Acendemos à fogueira do café, como baliza para o resto da caravana, e esperamos até que as suas silhuetas escuras passassem a linha. Ali repousamos aquela noite, porque Zaagi havia abatido uma abetarda, cuja carne branca Xenofonte, com razão, qualificara como sendo boa. Enquanto festejávamos, os camelos também festejaram. Por fim, chegou a notícia de que os ingleses haviam tomado Amã. Em meia hora pusemo-nos a caminho de Themed, através da linha deserta. Mensagens ulteriores informaram-nos que os ingleses estavam recuando, e embora houvéssemos advertido os árabes a respeito desta manobra, ainda assim se mostraram perturbados. Outro mensageiro relatou como os ingleses acabavam de fugir de Salt. Isto contrariava inteiramente as intenções de Allenby, e eu jurei, imediatamente, que não era verdade. Um homem veio galopando para dizer que os ingleses haviam feito saltar apenas uns poucos trilhos, ao sul de Amã, depois de dois dias de inúteis assaltos contra a cidade. Senti-me seriamente perturbado no conflito de rumores contraditórios e mandei que Adhub, que merecia confiança por não perder a cabeça, fosse para Salt, levando uma carta destinada a Chetwode, ou a Shea, pedindo-lhes uma nota sobre a situação real. Durante as horas de permeio, vagamos inquietamente pelos campos de cevada nova, com o espírito a elaborar plano atrás de plano, em febril atividade. Bem tarde, já noite, os compassos dos cascos dos cavalos de corrida de Adhub ecoaram pelo vale, e ele chegou para nos dizer que o paxá Jemal agora se encontrava em Salt, vitorioso, enforcando os árabes locais que haviam dado as boas-vindas aos ingleses. Os turcos ainda prosseguiam repelindo Allenby para longe, pelo vale do Jordão abaixo. Pensava-se que Jerusalém seria recuperada por eles. Eu conhecia muito bem os meus compatriotas e rejeitava esta possibilidade; mas, sem dúvida alguma, as coisas corriam muito mal. Regressamos, desconcertados, para o Atatir. Esta reviravolta, por ser inesperada, feria-me ainda mais. O plano de Allenby parecia modesto, e era deplorável que tivéssemos de tombar assim aos olhos dos árabes. Nunca haviam confiado em nós, para a realização das grandes coisas que eu predizia; e agora, com os seus pensamentos independentes, passavam a gozar a primavera por ali. Foram atraídos por algumas famílias ciganas, vindas do norte com os seus apetrechos de latoeiro sobre jumentos. Os homens da tribo Zebn nos saudaram com uma alegria que mal compreendi. Até que notei que, além dos legítimos lucros do seu ofício, as mulheres abriam-se a outros adiantamentos. Eram fáceis, particularmente para os Ageyls; e, durante algum tempo, prosperaram de modo extraordinário, uma vez que os nossos homens tinham tanto apetite como generosidade. Eu também as utilizei. Parecia verdadeira pena estar sem coisa alguma a fazer, tão perto de Amã, sem sequer lançar um olhar ao redor. Assim, Farraj e eu alugamos três das alegres pequenas mulheres, vestimo-nos como tais, e fomos passear pela aldeia. A visita teve êxito, embora a minha decisão final fosse a de que a praça deveria ser deixada em paz. Tivemos apenas um momento ruim, junto à ponte, quando regressávamos. Alguns soldados turcos, encontrando-se connosco e tomando-nos os cinco pelo que parecíamos, tornaram-se excessivamente íntimos. Dando provas de recato, bem como de um golpe de canela pouco habitual a mulheres ciganas, escapamos, intactos. Para o futuro, decidi retomar o meu costume de usar o uniforme de simples soldado britânico, em campos inimigos. Era excessivamente jactancioso para ser suspeito.
Depois disto, determinei que os indianos de Azrak regressassem ao acampamento de Faisal, devendo voltar eu próprio para lá. Partimos em uma daquelas claras madrugadas que despertavam os sentidos com o sol, ao passo que o intelecto, cansado pelo pensar da noite, ainda continuava a cochilar. Por uma ou duas horas, em semelhantes manhãs, os sons, os aromas e as cores do mundo impressionavam o homem, um a um, diretamente, sem ser filtrados, nem transformados em tipos pelo pensamento; pareciam existir suficientemente por si próprios, e a falta de coerência e de cuidado, na criação, já não irritava. Marchamos para o sul, ao longo do caminho de ferro, esperando cruzar com os indianos de Azrak, mais lentos do que nós; o nosso pequeno grupo, montado em excelentes camelos, passava de uma elevação a outra, a fim de vigiar o horizonte. O frescor do dia encorajava-nos ao emprego de boa velocidade por cima de todas as colinas listadas de quartzo, desprezando a infinidade de veredas desérticas que conduziam apenas aos abandonados acampamentos do ano anterior, ou do último milhar, ou dezena de milhar de anos: porque uma estrada, uma vez palmilhada e sulcada naquele misto de quartzo e de pedra calcária, marca a face do deserto por todo o tempo em que o deserto durar. Perto de Faraifra vimos uma pequena patrulha de oito turcos marchando linha acima. Os meus homens, refeitos depois dos dias de folga de Atatir, pediram-me que realizássemos uma incursão contra eles. Julguei o caso muito insignificante, mas, quando eles resmungaram, concordei. Os mais jovens se arremessaram instantaneamente para a frente, a galope. Pus em ordem o resto, através da linha, para repelir o inimigo, forçando-o a retirar-se do abrigo, por trás da passagem subterrânea. Zaagi, a cem metros à minha direita, vendo o que se desejava, volteou de lado, sem perda de tempo. Mohsin seguiu-o um instante depois, com a sua secção; entretanto, Abdulla e eu fomos para diante, marchando vigorosamente do nosso lado, a fim de apanharmos o inimigo de ambos os flancos, juntos e ao mesmo tempo. Farraj, cavalgando à frente de todos, não quis ouvir os nossos gritos nem notou os tiros de advertência disparados por cima da sua cabeça. Contemplou a nossa manobra, mas prosseguiu no trote aloucado a caminho da ponte, onde chegou antes que Zaagi e o seu grupo houvessem atravessado a linha. Os turcos cessaram o fogo, e supusemos que se houvessem retirado para o lado de lá da colina, em busca de maior segurança; mas, quando Farraj puxou as rédeas, parando sob o arco da ponte, ouviu-se um tiro, e ele pareceu cair ou saltar da sela, desaparecendo. Pouco depois, Zaagi colocou-se em posição, sobre a colina, e o seu grupo deflagrou para o ar vinte ou trinta tiros, como se o inimigo ainda lá estivesse. Senti-me inquieto a respeito de Farraj. Seu camelo ali estava, ileso, junto da ponte, só. Farraj talvez estivesse ferido, ou perseguindo o inimigo. Eu não podia acreditar que ele houvesse deliberadamente cavalgado até aos turcos, em campo descoberto, e depois parado; contudo, era o que parecia. Mandei que Feheyd fosse ter com Zaagi, ordenando a este que corresse pelo seu lado tão cedo quanto possível, enquanto nós marchamos a trote apressado diretamente sobre a ponte. Ali chegamos, juntos; encontramos um turco morto, e Farraj terrivelmente ferido, com o corpo atravessado de lado a lado, jazendo junto ao arco, tal como caíra do camelo. Parecia estar inconsciente; mas, quando nos apeamos, saudou-nos, e depois caiu em silêncio, mergulhando no sentimento de solidão que sempre sobrevém aos homens feridos que pensam estar a morte perto. Rasgamos-lhe as roupas e contemplamos, inutilmente, a ferida. A bala apanhara-o em cheio e parecia haver-lhe lesado a espinha dorsal. Os árabes disseram, imediatamente, que ele teria apenas umas poucas horas de vida. Tentamos movê-lo, pois parecia estar sem forças, embora não revelasse sofrimento algum. Procuramos estancar o sangue, que escorria em jato amplo e lento, pondo manchas semelhantes a papoulas, na erva; mas isto parecia impossível, e, depois de breve tempo, ele próprio nos pediu que o deixássemos a sós, visto que estava morrendo, e que se sentia feliz por morrer, uma vez que já não alimentava amor algum para com a vida. Com efeito, havia longo tempo que perdera o gosto de viver; os homens muito cansados e entristecidos frequentemente se enamoram da morte, com essa fraqueza triunfal que se manifesta depois que a força é vencida na última batalha.
Enquanto nos atarefávamos em torno dele, Abd el Latif deu o grito de alarme. Estava vendo cerca de cinquenta turcos que subiam pela linha, na nossa direção; logo depois, um vagonete a motor foi ouvido, vindo do norte. Éramos apenas sessenta homens, em posição impossível. Eu disse que devíamos nos retirar imediatamente, transportando Farraj connosco. Os homens tentaram erguê-lo, primeiro na sua capa, e a seguir, num cobertor, mas a consciência do ferido voltou, e ele gemeu tão pungentemente que não tivemos coração bastante para o molestar mais. Não podíamos deixá-lo onde se encontrava, para que os turcos dele se apoderassem, porque já os havíamos visto queimar vivos os nossos infelizes feridos. Por esta razão combináramos, antes de entrar em ação, que um daria cabo da vida do outro, em caso de ferimento irremediável: mas eu nunca concebera que pudesse recair em mim o dever de matar Farraj. Ajoelhei-me a seu lado, segurando a pistola perto do chão, junto à sua cabeça, de maneira que ele não pudesse perceber o meu propósito; mas deve ter adivinhado, pois abriu os olhos e me agarrou com sua mão ardente e escamosa, a delicada mão daqueles imaturos moços de Nejd. Esperei um momento, e ele disse: “Daud ficará zangado com o senhor.” O antigo sorriso aflorou estranhamente ao rosto acinzentado e crispado. Respondi-lhe: “Saúde-o por mim.” Deu-me a resposta formal: “Deus lhe dará paz”, e, por fim, cansado, fechou os olhos. O vagonete turco estava, agora, bem perto, serpenteando pelos trilhos abaixo, na nossa direção, como um escaravelho; e as balas da sua metralhadora riscavam o ar ao redor das nossas cabeças, enquanto fugíamos para trás das colinas. Mohsin conduziu o camelo de Farraj, sobre o qual se achavam o seu odre e os seus cobertores; estes conservavam ainda a forma do corpo dele, no momento em que caíra junto à ponte. Ao anoitecer, fizemos alto; e Zaagi aproximou-se de mim, sussurrando que todos altercavam para saber quem deveria montar o esplêndido animal no dia seguinte. Ele o queria para si próprio; eu sentia-me amargurado pelo facto de aquela morte haver de novo roubado a minha pobreza; e, para vingar uma grande perda por meio de outra perda, embora pequena, matei o pobre animal com a minha segunda bala. Depois, o sol tombou sobre nós. Durante aquele meio-dia quente e irrespirável, nos vales de Kerak, o ar confinado havia pairado, na sua estagnação, sem movimento algum, enquanto o calor sugava o perfume das flores. Com a escuridão, o mundo se pôs novamente em movimento, e uma brisa, procedendo de oeste, rastejou pelo deserto acima. Encontrávamo-nos a quilómetros de distância das ervas e das flores, mas de súbito as sentimos perto de nós, assim que as ondas de ar perfumado passaram, espalhando uma doçura pegajosa. Entretanto, isto logo se dissipou, e o vento noturno, húmido e enervante, se seguiu. Abdulla trouxe-me o jantar: arroz e carne de camelo (do camelo de Farraj). Depois adormecemos.