sábado, 27 de fevereiro de 2021

A ochratoxina A e a Nefropatia endémica dos Balcãs




A ochratoxina A é uma micotoxina nefrotóxica produzida pelo fungo Aspergillus ochraceus, existente no solo, que pode crescer em cereais e leguminosas: trigo, milho, arroz, cevada, centeio, soja, amendoim, ervilhas. A ochratoxina A está relatada na etiologia da nefropatia endémica dos Balcãs através da ingestão de alimentos contaminados por ela. Em pacientes dessa área endémica, e com esse tipo de nefropatia, foram encontradas concentrações aumentadas de ochratoxina A no sangue e na urina. Alterações cromossómicas induzidas experimentalmente por ochratoxina A são numericamente e estruturalmente semelhantes às identificadas em pacientes com a nefropatia endémica dos Balcãs. Daí se inferir o seu papel na patogénese de tumores malignos do trato urinário nos pacientes com esse tipo de nefropatia.




A nefropatia endémica dos Balcãs, ou nefropatia balcânica, é uma doença renal tubulointersticial crónica, de natureza endémica, diagnosticada pela primeira vez em 1956 na Bulgária, numa área da bacia do Danúbio e seus afluentes, onde convergem territórios da Roménia (no Condado de Banat e Mehedinti), Bulgária, Albânia e na antiga Jugoslávia (Bósnia, Croácia, Sérvia, Macedónia). 
Um ano depois, uma doença renal com características clínicas e epidemiológicas quase idênticas foi relatada na Sérvia, então Jugoslávia. Em 1961, uma nefropatia semelhante foi encontrada como generalizada na Roménia. Caracteriza-se por uma importante atrofia renal, com predomínio de lesões intersticiais e que evolui clinicamente para insuficiência renal crónica, sem edema ou hipertensão e com aumento da incidência de tumores do urotélio, ou seja, das vias excretoras. E a hipótese da sua etiologia mais provável é ambiental – hidrocarbonetos policíclicos aromáticos, e a ochratoxina A.

A epidemiologia da nefropatia dos Balcãs é característica, com 
uma série de peculiaridades: idade, sexo, incidência familiar e predominância rural. A doença predomina em adultos de 30 a 50 anos. O início clínico da doença é geralmente após 40 anos, nunca encontrado antes dos 20 anos (a doença não foi relatada em crianças e adolescentes). O fator hereditário é controverso, em que os estudos sugerem transmissão poligénica. O que é contestado por alguns autores. Os genes envolvidos estão localizados no cromossoma 3, 3q24, 3q25 e 3q26. A condição é endémica porque é encontrada em famílias que vivem numa área limitada dos Balcãs, com um raio de cerca de 200 km perto da curva do Danúbio na Roménia (no noroeste do Condado de Mehedinti e num pequeno surto em Banat), na Albânia, Bósnia e Herzegovina, Croácia, Sérvia, Macedônia, Bulgária. A distribuição espacial permaneceu inalterada ao longo do tempo. A prevalência é alta nessas populações, variando de 0,5% a 5%. Estima-se que cerca de 100.000 pessoas estão em risco de nefropatia dos Balcãs, enquanto 25.000 têm essa doença. Na Sérvia, os pacientes com nefropatia dos Balcãs representam uma média de 6,5% em hemodiálise. Na Roménia, a nefropatia dos Balcãs é a doença renal crónica mais comum entre pacientes a fazer hemodiálise. A incidência de nefropatia dos Balcãs vem diminuindo nos últimos anos, em parte devido à migração da população de áreas endémicas para áreas urbanas, e para outros Estados. 

Imuno-senescência


Imuno-senescência é a deterioração natural do sistema imunitário devido ao envelhecimento. Envolve a perda de capacidade do corpo para responder a infeções e à memória imunológica, o que neste caso representa alguma contrariedade no processo de imunização por via da vacinação em pessoas mais velhas, digamos, acima dos 65 anos de idade. Como é considerado um fator de mortalidade entre os idosos, daí a explicação para que até ao momento não seja aconselhado vacinar as pessoas com mais de 65 anos com a vacina da AstraZeneca. E começam a aparecer relatos de pessoas que, apesar de vacinadas para a covid-19, sobretudo com mais de 80 anos de idade, ainda assim foram infetadas pelo SARS-CoV-2 - teste PCR positivo - se bem que nenhum deles tenha sofrido doença grave, o que é, apesar de tudo, uma boa notícia. 

Foram apanhados de surpresa quando uma das utentes foi testada durante uma ida a uma consulta no hospital. Estava positiva. De imediato fizeram testes rápidos à duas mulheres que com ela partilhavam o quarto e às duas funcionárias que lhe prestavam cuidados diretos. “Tudo negativo, as autoridades de saúde mandaram fazer testes PCR em todo a ala e confirmou-se que havia mais 11 pessoas com covid-19”, explica Madalena Meneres, diretora técnica da residência. A suspeita é que o vírus tenha entrado no Barahona por uma outra utente que uns dias antes também tinha ido a uma consulta. “Tal como está estipulado, a senhora regressou e fez o isolamento. O que achamos é que foi na reta final do isolamento - e sem qualquer sintoma - que a infeção se manifestou e depois se transmitiu. Esta é a dedução que fazemos porque ninguém consegue compreender. E já que aconteceu, ainda bem que foi nesta altura, a vacina teve o seu efeito: o vírus continua a contagiar e mesmo vacinados somos agentes transmissores. Não há sintomas e a probabilidade de desencadear uma fatalidade não é tão grande.” 


O caso positivo foi confirmado 17 dias após a toma da segunda dose da vacina, altura em que supostamente a vacina já estaria a atuar no seu máximo de capacidade protetora de imunidade. No entanto, tal como a Direção Geral da Saúde explica: “apesar de muito eficazes, as vacinas não evitam completamente o risco de infeção”. As “poucas pessoas vacinadas que foram infetadas desenvolveram geralmente formas pouco graves” da doença. 

A deterioração do sistema imunológico devido ao envelhecimento afeta principalmente os linfócitos T, células responsáveis pela resposta celular, devido à involução do Timo. O Timo, órgão responsável pela produção e maturação dessas células, sofre alterações durante o seu processo de involução, onde passa a substituir a sua constituição de tecido linfoide para tecido adiposo, diminuindo a sua capacidade de produção de linfócitos T. Ocorre também o declínio na proporção de células T nativas em comparação com as células T de memória. Tal redução na produção de linfócitos T e as citocinas que elas produzem gera dificuldades na resposta imune eficaz, tanto contra os patógenos invasores como os antigénios vacinais. Outros fatores relatados na população idosa que contribuem para a baixa capacidade protetora das vacinas são a redução da capacidade fagocitária de neutrófilos e macrófagos.

A senescência é um processo metabólico ativo associado ao processo de envelhecimento. Ocorre por meio de uma programação genética: redução do tamanho dos telómeros; ativação de genes de supressão tumoral. As células que entram em senescência perdem a capacidade proliferativa após um determinado número de divisões celulares. O envelhecimento do organismo como um todo está relacionado com o facto de as células somáticas do corpo irem morrendo e não serem substituídas por novas como acontece nas idades mais jovens. Em virtude das múltiplas divisões celulares que a célula individual regista ao longo do tempo, para esse efeito, o telómero (extensão de ADN que serve para a sua proteção) vai diminuindo até que chega a um limite crítico de comprimento, ponto em que a célula perde a capacidade proliferativa, com a consequente diminuição do número de células do organismo, das funções dos tecidos, das funções dos órgãos e das funções do próprio organismo. 

Como consequência, há o surgimento das chamadas doenças da velhice. É a enzima endógena telomerase que desempenha a função de manter o tamanho dos telómeros. A cada divisão celular, acrescenta a parte do telómero que se perde. E assim a célula pode-se dividir sempre que precisa. Ora, o que acontece nas pessoas mais velhas é que a telomerase diminui a sua atividade nas células somáticas. O que não acontece nem nas células neoplásicas, fazendo com que estas sejam permanentemente jovens independentemente do organismo ser já velho. As células somáticas têm o gene da telomerase, mas nos velhos encontra-se desligado. Atualmente a ciência já consegue ativar a telomerase e criar células saudáveis imortais. Mas não é solução, a ativação da telomerase como terapia plausível para o envelhecimento humano, uma vez que a sua hiperactivação iria gerar ainda mais tumores para além do que já acontece na velhice. Nas células do cancro, que lhes podemos chamar células imortais, mesmo no velho, a telomerase é muito eficiente em regenerar os telómeros da célula tumoral, permitindo-lhe multiplicar-se indefinidamente. 

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

«Pinté de negro a cisnes y revolucioné al patito feo»


Esta é uma, de entre as muitas frases de Pablo Hasél, que se podem respigar, espalhadas pela internet. Pablo Hasél – Hasél é pseudónimo artístico, escolhido por ele quando começou a gravar – que em criança frequentou um colégio de Jesuítas, e o seleto clube de ténis local, há muito que é visto por alguns conterrâneos como um controverso narcisista que gosta de aparecer. Hasél, nome que o rapper Pablo Rivadulla terá encontrado num livro de contos árabes, quem o conhece diz que tem uma autoestima muito elevada, e pensa que está acima do bem e do mal. Julga-se dono da verdade absoluta. Curiosamente, acantonou-se na Universidade para evitar a prisão, mas nunca frequentou a mesma como estudante, por ter escolhido outra via de intervenção na sociedade e cultura espanhola. Foi com 'Esto no es el paraíso', que saltou para o cenário underground do hip-hop espanhol. Na origem da onda de contestação violenta, que varreu sobretudo Barcelona, estão 64 tweets que Pablo escreveu entre 2014 e 2016 e pelos quais foi condenado. Em Portugal, mais de cem artistas e outros profissionais da Cultura assinaram um manifesto e uma petição pública de apelo à libertação de Pablo Hasél, e a exigir que o Governo português "se distancie da condenação do artista". 



William James distinguiu o Eu do Si mesmo. O Eu, como a instância interna conhecedora, e o Si mesmo, como o conhecido de si próprio. A consciência reflexiva é, por outro lado, o conhecimento sobre si próprio e a capacidade de ter consciência de si. Esse conhecimento que o Eu tem de "si mesmo" apresenta dois aspetos distintos: por um lado, um aspeto descritivo chamado autoimagem; e por outro, um aspeto valorativo, a autoestima. Ego, é a palavra em latim para referir Eu. E Freud buscou esta palavra na construção da sua teoria triádica do aparelho psíquico da Psicanálise. O Ego desenvolve-se a partir do Id. A satisfação das pulsões é retardada até ao momento em que a realidade permita satisfazê-las com um máximo de prazer e um mínimo de consequências negativas. O Ego é lógico e racional. Sempre cumpre a função de lidar com a realidade externa (faz um meio campo entre o mundo interno e externo. 
Assim, o Ego atua como mediador entre o Id e o mundo exterior, tendo que lidar também com o Superego, com as memórias de todo o tipo e com as necessidades físicas do corpo. A sua energia é extraída do Id.

O Id, o inconsciente, é definido por Freud como um sistema composto por representações instituídas por meio do recalcamento. Inconsciente e recalcamento são conceitos indissolúveis e correlacionados, pedra angular sobre a qual repousa toda a estrutura da psicanálise. A principal função do Ego é procurar atender e aplacar as exigências constantes do Id e a vontade moral do Superego.
 Há muitos conflitos entre o Id e o Ego, pois os impulsos não civilizados do Id estão sempre querendo expressar-se. Freud destacava que os impulsos do Id são muitas vezes reprimidos pelo Ego por causa do medo de castigo. Ou seja, o Ego pode coibir os impulsos inaceitáveis do Id. Porém, visto que o indivíduo não pode sobreviver obedecendo somente aos impulsos do Id, é necessário que ele reaja realisticamente ao seu ambiente de convívio. O conjunto de procedimentos que leva o indivíduo a comportar-se assim, é o Ego. O Ego é, portanto, mais realístico do que o Id, visando sempre filtrar as consequências dos impulsos inconscientes do Id

Entende-se por autoestima a avaliação que a pessoa faz de si mesma; expressa uma atitude de aprovação ou de repulsa e até que ponto ela se considera capaz, significativa, bem-sucedida e valiosa para o Si e para o meio em que vive. Trata-se tanto do juízo pessoal de valor expresso nas atitudes que o indivíduo tem consigo mesmo, quanto de uma experiência subjetiva que pode ser acessível às pessoas através de relatos verbais e comportamentos observáveis. A ideia de autoestima naturalmente vai variar em função do paradigma psicológico que o aborde. Desde o ponto de vista da psicanálise, a autoestima está intimamente relacionada com o desenvolvimento do Ego. Freud utilizava a palavra alemã Selbstgefühl, especificando que tem dois significados: Sentimento de Si (consciência de uma pessoa a respeito de si mesma); Sentimento de Estima de Si (vivência do próprio valor a respeito de um sistema de ideais). Este segundo significado é a autoestima em Freud. Uma parte do Sentimento de Si é primária, o resíduo do narcisismo infantil; outra parte brota da omnipotência corroborada pela experiência (o cumprimento do ideal do Eu), e uma outra da satisfação da líbido de objeto. Para os fins de pesquisa empírica, a autoestima é tipicamente avaliada por um questionário de autoavaliação que produz um resultado quantitativo. A validade e confiabilidade do questionário são estabelecidos antes do uso.

De finais dos anos 1960 até ao início dos anos 1990, foi assumido como questão de facto que a autoestima de um estudante era um fator crítico nas qualificações obtidas na escola, em seus relacionamentos com os colegas, e em seus sucessos posteriores na vida. 
 Uma revolução teve lugar no vocabulário do self.  Palavras que implicam confiabilidade ou responsabilidade – autocrítica, abnegação, autodisciplina, autocontrolo, modéstia, autodomínio, autocensura e autossacrifício – passaram fora de moda. A linguagem mais favorecida passou a ser aquela que exaltasse o indivíduo: autoexpressão, autoafirmação, autoindulgência, autorrealização, autoaceitação, e a onipresente autoestima. 

Pesquisas recentes indicam que insuflar a autoestima dos estudantes por si mesma não tem efeito positivo sobre a qualificação dos mesmos. Um estudo demonstrou que o efeito pode ser justamente o contrário. Não é claro se uma leva necessariamente à outra. O nível e a qualidade da autoestima, embora correlacionados, não são sinónimos: autoestima pode ser elevada, mas frágil - narcisismo; e baixa, porém segura - humildade. Um agressor; um violador; um difamador; um troll da internet; um bullie - agem da forma que agem devido a uma injustificada autoestima elevada. Criminosos violentos, frequentemente, se descrevem como superiores aos outros - em especial, como pessoas de elite, que merecem tratamento preferencial. Muitos assassinatos e ataques são cometidos em resposta a golpes contra a autoestima, tais como insultos e humilhação. Para ser mais preciso, muitos perpetradores vivem em ambientes onde insultos são muito mais ameaçadores do que a opinião que têm de si mesmos. Desonrar alguém pode ter consequências tangíveis e mesmo acarretar risco de perder a vida. A mesma conclusão emergiu dos estudos de outra categoria de pessoas violentas. É relatado que membros de gangues de rua possuem opiniões favoráveis sobre si mesmos e recorrem à violência quando estas avaliações são contestadas. Bullies dos recreios escolares consideram-se superiores às outras crianças; e baixa autoestima é encontrada entre as vítimas dos bullies, não entre os próprios bullies. Grupos violentos têm um sistema de crenças público, que enfatiza a sua superioridade sobre os demais.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

De que vale estar à janela se não é para dizer adeus?


De: Mia Couto - Venenos de Deus, remédios do diabo 
O jovem médico português Sidónio Rosa, perdido de amores pela mulata moçambicana Deolinda, que conheceu num congresso médico, foi para Moçambique como cooperante. É a história não contada da família dos Sozinhos - Munda e Bartolomeu, o velho marinheiro da casa das máquinas do Infante Sagres. O ex-mecânico é uma sombra esvoaçando no escuro. As mãos dele confirmam a fivela do cinto com receio de que as calças arreiem.
Ah, Doutor, é mesmo o senhor, é que essa aí, às vezes, me engana, ela se disfarça só para eu lhe abrir a porta.
O gesto firme é uma ordem para que a esposa fique fora. Com passo hesitante, Sidónio vai entrando como se os cheiros bafientos ocupassem todo o obscuro quarto. Bartolomeu vai à frente arrastando os pés. Atrás segue a esposa, debicando distâncias. Os passos dele são pequenos: de um chão de prisão. Os passos dela são redondos: de quem anda em ilha.
Então meu amigo, está melhor? Eu só melhoro quando deixo de ser eu. Gosto de o ver assim, sempre filósofo. Desculpe, Doutor Sidonho, eu gosto de o ver, mas não gosto que me visite. Ora, estamos pessimistas hoje? Então, me diga: qual é a cura para a minha doença, Doutor? Viver é que não tem cura, caro amigo. Nunca mais saio deste maldito barco. 
Refere-se aos enjoos? Aos enjoos, a esta porcaria deste balanço, parece que ainda estou na merda do navio. Eu vejo-o, assim de farda branca, e o Doutor me lembra o comandante do navio . . . Ora, esta é uma simples bata de médico. A sério, até parece que ainda viajo lá no paquete, parece que escuto as águas ondeando . . . Cure-me de sonhar, Doutor. 
Sonhar é uma cura. Um sonhadeiro anda por aí, por lonjuras e aventuras, sei lá fazendo o quê e com quem . . . Não haverá um remédio que me anule o sonho? Sonhar só o faz ficar mais vivo. Para quê? Estou cansado de ficar vivo. Ficar vivo não é viver, Doutor. Para dizer a verdade, o senhor nem devia voltar aqui. Não quer que volte? É que o senhor entra neste quarto malcheiroso e eu o vejo mais como coveiro do que meu salvador. Aqui, neste leito, eu já vou no meu próprio desfile fúnebre. E mais, Doutor: acho que o senhor não tem nada a fazer aqui. Eu vivo tão sozinho que nem doença tenho para me acompanhar. Eu hei de morrer de nada, só por acabar de viver. Mas hoje não, hoje não morra que é domingo. 
Domingo é dia de janela. A meio da manhã, ele se desamarra do reumatismo, ergue-se arrastoso e se encosta na luz, a contemplar a rua. Meio oculto entre os cortinados, não vê muito, quase que não escuta. Melhor assim: os sons desfocados já não o convocam. Apesar de tudo, vai acenando. De que vale estar à janela se não é para dizer adeus? 
Dos mortos da Covid-19


Todos os dias os jornais apresentam títulos como o que apresento neste recorte de um jornal de ontem: "O medo de serem esquecidos e de ficarem confinados até ao fim da vida deles". Mas a Mia Couto não escapam estas subtilezas, como até as do mau cheiro: "É que o senhor entra neste quarto malcheiroso e eu o vejo mais como coveiro do que meu salvador". A decadência do organismo humano, o processo a que chamamos morrer, quase sempre é acompanhado de mau cheiro. As sociedades desenvolvidas têm uma grande sensibilidade aos cheiros fortes. Em algumas regiões menos desenvolvidas, aquela realidade que Mia Couto nos conta nos seus romances, as pessoas próximas oferecem conforto e atenção aos moribundos por força da tradição. Por isso, quando um membro baixa ao hospital, são os próprios parentes a dar consolo, ao assumir os cuidados rotineiros, libertando a equipa de enfermagem para as tarefas mais diferenciadas. Isso é um claro contraste com o que acontece nos hospitais em países mais desenvolvidos, onde a equipa sente obrigação de gastar parte do seu tempo a confortar. 

O que fazer, se sabemos que uma pessoa preferiria morrer em casa a morrer no hospital? Sabemos que em casa ela morrerá mais rapidamente. Mas talvez seja exatamente isso o que ela quer. É claro que nas sociedades mais desenvolvidas dos dias de hoje, a perfeição técnica do prolongamento da vida certamente não é o único fator que contribui para o isolamento dos moribundos em nossos dias. A maioria dos que têm morrido da Covid-19 nos hospitais pertence a uma família. Mas mais do que a presença da família poder ocasionar problemas sérios para os médicos e a equipa de enfermagem do hospital, reduzindo inclusive a eficácia dos cuidados, é o vírus que não deixa. Este é o conflito não resolvido na institucionalização ostensivamente racional da morte. O moribundo recebe o tratamento médico mais avançado e cientificamente recomendado disponível. Mas os contactos com as pessoas a que está ligado, e cuja presença pode proporcionar o maior conforto para aquele que parte, são considerados inconvenientes para o tratamento racional do paciente que requer pessoal com uma preparação técnica muito superior. E assim esses contactos são reduzidos ou impedidos sempre que possível.

O quadro da diferença entre a morte de um africano de Mia Couto, e um europeu, é nítido. De um lado, o tipo antigo: os membros da família se reúnem em torno da pessoa doente, trazem comida, dão os remédios, limpam e lavam o paciente com a sujidade que trazem da rua para o leito do paciente, cuidando dele sem lavar as mãos. Possivelmente apressam o fim, pois nada disso é muito higiénico. Mas pode ser uma das grandes alegrias dos moribundos estarem cercados por parentes e amigos, encontrar eco dos seus sentimentos nos outros que se ama e a quem se está apegado, e cuja presença faz surgir um sentimento terno de pertencer à família humana. Essa afirmação mútua das pessoas através de seus sentimentos, o eco dos sentimentos entre duas ou mais pessoas, desempenha um papel central na atribuição de significado e sentido de realização para uma vida humana - afeição recíproca, por assim dizer, até ao fim.

Não haja ilusões: as famílias em povos menos desenvolvidos são muitas vezes tudo, menos harmoniosas. Frequentemente apresentam maior desigualdade de poder entre homens e mulheres e entre jovens e velhos. Seus membros podem amar-se ou odiar-se, talvez as duas coisas ao mesmo tempo. Pode haver relações de ciúme e desprezo. Só uma coisa é rara nesse nível de desenvolvimento social, especialmente nos casos em que as mulheres, as mães, formam o núcleo integrador afetivo da família: não há neutralidade emocional no quadro da família extensa. De certa maneira, isso ajuda os moribundos. Despedem-se do mundo publicamente, num círculo de pessoas cuja maioria tem grande valor emocional para os moribundos, e para os quais estes têm o mesmo valor. Morrem menos higienicamente, mas não sós. Na unidade de cuidados intensivos de um hospital moderno, os moribundos podem ser tratados de acordo com o mais recente conhecimento biofísico especializado, mas muitas vezes de maneira neutra em termos de sentimentos. Morrem em total isolamento.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

No século V a.C. era proibido morrer em Delos





A pequena ilha de Delos situa-se aproximadamente no centro de um grupo de ilhas do Mar Egeu que na Antiguidade era conhecido por Cíclades, que em grego significa círculo, porque estas ilhas formam um círculo à volta de Delos, santuário de Apolo na Antiguidade Clássica, sendo considerada mesmo o berço desse deus, bem como de Ártemis. Foi também a sede da Liga de Delos, que congregava os aliados de Atenas contra Esparta, e onde primeiramente esteve guardado o tesouro da Liga. É Património Mundial da Humanidade pela Unesco desde 1990. Entre 900 a.C. e 100 d.C., a ilha de Delos foi o mais importante santuário pan-helénico, o mais importante lugar sagrado jónico no século VII a.C. 


As Cíclades

Várias medidas foram tomadas para "purificar" a ilha e torná-la adequada à devida adoração dos deuses. No século VI a.C., o tirano Peisistratus, da cidade-estado de Atenas, ordenou que todos os túmulos à volta do templo da ilha fossem abertos e os corpos removidos para locais longe do perímetro à volta dele. No século V a.C., o Oráculo de Delfos deu instruções para que a ilha de Delos fosse limpa de cadáveres e proibido o nascimento e a morte de qualquer um.

Em finais do século XIX arqueólogos franceses começaram as escavações e colocaram a céu aberto um amplo espaço onde existiu uma cidade completa, elegante, rica e influente. As ruínas revelaram uma série de pequenos templos dóricos e jónicos, mercados, ginásios, um teatro, praças e imponentes residências. As casas exibiam salas circundadas por colunas de mármore e mosaicos que resistiram ao tempo.  

A lei de "proibição de morrer" é ao mesmo tempo um tabu e um fenómeno político e social. O da ilha de Delos é o caso conhecido mais antigo. Nessa altura a razão era religiosa. Outros casos conhecidos, muitos deles são por motivos sanitários. Mas o tabu também tem sido aproveitado para colorir as reivindicações populares quando está em causa a ineficiência burocrática dos governantes, seja em caso de petições para um cemitério novo, seja para alargamento do existente por já não haver espaço para enterrar mais ninguém. 
Há relatos de “proibição de morrer” em vários locais do mundo, ilustrado pelo mapa que se segue. 




Muitas das histórias que se contam são apócrifas ou mitos urbanos, como por exemplo no Reino Unido a história de ser proibido a um plebeu morrer num palácio real, como o Palácio de Westminster, sob a alegação de que qualquer um que morre num palácio real tem tecnicamente direito a um funeral com honras de Estado. Caso diferente é na Noruega, uma crença popular errónea de ser ilegal morrer na cidade de Longyearbyen. Simplesmente não há opções para sepultamento lá, e os residentes em estado terminal são levados para Oslo, e aí passar os seus últimos dias. O problema foi despertado em 1918, aquando da pandemia da gripe. O terreno, devido ao permafrost, é impróprio porque aí os corpos não se decompõem. E, na altura da Gripe Espanhola, havia o receio de os corpos não se libertarem de estirpes de vírus ativos por muito tempo. 

Em Espanha, a morte foi proibida na cidade andaluz de Lanjarón. A vila, com 4.000 habitantes, deve permanecer sob esta lei até que o governo compre terras para um novo cemitério. El alcalde que emitiu o edital explica que a nova lei embaraçosa é a sua resposta, instando o governo a encontrar uma solução rápida para um problema duradouro. O edital tornou-se extremamente popular entre os moradores, que reagiram com humor, mesmo entre os opositores políticos do alcalde que emitiu a lei. 

No Brasil um prefeito protocolou um projeto de lei pública em 2005, para tornar ilegal a morte das pessoas a viver na cidade. Embora nenhuma punição específica tenha sido apresentada, o prefeito pretende atingir parentes de pessoas que morrem com multas e até mesmo condenações de prisão, se necessário, para obter mais espaço para lápides. A principal razão parece prender-se com o facto de os habitantes da cidade serem descuidados com a sua saúde. 

Desde que o cemitério foi inaugurado, em 1910, mais de 50.000 pessoas foram enterradas em 3.500 criptas e túmulos. Em novembro de 2005, o cemitério foi declarado esgotado e 20 residentes recém-falecidos foram forçados a compartilhar uma cripta, e vários outros foram enterrados nos corredores de passagem. O prefeito justificou que 89% da cidade é atravessada por rios subterrâneos que fornecem água que é vital para quase dois milhões de pessoas que vivem em São Paulo. E que a área restante é área protegida de selva tropical. O governo estadual concordou em ajudar a construir um novo cemitério vertical. Mas ainda nada foi feito.  

Em três assentamentos no sul da França foi emitida a "proibição de morrer". O presidente da câmara de Le Lavandou proibiu a morte em 2000, depois do planeamento para um novo cemitério ter sido recusado devido a preocupações ambientais. "Uma lei absurda para combater uma situação absurda". Em 2007, Cugnaux também proibiu a morte, por razões semelhantes, mas foi posteriormente concedida permissão para ampliar o cemitério local; inspirado no sucesso da cidade, Sarpourenx seguiu-lhe o exemplo, em 2008.

A ilha de Itsukushima, no Japão, é considerada um local sagrado na crença xintoísta, e é o local do Santuário de Itsukushima, também Património Mundial da UNESCO. Os sacerdotes do santuário tentaram manter a ilha livre da poluição da morte. Imediatamente após a Batalha de Miyajima, em 1555, a única batalha que ocorreu na ilha, o comandante vitorioso mandou remover para o continente todos os corpos caídos, e ordenou que todo o campo de batalha fosse limpo do sangue derramado, ao ponto de os edifícios serem limpos, e o solo, onde o sangue foi derramado, removido da ilha. Manter a pureza do Santuário de Itsukushima é tão importante que, desde 1878, foi emitida uma lei semelhante à do Oráculo de Delfos em Delos: o Santuário 
limpo de cadáveres e proibido o nascimento e a morte de qualquer um. Até hoje, as gestantes, próximo do tempo de dar à luz, são deslocadas para a capital. Assim como idosos de muita idade e doentes em estado terminal. Na ilha de Itsukushima ainda são proibidos os enterros e funerais.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

Gisberta


Passam hoje 15 anos que Gisberta morreu, espancada por um grupo de 14 jovens. Uma Mulher Trans que vivia na cidade do Porto, morreu, depois de ter sido agredida durante vários dias, afogada num poço de 15 metros, dentro de um prédio embargado, abandonado, em pleno centro da cidade do Porto.

Gisberta Salce Junior, uma imigrante brasileira a viver na cidade do Porto, era uma Mulher Trans. Havia emigrado do Brasil para França aos 18 anos, tinha 45 quando morreu. Mudou-se para Portugal, onde conseguiu um visto de residência. Gisberta já havia iniciado o seu tratamento hormonal e implantado silicone mamário. Para se manter, apresentava-se em bares e boates como transformista. Contraiu o vírus HIV e, com o tempo, a sua saúde foi-se degradando. Sem trabalho, acabou dentro de um edifício ainda em esqueleto, com a construção parada e abandonada. Em dezembro de 2005, um grupo de rapazes a fazer grafitis descobriram-na. Um deles, filho de uma prostituta que o deixou aos cuidados de uma instituição, e que era amiga de Gisberta, reconheceu-a e passou a visitá-la com frequência. Ela então se abriu e confidenciou a sua doença, o uso de drogas e as dificuldades que vinha enfrentando. Procurando ajudá-la, levavam comida e chegaram a cozinhar para ela no local.

É claro que, ironia à parte, tema para um outro ensaio, um dia a sua história chegou aos ouvidos dos colegas, que quiseram também conhecer Gisberta. E então a ironia da história humana começou a tecer a tal obra de misericórdia que o povo eufemisticamente reclama ser Deus a escrever direito por linhas tortas. Segundo consta no processo, disseram aos demais que conheciam um “homem” com “mamas” e que “parecia mesmo uma mulher”. Foi assim que, parafraseando a canção de Carlos do Carmo, um bando de 14 pardais à solta, ávidos por conhecer a Mulher Trans, chegaram-se a ela, mas já com outro espírito. 

A partir do dia 15 de fevereiro de 2006, passaram a se revezar em grupos para cometer múltiplos atos de violência contra a mulher: espancamentos e sevícias ao longo de três dias, humilhações inenarráveis. Entre os dias 21 e 22 de fevereiro os jovens voltaram ao local e encontraram-na em coma. Acreditando que estava morta, pensaram em formas de fazer desaparecer o corpo. Então atiraram-na para dentro de um poço do edifício, cheio de água. Ela estava inconsciente, mas viva. Morreu afogada.

Um dos estudantes confessou o crime a uma professora e o corpo foi descoberto no mesmo dia. O caso rapidamente entrou nos noticiários, Gisberta tratada no masculino. Apenas com a mobilização de associações LGBT a vítima ganhou um rosto e passou a ser tratada de forma mais humanizada – por vezes, ainda no masculino. A acusação dos jovens foi alterada de homicídio doloso para ofensas corporais qualificadas. O juiz chegou a dizer que o evento foi uma brincadeira de mau gosto de crianças, que fugiu ao controlo.

A intensa mobilização por parte de ativistas que, adotando Gisberta como símbolo da transfobia, conquistaram leis com efeito a partir de 2011. Nos anos que se seguiram começaram a surgir leis voltadas para a igualdade de género, com o objetivo de garantir a pessoas trans maior acesso à justiça, à educação e ao emprego. Além disso, foi aprovada a concessão de asilo a transexuais estrangeiros em risco de perseguição. Portugal transformou-se num dos países mais avançados do mundo no tratamento à igualdade de género. As leis criadas nos últimos 15 anos possibilitaram que um número grande de Mulheres Trans e Homens Trans conseguissem integrar-se na sociedade. 


Gisberta nasceu Gisberto, em São Paulo. Na infância já dava sinais de que estava num corpo que não correspondia à sua identidade de género. Após a morte do pai, confessou à família, ainda na adolescência, que gostaria de ser mulher. Aos 18 anos, com medo da crescente violência contra transexuais na capital paulista, optou por se mudar para a França. 

A ironia está num contrafactual mundo possível, em que Gisberta teria desaparecido sem deixar rasto, caso a realidade histórica não tivesse ido por outros caminhos, dando-nos estes factos. Assim, Gisberta passou para a História com um destaque inestimável para a causa LGBTI em Portugal, onde há um antes e um depois de Gisberta, não apenas em relação ao ordenamento jurídico, mas também em relação à consciência dos cidadãos face a esta grande problemática que é a identidade de género: pois foi transformada em peça de teatro; em documentário; e na canção Balada de Gisberta, composta pelo português Pedro Abrunhosa e que Maria Bethânia tão bem também interpretou. O seu corpo está enterrado em São Paulo. Mas a sua presença ainda é marcante em Portugal, onde se transformou numa bandeira para a igualdade de género e os direitos humanos. 


A Liberdade de Expressão e o campo da Metalinguagem


Muitas das personalidades que dentro e fora de Espanha apoiam Hasél, fazem-no em nome do direito à Liberdade de Expressão. Entre 2004 e 2020 foram condenadas 122 pessoas por incentivo ao terrorismo e seis por injúrias à coroa e às instituições do Estado espanhol. Em Portugal, mais de cem artistas e outros profissionais da Cultura assinaram um manifesto e uma petição pública de apelo à libertação de Pablo Hasél, e a exigir que o Governo português "se distancie da condenação do artista". Este manifesto foi divulgado na sexta-feira por uma "plataforma que exige a libertação do rapper catalão Pablo Hasél". Entre os signatários estão "cidadãos das mais diversas áreas profissionais e de intervenção cívica", entre os quais a rapper Capicua, o ator André Gago, os artistas plásticos Vihls, Bordalo II e Miguel Januário, os músicos Sérgio Godinho, Manuel João Vieira, Mitó Mendes, Tó Trips, Vitorino e Lena d'Água, e o realizador João Rui Guerra da Mata.

Metalinguagem é uma linguagem usada para estudar a linguagem como objeto de análise. Modelos formais sintáticos para descrição gramatical são um tipo de metalinguagem. De modo mais amplo, uma metalinguagem pode referir-se a qualquer terminologia ou linguagem usada para descrever uma linguagem em si mesma, uma discussão sobre o uso de uma linguagem.

Em 2012 o Ministério Público Federal do Brasil ajuizou uma ação civil pública contra a Editora Objetiva e o Instituto António Houaiss solicitando a imediata retirada de circulação, suspensão de tiragem, venda e distribuição das edições do Dissionário Houaiss sob a alegação de que a publicação é discriminatória e preconceituosa em relação à etnia cigana. A palavra cigano tem no dicionário como um de seus significados “que ou aquele que trapaceia; velhaco, burlador” e “que ou aquele que faz barganha, que é apegado ao dinheiro; agiota, sovina”. Estes termos são expressos para uso da palavra cigano de forma pejorativa, ou seja, de forma depreciativa.

O projeto do dicionário, elaborado pelo lexicógrafo brasileiro António Houaiss, iniciado em 1985, tinha a ambição de criar o mais completo dicionário de língua portuguesa já compilado. Dezasseis anos depois, o Dicionário Houaiss foi concluído, contando durante esse período com uma equipe de edição com mais de 150 especialistas brasileiros, portugueses, angolanos e timorenses. 
Lançado em setembro de 2001, logo foi eleito "o mais completo dicionário brasileiro" pela revista Época, considerado "imbatível" pela revista Veja e consagrado como o grande lançamento editorial de 2001 pelo Caderno B e pela Revista de Domingo, do Jornal do Brasil, assim como pelos jornais O Globo, Estado de Minas e Jornal da Tarde.
 
A pergunta é esta: Serão encontráveis, realmente, usos do termo cigano com esses significados que o público leitor é levado a aceitar como reais, a partir de seu registo em dicionários? Se não, é aí que estará o “politicamente incorreto”. Ora, estará equivocado o Ministério Público para retirar de circulação exemplares do Dicionário Houaiss, com a alegação de que a obra contém “referências preconceituosas” e “racistas” contra ciganos? Ou será que um dicionário apenas faz metalinguagem?

A responsabilidade sobre a conveniência ou a não conveniência, sobre a adequação ou a não adequação de determinado uso linguístico é exclusivamente do seu usuário, não de quem tem a tarefa de examinar os usos, seja para que finalidade for. Se o termo é usado regularmente com determinada aceção, a obra lexicográfica não tem nenhuma responsabilidade moral sobre o uso e não pode ser lançada ao índex do politicamente incorreto simplesmente porque fez o registo, o que é tarefa sua. O dicionário não a recomenda, não incita a uma adesão a atitudes preconceituosas, pelo contrário, escancara e esclarece os riscos de um uso preconceituoso que se faça por desconhecimento do real significado e do real peso retórico de determinados termos. Mesmo aceções que caíram ou estão caindo em desuso têm de ser registadas nos dicionários, ou então terá de ser buscada e instituída alguma outra ação legal que determine a incineração de todas as obras (mesmo as literárias) nas quais um dia se usou alguma palavra ou expressão com alguma aceção que se queira sepultar e remover da memória.

Mas se há discrepância entre as aceções registadas no dicionário e as aceções realmente verificadas no uso, ou seja, se uma determinada aceção registrada não corresponde aos usos – o que parece ser o caso: “agiota”, “sovina”, “velhaco” para cigano –, o problema é técnico-científico. Trata-se de um erro de competência da lexicografia, semelhante aos milhares de outros que os dicionários semelhantemente cometem no tratamento de termos de zonas bem distantes dessas zonas perigosas em que o “erro” técnico não veicula conotações eticamente políticas e étnicas.

Bem sabemos que não existe texto neutro quanto à ideologia, ou seja, quanto a “ideias, opiniões, valores, crenças etc., que expressam, explicam ou justificam as condições de vida e a relação entre as pessoas. 
Tudo o que cerca a enunciação é determinante, e tudo o que se envolve no enunciado é condicionante na produção de sentidos e de efeitos. O efeito de “incorreção política”, por exemplo, é fruto de todo um condicionamento de épocas, de mundos culturais e, especialmente, do lugar de inserção dos cidadãos. Por outro lado, faz parte da vida das sociedades todo tipo de desacertos, desvios de conduta e incorreções, e, desse modo, faz parte da vida em sociedade o comportamento politicamente incorreto. O facto de não fazer sentido exigirmos que os dicionários sejam expurgados de toda a linguagem que no seu uso real sejam politicamente incorretos, isso não significa que as enunciações e as expressões linguísticas em que se revela esse comportamento não mereçam repúdio social e sejam objeto de correção.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

A evolução humana

 

A mais antiga pintura alguma vez descoberta numa caverna data agora de há cerca de 45 mil anos e foi encontrada na Indonésia. A representação de um porco selvagem, desenhado em tamanho real, foi descoberta na caverna Leang Tedongnge, localizada num vale remoto na ilha de Celebes, que foi identificada em 2017 por uma equipa da Universidade de Griffith (Austrália).



A espécie humana é atualmente a única representante dos primatas antropoides do género Homo. Dentro da evolução na ordem dos primatas há um momento, há cerca de 14 milhões de anos, em que se dá uma bifurcação e uma família evolui separando-se da outra família de primatas genericamente chamada dos macacos. É a família dos hominídeos, que depois se vai diferenciando e novamente bifurcando em espécies das quais só 8 chegaram aos dias de hoje: 3 espécies de orangotango; 2 espécies de chimpanzé; 2 espécies de gorila; e 1 espécie humana [homo sapiens]. Estudos realizados com técnicas moleculares indicam que os chimpanzés, gorilas e humanos formam um clado, embora os orangotangos estejam um pouco mais distanciados filogeneticamente. 

A linhagem Homo teve início há +/- 3 milhões de anos com o australopitecos em África, o elemento que definitivamente diz adeus ao chimpanzé, a espécie hominídea não humana que está mais próxima da espécie humana. Da linhagem Homo evoluíram várias espécies desde o australopitecos. Atualmente só existe o homo sapiens sapiens, todas as outras estão extintas, entre as quais, o homo erectus e o homo neandertalensis, são as mais representativas. A tese dominante diz que o homo sapiens surgiu na África Oriental, no Vale do Rift, e migrou para fora de África há 70.000 anos. Esta é a posição dominante sobre a outra que defende que o homo sapiens evoluiu das extintas separadamente em mais que uma região geográfica, num tempo muito mais longo do que os meros 70.000 anos. 



Desde os australopitecos que a caraterística mais conspícua que nos separa dos chimpanzés é o bipedismo, a oponibilidade do polegar e o aumento do tamanho do cérebro. Os não bípedes que caminham usando as articulações dos dedos das mãos como apoio - gorilas e chimpanzés - divergiram da linhagem Homo há 7 milhões de anos. Admite-se que os primeiros bípedes evoluíram para os australopitecíneos que se consolidaram mais tarde no género Homo, numa época geológica em que ocorreram profundas alterações na paisagem na zona leste de África designada por Vale do Rift. O novo ambiente de savana e bosques resultantes da elevação do Vale do Rift deve ter exercido uma grande pressão evolutiva dando benefício à linhagem Homo pelas grandes vantagens que a libertação das mãos lhe conferiu para a luta pela sobrevivência através da caça. Ao invés do habitat anterior de floresta fechada, onde predominava a alimentação vegetal e frugívora, a savana trouxe uma outra realidade, que obrigou o Homo a adaptar-se à alimentação de proteína animal, alimentando-se inicialmente dos despojos alimentares de outros carnívoros, aproveitado sobretudo o tutano do osso de outros animais herbívoros deixados pelos predadores carnívoros, e mais tarde a caça por conta própria.

Ora, especula-se que o desenvolvimento abrupto do cérebro no Homo se deveu à passagem do tipo de alimentação vegetal para o tipo de alimentação omnívora. E assim a espécie humana acabou por desenvolver um cérebro muito maior que o de outros primatas - tipicamente 1.330 cm³ nos humanos modernos, quase três vezes o tamanho do cérebro de um chimpanzé ou gorila. Após um período de estase no australopithecus anamensis e ardipithecus, espécies que tinham cérebros menores, o padrão de encefalização começou com o homo habilis, cujo cérebro atingiu o volume de 600 cm³. Esta evolução continuou no homo erectus com cérebros entre 800 e 1.100 cm³, e atingiu o máximo nos neandertais com cérebros entre 1.200 e 1.900 cm³, maiores até mesmo que o cérebro dos modernos homo sapiens de 1.400 cm³.

No homo sapiens os lobos temporais, que contêm os centros de processamento da linguagem, e os lobos pré-frontais, relacionados com a tomada de decisões complexas e sentimentos sociais, são as áreas que mais evoluíram, e as mais destacadamente humanas. Ora, há cientistas que atribuem o desenvolvimento destas áreas só depois da descoberta do fogo, e o posterior cozimento das carnes, o que permitiu um melhor aproveitamento e digestão da proteína animal. Ou seja, de um processo que se tornou mais hostil à sobrevivência, aquando da sua deriva da floresta para a savana, acabou por resultar numa vantagem adaptativa traduzida em inteligência pela necessidade crescente de resolver problemas, e assim se complexificando a sociedade à medida que ia evoluindo. Alterações na morfologia do crânio, como mandíbulas menores e pontos de fixação dos músculos, forneceram mais espaço para o cérebro crescer.
E a oponibilidade do polegar - o contacto do polegar com a ponta dos outros dedos da mesma mão, também veio facilitar a força e a precisão do agarrar, o que proporcionou todas as habilidades de manipulação no fabrico de ferramentas. Várias outras mudanças também caracterizaram a evolução dos seres humanos, entre elas o privilégio da visão em detrimento do olfato; e o desenvolvimento de uma laringe descendente para se acomodar à última revolução filogenética da espécie humana que dá pelo nome de Linguagem falada.

Há 10.000 anos, no advento da agricultura que levou à Revolução Neolítica, os seres humanos viviam maioritariamente como caçadores coletores, em pequenos grupos nómadas. O acesso a grande quantidade de alimentos levou à formação de assentamentos humanos permanentes, à domesticação de animais e ao fabrico de ferramentas à base de metais. A agricultura incentivou o comércio e a cooperação. Mas também despertou outros lados da natureza humana, que perduram: a religião e a guerra. 

A religião é geralmente definida como um sistema de crenças sobre os códigos de sobrenatural, sagrado, ou divino, e códigos morais, práticas, valores, instituições e rituais associados a essa crença. No entanto, no decurso do seu desenvolvimento, a religião tem tomado diversas formas que variam de acordo com a cultura e a perspetiva individual. Alguns dos principais questionamentos religiosos incluem a crença noutra vida depois da morte desta (cosmogonia e escatologia). Embora o nível exato da religiosidade seja difícil de medir, a maioria das pessoas professa alguma variedade de crença: sobrenatural ou espiritual. Ainda estão em minoria aqueles seres humanos que não professam qualquer tipo de prática religiosa ou espiritual: ateus, céticos científicos, agnósticos ou simplesmente não-religiosos.

As guerras deram origem à criação de forças militares para a proteção das sociedades que se começaram a organizar nos primeiros embriões de Estados tal como os conhecemos hoje. Há cerca de 6.000 anos, os primeiros Estados desenvolveram-se nos vales dos maiores rios: Tigre, Eufrates, Indo, Nilo, Yangtzé. Os primeiros assentamentos humanos eram dependentes da proximidade da água e outros recursos naturais, tais como terras aráveis e animais herbívoros dóceis. 

Embora a interligação entre os seres humanos tenha estimulado o crescimento das ciências, das artes e da tecnologia, em suma as civilizações, ocorreram também confrontos culturais e destruição de civilizações. Atualmente o problema é outro: a civilização humana estar a destruir o ambiente e a ecologia. A tecnologia humana teve um efeito dramático sobre o ambiente. A atividade humana tem contribuído para a extinção de inúmeras espécies de seres vivos. Como atualmente os seres humanos raramente são predados, eles têm sido descritos como superpredadores. Através da urbanização e da poluição, os seres humanos tornaram-se nos principais responsáveis pelas alterações climáticas globais. A espécie humana é tida como a principal causadora da extinção em massa do Holoceno, que, se continuar ao ritmo atual, poderá acabar com metade de todas as espécies ao longo do próximo século. Hoje é possível determinar, por meio de análises genéticas, a linhagem geográfica de uma pessoa e o grau de ascendência. Estas análises podem identificar não apenas o histórico migratório dos ancestrais de uma população, mas também os casos de endogamia de grupo. 

As formas das coisas e dos seres vivos




As formas das espécies vivas na natureza tem sido objeto de estudo por parte de alguns filósofos para a construção de um argumento que faça sentido racionalmente sem que seja necessária qualquer prova empírica para o sustentar. Este é o argumento a que os filósofos chamam argumento do desígnio ou do desenho, ou do desenhador.

Mas antes disso, os filósofos ainda vão mais fundo perguntando de que forma se nos pinta o aspeto do mundo na aparência além da essência. O aspeto do mundo na aparência é aquilo que conhecemos pelos sentidos da visão, audição, olfato, gosto e tato. E a essência te a ver com as coisas em bruto, não filtradas pelos sentidos. Por outro lado, é no cérebro que se processam os dados dos sentidos para serem transformados em formas qualitativas: sons, cores, aromas, etc. Ou seja, a fenomenologia dos qualia. Mas como é que o cérebro faz isso, ninguém sabe. Mas uma coisa é certa: não é o cérebro sozinho que faz isso, mas sim numa parceria bidirecional assente em tês partes: 1) o fenómeno propriamente dito, o acontecimento ou objeto físico; o seu contacto com o respetivo órgão do sentido; e o cérebro.

Agora, como é que a Natureza realiza as várias formas de vida a partir do nada é outro problema. O problema filosófico reside no ceticismo em relação à explicação científica de raiz darwiniana, cuja teoria, não convincente, afirma que o desenho das espécies no que respeita à forma do corpo e aos mecanismos sofisticados dos vários órgãos necessários para a sua sustentação enquanto ser vivo, é um processo espontâneo ad hoc de design. A teoria de que o desenho que o nosso corpo apresenta com a imensa complexidade que vai dos genes ao funcionamento dos vários órgãos. Como o argumento não convence, no fim somos levados a cair no raciocínio de uma mente inteligente, um Criador, um Deus. 




Há um esquema prévio da estrutura dos nossos corpos codificados no nosso ADN. O que não bate a bota com a perdigota é a explicação darwinista que diz que há mutações más e mutações boas. E estas sendo transmitidas às gerações seguintes vão-se estabelecendo favoravelmente. E então, por mais sofisticado que seja um olho, um rim, um cérebro, resultam de uma longa cadeia de mutações aleatórias, mas vantajosas. O que não convence ninguém é como mutações ao acaso determinam uma estrutura coerentemente organizada para um determinado propósito, que no exemplo do olho é a visão das coisas no mundo com uma eficácia tal que tenha significado para a sobrevivência e persistência de um número imenso de espécies tão diversificadas em formas e feitios. Desde um peixe chaputa que vive no mar a mais de 1 km de profundidade até um Miguel Ângelo, pintor da Capela Cistina, ou escultor da Pietà. Mas ainda que acreditássemos nos darwinistas, ainda fica de fora a ordem cósmica, a música dos astros. Há uma escolha a fazer em relação a estas regularidades: Deus ou o Caos. Um facto bruto sem explicação. A simples existência bruta de regularidades, o fim de linha das explicações científicas.

Os céticos argumentam que é mais plausível encontrar razões psicológicas para as nossas crenças.

Esperança de vida


A Esperança de Vida à Nascença – é um indicador que, segundo os dados mais recentes do INE, se fixou nos 80,93 anos no período de 2017 a 2019. E a Esperança de Vida aos 65 anos - é o número médio de anos que uma pessoa ainda tem para viver ao fazer 65 anos. Entre 2017 e 2019 estava fixada nos 19,61 anos.

No número de mortes de 2020, em Portugal, publicado pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), há mais 12.220 do que a média dos cinco anos imediatamente anteriores. Do total de óbitos de 2020, 71,8% foram de cidadãos com 75 anos ou mais, sendo que quase 60% tinham 85 anos ou mais. Em relação à média de 2015-2019, morreram mais 10.206 pessoas com 75 anos ou mais, das quais 8.032 tinham 85 anos ou mais. A esperança de vida aos 65 anos vai diminuir já em 2020, e a pandemia pode marcar uma inversão da tendência crescente deste indicador que estávamos habituados a ver aumentar consecutivamente há vários anos. A esperança de vida aos 65 anos pode descer já no triénio 2018-2020. A tendência de aumento da esperança de vida que existia no passado, e que já era dada quase como certa, poderá não vir a acontecer, fruto da mortalidade extremamente acentuada nas idades superiores. Já a descida da esperança de vida aos 65 anos é certa. A Covid-19 vai inverter esta realidade, tanto no triénio 2018-2020 como no seguinte 2019-2021. Os peritos ainda não quantificam as quedas.

Até ao aparecimento deste coronavírus e desatar a matar gente como já não se via há muito tempo, tirando casos pontuais de tragédias regionais, as pessoas recusavam falar na morte, talvez para se defenderem da angústia niilista. As pessoas não gostavam de dizer, e ainda não gostam: morreu; preferem dizer partiu ou faleceu. Dizem que é para serem elegantes, bem-educadas; ou então fogem para a frente com gracinhas de gíria popular como: bateu-a-bota. Mas esta avalanche diária de mortes é impossível que não mude a perspetiva das pessoas perante ela. É um facto que as sociedades atuais tentam cada vez mais prolongar a vida, recorrendo a fórmulas que lhes permitam não envelhecer, ou então tentarem adiar o mais possível para uma bonita idade centenária.

"É preciso aprender a morrer, reaprender a viver, a fim de melhor saber morrer". Palavras de Freud noutros tempos em que se lidava com a morte de outra maneira. A partir do momento em que um risco grave ameaça um membro da família, os familiares querem privá-lo da informação, escondendo o seu verdadeiro estado de saúde. Mas com esta infeção, quando dá sintomas, não há como fugir ao conhecimento da verdade, que é estar infetado e poder morrer. É difícil enganar um velho com Covid, a menos que queira ser enganado, ou nos engane ao simular estar enganado.


Heidegger disse que o ser humano é um ser-para-a-morte. Mantém a angústia a fim de procurar nela a verdade da vida e da morte. Para Heidegger, a angústia é a nossa experiência do Nada, revelando a estrutura fundamental da morte na existência humana; isto é, na antecipação da morte, experiencia-se a existência como finitude. A morte é a estrutura da vida humana, que é ser-para-a-morte. Assim, a angústia, e, por consequência, a própria morte, é o fundamento mais certo da individualidade. Essa inadaptação é o que se chama o ser-para-a-morte: a vida autêntica é a que, a todo o instante, se sabe condenada à morte e se aceita, corajosa e honestamente.

Trata-se de estar "livre para a morte", aceitá-la como um acontecimento de liberdade. É aceitando a morte que aceitamos a vida como ela é, na sua totalidade, e não o contrário. A nossa existência integra a morte desde o início. Sendo a morte inevitável, para que servem as afirmações religiosas de imortalidade senão para mergulhar um pouco mais na angústia o homem que não pode acreditar nessas promessas? Esta questão é colocada por Sartre, discípulo de Heidegger nesta matéria, para quem a morte é um absurdo e algo exterior, um facto que não se diferencia do nascimento.

O facto é que, quem recusa ou não admite a possibilidade de apenas só ter uma vida, de desaparecer, de Ser e Nada, não aguenta a representação da ideia de morte. Estamos perante a relação do homem com o seu próprio corpo e a imagem de uma horrenda degradação, de um desgaste funcional, substituindo o "ser-para-a-vida"

Antero de Quental, poeta para quem a ideia de morte se assumia numa dupla face, pessimista e negativa, mas, também, como aspiração positiva, renovadora e libertadora, suicidou-se. Falar da morte é sempre um desafio ao real, uma tentativa para objetivar o Nada, ou seja, fazê-lo existir pela negaçãoIsto é: só se pode falar da Morte por representações, por sinais e signos que a representam ou que tentam representar a imagem da Morte que os povos foram criando. As culturas são diversas, mas a Morte é igual em toda a parte: uma libertação.

Hedonistas epicuristas e não-epicuristas




Nas chamadas conversas de café, a palavra hedonismo é utilizada com o significado de inclinação para os prazeres da carne sem preconceitos morais. Ora essa conceção está muito longe do hedonismo epicurista, porque Epicuro, o primeiro grande teórico do hedonismo, que associou essa ideia à felicidade (eudaimonia), compreendeu que prazer e felicidade não eram a mesma coisa. Eudaimonia é um termo grego que literalmente significa: "estado do ser habitado por um bom daemon (génio)". A sua tradução mais frequente, embora haja outras como um estado de plenitude do ser, é felicidade.

E esta sentença fez-me viajar de novo na memória. Quando eu era pequeno, no verão depois de jantar (21 horas mais coisa menos coisa), deitava-me numa pedra de granito de papo para o ar e punha-me a olhar para as estrelas, tentando decifrar a Ursa Maior, a Ursa Menor, a Cassiopeia e Orion. às tantas as costas começavam-me a doer, mas eu não me importava, porque para além das estrelas, ouvia o murmúrio do mar, que saía de dentro da concha de um búzio que encostava ao ouvido, um brinde extra que eu deslocava de um aparador da sala de jantar da minha avó.

Por estes dias da Covid, depois de um bacalhau magnífico regado com um alentejano modesto e uma sobremesa contida, recolhi ao quarto e liguei a televisão. Num canal qualquer estava a passar um anúncio da UNICEF a alertar-nos que cerca de 400 mil crianças estão em risco de morrer de fome. Crianças e mais crianças a morrerem de fome e eu "que diacho, haverá também velhos a morrer assim?" Eu que me considero um velho, a desculpar-me do bacalhau. Mudo de canal e está um especialista em epidemiologia a ser entrevistado e a dizer que praticamente, os mortos da Covid são quase todos velhos com mais de 80 anos. E sigo para outro canal: um velho a ter alta de um hospital após internamento por Covid, e o stafe a elogiá-lo, a felicitá-lo, por ter vencido o bicho. E uma enfermeira dizendo que ele ainda estava ali para viver por muitos anos, e ele a abanar com a cabeça a dizer que não queria.




No meio de tanta notícia sobre os números da pandemia Covid, de tanto depoimento científico, e de tanto comentário político opinativo, veio-me à memória o início dos anos 1980. Estou a lembrar-me de Freddie Mercury e António Variações que morreram de SIDA, a doença provocada pelo vírus HIV, e eles ainda na pujança da vida. Dois músicos ainda hoje muito adorados por quem gosta de música e não só. 

Eram os anos 80 do século passado assolado por uma epidemia que se transmitia durante o contacto amoroso e que, de início, lavrava sobretudo entre os homossexuais. Os fanáticos religiosos não demoraram a vir dizer que se tratava de um castigo divino. A resposta também não se fez esperar, de início levantada nos meios artísticos, mas que depois se estendeu a "gente de bem".

Prazer e felicidade nem sempre coincidem. Às vezes o prazer traz mais infelicidade do que felicidade. Epicuro sabia muito bem que era assim, uma vez que recomendava que fôssemos prudentes quanto aos prazeres da carne, ainda que essa prudência nos pudesse dar um travo melancólico. A noção fundamental de hedonismo pode ser a ausência de sofrimento. Estamos felizes enquanto conseguimos manter longe de nós o sofrimento para além da dor. Aquele velho, que na hora da despedida do hospital rumo a casa de uma filha, disse que não queria mais, talvez nunca tenha ouvido falar de Epicuro, mas cá para mim eu pensei: "ora aqui está um verdadeiro hedonista epicurista".


Barcelona: Independentistas + Pablo Hasél




Centenas de pessoas saíram à rua para protestar contra a detenção de Pablo Hasél, marcadas pela violência e confrontos com os agentes da autoridade. 
Nos diferentes locais houve cargas policiais para tentar conter os manifestantes, que entoaram 'slogans' como “liberdade Pablo Hasel” e “os Bourbons são ladrões”. Empunharam também faixas com a frase “morte ao estado fascista”, reproduzindo a declaração de Hasél no momento em que foi detido. Os protestos estenderam-se a outras cidades catalãs e aconteceram noutras partes de Espanha. 

Uma das manifestações, de cerca de um milhar, começou de forma pacífica e decorreu até às portas do centro Penitenciário Ponent, em Lleida na Catalunha, onde está detido o rapper. Foram cantadas músicas dele e os distúrbios começaram pouco depois. Quando os manifestantes se aproximaram da prisão, alguns dos presos inclinaram-se para fora das janelas para gritar “liberdade de expressão", enquanto as pessoas que estavam na manifestação gritavam slogans a favor da libertação de  
Pablo Hasél. Os manifestantes ergueram barricadas com caixotes de lixo que foram incendiados perto da prisão. 

O historial do rapper com a justiça é já antigo, com recursos e penas suspensas pelo meio. Desde o início de 2010 que é acusado da prática de crimes, sendo que em 2014 foi mesmo condenado pela prática de crime de glorificação de terrorismo, até por músicas escritas com elogios a grupos terroristas, como a ETA ou o GRAPO. Mas é a sentença relativa a tweets publicados, entre outros sobre a monarquia e o rei emérito Juan Carlos I, que está em causa- “Parasitas”, “mafiosos”, “ladrões”, “monarquia mafiosa e medieval”, “gangue criminoso”: estes foram adjetivos utilizados pelo rapper que a justiça espanhola condenou em 2018. 
São frases e versos de canções com estas que justificam a mais recente condenação a nove meses de prisão, a que acresce o pagamento de uma multa de 30 mil euros:

Frases:
  • El mafioso de mierda del Rey dando lecciones desde un palacio
  • Guardia Civil torturando o disparando a emigrantes
  • Los parásitos de los Borbones siguen de trapis con los decapitadores de los homosexuales
  • Muchos temporeros durmiendo al raso están en peores condiciones que Ortega Lara y sin haber sido carceleros torturadores
Letras de canções: 
  • Me cago en la marca España explotadora y casposa
  • Si Froilán se disparó en el pie siendo menor de edad igual ahora que es mayor de edad va a disparar a toda la Familia Real
  • Quienes manejan los hilos merecen mil kilos de amonal
  • Es un error no escuchar lo que canto, como Terra Lliure dejando vivo a Losantos
  • No me da pena tu tiro en la nuca, ‘pepero’. Me da pena el que muere en una patera. No me da pena tu tiro en la nuca, ‘socialisto’. Me da pena el que muere en un andamio
  • ¡Merece que explote el coche de Patxi López! 
  • Siempre hay algún indigente despierto con quien comentar que se debe matar a Aznar
  • Mi hermano entra en la sede del PP gritando ¡Gora ETA! A mí no me venden el cuento de quiénes son los malos, sólo pienso en matarlos
  • Pienso en balas que nucas de jueces nazis alcancen
  • ¡Que alguien clave un piolet en la cabeza a José Bono!
  • Voy a decir como Corina: guillotina
  • Hijos de Franco condenando por ser franco
  • Pensiones más baratas que una hora de familia real
Hasél foi convidado a entregar-se voluntariamente à prisão mas recusou. O seu último tweet é um comunicado em que já avisava que não iria de livre vontade cumprir uma pena “tão injusta”. O prazo terminou na sexta-feira e foi dada ordem de prisão. Pablo tem o apoio de mais de 200 artistas, entre eles Pedro Almodóvar, Joan Manuel Serrat, Javier Bardem, Alba Flores, Fernando Trueba ou Vetusta Morla, que assinaram um manifesto no qual exigem a libertação do rapper.

Contextualizemos:

No dia 14 de fevereiro os partidos independentistas venceram as eleições na Catalunha, tendo conseguido a maioria no parlamento. A Esquerda Republicana da Catalunha (ERC) e o Juntos pela Catalunha conseguem 65 lugares num parlamento de 135 assentos. Mas a grande vitória da noite vai para o Partido Socialista da Catalunha, liderado por Salvador Illa, que alcança o maior número de votos e o mesmo número de deputados (33) que a Esquerda Republicana da Catalunha e mais um que o Juntos pela Catalunha. O Podemos, através do seu referente local Catalunha em Comum, entra no parlamento catalão com 8 deputados ultrapassando o Partido Popular que não vai além de três deputados. A Candidatura de Unidade Popular alcança nove lugares. O Ciudadanos tem o maior trambolhão, perdendo 30 lugares no parlamento relativamente à legislatura anterior. O partido passa de 36 para 6 deputados. A entrada mais espetacular no parlamento catalão é para a extrema-direita do Vox, que alcança 11 deputados. Tudo somado, os independentistas têm maioria absoluta e poderão, se chegarem a entendimento, formar um governo que promete pôr à prova o frágil executivo de Madrid.

No dia 16 de fevereiro os manifestantes vieram para a rua contestar a prisão de Pablo Hasél. No dia 12 de fevereiro Hasél havia comentado em sua conta do Twitter o prazo para que se entregasse: “Eles me prenderam de cabeça erguida por não ter cedido ao seu terror, por ter contribuído com o meu grão de areia para o que mencionei. Todos nós podemos fazer isso", escreveu em sua conta. E a Amnistita Internacional na Espanha publicava no Twitter que Pablo Hasél ir para a prisão era injusto: “Não vamos parar até que sejam revogados os crimes do Código Penal que limitam a expressão artística. Casos como este não podem ser repetidos". Já a Suprema Corte da Espanha disse em nota à imprensa que a liberdade de expressão tem os seus limites e é condicionada por outros direitos e exigências constitucionais.

As eleições do dia 14 de fevereiro não eram sobre a independência mas sobre a hegemonia dentro dos dois blocos políticos, o independentista e o que recusa a secessão. O principal confronto era protagonizado pela Esquerda Republicana da Catalunha (ERC), que visava ultrapassar a coligação Juntos pela Catalunha (JxCat), inspirada pelo antigo presidente catalão, Carles Puigdemont. A ERC venceu tangencialmente. No outro campo, o Partido dos Socialistas da Catalunha (PSC) marcou pontos: foi o mais votado e conquistou o mesmo número de mandatos que a ERC. Nestes termos, o candidato “republicano”, Pere Aragonès, deverá assumir a presidência da Generalitat e o PSC a liderança da oposição. Ambos defendem o diálogo com Madrid.

Pela primeira vez, a soma dos independentistas passou o limiar simbólico dos 50%, mas o facto tem pouco relevo, dada a maciça abstenção. A Catalunha continua partida ao meio. Estas eleições poderão ter efeitos nacionais. A derrocada do Partido Popular (PP), que há dez anos era a terceira força política catalã e se vê reduzido a três deputados, criará problemas à liderança de Pablo Casado pois continua a hemorragia de eleitores para o Vox. Entre nacionalistas, prossegue a luta histórica que opõe a ERC, de Oriol Junqueras e Pere Aragonès, aos herdeiros da antiga Convergência, de Jordi Pujol. São duas famílias irreconciliáveis.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

Como assim, Ensaio?


Virgínia Woolf observou, sobre Montaigne, que o autor dos Ensaios não é de modo algum explícito ao apresentar os seus próprios textos. Ela observa: “Estes ensaios são uma tentativa de comunicar uma alma. A esse respeito ele é explícito. Não é fama o que ele quer; nem está interessado em vir a ser citado no futuro; ele não está erguendo estátua na praça pública; ele só quer comunicar uma alma.” E mais adiante: “Compartilhar é a nossa tarefa; mergulhar corajosamente e trazer à tona os mais doentios pensamentos; não conciliar nunca; não fingir nada; se somos ignorantes, proclamá-lo".

Noutro texto, a mesma Virgínia Woolf apresenta um ensaio para o definir como ensaio. Depois de afirmar que a forma do ensaio é muito variável, e que a própria origem deste género literário é muito discutível, observa: “O princípio que o controla é simplesmente a necessidade de dar prazer; o desejo que nos leva a ele, quando o tiramos de sua concha, é simplesmente ter prazer”. No entanto, considera ser difícil atingir tal qualidade: “Um romance tem enredo, um poema rima; mas que arte pode o ensaísta usar nestes pequenos textos de prosa para manter-nos despertos e fixar-nos num transe que não é de descanso, mas antes de intensificação da vida. Num transe, mas com todas as faculdades alerta sob o sol do prazer?”

Ensaio, um dos mais misteriosos da tradição literária. Começa pela aparente aporia de que os caminhos para definir ensaio são invariavelmente ensaísticos, ou no mínimo aparentados ao ensaio. E todos eles tomam como ponto de partida Montaigne, o pai do uso moderno do termo, o pai do sentido moderno do termo.

Comecemos por um ponto preciso: a sensação de que o ensaísta parece, por escrito, dotado de uma integridade totalmente peculiar, considerado o âmbito literário. Sua voz (escrita) funde a voz do cidadão que leva o seu nome com a do autor/artista que também (mas nem sempre) leva seu nome. Convergem em sua existência o homem e o autor, indissociavelmente. Isso não se explica apenas por não ser o ensaio um género deliberadamente ficcional. Tal traço está configurado assim desde Montaigne. Dele disse Leigh Hunt, ensaísta inglês do período de ouro da imprensa ensaística, que viveu entre 1784 e 1859: “Ele foi o primeiro homem a ter coragem de dizer como autor o que sentiu como homem”. Coragem de dizer, com a voz de autor, isto é, com a forma da arte literária, o que sentiu como homem, como cidadão real, que não tem voz literária. O que nos leva a uma derivação próxima, de que o ensaio funciona como uma espécie de construção que se urde com a matéria-prima do autoconhecimento. Mais radicalmente ainda: o ensaísta escreve para si mesmo, porque é talvez o primeiro e, para seu desconsolo, talvez o único interlocutor válido de sua autodescoberta. Vale lembrar aqui a nota do autor que abre o Livro I dos Ensaios: “Eis aqui, leitor, um livro de boa-fé”. Adverte-o ele de início, que só o escreve para si mesmo, e alguns íntimos, sem se preocupar com o interesse que poderia ter para o outro, nem pensar na posteridade. “Tão ambiciosos objetivos estão acima de minhas forças. (...) Se houvesse almejado os favores do mundo, ter-me-ia enfeitado e me apresentaria sob uma forma mais cuidada, de modo a produzir melhor efeito.”

Ensaio é mais uma atitude mental do que propriamente um género literário. Provém de uma inteligência que se examina e se expõe por escrito, em texto organizado livremente. Montaigne, para dar vazão ao seu ímpeto, ao seu modo de pensar, teve de enfrentar o limite conhecido, forjando um texto híbrido de reflexão moral, divagação, conselhos, exibicionismo, erudição clássica e algo mais. Tão surpreendente é essa modalidade escrita que dá margem a especulações curiosas, como a de Daniel Boorstin, que, considerando a conhecida grande amizade de Montaigne com Étienne de la Boétie, subitamente interrompida com a morte prematura deste, Montaigne, considerando a falta do amigo, procurou um meio que substituísse aquelas conversas com o melhor amigo. 
Um de seus ensaios mais famosos, “Da amizade”, dedica várias páginas a uma saudade, do desaparecido amigo Etienne de la Boétie, para meditar sobre o elevado sentimento inscrito no título. Mas o começo do texto não sugere o sublime que a sequência apresenta, nem a consistência que o final impõe ao leitor. 

Montaigne diz que ele próprio é a matéria do seu livro, assinalando a característica de autoexame do ensaio, história de um pensamento que se procura. Os seus ensaios são uma tentativa de comunicar uma alma. Não é a fama o que almeja, nem a possibilidade de vir a ser citado no futuro. Comunicação é saúde; comunicação é verdade; comunicação é felicidade. Compartilhar é o nosso dever; mergulhar fundo e trazer à tona aqueles pensamentos escondidos, não escamotear nada; não fingir nada; se somos ignorantes, dizê-lo; se amamos nossos amigos, fazê-los saber isso.

Montaigne usou o ensaio como um meio de explorar as suas ideias a respeito da experiência humana, e seus ensaios são, num certo sentido, um meio de pensar e testar coisas no próprio ato de escrever. Daí que o ensaio é uma forma de prosa essencialmente itinerante e fragmentária, com uma linguagem expositiva não linear, sinuosa, ou, noutro sentido, de linguagem que acompanha simultaneamente vários tópicos em exame. Em função de tais traços, o género vive numa espécie de limbo: por um lado, o ensaio é certamente reconhecido como literatura; por outro, não se sabe exatamente em que canto do reino literário ele vive ou deve viver, ao redor do núcleo dos três géneros característicos apontados desde Aristóteles: drama, lírica e épica, em parceria com a biografia, o diálogo, o aforismo, a epistolografia, a história e outros. 

Em alguma parte de seus Ensaios, Montaigne declara que escreve para almas bem nascidas, que por elas deseja ser lido, com elas deseja entrar em comunicação. O que quereria dizer, exatamente, “almas bem nascidas”? Vejamos: não se trata de pessoas bem nascidas; não se trata de corpos bem nascidos; trata-se de almas, aqui; isto é, trata-se de um valor humano que pode aparecer num nobre ou num plebeu, num ambiente rico ou num pobre. Por outro lado, pode-se deduzir que, ao eleger tais almas como interlocução, Montaigne tenha varrido de seu horizonte as demais almas, todas as almas que por qualquer motivo não sejam bem nascidas. Com estas, nada, nenhuma preocupação. E de facto vemos que, desde a abertura dos Ensaios, ele mantém uma atitude de franca despreocupação para com estas, mantendo ao contrário sua atenção para as subtilezas que podem e devem ser invocadas e postas em análise para a interlocução com as outras, as almas bem nascidas. “É melhor que eu ofenda alguém uma vez do que ser aborrecido diariamente”, diz ele, numa demonstração de que há coisas bem mais importantes do que atender a expectativas alheias triviais. “Aliás, impus-me a obrigação de ousar dizer tudo o que ouso fazer, e lamento até que todo pensamento não seja passível de exteriorização”, afirma ele, num contexto em que percebe: “Estou certo de que entre os que se escandalizam com a licença de meus escritos muito poucos poderiam vangloriar-se de não se escandalizar com seus próprios pensamentos”. 

Porque terá Montaigne chamado “ensaios” aos seus escritos? Não falemos de Leonardo da Vinci, de Miguel Ângelo, de Maquiavel, de Rabelais, de Erasmo, de Lutero, dos variados homens que costuraram, no miúdo da vida ou no graúdo da arte, os inícios da Modernidade, época que é bem mais que um ponto na sucessão cronológica do Tempo. O ensaio é um irmão, um primo espiritual da ciência moderna, que nasce da experimentação, do risco, da ousadia. Mas falemos de Camões – Eis aqui as novas partes do Oriente / Que vós outros agora ao mundo dais; Garcia de Resende – Este mundo tam mudado; Francisco Sanches – Foi descoberto um novo mundo, e novas cousas numa nova Espanha ou Índias Ocidentais e nas Orientais; Bartolomé de las Casas – El descubrimiento deste nuevo indiano mundo; Pero Vaz de Caminha – ... a nova do achamento desta vossa terra nova; Garcia de Resende – Outro mundo novo vimos / Per nossa gente se achar; Pedro Nunes – Descobriram [os portugueses] novas ilhas, novas terras, novos mares, novos povos; e o que mais é: novo céu e novas estrelas.

Consta que em 1540, em Toulouse, cidade natal da mãe, ele teria tomado conhecimento de uns jogos florais de poesia. Acontece que se verificou um empate na atribuição do primeiro prémio. Então foi proposto que os concorrentes ensaiassem um último verso. Bem, seja como for, Montaigne viveu tempos interessantes naquela segunda metade do século XVI (1533-1592). E ele naturalmente era um indivíduo dotado, naquele universo social, entre a alta burguesia e a aristocracia, frequentado pela família burguesa aristocratizada. Homem político que fez questão de permanecer descolado das demandas imediatas de seu tempo e de seu lugar, a ponto de poder enxergar aquilo que seus contemporâneos estavam impedidos de ver, por convenção ou conveniência.

A relativa surpresa da reabilitação do universo clássico greco-romano soterrado por séculos de hegemonia cristã, aliás católica, na Europa. As invenções, os altos feitos das artes, as novas rotas para o Oriente inauguradas pelos Portugueses. A descoberta de um Mundo Novo a Ocidente pelos Espanhóis. Ainda assim, teremos um quadro precaríssimo do volume e da qualidade das novidades que se oferecem ao observador atento, como foi Montaigne, dando conta do tamanho da novidade e das sensações assustadoras que gerou. Mas, ante uma alma comum, isso se há de executar com brandura e moderação, porquanto uma tensão contínua a enlouqueceria: 
«Em minha juventude tinha necessidade de muito raciocínio e de advertências para seguir o caminho do dever, pois a saúde e o bem-estar não se prestam muito, ao que dizem, aos argumentos sérios e sensatos. Hoje a situação é diferente; as misérias da velhice advertem-me o bastante, tornam-me avisado e sereno. Da alegria excessiva passei à austeridade, o que é bem aborrecido; eis por que me entrego hoje, de quando em quando, a um certo desregramento, deixando o espírito divertir-se com fantasias de outra idade em que repousam. Ora, quero permanecer senhor de mim mesmo em quaisquer circunstâncias; a sabedoria também tem seus excessos e tanto quanto a loucura precisa ser moderada. Por isso, receoso de que, com seus excessos, venha a prudência a ressequir-me, a esgotar-me e a perturbar o meu equilíbrio, nos momentos em que o sofrimento não me persegue, “de medo que minha alma se prenda demasiado às suas dores”, desvio os olhos do céu borrascoso e nublado que, graças a Deus, encaro sem pavor mas não sem esforço. E eis-me comprazendo-me na lembrança das loucuras da mocidade, “o espírito, saudoso do que perdeu, volta-se inteiramente para o passado”. Que a criança olhe para a frente e o ancião para trás. Não será esse o significado da dupla face de Jano? Iria de bom grado buscar no fim do mundo um bom ano de verdadeira tranquilidade e alegria, eu que só tenho como objetivo viver de bom humor. Resolvi igualmente escrever esta obra em minha província selvagem, onde ninguém me pode ajudar ou corrigir, onde só frequento pessoas que não entendem sequer o latim de seu padre-nosso e menos ainda o francês. Escrito algures, fora talvez melhor, mas não tão meu, e seu objetivo principal, bem como seu mérito, está em ser a minha imagem exata. Só corrijo em meus textos os enganos, jamais os defeitos de minha personalidade. Pois não é assim mesmo que falo habitualmente? Não me mostro tal qual sou? Está certo, então. Cheguei ao que queria, pois todos me reconhecem no que escrevo.»
A tradição clássica, como se percebe, é trazida para o centro da arena de uma reflexão pessoal, de uma confissão. Não há reverência, não há deslumbramento. Os pensadores e escritores do passado são como companhia da alma que se está expondo aqui, porque também eles refletiram sobre a matéria-prima da vida. Reconhecendo que o seu texto, como produto, pode não ser bem recebido, ou pode ser em muitos sentidos incompreendido, Montaigne suspeita que talvez venha a ser censurado, por causa da linguagem. Mudança de paradigma, em suma, na passagem do mundo medieval para o moderno, da filosofia escolástica para a filosofia humanista. O ataque ao jargão escolástico fazia parte de uma crítica mais geral à cultura da Idade Média, a época da qual os humanistas acreditavam estar surgindo e contra a qual se definiam. A preocupação humanista com a elegância da linguagem, a preocupação empirista pelas coisas e não pelas palavras em si e uma certa desconfiança, senão um desprezo, pelos profissionais que se valiam do jargão (filosófico, mais que outros). Os humanistas, a exemplo do inventor do ensaio, eram gente elegante, amadora, que escrevia para o autoconhecimento e não por pedantismo. 
A qualidade essencial do ensaio é a persuasão, de tal modo que em sua forma pura, ele é um argumento; outra, derivada da primeira, a de que, sendo o ensaio um texto ocupado com ideias fundamentalmente endereçadas de um autor para um leitor, sua natureza seria primariamente incluída no campo dos escritos didáticos, expositivos, críticos. Viria daqui uma dupla consistência: o ensaio seria naturalmente uma forma de conhecimento, pelo argumento, e uma forma de arte, pelo estilo. 

Virginia Woolf, ao considerar a singularidade da obra de Montaigne, foi categórica: “Mas este falar de si mesmo, seguindo as próprias divagações e descrevendo todo o mapa, o peso, a cor e a circunferência da alma em sua confusão, sua variedade, sua imperfeição, esta arte pertenceu apenas a um homem: Montaigne”. O que pode ser um exagero, mas está longe de ser errado. Montaigne fundou um novo modo de escrita, a partir de sua vontade e embasado num certo património. De modo semelhante, é a ideia de Jorge Luis Borges quando comenta a relação de Kafka com os seus precursores: Montaigne não provém de uma tradição, mas funda-a, conferindo sentido, por sua plenitude literária, a algumas tentativas anteriores, quem sabe desde que alguns gregos inteligentes e sensíveis andaram escrevendo depoimentos e aforismos, tentativas que nele convergem e alcançam a sua melhor forma expressiva.

A trilha do ensaio veio a florescer de imediato noutro país, que não a França: a Inglaterra. Os Essais atravessaram velozmente a Mancha, que as obras de Shakespeare, pouco posteriores, levariam mais de um século a percorrer em sentido contrário, só sendo introduzidas na França por Voltaire, em 1731. De Francis Bacon (1561-1626) em diante (aí está o já mencionado Locke (1632-1704), veremos configurada uma autêntica tradição, específica, em terras inglesas, onde se junta John Dryden (1631-1700); Samuel Johnson (1709-1784); Samuel Taylor Coleridg (1772-1834). A partir de Montaigne o género ensaístico firmou-se na Inglaterra, adquirindo novas configurações, novos aspetos, novos compromissos. Diz-se que Francis Bacon teve acesso aos Ensaios de Montaigne por intermédio de seu irmão, Anthony Bacon, que conheceu o escritor francês. Bacon, ao tomar contacto com a obra de Montaigne, parece ter sido decisivo para a sua própria trajetória. Seus Ensaios são publicados pela primeira vez em 1597, e os textos sofrem sucessivas reformulações e adaptações, a gosto de uma ideia ensaística de exercício, escritos em inglês, ao contrário de suas obras científicas que foram escritas em latim para sobreviver ao tempo ... segundo ele.

Que os ensaios de Bacon tenham traços perfeitamente semelhantes aos do Ensaio de Montaigne, parece fora de dúvida. Uma obra como Novum Organum, inscrita nos domínios da filosofia, é, do ponto de vista do estilo, nada mais que uma sequência de aforismos sobre os assuntos de que se ocupa. Mas há espaço para observações como a do Aforismo XXXIII: “A glória dos antigos, como a dos demais, permanece intacta, pois não se estabelecem comparações entre engenhos e capacidades, mas de métodos. Não nos colocamos no papel de juiz, mas de guia”. Dois ensaios exemplares: “Da amizade” e “Sobre jardins”, que já pelos títulos insinuam um certo tipo de reflexão sobre temas banais. 
Qualquer tema serve, uma simples mosca pode ser o pretexto: "E Deus queira que o que estou ventilando agora não provenha de uma fonte estranha. Pouco importa o começo, vou encadeando ideias umas nas outras."

Gore Vidal, o ensaísta e romancista norte-americano, observou numa entrevista: “Suspeito que a única forma de prosa que vai fisgar o leitor do futuro é o ensaio, em que uma voz atravessa séculos e mundos até ao ouvido de outra pessoa. Ao fim, Montaigne e não Cervantes”. Mais ou menos na mesma posição está Bioy Casares. Em uma reflexão plena de sabedoria, dirá, apontando o interesse continuado do género: “Um dia sentimos que não há outra esperança nas letras do que o dossiê naturalista, ou a comédia de enredo, ou o sadismo, ou o adultério, ou os sonhos, ou a viagem alegórica, ou a novela pastoril, ou a alegação social, ou os enigmas policiais, ou a picaresca; outro dia nos perguntamos como pôde alguém interessar-se em tão desoladas loucuras. No meio desta mudança, historicamente justificável, mas essencialmente arbitrária, há alguns géneros perpétuos. Porque não depende de formas e porque se parece ao fluir normal do pensamento, o ensaio é, talvez, um deles”. Género perpétuo, para Bioy Casares, e género de futuro, para Gore Vidal. Talvez seja este o caminho para compreender, preliminarmente, a vigência do ensaio. Mais que noutros momentos do passado ocidental, o género ensaio ganha fôlego, se não como forma mais ou menos fixa (como na crónica), como atitude mental. A prosa de Clarice Lispector, bem como toda a produção de Jorge Luis Borges vem sendo lida segundo o critério do ensaio. A linha evolutiva do ensaio, gravada no cilindro rotativo dos séculos, consiste precisamente no trânsito gradual do pessoalismo de Montaigne (ensaios de) para o impessoalismo de (ensaios sobre).