoa militante da vitimização encontra sempre autojustificações para se desresponsabilizar das suas vicissitudes idiossincráticas. A culpa é sempre de alguém, nem que para isso tenha de sacrificar um bode expiatório. E assim se vai acomodando à sua mediocridade sem insónias nem remorsos. E é assim que a pouco e pouco estas pessoas espantam amigos que se vão afastando para que mais tarde ou mais cedo não chegue a sua vez de se chatearem. Por exemplo, às vezes vitimizam-se para pedir dinheiro emprestado. E quando já passou tempo razoável e o credor lhe lembra a dívida, para além de uma série de desculpas esfarrapadas, e todo o tipo de autojustificações, rematam a conversa com uma frase do género: “Devo-te, não nego, podes ficar descansado, pago quando puder.”
As pessoas que sofrem de vitimização crónica, acreditam que tudo lhes acontece de errado, que só elas passam por situações complicadas e difíceis e “sugam” a energia e a atenção dos outros com a sua negatividade. Quem ajuda a primeira vez, sente-se mal por não voltar a fazê-lo já que tem medo de ser criticado pelos demais e, ao mesmo tempo, apresenta um grande sentimento de culpa por não estar a ajudar “aquela pessoa indefesa” num momento em que tanto precisa.
Focada no controlo vindo de fora, a pessoa vitimizada não assume as suas responsabilidades e acaba por projetar o seu mal nos outros. Em vez de procurar as soluções para os seus problemas, acaba por pedir tudo o que precisa a alguém que esteja disponível para isso e, quando tal não acontece, torna-se um ingrato para quem já o ajudou. Ao mesmo tempo, as pessoas que se vitimizam tendem a exacerbar o que lhes aconteceu, não querendo ver que certas situações desagradáveis também podem ter um lado positivo. Estas pessoas estão completamente focadas no negativo, pelo que, o melhor da vida lhes passa completamente ao lado. Por esse motivo, não conseguem encontrar alternativas, fazer algo de forma inovadora e diferente, muito menos acreditar que é possível inverter o rumo de certos acontecimentos. Neste sentido, as pessoas que se vitimizam fazem uso da chantagem emocional como forma de comunicação, manipulando os que os rodeiam. Para concretizarem os seus objetivos, procuram as pessoas mais empáticas que, naturalmente “lhes fazem todas as vontades” para que alcancem o que pretendem.
A melhor maneira de ajudarmos essas pessoas é não lhes fazer todas as vontades, e incentivá-las a lutar por si próprias, e, sobretudo, é fundamental não nos deixarmos impressionar emocionalmente  com relatos de coitadinhos.

Como muitas coisas que são viciantes, a vitimização funciona como desculpa para não mudarmos de vida. Ora, em vez de nos queixarmos, devemos agir de maneira a melhorar a nossa vida. O acharmos que somos vítimas, argumentando que não é justo termos aqueles problemas, é o abrir de portas para não encararmos os problemas de frente, e não procurarmos soluções. A isto chama-se mediocridade. E é quando as próprias pessoas tomam consciência da sua mediocridade, em vez de serem fortes para mudar, concluem que na realidade não são suficientemente capazes num mundo que é cruel e fortemente competitivo, e desvanecem. E assim, como mecanismo de defesa, de sobrevivência psicológica, entram numa espiral negativa da qual é cada vez mais difícil sair dela.

A dada altura, a autoconsciência apaga-se, e passam então a acreditar verdadeiramente que as suas vidas são mais injustas do que as dos outros. Se elas não pararem para olhar em volta e perceber como estão a afetar as outras pessoas, ou como as outras pessoas também têm problemas, elas tendem a exagerar e a pensar que as suas vidas são piores do que todas as outras. Então, perdem a noção do facto de que os outros também têm problemas.

Esta pandemia da covid-19 veio destapar muita coisa, não apenas a miséria material e social, mas também muitas ideias falsas tidas como boas. Muitas pessoas só se aperceberam dos autómatos que andavam a ser quando foram obrigadas a parar para descansar. E foi assim que passaram a ver certas coisas com outra nitidez. É claro, como em tudo na vida, esse dom não bafejou toda a gente por igual. Muitas pessoas já retiraram ilações positivas disto ao ponto de reformularem as suas prioridades. Começaram a compreender que não conduziam assim tão bem o rumo das suas vidas quando andavam obcecadas a escrutinar a maneira de ganharem mais dinheiro, para terem um carro melhor, uma casa de sonho, um iate, e assim por diante. Outras não, outras acabaram por perceber que precisavam de um psiquiatra, porque de outro modo, iriam viver o resto das suas vidas em sobressalto moral e cívico, por assaltos da má consciência.

Moral da história: do que precisamos, é de uma mente forte. Não há nada de errado em abrandar e encontrar prazer nas coisas mais simples da vida. Muitas pessoas planeiam não voltar a fazer certas coisas que estavam habituadas a fazer. Afinal, de facto, a maior parte das pessoas andavam a ser vítimas desta sociedade "hiper" - de consumo mediático. É isso, definitivamente, muitos dos maus hábitos são de sociedade. Com excesso de informação, mas deficitária em verdadeiro conhecimento. Já para não falar em défice de verdadeira sabedoria. Mas é importante falar nisso, e tentar evitar estes hábitos para que façamos caso de sermos olhados como uma carta fora do baralho. Mas acreditem, é mesmo melhor para nós muitas vezes sermos uma carta fora do baralho. 

Força mental não tem nada a ver com saúde mental. Significa que somos capazes de aproveitar a vida sem sabermos o que é a felicidade, e ainda assim sermos felizes e não sabermos. Ter força mental é ter força para não ser hipócrita. É ser confiante naquilo que se faz, ainda que se possa errar. Há aqueles que escolhem ir ao ginásio. E nenhum mal nisso. Mas o mundo não se esgota nos ginásios, ou em quaisquer outras modas. Porque, como a palavra indica, as modas passam de moda, são efémeras. A força mental adquire-se com exercício mental. Nada contra o exercício físico. Mas o exercício mental é um exercício noventa por cento solitário. A resiliência é uma força do indivíduo, porque tem de passar por um exercício de desapego. O apego é um problema que diz respeito a cada um. Muitas pessoas andam enredadas em problemas única e exclusivamente criados por si próprios. Mas passam os dias a lamentarem-se que a culpa é dos outros. E não se apercebem que estão demasiado apegadas às coisas. E quanto mais coisas, mais tralha que nos faz distanciar do âmago do Si, onde reside a tal força da mente. 

Agora, coletivamente, todos beneficiam, quanto mais pessoas resilientes andarem por aí. Às vezes, uma pessoa mentalmente forte pode ser um progenitor que fica em casa para cuidar da sua cria. Ou alguém que tem um trabalho com poucos níveis de stress. É importante viver sem perder de vista certos valores. É preciso saber quais são esses valores para que depois lhe possamos chamar nossos, para viver de acordo com eles. Valores que não têm necessariamente que ver com ser rico ou ter muito dinheiro, ser uma pessoa famosa ou muito importante.


quinta-feira, 20 de maio de 2021

O pendor monástico da escrita e as garantias de anonimato


A moral desta história serve de prolegómenos de um outro ensaio que virá a seguir. Pensar e escrever são trabalhos solitários. Mas nesta altura do grande salto tecnológico para o digital, que nos permite aceder a uma gigantesca biblioteca de dados sem termos necessidade de sair de casa, o trabalho de pensar e escrever passou a ser, paradoxalmente, menos solitário. Não vale a pena estender-me a explanar isto. Por muitas críticas que possam ser feitas ao facto de hoje podermos ter no nosso computador milhares de e-books, ou seja, livros em formato digital, a verdade é que isto dá mesmo muito jeito. Nada é perfeito, ao ponto de uma nova tecnologia trazer sempre coisas boas e coisas más. Temos de continuar a aprender a viver com isso. Tudo tem ao mesmo tempo vantagens e desvantagens.

Esta crónica vem na sequência da leitura de uma tragédia que aconteceu a uma autora que viu a sua biblioteca de casa, com milhares de livros, ser reduzida a fumo no incêndio provocado por um raio que atingiu a sua casa, no meio de uma tempestade de trovoada, que de um momento para o outro ficou em cinzas. Nesse incêndio, para além de ter perdido milhares de livros, também perdeu o manuscrito do seu trabalho de investigação, levado a cabo durante dez anos em regime monástico, que a sua editora aguardava com impaciência para que finalmente fosse publicado. É impossível imaginar em que estado ficaríamos se tal coisa tivesse acontecido connosco. Esta tragédia aconteceu numa altura em que a autora ainda não tinha sido seduzida pelas novas tecnologias que lhe teriam facultado a possibilidade de ter guardado os seus ficheiros na "nuvem".

Mas na verdade, não se tendo deixado abater pelo infortúnio, rapidamente se adaptou às novas tecnologias. 
A sua genética pode ter ajudado. Assim como os traços de personalidade. Mas a experiência de vida já acumulada, e é claro, não despiciendo, a generosidade de colegas que contribuíram para o seu trabalho, e que a autora não se eximiu a agradecer-lhes do fundo do coração, conseguiu voltar a pôr de pé a sua obra ao fim de apenas um ano. Autênticos investigadores, cuja razão da sua atividade só faz sentido quando partilhada. Nomeadamente, fez questão de salientar que nunca esqueceria a dádiva de um colega extraordinário e ativista pró-privacidade. Por ironia, e a ironia é também uma lição para a vida, o trabalho consistia em mostrar os perigos desta atual deriva capitalista digital por via da inteligência artificial. Mas, por outro lado, sem a sua nova biblioteca digital, apesar de todas as suas potencialidades, a autora não teria sido capaz de vencer todos os obstáculos.

Uma ideia feita, muito gasta, é a de que as pessoas que gostam de passar uma boa parte do seu tempo sozinhas são pessoas estranhas e com problemas. Ora, nada mais errado. Geralmente essas pessoas são as que possuem uma mente forte, não temendo a austeridade no que diz respeito aos contactos intersociais de festas e diversões. Muito menos multidões. A verdade, é que, na maior parte das vezes, a perspetiva que predomina é aquela que desconfia de gente que gosta de estar sozinha como algo pernicioso. Nem sempre pessoas solitárias, com pendor monástico, são pessoas com problemas sociais. Tempo a sós, é realmente mais virtuoso do que se possa pensar. Significa que estamos confortáveis connosco mesmos, e que gostamos da nossa própria companhia. É uma coisa ótima, e pode ser um sinal de saúde mental, saber tirar partido do tempo a sós.

Portanto, não é nenhum problema para essas pessoas passarem mais tempo sozinhas do que acompanhadas. Não tem nada a ver com a solidão conotada como um problema social. Até porque, as pessoas que sofrem de verdadeira solidão, sofrem da mesma solidão quando estão rodeadas de outras pessoas, ainda que alegres e barulhentas. A solidão não é sobre estar-se sozinho. A solidão é um vazio interior, e não exterior, porque é independente de as pessoas viverem sozinhas ou acompanhadas.


domingo, 16 de maio de 2021

Uma partilha



Repare-se na cacofonia de siglas, que nunca mais acabam, numa rede de 'patos-bravos' e 'chicos-espertos', que começou com a venda de imóveis sem informação. Uma teia de relações mais ou menos privilegiadas de grandes devedores. E um processo onde faltam execuções de património, cujas perdas acabam por ser pagas pelo Estado português.

«Em 2013, para assistir à final da Champions em Wembley, Almerindo Duarte e o seu sócio, Luís Filipe Vieira, convidaram administradores do BES e representantes do governo do Rio de Janeiro. Voo privado, estadia no Hilton e box no estádio. No ano anterior, a Imosteps, de Vieira, tinha comprado a participação que o GES (através da Opway) tinha na OATA, tendo para isso beneficiado de um empréstimo do BES de €54M. A OATA detinha, através de uma estranha estrutura de offshores, dois terrenos para cemitério e um outro em plena reserva ambiental, no Rio de Janeiro. Vieira descreve a operação como um novo favor a Salgado e gaba-se de, junto das autoridades do Rio, ter conseguido trocar o terreno interdito por direitos de construção na Barra da Tijuca. Ora, de acordo com uma nota do Banco de Portugal, parte do empréstimo de €54M nunca chegou à OATA, sendo “alocado à transferência de determinados montantes para contas pessoais dos acionistas (... uma transferência de €8M para Luís Filipe Vieira)

«No Parlamento Vieira foi incapaz de explicar o destino do dinheiro em falta. Apesar de todo o investimento, os negócios não avançaram e a Imosteps não pagou a sua dívida ao BES, que transitou para o Novo Banco. Em 2019, apareceram três compradores para este crédito, com preços entre os €4M oferecidos no âmbito da carteira NATAII e uns surpreendentes €10M oferecidos pela Iberis Samper. Por trás desta oferta estava José António dos Santos, sócio de Luís Filipe Vieira e acionista do Benfica. Por impressionante coincidência, na mesma altura, a Benfica SGPS lança uma generosa oferta de compra das ações da SAD do Benfica, que garantiria ao acionista da SAD, José António dos Santos, um lucro de mais de €9M. O que valeu foi a CMVM não ter autorizado a OPA, nem o Fundo de Resolução permitiu a venda da dívida da Imosteps à Iberis. Foi o fundo Davidson Kampner que ficou com os €54M de dívidas por €4M, vendendo-o em seguida, com lucro, €8M, a José António dos Santos, que logo cancelou o aval pessoal de Vieira sobre aquela dívida.»

Portanto, recapitulemos: um avaliador que não sabe como os bancos vendem imóveis com desconto; um intermediário que assina de cruz negócios com imóveis; um primo que aceitou gerir uma carteira de imóveis do Novo Banco sem saber da sua origem; um grande devedor – talvez o maior – que pouco sabe, incluindo o que faz hoje, outro que nega ter incumprido com o banco, diz “viver bem”, mas não pagou as dívidas; e um terceiro que subiu e caiu com o BES, e culpa o Novo Banco de pouco fazer para recuperar o crédito. Um banco com uma carteira de créditos para gerir, mas que tem uma política de recuperação que, no mínimo, tem levantado dúvidas a todos, incluindo a quem deve. E em relação à qual sobra uma pergunta: porque razão o Novo Banco não vai atrás do património dos grandes devedores?




Bernardo Moniz da Maia, o líder da família Moniz da Maia que controlava a Sogema, deixou nas contas do Novo Banco uma dívida superior a €500M, mas o administrador tentou que o rótulo de grande devedor ficasse no passado. “Estou aqui como devedor de um fundo não português”, disse, referindo-se ao fundo Davidson Kemper que comprou os créditos ao Novo Banco. Perante a incredulidade do deputado do PS, Fernando Anastácio, que terá de escrever o relatório com as conclusões da Comissão de Inquérito, admitiu mais tarde sentir-se “moralmente” responsável pela dívida. Disse que tudo fez para honrar os compromissos, culpou o Novo Banco por lhe travar negócios no Brasil e não aceitar uma proposta de reestruturação da dívida feita pela Sogema. Só depois admitiu que a proposta tinha uma moeda de troca: mais financiamento. Lançou dúvidas sobre a solução final a que o credor chegou: “Não compreendo que o Novo Banco tenha vendido a dívida da família Moniz da Maia por 10% do valor”.

A dívida da empresa de Vieira no Novo Banco chegou a atingir os €387M entre o fim do BES e o acordo alcançado em setembro de 2017. Administrado o património por Nuno Gaioso Ribeiro, ex-vice-presidente do Benfica, estava uma dívida de €227M. Mas a pandemia já veio adiar os planos de reembolso ao Novo Banco. O primeiro pagamento, no valor de €60M, previsto para 2022, “dificilmente” acontecerá, informou Nuno Gaioso Ribeiro.

Por mais endividado que viva, Luís Filipe Vieira escapou sempre, entre reestruturações e favores, à convocação de um património que, sendo seu, no fundo, nunca lhe pertenceu. O próprio garante que o banco nunca quis avaliá-lo, mas que detém muito mais do que a “casa para palheiro” que lhe é atribuída como única propriedade nos documentos da Comissão de Acompanhamento do Novo Banco.

sábado, 15 de maio de 2021

Negr@s, pret@s ? Como devemos chamar?





Um jornalista da Lusa, ao divulgar para a imprensa a lista dos nomes dos deputados da Comissão de Revisão Constitucional, empossada por Ferro Rodrigues, cometeu a gafe de escrever o nome de uma deputada assim - "Romualda Fernandes (preta)". Parece ter sido um lembrete pessoal, mas que sem querer não o apagou e publicou mesmo assim. Ora, apesar de ter sido posteriormente corrigido, já não havia nada a fazer. Não foi a tempo de evitar que a gafe se tornasse num problema público. As palavras têm consequências, não são neutras, e refletem a sociedade em que são ditas. O erro foi corrigido; a agência noticiosa pediu desculpa; o jornalista penalizou-se e pediu desculpa. Mas o problema é outro: ainda há um lastro, no inconsciente coletivo português, de racismo que urge reparar.

Tendo em conta que em Portugal, o machismo e o sexismo impactam a vida de todas as mulheres, esse impacto aumenta quando a condição de ‘ser mulher’ é acrescida de outras condições como de classe, raça, geração, orientação sexual e identidade de género. É uma situação de maior vulnerabilidade destas pessoas a inúmeras violações de direitos que as deviam proteger. Tais violações são potencializadas pela permanência de um racismo estrutural, que vem de longe, e acantona a pessoa negra na sociedade.

A comunidade negra dos EUA acusou Barack Obama de não ser "suficientemente negro". Uma funcionária de uma junta de freguesia de Lisboa acusou o presidente de racismo por ele lhe ter chamado preta. Spike Lee zangou-se com Tarantino por causa da palavra preto. Negro e preto têm o mesmo poder discriminatório? Ou um dos termos é mais "aceitável" do que o outro?

Mia Couto, um escritor moçambicano muito conhecido e que dispensa apresentações, defende que o problema não está nas palavras. Num texto já com alguns anos, que escreveu para a abertura do ano letivo 2007/2008 no Instituto Superior de Ciências e Tecnologia de Moçambique, defendeu que a ideia de mudar a realidade através da alteração de palavras é falsa, designando-a como um dos "sete sapatos sujos" que devem ser abandonados "na soleira da porta dos tempos novos". E contou um episódio:
"Uma vez, em Nova Iorque, um compatriota nosso fazia uma exposição sobre a situação da nossa economia e, a certo momento, falou de mercado negro. Foi o fim do mundo. Vozes indignadas de protesto se ergueram e o meu pobre amigo teve que interromper sem entender bem o que se estava a passar. No dia seguinte, recebíamos uma espécie de pequeno dicionário dos termos politicamente incorretos. Estavam banidos da língua termos como cego, surdo, gordo, magro, etc... Nós fomos a reboque destas preocupações de ordem cosmética. Estamos reproduzindo um discurso que privilegia o superficial e que sugere que, mudando a cobertura, o bolo passa a ser comestível. Hoje assistimos, por exemplo, a hesitações sobre se devemos dizer 'negro' ou 'preto'. Como se o problema estivesse nas palavras, em si mesmas. O curioso é que, enquanto nos entretemos com essa escolha, vamos mantendo designações que são realmente pejorativas como as de mulato e de monhé."
Enquanto estivermos agarrados ao "problema terminológico", o incómodo subsistirá. Talvez fosse melhor recusar o uso de categorias raciais para "descrever as pessoas". Seja como for, nos casos em que surgem situações com origem em questões raciais, devíamos procurar usar termos "menos estigmatizantes", como acontece noutros casos, como, por exemplo, em relação ao tamanho das pessoas: quando elas são pequenas ou de baixa estatura; ou quando são obesas.

Existem algumas realidades e particularidades em certos países que não são linearmente transponíveis para outros. Importar sem critério coisas que se adotam, por exemplo, na América, podem dar mau resultado em Portugal. Há avaliações que são específicas de uma sociedade e não de outras. Por isso muitas vezes utilizam-se palavras, apenas com a boa intenção de não provocar desconforto. Mas isso pode ser enganador. Se, por um lado, as palavras não são neutras, por outro lado, os eufemismos têm curta duração. O que está em causa é a interpretação social dada às palavras num determinado contexto social e histórico. É preciso que não se corra o risco de entrarmos em extremismos. Ora, pensando que a liberdade de expressão não tem limites, mesmo que possa ofender alguém; ou começarmos a meter os pés pelas mãos com medo de não podermos dizer nada. 

No caso que nos trouxe aqui, o jornalista colocou uma nota pessoal no nome da deputada Romualda Fernandes para melhor a identificar. Tudo o que aconteceu depois, para além de um lapso desastroso e lamentável, denunciou um padrão de estereótipo. O jornalista teve necessidade de materializar, eventualmente de forma inconsciente, aquilo que na realidade ainda está impregnado na nossa sociedade, que consiste na identificação de um corpo que parece estar fora do seu lugar. Ou seja, como é uma exceção no Parlamento, houve ainda necessidade de a sinalizar, e para isso o jornalista usou, inocentemente presumo, a palavra dos nossos usos e costumes.

A questão do racismo está longe de ser apaziguada nos tempos mais próximos. É bom recordar que a palavra “preto” tem sido utilizada por integrantes das comunidades “afro”, sobretudo pelos mais jovens, para se referirem a si próprios como forma de reivindicar uma identidade. Mas, quando utilizada por pessoas de outros quadrantes identitários, a carga simbólica é interpretada como ofensiva. Lá está, na língua portuguesa, a palavra preferencial para o insulto e que tem por trás toda uma ideologia, e toda uma relação de poder, é a palavra "preto", e não "negro".

É claro que a língua portuguesa não é apenas falada em Portugal. Seria interessante estudar como é avaliado este problema das palavras nos restantes países PALOP. O Brasil, um destes países, é onde o debate sobre o assunto está mais adiantado, e isso pode ser constatado se fizermos uma pesquisa na Internet. Por exemplo, segundo um tal Babu, embora ache que não há um certo ou um errado absoluto, é inadequado o uso da palavra “negro” para referir pessoas com ascendência africana. Para o que Babu nos convoca, é que façamos uma reflexão acerca do sentido das palavras, ou seja, como os sentidos foram construídos socialmente e não propriamente acerca da sua etimologia (palavra latina derivada da raiz indo-europeia nekwt, ‘noite’, a mesma que deu em ‘night’. 
O problema surgiu quando o colonizador passou a usar o termo como sinónimo de “escravo com a cor da pele preta”, cuja intenção consistia em desumanizar. Babu não quer ser chamado de “negro”. Ele se sente melhor sendo chamado de “preto”, que é assim nos Estados Unidos da América. Nos Estados Unidos da América “nigger” é uma ofensa muito grave, uma palavra impronunciável que carrega em si a conotação da supremacia branca. O racismo se expressa nela. Por isso, "Black" é como os afro-americanos se definem. E Babu sente-se bem, sente-se respeitado, quando alguém se refere a ele como sendo "preto". Mas a questão não é simples. E é por isso que há muitas teóricas e teóricos que se dedicam a pensar os termos identitários dos dias de hoje.

O corpo feminino foi e é um espaço de constante disputa. No decurso da história este foi sendo modelado por uma série de discursos disciplinadores, opressores e violentos. As mulheres foram ao longo dos tempos tratadas culturalmente como objetos, ao qual não se pode ignorar a questão da sexualidade. A opressão exercida sobre o corpo da mulher por via da sua sexualidade feminina tomou aspetos muito variados com grandes implicações sociais e culturais. No caso das mulheres, ditas "de côr" , os efeitos do machismo atingiram proporções intoleravelmente gritantes. O efeito estereotipado da hipersexualização da "mulher negra africana" contribuiu para a perpetuação da violência e do racismo para com essas mulheres. Quando o assunto é o corpo das "mulheres negras africanas", os problemas são vários. Por um lado, há uma mistura de invisibilidade e rejeição, quando nos meios mediáticos a preferência tende para mulheres brancas. Por outro lado, a sua sexualidade é abusivamente explorada desde muito jovem. Ou seja, a sua natureza ontológica de objeto cresce por interiorização incutida de fora a partir da adolescência. 
 

quarta-feira, 5 de maio de 2021

As Direitas: conservadora; radical; extrema-direita


Há uma ligeira diferença entre Direita Radical e Extrema-Direita. Em ciência política, sobretudo europeia, os termos: direita radical; direita populista; extrema-direita – têm sido utilizados para referir certos partidos recentes na Europa, que têm crescido imenso na última década, mas cujo embrião remonta já aos finais da década de 1970, sendo apresentado como exemplo o paradigmático partido em França - Frente Nacional - de que Marine Le Pen é presidente desde 2011, quando substituiu seu pai - Jean-Marie Le Pen. Os habitualmente chamados "populistas de direita" têm partilhado uma série de causas, que incluem tipicamente: oposição à globalização e à União Europeia; críticas à imigração; ao multiculturalismo; e muitas outras agendas caindo no nacionalismo e obviamente na xenofobia e no racismo.

Segundo o historiador Pacheco Pereira, em Portugal, é no órgão de comunicação social “Observador”, onde podemos encontrar a direita radical em Portugal, dando nomes como: Rui Ramos, José Manuel Fernandes, Helena Matos, Jaime Nogueira Pinto, Alexandre Homem Cristo, entre outros. Pacheco Pereira chama-lhes o braço armado de um lóbi empresarial, assente numa lógica política sectária. Pacheco Pereira diz que o jornal tem qualidade, mas é um projeto político da ala mais radical da direita portuguesa e o que verdadeiramente nele conta é a opinião e a mobilização da tribo pelos comentários que comunicam com blogues, alguns atualmente muito próximos do Chega e da extrema-direita. Pacheco Pereira faz questão de sublinhar que a extrema-direita não é a mesma coisa que a direita radical.

A extrema-direita ainda vai mais longe que a direita radical, que ao contrário desta, rompe com a democracia e o Estado de Direito. A extrema-direita é ainda mais autocrática e nacionalista, desprezando e perseguindo minorias étnicas. Sendo, portanto, racistas e xenófobos, defendem uma ideologia "supremacista". O ditador Salazar, tendo sido tudo isso, logo, estaria hoje na extrema-direita. Em 1996, o cientista político holandês Cas Mudde observou que na maioria dos países europeus, os termos "direita radical" e "extrema-direita" eram utilizados indiferentemente. Citou a Alemanha como exceção, observando que entre os cientistas políticos alemães, o termo "direita radical" -  Rechsradikalismus era utilizado em referência aos grupos de direita que, estando fora do arco do poder, todavia, não ameaçavam "a ordem democrática". Utilizam esse termo para o distinguir da  Rechsextremen - extrema-direita. Estes grupos sim, ameaçam a constitucionalidade do Estado de Direito. Assim, como tal, a lei constitucional alemã podia proibi-los. Segundo o cientista alemão Klaus Wahl, no entanto, é a partir da direita radical que se faz a escalada para a extrema-direita já mais violenta, racista, totalitarista, já com métodos considerados terroristas. Estas fações tomam uma posição anti-imigrante ao ponto de proporem o seu repatriamento para defenderem o emprego dos nacionais. Tal como aconteceu com a extrema-direita fascista dos anos de 1930, Estes grupos sectários ao tornarem-se em partidos políticos, utilizam o sistema eleitoral para ascenderem ao poder, e depois deitarem-no abaixo. Atacam o sistema político vigente, considerando-se antissistema, com o argumento da corrupção. Existem também organizações de direita radical, intelectualmente mais sofisticadas, que para além de fazerem parte dos tais órgãos de comunicação social como "Observador", promovem a realização de conferências no mainstream do empreendedorismo capitalista. 

Portugal é um dos países da Europa que viveu mais tempo uma ditadura de extrema-direita, que ocupou os dois quarteis do meio do século XX. Por isso, não deve ser para admirar que em Portugal, no último quartel do século XX e neste primeiro quartel do século XXI, o regime político tenha tido um maior pendor para os partidos de esquerda, sendo os seguintes, os que atualmente ocupam 144 lugares dos 230 lugares no Parlamento: Partido Socialista; Bloco de Esquerda; Partido Comunista; PAN; PEV e Livre. Portanto, apenas 86 deputados da direita ocupam o hemiciclo. E ainda hoje alguns setores da esquerda consideram esta direita comprometida com o antigo regime de ditadura, uma estrutura de poder que justificava opressões e perseguições, por uma política política fascista. Assim, essa estrutura de que os portugueses estavam fartos, serviu de certo modo para estigmatizar a direita portuguesa. Mas como escreve António Barreto: "[. . .]  com o tempo, não seria de esperar outra coisa senão a conquista do poder. E depois a sua manutenção sem abrir mão dele. E assim se foi substituindo a história laudatória dos poderosos pela história militante dos ativistas, promovendo valores contrários aos anteriores conservadores. Mas seria tão estúpido fazer história para valorizar a Sharia, como foi estúpido no passado defender o cristianismo para justificar a Inquisição. Tudo o que pretenda ser história ou qualquer outra ciência social e que não se traduza num paciente e incansável esforço de procura da verdade, uma jornada sem repouso para compreender, é um passo atrás na civilização.[. . .]"

Assim, devermos estar atentos às derivas que resvalam, quer para um lado, quer para o outro. Uns quiseram manter poderes e privilégios. Depois outros vieram para conquistar poderes e privilégios. Portanto, querer conquistar o poder pelo poder, é perverso tanto de um lado como do outro. Muito diferente é privilegiar o valor do esforço e do rigor para alcançar, gradualmente, passo a passo, uma história isenta. Uma história feita por quem nada tem a ganhar com o que faz, nada tem a justificar, nada tem a defender, a não ser rigor e isenção.

Importa falar aqui do conservadorismo, e em particular do conservadorismo liberal, que se quer demarcar da direita radical e da extrema-direita. O conservadorismo liberal combina políticas conservadoras com elementos liberais, fortemente influenciado pelo liberalismo económico. Conservadores liberais modernos da Europa combinam as políticas conservadoras, no que diz respeito a valores sociais, mas com posições liberais em questões económicas. Historicamente, nos séculos XVIII e XIX, o conservadorismo incluía vários princípios baseados na questão da tradição estabelecida, respeito à autoridade e valores religiosos. Os conservadores ditos clássicos, muitas vezes para se definirem, invocam as ideias de Edmund Burke. E os conservadores liberais invocam John Stuart Mill, Jeremy Bentham e Montesquieu, os pais do liberalismo. A máxima do conservadorismo liberal é: "a economia vem antes da política". Os teóricos de direita hoje, localizados no conservadorismo liberal atual, podem ser vistos como os ideólogos dos partidos de centro-direita. Assim, há um consenso geral, que os conservadores liberais originais são aqueles que combinam atitudes sociais conservadoras com uma perspetiva liberal na economia, sem, contudo, criticar diretamente privilégios, uma vez que a democracia garante as liberdades individuais, aquelas a que no último quartel do século XX vieram a adotar as ideias de Margaret Thatcher e Ronald Reagan, para a maior abertura do livre mercado, que acabou por cair naquilo a que se veio a chamar o neoliberalismo causador da crise financeira de 2008.

Edmund Burke era um Whig, do partido liberal britânico que se opunha ao partido de linha mais conservadora, Tory. Defendia a liberdade de mercado, era amigo de David Hume e admirava Adam Smith. Este dizia que Burke era o único homem que, sem nunca se terem encontrado, tinha as mesmas ideias económicas. Burke também defendeu a emancipação católica e o direito dos colonos americanos contra os abusos do governo inglês. O conservadorismo social também apoia a disseminação de valores familiares tradicionais, bem como o conceito de moralidade pública e os bons costumes. Nas relações intrafamiliares, boa parte desses setores rejeita a promoção de conceitos como o interesse superior da criança ou a autonomia progressiva, defendendo a ideia tradicional de sujeição estrita dos menores à autoridade dos pais e de outros adultos. Eles criticam que a promoção dos Direitos da Criança enfraqueceu a autoridade dos pais e acarreta o risco de degradação moral das famílias e da sociedade. Por outro lado, alguns setores conservam ainda um certo machismo exagerado, sobretudo quando rejeitam qualquer tipo de feminismo.

Vamos deixar para depois o caso dos “negacionistas”, que servem de exemplo para os atuais negacionistas que se manifestam contra as vacinas e as medidas oficiais anti-Covid-19. É um outro tipo de peste, negar a realidade como forma de escapar de uma verdade desconfortável. Trata-se da recusa em aceitar uma realidade empiricamente verificável pela ciência. Em ciência, o negacionismo é definido como a rejeição de conceitos básicos, incontestáveis e apoiados por consenso científico. Os negacionistas defendem ideias tanto radicais como controversas. Um caso grave de negacionismo é o caso do presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, um populista de extrema-direita. Os métodos de Bolsonaro são todos inspirados na extrema-direita internacional.

terça-feira, 4 de maio de 2021

Uma viagem em cima de um camelo em Wadi Rum




Wadi Rum, também conhecido como O Vale da Lua, é um vale de arenito e rocha de granito no sul da Jordânia a leste de Aqaba. É o maior wadi da Jordânia. Um wadi é um leito seco de rio no qual as águas correm apenas na estação das chuvas. Rum é um nome que deve vir do aramaico e que significa alto ou elevado. 
Wadi Rum tem sido habitado por muitas culturas desde os tempos pré-históricos, como é o caso dos Nabateus, que deixaram a sua marca na forma de pinturas e grafitis rupestres, e templos. Na década de 1980 uma das formações rochosas em Wadi Rum foi batizada de "Os Sete Pilares da Sabedoria" em memória do livro que T. E. Lawrence escreveu logo após ter terminado a Primeira Guerra Mundial, embora os Sete Pilares referidos no livro, na verdade não têm ligação com Rum




No Deserto de Wadi Rum percorre-se a ancestral estrada do rei por onde, durante séculos, viajaram milhares de caravanas de camelos. O destino é a escultural e imponente Petra, escavada na rocha pelo povo Nabateu e posteriormente ocupada pelos romanos. Aqui a natureza mostra toda a sua força. As condições meteorológicas, de terra quente durante o dia e noites frias de céu estrelado, desafiam a vida humana. O cenário praticamente inalterado pelo homem é esculpido por ventos, que ergue e dá forma a imponentes labirintos de arenito e granito de cor avermelhada.




Quando do nosso regresso a Aqaba, os problemas internos absorveram-nos os restantes dias livres. Pela minha parte, dediquei-me especialmente à guarda para minha proteção pessoal. Os homens sentiam grande orgulho de pertencer à minha guarda pessoal, que deu azo a um profissionalismo quase teatral. Ao empenharem a sua resistência, aqueles homens ficavam desonrados se, por falta de energia ou insuficiência de coragem, não conseguissem cumprir as suas obrigações. Com uma curiosa justiça, os acontecimentos forçaram-me a portar-me à altura da minha guarda pessoal, a tornar-me tão duro e tão temerário como eles. Deste modo, organicamente, eu era eficiente no deserto, nunca me sentia com fome nem empanturrado, e a ideia da comida não me distraía. Aprendera a comer muito de uma vez. E depois passar dois, três ou quatro dias sem comer. E depois comer novamente até demais. A minha regra consistia em evitar regras de alimentação; e numa sucessão de exceções habituei-me a não ter hábitos. Podia beber muito num dia para compensar a sede da véspera e do dia seguinte. Da mesma maneira, embora o sono continuasse a ser, para mim, o mais caro prazer do mundo, substituía-o pelo oscilar intranquilo sobre a sela, durante uma marcha noturna, ou conseguia passar noite após noite em trabalho diligente, sem excessiva fadiga. Eu não era como os árabes, mas tinha a energia da minha motivação. As suas vontades menos preparadas cediam antes que a minha cedesse. E isso fazia de mim um duro e ativo. Para mim, os aspetos mental e físico eram uma unidade inseparável. O meu perverso sentido dos valores forçava-me a crer que o abstrato e o concreto, como símbolos, não representavam oposições mais fortes que um liberal e um conservador.

Era uma atitude niilista. O desfalecimento provinha sempre de uma fraqueza moral que corroía o corpo. Mas não tinha poder sobre a vontade desde que não houvesse traições internas. Quando marchávamos estávamos desencarnados sem consciência da carne ou dos sentidos. Olhávamos para o corpo com desprezo, não como veículo do espírito, mas quando, dissolvidos, os seus elementos serviam para estrumar um campo. Nós, pela nossa parte, para um único dia, já tivéramos suficiente adversidade. O terreno estava coberto de gelo, como se não bastasse a força do vento para nos atrapalhar; e nessa altura principiaram os nossos problemas. Os camelos pararam na neve derretida e lamacenta ao fundo de um talude de lama escorregadia e agacharam-se, sendo impossível fazê-los levantar, como se quisessem dizer-nos que não conseguiam levar-nos até lá acima. Desmontámos, para os ajudar, e nós próprios também começámos a deslizar pela encosta. Por fim, descalçámos as nossas botas novas adquiridas para nos protegermos contra o inverno, e, descalços, puxámos os camelos pela encosta e ajudámo-los a descer do outro lado. E tivemos de desmontar mais umas vinte vezes antes do pôr do sol. Aquele vento terrível não nos dava descanso. Nada na Arábia podia ser mais cortante que o vento norte em Maan, e naquele dia era ainda mais cortante e mais forte. Atravessava-nos as roupas, como se estivéssemos despidos. E provocava-nos cãibras nas pernas que não nos permitiam segurar-nos como devia ser na sela. Caíamos no solo de forma violenta com as pernas cruzadas, na atitude de quem ainda estava montado. Chegados já de noite a um riacho que ia cheio, decidi atravessá-lo. Os animais hesitaram, de modo que tivemos de ir à frente, a pé, mergulhando num metro de água gelada. Nos terrenos altos, do outro lado, o vento atacava-nos como um inimigo. Fizemos deitar os camelos numa falange e estendemo-nos entre eles, num relativo conforto, escutando o clamor do vento à nossa volta, tão forte como as altas ondas à volta do navio no alto mar. Cada um de nós dispunha de dois cobertores militares e de um pacote de pão cozido: deste modo estávamos bem apetrechados contra o mal e podíamos dormir em segurança no meio da lama e do frio.

Iniciada em 1916, a Revolta Árabe selou o fim do domínio do Império Turco-Otomano na região que estendia 
desde Alepo até Áden, no Iémen, o que abriu caminho para o domínio dos britânicos e dos franceses depois da guerra. O deserto de Wadi Rum e a Hejaz Railway guardam histórias de ataques aos comboios que Thomas Edward Lawrence, do Bureau Árabe do Império Britânico, deixou para memória futura na sua obra épica "Os Sete Pilares da Sabedoria". Ainda é possível conhecer pontos por onde passava a linha férrea, a única que cortava a região. Wadi Rum está associado a três nomes na história do sonho árabe, de fundar um estado unificado: o Xerife de Meca Hussein, da dinastia Hachemita; Auda Abu Tayi, líder beduíno, chefe dos Howeitas; e o galês Thomas Edward Lawrence. Foi na dinâmica do conflito árabe-turco que Lawrence da Arábia introduziu na região táticas dos chamados ataques terroristas aos comboios que atravessavam na única ferrovia que cortava a região, a Hejaz Railway. Construída a partir de 1900, com o apoio e a consultoria dos alemães, aliados do Império Otomano na Primeira Guerra Mundial.

As ações terroristas de Lawrence, as promessas dos ingleses de entronizar Hussein, rei do Hejaz, num projeto da nação árabe unida, e o dinheiro inglês, que atraiu os beduínos, selou a aliança entre as antigas tribos árabes rivais. Os três líderes ousaram atacar a importante cidade portuária de Aqaba pelo deserto, algo considerado militarmente impossível, pela adversidade do terreno que teriam de cruzar. Os turcos foram apanhados de surpresa. Perderam Aqaba e, com ela, o único porto que tinham na região. À queda de Aqaba, em 1917, seguiu-se a conquista de Damasco. Os árabes penetraram e tomaram a cidade antes das tropas inglesas do general Allenby.

Os ingleses sofreram um duro revés dos turcos em 15 de agosto de 1915, na batalha entre navios britânicos e franceses contra a artilharia turca, no estreito de Dardanelos. Os ingleses e seus aliados tentaram melhor sorte em Gallipolli, numa planeada operação do então lorde do Almirantado: Churchill. Não só foram derrotados, mas humilhados durante quase nove meses. Os ocidentais recuaram à noite, às escondidas, depois de perder 43 mil homens. As baixas ocidentais alcançaram 220 mil homens, numa campanha que projetou a maior liderança político-militar turca no pós-guerra: o general Mustafa Kemal, Atatürk. Ingleses e franceses tentaram derrotar os turcos uma terceira vez, em setembro de 1915. Dessa vez, o alvo era Bagdade. Foram cercados em Kut, e depois de tentar até subornar o comandante turco, tiveram de se render para não morrer de fome.




A campanha árabe foi a única vitória inglesa no conflito contra os otomanos. E foi a única campanha em que as tropas regulares acabaram por ter um mero papel secundário. Por isso, tão logo Damasco foi tomada, Allenby e o rei Faisal, filho de Hussein, livraram-se de Lawrence, devolvendo-o à Inglaterra. Lawrence, entretanto, ganhou notoriedade com a obra: Os Sete Pilares da Sabedoria, em que narra a campanha da Revolta Árabe.

Não demorou muito para Hussein descobrir que as promessas inglesas valiam tanto quanto os seus exércitos. O Médio Oriente foi retalhado entre franceses e ingleses pelo acordo Sykes-Picot. Hussein tentou governar o Hejaz, mas foi destronado pelos seus inimigos sauditas. Aos seus dois filhos couberam os prémios de consolação: Abdullah ficou com a Jordânia, que não tinha petróleo algum, nem água sem a Palestina que foi entregue pelos ingleses aos israelitas. A Síria foi dada a Faisal. Mas quando este quis, de facto, governar, foi expulso pelos verdadeiros donos, os franceses. Os ingleses o acomodaram no recém-criado Iraque. Faisal, como se sabe, não durou muito, pois, ao contrário da Jordânia, o Iraque tinha petróleo e água. Terminou expulso de lá por militares árabes precursores de um movimento pelo qual ascendeu Sadam Hussein. Os árabes perderam o seu destino pelas mãos dos que os haviam ajudado. 

De volta ao Império Britânico, o herói Lawrence submergiu por cargos menores no Exército e na Aeronáutica, evitando expor-se como celebridade que já era, até encontrar o seu destino num acidente errático de moto. Afinal, como diria Friedrich Nietzsche, nada acontece na vida de um homem que não se pareça com ele.




Connosco viajaram dois mil camelos do Sirhan, carregando munições e víveres. A Minha escolta estava comigo, e Mirzuk tinha os seus Ageyls, com dois famosos camelos de corrida. Quase ao crepúsculo, avistámos a linha férrea numa ampla curva pela região descampada por entre tufos baixos de arbustos e grama. Vendo que tudo se apresentava pacífico, avancei para fiscalizar a travessia da linha o que despertava grande emoção tocar os trilhos, que eram o alvo e a razão de todos os nossos esforços. Cavalgando colina acima, as patas do meu camelo fizeram barulho ao deslocar umas pedras. Da longa sombra de uma passagem subterrânea, à minha esquerda, surge um soldado turco que dormia. Olhou embaraçado para mim e para a pistola na minha mão e depois, com tristeza, para a sua carabina encostada ao muro do aterro, alguns metros além. Era um jovem robusto, mas de aspeto sombrio. Fitei-o e disse-lhe, em voz baixa: “Deus é misericordioso.” Ele conhecia o sentido da frase árabe; e ergueu os olhos para mim. O seu rosto ainda ensonado começou lentamente a transmudar-se, assumindo uma expressão de incrédula alegria. Contudo, ele não disse palavra. Premi, com o pé, o pescoço peludo do meu camelo, começando com passos cautelosos, através dos trilhos, descendo pelo declive. Senti-me enternecido com o jovem soldado turco como sempre a gente se sente quando poupa a vida de alguém. Por isso, segui o caminho de costas viradas para ele sabendo que não iria tentar alvejar-me pelas costas. A certa distância, olhei para trás. Ele pôs o polegar no nariz e, com a mão aberta, acenou para mim com os dedos.

Acendemos à fogueira do café, como baliza para o resto da caravana, e esperamos até que as suas silhuetas escuras passassem a linha. Ali repousamos aquela noite, porque Zaagi havia abatido uma abetarda, cuja carne branca Xenofonte, com razão, qualificara como sendo boa. Enquanto festejávamos, os camelos também festejaram. Por fim, chegou a notícia de que os ingleses haviam tomado Amã. Em meia hora pusemo-nos a caminho de Themed, através da linha deserta. Mensagens ulteriores informaram-nos que os ingleses estavam recuando, e embora houvéssemos advertido os árabes a respeito desta manobra, ainda assim se mostraram perturbados. Outro mensageiro relatou como os ingleses acabavam de fugir de Salt. Isto contrariava inteiramente as intenções de Allenby, e eu jurei, imediatamente, que não era verdade. Um homem veio galopando para dizer que os ingleses haviam feito saltar apenas uns poucos trilhos, ao sul de Amã, depois de dois dias de inúteis assaltos contra a cidade. Senti-me seriamente perturbado no conflito de rumores contraditórios e mandei que Adhub, que merecia confiança por não perder a cabeça, fosse para Salt, levando uma carta destinada a Chetwode, ou a Shea, pedindo-lhes uma nota sobre a situação real. Durante as horas de permeio, vagamos inquietamente pelos campos de cevada nova, com o espírito a elaborar plano atrás de plano, em febril atividade. Bem tarde, já noite, os compassos dos cascos dos cavalos de corrida de Adhub ecoaram pelo vale, e ele chegou para nos dizer que o paxá Jemal agora se encontrava em Salt, vitorioso, enforcando os árabes locais que haviam dado as boas-vindas aos ingleses. Os turcos ainda prosseguiam repelindo Allenby para longe, pelo vale do Jordão abaixo. Pensava-se que Jerusalém seria recuperada por eles. Eu conhecia muito bem os meus compatriotas e rejeitava esta possibilidade; mas, sem dúvida alguma, as coisas corriam muito mal. Regressamos, desconcertados, para o Atatir. Esta reviravolta, por ser inesperada, feria-me ainda mais. O plano de Allenby parecia modesto, e era deplorável que tivéssemos de tombar assim aos olhos dos árabes. Nunca haviam confiado em nós, para a realização das grandes coisas que eu predizia; e agora, com os seus pensamentos independentes, passavam a gozar a primavera por ali. Foram atraídos por algumas famílias ciganas, vindas do norte com os seus apetrechos de latoeiro sobre jumentos. Os homens da tribo Zebn nos saudaram com uma alegria que mal compreendi. Até que notei que, além dos legítimos lucros do seu ofício, as mulheres abriam-se a outros adiantamentos. Eram fáceis, particularmente para os Ageyls; e, durante algum tempo, prosperaram de modo extraordinário, uma vez que os nossos homens tinham tanto apetite como generosidade. Eu também as utilizei. Parecia verdadeira pena estar sem coisa alguma a fazer, tão perto de Amã, sem sequer lançar um olhar ao redor. Assim, Farraj e eu alugamos três das alegres pequenas mulheres, vestimo-nos como tais, e fomos passear pela aldeia. A visita teve êxito, embora a minha decisão final fosse a de que a praça deveria ser deixada em paz. Tivemos apenas um momento ruim, junto à ponte, quando regressávamos. Alguns soldados turcos, encontrando-se connosco e tomando-nos os cinco pelo que parecíamos, tornaram-se excessivamente íntimos. Dando provas de recato, bem como de um golpe de canela pouco habitual a mulheres ciganas, escapamos, intactos. Para o futuro, decidi retomar o meu costume de usar o uniforme de simples soldado britânico, em campos inimigos. Era excessivamente jactancioso para ser suspeito.

Depois disto, determinei que os indianos de Azrak regressassem ao acampamento de Faisal, devendo voltar eu próprio para lá. Partimos em uma daquelas claras madrugadas que despertavam os sentidos com o sol, ao passo que o intelecto, cansado pelo pensar da noite, ainda continuava a cochilar. Por uma ou duas horas, em semelhantes manhãs, os sons, os aromas e as cores do mundo impressionavam o homem, um a um, diretamente, sem ser filtrados, nem transformados em tipos pelo pensamento; pareciam existir suficientemente por si próprios, e a falta de coerência e de cuidado, na criação, já não irritava. Marchamos para o sul, ao longo do caminho de ferro, esperando cruzar com os indianos de Azrak, mais lentos do que nós; o nosso pequeno grupo, montado em excelentes camelos, passava de uma elevação a outra, a fim de vigiar o horizonte. O frescor do dia encorajava-nos ao emprego de boa velocidade por cima de todas as colinas listadas de quartzo, desprezando a infinidade de veredas desérticas que conduziam apenas aos abandonados acampamentos do ano anterior, ou do último milhar, ou dezena de milhar de anos: porque uma estrada, uma vez palmilhada e sulcada naquele misto de quartzo e de pedra calcária, marca a face do deserto por todo o tempo em que o deserto durar. Perto de Faraifra vimos uma pequena patrulha de oito turcos marchando linha acima. Os meus homens, refeitos depois dos dias de folga de Atatir, pediram-me que realizássemos uma incursão contra eles. Julguei o caso muito insignificante, mas, quando eles resmungaram, concordei. Os mais jovens se arremessaram instantaneamente para a frente, a galope. Pus em ordem o resto, através da linha, para repelir o inimigo, forçando-o a retirar-se do abrigo, por trás da passagem subterrânea. Zaagi, a cem metros à minha direita, vendo o que se desejava, volteou de lado, sem perda de tempo. Mohsin seguiu-o um instante depois, com a sua secção; entretanto, Abdulla e eu fomos para diante, marchando vigorosamente do nosso lado, a fim de apanharmos o inimigo de ambos os flancos, juntos e ao mesmo tempo. Farraj, cavalgando à frente de todos, não quis ouvir os nossos gritos nem notou os tiros de advertência disparados por cima da sua cabeça. Contemplou a nossa manobra, mas prosseguiu no trote aloucado a caminho da ponte, onde chegou antes que Zaagi e o seu grupo houvessem atravessado a linha. Os turcos cessaram o fogo, e supusemos que se houvessem retirado para o lado de lá da colina, em busca de maior segurança; mas, quando Farraj puxou as rédeas, parando sob o arco da ponte, ouviu-se um tiro, e ele pareceu cair ou saltar da sela, desaparecendo. Pouco depois, Zaagi colocou-se em posição, sobre a colina, e o seu grupo deflagrou para o ar vinte ou trinta tiros, como se o inimigo ainda lá estivesse. Senti-me inquieto a respeito de Farraj. Seu camelo ali estava, ileso, junto da ponte, só. Farraj talvez estivesse ferido, ou perseguindo o inimigo. Eu não podia acreditar que ele houvesse deliberadamente cavalgado até aos turcos, em campo descoberto, e depois parado; contudo, era o que parecia. Mandei que Feheyd fosse ter com Zaagi, ordenando a este que corresse pelo seu lado tão cedo quanto possível, enquanto nós marchamos a trote apressado diretamente sobre a ponte. Ali chegamos, juntos; encontramos um turco morto, e Farraj terrivelmente ferido, com o corpo atravessado de lado a lado, jazendo junto ao arco, tal como caíra do camelo. Parecia estar inconsciente; mas, quando nos apeamos, saudou-nos, e depois caiu em silêncio, mergulhando no sentimento de solidão que sempre sobrevém aos homens feridos que pensam estar a morte perto. Rasgamos-lhe as roupas e contemplamos, inutilmente, a ferida. A bala apanhara-o em cheio e parecia haver-lhe lesado a espinha dorsal. Os árabes disseram, imediatamente, que ele teria apenas umas poucas horas de vida. Tentamos movê-lo, pois parecia estar sem forças, embora não revelasse sofrimento algum. Procuramos estancar o sangue, que escorria em jato amplo e lento, pondo manchas semelhantes a papoulas, na erva; mas isto parecia impossível, e, depois de breve tempo, ele próprio nos pediu que o deixássemos a sós, visto que estava morrendo, e que se sentia feliz por morrer, uma vez que já não alimentava amor algum para com a vida. Com efeito, havia longo tempo que perdera o gosto de viver; os homens muito cansados e entristecidos frequentemente se enamoram da morte, com essa fraqueza triunfal que se manifesta depois que a força é vencida na última batalha.

Enquanto nos atarefávamos em torno dele, Abd el Latif deu o grito de alarme. Estava vendo cerca de cinquenta turcos que subiam pela linha, na nossa direção; logo depois, um vagonete a motor foi ouvido, vindo do norte. Éramos apenas sessenta homens, em posição impossível. Eu disse que devíamos nos retirar imediatamente, transportando Farraj connosco. Os homens tentaram erguê-lo, primeiro na sua capa, e a seguir, num cobertor, mas a consciência do ferido voltou, e ele gemeu tão pungentemente que não tivemos coração bastante para o molestar mais. Não podíamos deixá-lo onde se encontrava, para que os turcos dele se apoderassem, porque já os havíamos visto queimar vivos os nossos infelizes feridos. Por esta razão combináramos, antes de entrar em ação, que um daria cabo da vida do outro, em caso de ferimento irremediável: mas eu nunca concebera que pudesse recair em mim o dever de matar Farraj. Ajoelhei-me a seu lado, segurando a pistola perto do chão, junto à sua cabeça, de maneira que ele não pudesse perceber o meu propósito; mas deve ter adivinhado, pois abriu os olhos e me agarrou com sua mão ardente e escamosa, a delicada mão daqueles imaturos moços de Nejd. Esperei um momento, e ele disse: “Daud ficará zangado com o senhor.” O antigo sorriso aflorou estranhamente ao rosto acinzentado e crispado. Respondi-lhe: “Saúde-o por mim.” Deu-me a resposta formal: “Deus lhe dará paz”, e, por fim, cansado, fechou os olhos. O vagonete turco estava, agora, bem perto, serpenteando pelos trilhos abaixo, na nossa direção, como um escaravelho; e as balas da sua metralhadora riscavam o ar ao redor das nossas cabeças, enquanto fugíamos para trás das colinas. Mohsin conduziu o camelo de Farraj, sobre o qual se achavam o seu odre e os seus cobertores; estes conservavam ainda a forma do corpo dele, no momento em que caíra junto à ponte. Ao anoitecer, fizemos alto; e Zaagi aproximou-se de mim, sussurrando que todos altercavam para saber quem deveria montar o esplêndido animal no dia seguinte. Ele o queria para si próprio; eu sentia-me amargurado pelo facto de aquela morte haver de novo roubado a minha pobreza; e, para vingar uma grande perda por meio de outra perda, embora pequena, matei o pobre animal com a minha segunda bala. Depois, o sol tombou sobre nós. Durante aquele meio-dia quente e irrespirável, nos vales de Kerak, o ar confinado havia pairado, na sua estagnação, sem movimento algum, enquanto o calor sugava o perfume das flores. Com a escuridão, o mundo se pôs novamente em movimento, e uma brisa, procedendo de oeste, rastejou pelo deserto acima. Encontrávamo-nos a quilómetros de distância das ervas e das flores, mas de súbito as sentimos perto de nós, assim que as ondas de ar perfumado passaram, espalhando uma doçura pegajosa. Entretanto, isto logo se dissipou, e o vento noturno, húmido e enervante, se seguiu. Abdulla trouxe-me o jantar: arroz e carne de camelo (do camelo de Farraj). Depois adormecemos.