quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Quem Salvar?


Neste momento já está a decorrer a aplicação da vacina contra a covid-19 na população, um pouco pelo mundo onde nas últimas 24 horas ficaram infetadas mais cerca de 752.000 pessoas, e morreram devido à covid-19 quase 15.000. Como ainda não há vacinas para todos, e mesmo se houvesse seria impraticável ser vacinada toda a gente num único dia, há que estabelecer critérios de prioridade. E como em tudo na vida humana, nestas questões nunca há unanimidade. Neste caso específico da pandemia, em que os mais vulneráveis são os mais idosos, parece sensato dar prioridade aos mais idosos. Mas há quem introduza um raciocínio diferente, semelhante ao raciocínio utilizado nos cenários de guerra: nesta situação estaria implícito que os profissionais de saúde, equivalentes aos jovens soldados numa guerra, tanto uns como outros são os que asseguram a sobrevivência da população. 

As mães sabem que precisam de ir à frente dos filhos, que ainda têm uma vida pela frente para ser vivida. É o que se ouve dizer em circunstâncias tais. Ter toda a vida à frente é uma máxima que se aplica às crianças e aos jovens. Não tem sentido aplicá-la aos velhos. Aquele que viveu mais anos já realizou mais possibilidades do que aquele que viveu  menos. Isso não diminui em nada a aflição sem medida que acompanha as decisões em causa. 

Por outro lado, quando é a população inteira que está ameaçada, os mais novos devem ter prioridade porque são os que têm mais chances de sobreviver e de ter mais tempo futuro para fazer alguma coisa a fim de salvar o mundo. Portugal optou por começar pelos profissionais de saúde. Outros países optaram por começar pelos mais velhos. 

Assim, é conforme determinadas circunstâncias que ora prevalece uma decisão, ora prevalece a outra. Neste caso somos inclinados a pensar que não existem verdades absolutas em questões morais. O princípio das decisões intuitivas em coletivo, como por exemplo no cenário de um Serviço de Urgência Hospitalar, os profissionais de saúde não têm tempo para decidir em obediência a leis cristãs, ou a moralismos estoicos, kantianos ou utilitaristas. Não se decide em nome de um bem absoluto, de uma lei moral ideal ou de um resultado útil. Mas têm em conta uma orientação científica que aconselha o cálculo das probabilidades de salvação. Não é racional apostar salvar os casos que a ciência sabe que à partida são casos perdidos, com pouca chance de salvamento. Mas atenção, não são critérios ou considerações estatísticas ou probabilísticas, que subordinam a ação, mas sim a avaliação caso a caso consoante critérios já estabelecidos pela ciência e o estado da arte da profissão médica. Nestas situações-limite, o poder está na ação, que é o máximo de poder de vida possível.



Quem salvar? Esta é uma pergunta retórica, mas quando se está em pleno teatro de ação não nos é permitido perguntar. Só na prática real se toma a decisão e aí não se faz a pergunta. Não há teoria. Passei muitas vezes por situações dessas, sobretudo no Serviço de Urgência, quando nos entrava em simultâneo pelo serviço dentro, por exemplo, um grande acidente de viação com vários feridos, uns muito graves, outros graves, e para complicar, um outro caso com uma intoxicação por organofosforados, na gíria rural ingestão de “remédio do escaravelho” voluntária com propósitos suicidas. Há nesses cenários um princípio intuitivo que é coletivo. Não é por acaso que todos assumem o chamado espírito de equipa, médicas e enfermeiras em ação no Serviço de Urgência. Esse princípio intuitivo tem a ver com a expectativa e o preenchimento das possibilidades. 

Não se pode aceitar de ânimo leve questões dilemáticas. Os filósofos da ética são peritos em fazer experiências de pensamento, de que o dilema do "motorista do trólei" desgovernado é um dos mais conhecidos. Neste caso o motorista não tem tempo para pensar, nem está em equipa, e isso faz toda a diferença. A minha versão é diferente da versão canónica dos filósofos:
Um motorista vai a descer uma ladeira; e quando começa a travar ao aproximar-se da passadeira para peões num cruzamento, de repente, perde os travões. Para não atropelar um peão que vai a passar guina para a esquerda e galga o passeio, quando iam cinco pessoas a passar. Infelizmente nenhuma das cinco pessoas se salvou. Uma tragédia que vai para além das vítimas. Mais duas pessoas ficam irremediavelmente também vitimadas pelo chamado síndrome pós-traumático: o motorista e a vítima potencial que não chegou a ser atropelada na passadeira.
Começando por esta, ao tomar consciência do sucedido foi apoderada pelo sintoma de culpa, porque era ela que devia ter morrido e não as cinco pessoas. Este sentimento é um pouco semelhante ao do único sobrevivente de um acidente de aviação em que morreram todos os passageiros menos um, essa pessoa que ficou com um sentimento de remorso, porque é um privilegiado, beneficiando de uma injustiça divina. Quanto ao motorista, passou a ser invadido, agora sim, pela problematização de um dilema. Só que se trata de um dilema a posteriori, que se pode resumir no “Se”, assim: “Se não tivesse desviado o trólei só teria matado uma pessoa em vez de cinco”.
Mas este dilema do motorista, com o contrafactual - qualidade versus quantidade - tornar-se-ia interminável não se tivesse dado um golpe de teatro ao ter-se vindo a saber mais tarde  que os cinco indivíduos que morreram atropelados faziam parte de uma seita, veio a saber-se a posteriori, que estavam a preparar um atentado a uma escala semelhante ao do 11 de setembro de 2001. E ainda por cima a pessoa que se salvou era um médico voluntário dos Médicos sem Fronteiras. 
Estamos a navegar na lógica dos sistemas e dos dilemas. Haverá um sistema que possa ser aplicado, a não ser na base de uma pressuposição? Para Platão, num navio a naufragar, a prioridade no salvamento deveria ser dada às boas pessoas em detrimento das más. Platão deveria ser daqueles contra a pena de morte, exceto para os “hitlers”.

Em ética filosófica há dois tipos de raciocínio padrão: o utilitarista à moda de John Stuart Mill; e o deontologista à moda de Immanuel Kant. O raciocínio utilitarista não garante a justiça. Mas o outro sistema também não o faz. O mais justo nem sempre é praticável. O que seria mais justo não é praticável porque envolve juízos sobre o valor moral das pessoas. E quem é que tem a autoridade máxima para o fazer? O campo da verdade moral não é semelhante ao campo da verdade científica

Quem salvar? Será que Platão é consistente e robusto? Se só pudermos salvar uma pessoa em duas, será mais justo salvar a pessoa A, que é generosa, altruísta e deu importantes contributos para outras pessoas, do que a pessoa B, que é egoísta, mesquinha, frívola e de tal modo autocentrada que nunca contribuiu para um mundo melhor?

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Um vinho do porto pelo Natal




Muito pouco, um dedo...

Célebre em todo o mundo, os ingleses que o digam, pertence às grandes famílias dos vinhos doces naturais ou vinhos de licor, que conservam os seus aromas de frutos frescos mediante o contributo da aguardente que suspende a fermentação da uva.

O porto branco é destinado a aperitivo, mas é o tinto que é servido em portos de honra. Os rubis são portos jovens com menos de três anos. Os tawnys são envelhecidos em cascos de carvalho e há-os de várias idades a parir dos dez. E os vintages também são datados, mas o envelhecimento faz-se na garrafa.

Não é boa ideia, depois de aberta a garrafa, ser guardado por muito tempo, como era antigamente hábito em muitas casas portuguesas. Ouvia-se às vezes esta frase pelo Natal: "Esta ainda é do Natal do ano passado". Ora, como a música de fundo à refeição, o fundo da garrafa do porto também deve ser evitado.

Por isso um porto é um bom pretexto para no Natal se brindar à paz e saúde da família, numa ou duas rodadas servido em copos pequenos, não mais que um dedo ou dedal, para rimar com Natal.

A cada soçobrar das provas o poeta responde com uma salva de porvir. 

René Char

Pela porta do cavalo . . . ou do gato


Aproxima-se a consoada de Natal, e este ano o Natal não se vai parecer com outros Natais no que respeita a beijos e abraços, casas cheias de gente, dez, vinte e até trinta pessoas em salas com pouco mais, ou menos, de quarenta metros quadrados. Recordo-me de um ano termos ido consoar a casa duns tios. Um pouco antes de irmos para a mesa, vejo, sem querer, o tio a passar pela janela um peru acabado de assar numa padaria. Era uma surpresa que os tios nos queriam fazer, porque em princípio seria apenas o tradicional bacalhau com todos. Acontece que eu, tendo a mania de andar de um lado para o outro para aquecer os pés, vi. Foi o caso, o peru entrou em casa pela porta do cavalo.

A porta do cavalo tanto serve para entrar como para sair. Serve para entrar num emprego por cunha ou por meios pouco canónicos. Serve para um político sair de forma despercebida quando quer fugir às perguntas dos jornalistas, ou a alguém que queira evitar uma espera desagradável. Diz-se que José Sócrates, no tempo em que esteve no governo, e mesmo depois, recebia dinheiro pela porta do cavalo: 
“Eu entregava-lhe aquilo de uma forma discreta. Eu não fazia recolha de dinheiro. Fazia recolha de envelopes. E o juiz pergunta: “E não tinha a noção de o que lá estava era o dinheiro. E Ele responde: Não! E o inspetor tributário exclama: “Ó Sr. João, pelo amor de Deus!” e Ele responde: “Pelo amor de Deus digo eu”. Inspetor tributário: “Aquilo é pago pela porta do cavalo”. O Sr. João: “Se é dinheiro vem de um esconderijo, não é de um banco”. 
Houve tempos em que médicos, que queriam tirar uma especialidade, mas não queriam submeter-se à prova nacional de acesso às especialidades, porque era uma prova muito difícil, arranjavam um padrinho que os aceitassem no seu Serviço para “tirar a especialidade à Ordem”. Faziam o internato “entrando pela porta do cavalo”, e no fim não se submetiam ao exame final da especialidade, que era o exame oficial instituído pelo Ministério da Saúde. Mas podiam submeter-se ao exame à Ordem dos Médicos. Aprovados no exame à Ordem, eram especialistas. Legal para o exercício da especialidade, não na parte Pública, mas na Privada. Mas podiam concorrer a uma vaga posta a concurso no Serviço onde haviam feito o estágio. E assim entravam no quadro hospitalar em competição com os outros colegas que não tinham usado a porta do cavalo.

Nos palácios e palacetes toda a gente sabe que não faltam portas por onde sair, como, por exemplo, a porta da cavalariça. É claro que para entrarmos, é sempre pela porta principal. O mesmo acontece nas praças das corridas de touros, onde há portas destinadas ao público, aos toureiros, aos touros e aos cavalos. Para os toureiros, a maior honra é sair da arena em ombros pela porta grande, enquanto o público aficionado ovaciona. O toureiro "sair pela porta do cavalo" significa, por contraste, sair de forma despercebida sem honra nem glória.  

Como uma coisa puxa a outra, a minha imaginação voou para os Natais passados na casa da minha avó materna quando era criança. E estou a recordar-me que a minha avó tinha um gato, e de uma das portas da loja que tinha uma gateira. A minha avó havia pedido a um inquilino, que era carpinteiro, para recortar na parte de baixo da porta uma portinhola gótica, para o gato poder entrar e sair à vontade, quando lhe apetecesse, que nesse aspeto os gatos são muito independentes de vontade. Era para o gato cumprir o seu papel de guardião das ratazanas que se faravam de lhe roer as batatas. Excelentes batatas que ela cultivava, e que comíamos no Natal cozidas com o bacalhau, trazidas para a mesa numa púcara de barro com água quente por baixo para manter o cozido aquecido por mais algum tempo ao longo da refeição para quem quisesse bisar.




Noutro Natal mais recente, o gato, que ainda tínhamos, desapareceu da noite de 24 para 25.  Depois de tomar uma água das pedras na cozinha, fui ao terraço procurá-lo. Nada, podia ser que tivesse pulado o muro para o terraço do vizinho de um dos lados, porque do outro lado, apesar de também haver um gato da mesma raça, era impossível dado ter uma rede bem alta. Portanto, era do outro lado que podia estar, onde também aprecia um gato preto de uma vizinha do primeiro andar. Mas de gatos nenhum sinal deles. Que grande porra, vou ter de andar à procura dele noutros lados, disse eu cá para mim, logo no dia de Natal. Os gatos levam vida de gato, são animais inteligentes, é sabido etc. e tal. Os gatos quando desaparecem, é porque não querem que ninguém os chateie. Mas voltarão quando tiverem fome, é claro, ideava eu com os meus pensamentos.

Naquele terraço também já há uns dias que não via ninguém por lá. Era uma passagem para gatos, e para o "homem aranha" que assaltou um primeiro andar entrando pela janela. Como o sol já me escaldava a cabeça, apesar de ser inverno, não estava vento ali, fui buscar um boné ao armário do escritório. E eis o meu espanto, quando o gato muito sorrateiro dá um salto lá de dentro, e impávido e sereno, como se nada tivesse acontecido, dirigiu-se em direção ao sítio da casota de areia e das tigelas da água e comida seca, num andar de arlequim. Alguém tinha fechado as portas de correr do armário onde no dia anterior tinham estado escondidas as pendas de Natal. Deixei-o ir. Coloquei o boné na cabeça e fui para o terraço. 

As placas de cimento, marcadas no chão, a receber o calor e eu os raios de sol. Algumas nuvenzinhas flutuavam no céu, nítidas e precisas em contraste com um azul de Viana. No meu terraço apenas pontuavam dois vasos: um com uma oliveira e outro com um Abeto-falso também nomeado por Espruce-da-Noruega. E o terraço da direita a abarrotar de todo o tipo de plantas, um alpendre de lona, portátil, e uma piscina de plástico para criança, e brinquedos de churrasco. Aparentemente, as cadeiras brancas não eram usadas há meses (ou anos) e estavam cobertas de terra em pó. Em cima de uma mesa pétalas colocadas pelo vento e pela chuva de outros dias. Pela janela, um sofá de couro, uma TV enorme, uma prateleira com um aquário de peixes tropicais, e dois troféus de algum campeonato. Num terraço mais distante avistei uma enorme casota de cão, sem ver o cão. E um avançado com telhado de chapa zincada um pouco amolgada pelo salto do "homem aranha", depois de ter assaltado o primeiro andar por volta das quatro da madrugada, era verão e dormia-se de janela aberta, e ouvia-se o clamor de pessoas à janela do prédio do outro lado da rua a vê-lo fugir com um portátil debaixo do braço, a correr aos pulos pelos terraços.

Quando me virei, vi alguém à janela no prédio do outro lado da rua. Acendeu um cigarro com um fósforo que atirou para a rua com um movimento que deu para perceber que já estava bem familiarizado com o gesto. Não deu para ver bem quem era porque eu estava de óculos de sol, e com o boné enterrado até às orelhas. A vinte metros de distância deu para ouvir uma voz, para perceber que era uma voz de homem. “Nem me fale!”, ouvi, ele a fumar sem mudar de posição, fazendo-me lembrar outra pessoa, e eu a retirar-me para dentro de mansinho.

domingo, 20 de dezembro de 2020

Sapatos de corda



Mónica Baldaque, filha única de Agustina Bessa-Luís, conta-nos as impressões da sua vida passada com os seus pais em Coimbra, no Porto, em Vila do Conde e na região do Douro, numa narrativa feita com delicadeza, e ilustrada com várias fotografias. Revelando aspetos inéditos de Agustina, preservando o mistério que foi a vida e a criação de Agustina Bessa-Luís, nome literário de Maria Agustina Ferreira Teixeira Bessa [1922-2019] - nascida em Vila Meã, Amarante, evita o sentimentalismo. Agustina Bessa-Luís, se não me engano, é a escritora portuguesa com mais obra publicada. De uma criação extremamente fértil e variada podem-se contar quase meia centena de romances, para além de várias biografias, contos e peças de teatro.
«Minha Mãe estava tranquila quanto à minha educação, e passava as semanas por casa, a escrever, a ler; no inverno vestia um kilt comprido, uma manta de xadrez nas pernas, a botija no colo, a lareira acesa; no verão, os vestidos leves de linho branco, as portas abertas para o pinhal. Não esqueço as caminhadas de minha mãe, na praia, os sapatos de corda brancos que descalçava e sacudia da areia quando chegava ao caminho. Nenhuma pegada ficara para trás. De longe, eu via, com sobressalto, que às vezes a imagem de minha mãe desaparecia, ou porque um raio de sol a assombrasse, ou porque partia no dorso de um tubarão branco num passeio vertiginoso e imprudente, ou porque…»


A propósito do título do livro, posso dizer que os sapatos de corda fizeram muito sucesso na década de 1970, e ainda de 1980, sobretudo na moda feminina. Também havia sapatos de corda para homem, a que muitos chamavam alpercatas, mas com muito menos expressão. Mas a verdade é que muita gente de bom gosto as usava no verão para ir à praia, ao campo, e porque não até como toilete de festa e cerimónia. Alpercata é uma palavra derivada do árabe norte-africano al-balgāt. Não deixa de ser um calçado grosseiro de lona assente em corda de sisal. "São perfeitas para arrematar looks descontraídos e casuais", diz uma comentadora. E num dicionário pode ler-se: "As alpercatas de pano e sola de corda apareceram pela primeira vez no século XIX entre os trabalhadores das docas em França, chamadas "espadrilles", e rapidamente se espalharam pela Catalunha e País Basco com o nome de alpargatas.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

As fronteiras dos Balcãs: migrações e fratricidas




Hoje é o Dia Internacional dos Migrantes. Reinventando a Mobilidade Humana é o lema das Nações Unidas que estimam que 272 milhões vivam fora de seus países, 51 milhões a mais que em 2010. O secretário-geral António Guterres realçou o momento de oportunidade na recuperação da pandemia para se implementar o Pacto Global para uma Migração Segura, Ordenada e Regular. 
No Dia Internacional dos Migrantes é preciso falar dos que são violentamente barrados às portas da Europa. O número está sempre a aumentar e não há uma contagem oficial de quantas pessoas possam ter sido ilegalmente expulsas ao chegarem às fronteiras da UE desde que a crise migratória se agudizou. A repatriação de migrantes que não consigam provar que necessitam de proteção internacional está prevista na lei europeia, mas a expulsão violenta e imediata, sem acesso a um processo de pedido de asilo, é uma quebra da lei internacional. 




Os países dos Balcãs Ocidentais foram perturbados pela crise dos migrantes, que aponta para uma crise da sua própria existência. Os migrantes passam pelos países dos Balcãs Ocidentais como se fossem terra de ninguém. Belgrado tem sido chamada a nova Calais por causa do assentamento informal de migrantes desde que a saga mediterrânica começou. Os migrantes não querem desistir do sonho de chegar à Alemanha, ou a outros países do norte da Europa, ainda que tenham de correr o risco de serem contrabandeados.

Os estados pós-Jugoslávia sofreram conflitos, mas os Balcãs Ocidentais estão a passar pela desindustrialização secundária à globalização, vivendo a sua própria migração para o norte da Europa. Assim se perpetua uma região como rota migratória preferencial, uma fronteira a ser assaltada como se de uma conjura da História se tratasse. A Sérvia não é um país da União Europeia, mas é vista como menos hostil em relação aos migrantes ilícitos. Além da Grécia, é por onde os migrantes entram na rota dos Balcãs Ocidentais. Os migrantes não querem simplesmente comida e abrigo, querem construir uma nova vida num país seguro e próspero. Por isso, registar-se oficialmente e ser autorizado a viver na Sérvia ou, na melhor das hipóteses, ser autorizado a fazer um pedido de asilo na União Europeia através da Bulgária ou da Grécia, é apenas um primeiro passo, um ponto de partida para depois concretizarem um sonho migratório que é muito mais do que isso. 

A União Europeia (UE) tem estado preocupada com a forma como os Estados da UE e não UE ao longo da rota dos Balcãs Ocidentais têm permitido a passagem de migrantes. Apesar da boas intenções da União Europeia através da Frontex a coordenar as operações entre os Estados-membros nas fronteiras externas, a verdade é que as redes de tráfico de pessoas e contrabando de armas e droga estão constantemente a retomar as suas atividades ilícitas. O
 modelo da Fortaleza Europa é visto como um fracasso. Os Estados do norte da Europa não confiam mais na capacidade ou na vontade dos Estados do sul da Europa de manter as fronteiras europeias, mesmo com o reforço da Frontex. Em outubro de 2015, a UE deu 17 milhões de euros extra em ajudas à Sérvia e à antiga República Jugoslava da Macedónia como um gesto de boa vontade em cooperar sobre a crise dos refugiados. No entanto, tem-se verificado que a transferência de somas de dinheiro para essa finalidade não são de modo nenhum a forma mais adequada. 

Enquanto isso, na Bulgária, onde 
a sociedade é mais hostil aos migrantes, e há grupos autoproclamados de defesa popular que policiam o campo contra os migrantes, procede-se como se de uma fronteira militar informal se tratasse. Há o perigo de as terras fronteiriças se deteriorarem numa existência económica e social insegura, onde a única atividade económica é a típica dos “guardas” de fronteiras: atividade comercial informal periférica. Os historiadores dizem que os Balcãs são um dos vários sítios onde a História dá lições. Nas ainda não tão longínquas terras da Casa de Habsburgo, ou então dos mais longínquos países  do Sacro Império Romano-Germânico, liberdade e prosperidade nunca foram desfrutadas nas terra à volta das suas fronteiras. 

A Sérvia forma-se nos finais do século XII, tendo adotado a fé ortodoxa, dado situar-se na esfera de influência do Império Bizantino. Mas depois vai sofrer a ocupação turca depois da batalha do Kosovo em 1389. E depois de tomada Constantinopla em 1453, passa a fazer parte do Império Otomano. No século XVII, uma parte de população sérvia do Kosovo emigra, e o Kosovo é repovoado por Albaneses. Muitos sérvios refugiaram-se na zona onde atualmente é a Croácia, e na zona da atual Voivodina. Mantendo o sonho de reconquistarem Belgrado, e voltarem, fornecem tropas aos exércitos da Casa de  Habsburgo. A partir do início do século XIX (1806-1815) a nação Sérvia revolta-se e emancipa-se do Império Otomano, com a ajuda da Rússia. Constitui-se, por conseguinte, o primeiro estado soberano que se emancipa da tutela otomana.

A Bósnia e Herzegovina, por sua vez, esteve sob administração otomana até 1878, quando é Áustria a assumir o mandato administrativo sobre o seu território. E em 1909 é anexada ao Império Austro-Húngaro. A Bósnia, um microcosmo de etnias e de confissões religiosas, representa em si o verdadeiro mosaico que veio a ser a Jugoslávia que, para além dos eslavos islamizados, ainda tinha a memória dos bogomilos, um grupo de hereges que sofrera uma perseguição feroz no tempo das Cruzadas. Na Bósnia o
 principal grupo étnico é bósnio, ao qual se junta um terço de sérvios e um quinto de croatas. A maioria dos habitantes que vive no país são falantes do servo-croata e adotantes do alfabeto cirílico. Cinquenta por cento da população segue o cristianismo (35% segue a Igreja Ortodoxa Sérvia e 15% segue a Igreja Católica de Roma); e quarenta e seis por cento são muçulmanos.

A Jugoslávia havia sido uma ideia nascida na Croácia e na Eslovénia, por ocasião das revoluções de 1848, e que se tornou realidade em 1918, depois da Primeira Guerra Mundial. E os povos dos Balcãs Ocidentais assim reunidos como jugoslavos, foram-no sob o domínio centralizador da monarquia sérvia. Depois veio a Segunda Guerra Mundial e os sérvios massacraram croatas. Os croatas, por sua vez, forneceram guerrilheiros à resistência de Tito, filho de mãe eslovena e pai croata, e nascido em território que ao tempo fazia parte do Império Austro-Húngaro. Os Chetniks (uma organização paramilitar nacionalista e monárquica sérvia que operou nos Balcãs antes e durante a Segunda Guerra Mundial) estabeleceram acordos com as tropas alemãs para evitar o esmagamento comunista. Muçulmanos alistados pelas SS massacraram sérvios. Chetniks massacraram muçulmanos. Durante a guerra de Hitler, croatas, eslovenos e muçulmanos eram pró-alemães. Porque eram contra sérvios. Os alemães, libertadores da opressão sérvia, tornaram-se os novos opressores. 

A Assembleia Antifascista de 1943 decidiu que a Jugoslávia seria um Estado Federal, que foi instituído após a libertação. O regime de Tito determinou então as fronteiras em prejuízo da Sérvia, de modo a impedir o regresso da dominação da Sérvia. Assim, é atribuída à Croácia uma grande parte da costa da Dalmácia e da Ístria, depois de esta ter sido esvaziada dos italianos. A Constituição de Tito de 1974 cria no território da Sérvia as províncias autónomas do Kosovo e da Voivodina, povoando-as de albaneses e muçulmanos. De facto, com Tito, forma-se uma Jugoslávia na base de uma Federação (República Socialista Federativa da Jugoslávia) que agrupava 6 Repúblicas: Sérvia; Croácia; Eslovénia; Bósnia e Herzegovina; Montenegro; Macedónia. Ele criou também um sistema rotativo para o governo, que para evitar a insatisfação de qualquer uma das repúblicas, consistia na indicação do presidente por parte de cada uma das repúblicas. Uma anedota que sintetizava o sistema político-étnico da Jugoslávia sob Tito era: "Seis repúblicas, cinco etnias, quatro línguas, três religiões, dois alfabetos e um Partido".

Parecia que a tripla crise que se generalizou no bloco soviético a partir de 1989 não chegaria à Jugoslávia, já que esta se tinha durante muito tempo dissociado desse bloco e empreendido a sua própria evolução liberalizante. Mas é o impacto dessa crise que vai causar o desastre jugoslavo que se iria estender na década de 1990.


quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

Lembranças do tempo em que gostava de futebol


Estava a reler algumas passagens do Diário de José Saramago [Cadernos de Lanzarote I] - escrito nos primeiros tempos em que se exilou na ilha de Lanzarote depois das grandes polémicas à volta do livro "
Evangelho Segundo Jesus Cristo", tendo com Pilar comprado nessa ilha uma casa - quando me demoro no registo do dia 21 de maio de 1993: 
«A Madrid, para a "Semana de Autor". No avião leio o Expresso chegado esta manhã e encontro recolhida uma curiosíssima declaração de Carlos Queirós, o selecionador nacional de futebol, que novamente me fez pensar em como andam desconcertadas as opiniões neste mundo e no difícil que será chegar a acordo sobre as questões fundamentais quando logo nas outras, mínimas, nos vemos desencontrados: "As pessoas que não são capazes de perceber a beleza do futebol ou do jogo são exatamente as mesmas que não são capazes de ler o Asterix nem percebem a beleza que existe nuns Beatles. Esses são os intelectuais. São capazes de estar em casa a ver um filme de cow-boys e a ouvir os Bee Gees. Se tocarem à campainha, mudam para Tchaikovsky e pegam num livro de Saramago". Não duvido que o estimável Carlos Queirós saiba muitíssimo de futebol, mas de intelectuais parece saber  bem pouco, e sendo certo que eu próprio não me posso gabar de os conhecer de raiz (vivi a maior parte da minha vida entre gente mecânica ou assimilada), creio dispor hoje de algumas luzes sobre os usos e costumes dessa nata em que, emprestadamente, também eu nado ou sobrenado. Intelectuais conheço eu que se regalam com os filmes de cow-boys, que adoram os Beatles e aborrecem os Bee Gees, e, no que se refere ao autor do Evangelho Segundo Jesus Cristo, soube eu de fonte seguríssima que sempre foi fanático do Asterix e que jugou ténis em tempos que já lá vão. E também soube que não ficou nada satisfeito ao ver-se acasalado com o Tchaikovsky, que não é músico das suas predileções nem de nenhum dos intelectuais que conhece . . .»
Ora, de repente, do nada, vi-me regressar à memória dos meus tempos no Liceu Sá de Miranda, na altura em que muito se falava do treinador de futebol do Varzim - Joaquim Meirim - e do seu guarda-redes de ouro: Pedro Benje. 

Pedro Benje Neto, oriundo de Angola, era um guarda-redes que lutou e se fez no Benfica. Mas depois foi para o Varzim, no tempo em que o treinador era Joaquim Meirim
Meirim acabara de chegar à Póvoa de Varzim para revolucionar uma equipa de segunda linha. Os seus métodos de treino “assustavam”, mas foi isso que agigantou Benje. E as histórias, muitas delas não passavam de lendas, começaram a brotar no meio das tertúlias futebolísticas da rapaziada do Liceu Sá de Miranda. Constava que Meirim, para estimular e exercitar os reflexos dos jogadores, soltava galinhas no campo… Num desses simulacros de treino, o guarda-redes ficou estático. Meirim inquiriu Benje porque não se tinha lançado. Benje respondeu com serenidade: "porque desta vez a bola passou ao lado da baliza…"
«Eu estava lesionado e não podia jogar. Mas o Meirim tinha prometido, uma semana antes, num jogo que perdemos com o Marítimo, que se eu jogasse nas Antas o Varzim ganharia. Eu dizia-lhe que não podia alinhar, mas ele conseguiu convencer-me. Mas não disse nada a ninguém, nem aos outros jogadores. E para a ficha de jogo só deu os nomes de dez jogadores. Quando lhe vieram perguntar quem era o guarda-redes, ele disse que era o... Neto. É o meu último nome, mas ninguém sabia. O Pedroto quis saber quem era e disseram-lhe que era um júnior. Quando entrei em campo, todos ficaram surpreendidos, até os meus colegas, que ficaram mais animados.
Mas o pior veio depois, levei uma assobiadela monumental, fui vaiado, até pelos jogadores do FC Porto, prometendo que iria levar a maior goleada da minha vida. Comecei a ficar com raiva por aquela receção e disse para mim próprio que tinha de jogar melhor que nunca. E foi isso que aconteceu: fiz o melhor jogo da minha carreira. Joguei todo ligado, da perna até à barriga, e às tantas fui agredido por um jogador do Porto, e fiquei com a clavícula deslocada. Foi o fim. Disse ao Meirim que não aguentava e ele disse-me que tinha de aguentar-me. Ligaram-me o ombro e continuei em campo e pouco depois fiz uma defesa, daquelas impensáveis, só com a mão esquerda. Só quando faltavam cinco minutos para terminar o jogo, já o Varzim ganhava por 1-0, é que o Meirim fez a substituição. Chamou o Zé Luís e disse a toda a gente: 'Agora vamos jogar com um guarda-redes ainda melhor.' E o Zé Luís, em cinco minutos, fez uma exibição incrível, talvez também a melhor de toda a sua vida, defendendo uma mão-cheia de remates que poderiam ter dado golo.»
O meu clube era o FC Porto, mas naquela altura eu andava encantado com as histórias que se contavam do Meirim a treinar o Varzim, e a sua magia que deu fama a Benje como 'o maior guarda-redes do mundo'. Estávamos em 1969, e Meirim, um senhor de Monção era, para efeitos do país, um ilustre desconhecido. Mas havia sido aluno de José Maria Pedroto, um Senhor Treinador. "A derrota é a mãe de todas as vitórias" - uma das suas frases mais conhecidas, mas abundavam frases bombásticas como: "os meus jogadores têm de se babar em sangue dentro do campo".  

Meirim era olhado de lado, e com muita estupefação, pelos outros trinadores e jogadores. O caso, também, não era para menos, quando aparece na Póvoa de Varzim com ideias absolutamente novas e que se tornaram revolucionárias no mundo do futebol. Levava os jogadores para a praia, treinava-os de forma a incutir-lhes um espírito de união que fazia lembrar os métodos militares dos comandos. Nada daquilo fazia sentido ao comum dos mortais. Por isso, Meirim era um malabarista, olhado com muita desconfiança, ao ponto de no campo do adversário, não deixarem entrar a equipa antes do tempo regulamentar, porque temiam que ele fizesse bruxedo no relvado. 

Sim, Meirim era um excêntrico. Mas vale a pena ir mais atrás, à história de seu pai, e a um poema que Zeca Afonso escreveu e o dedicou a ele, quando José Afonso esteve preso em Caxias pela PIDE, num período entre 1967 e 1969. Zeca Afonso entretanto chegou a participar no I Encontro da Chanson Portugaise de Combat em Paris, em 1969. O pai de Meirim era professor primário, e foi um entre muitos casos de pessoas irradiadas da função pública por ordem de Salazar. A família Meirim mudou-se para Lisboa, tendo o pai agarrado o ofício de sapateiro em Alcântara. O futebol era por aqueles dias apenas um romance de fim de semana para Joaquim Meirim, que ganhava a vida como empregado de escritório. Mas a vida tem destas coisas, após pendurar as chuteiras noutro mítico emblema bairrista da capital, o Oriental, onde Joaquim Meirim jogava, obtém com 27 anos o curso de treinadores, ministrado pelos mestres José Maria Pedroto e Fernando Vaz

Na época 1967/68 tem a primeira experiência no exercício do ofício que sempre havia sonhado, treinar a equipa da CUF. Um clube na cauda da tabela, mas com a importância de ter sido uma equipa na 1ª Divisão, coloca-a num honroso sétimo lugar. 1968 foi o ano da queda da cadeira de Salazar. O ditador já não manda, mas pensa que sim, porque quem manda a partir de setembro é Marcelo Caetano. Começam as “Conversas em Família” e há quem fale em “Primavera Marcelista”. Puro engano como se viu depois. A Guerra Colonial está no seu ponto mais crítico e o som da metralha não abafa os gritos de dor daqueles que tombam em combate, e as prisões continuam cheias de presos políticos, e Zeca Afonso foi um deles, quando escreveu o tal poema:

A Meirim
À sombra do que está
Há quem incline a cabeça
Há quem na vertical
Diga que sim não está mal
Minha tia era
Dessa razão
Dizia humilde contrita
Não subas
Ao parapeito de Judas
E o vendilhão era recto
Não pretendia ser mais
Que um funcionário correcto
Pois na Instrução
O César tinha razão
Só não tinha a tia dele
Verdade diga-se
E sede
Da pura apocalíptica
Depois quem lhe fez a cama
Foi um menino de mama
[José Afonso]

Aos censores nada escapa. E os jornais desportivos – A Bola, Mundo Desportivo, Norte Desportivo e Record – também não se livram de mandar as provas à Censura.  E é neste ar irrespirável que o presidente do Varzim vai buscar Meirim, lançando-o para as capas dos jornais juntamente com o angolano Pedro Benje. Benje mais parecia um gato no ar a agarrar todas as bolas que lhe apareciam pela frente. E a história continuaria, embora já sem o sensacionalismo daquela temporada no Varzim. 

Meirim era, sobretudo, um autodidata. Homem sem grandes estudos académicos, tinha a escola da vida. Antes de ser treinador, ganhou uma enorme experiência e conhecimento do mundo. Com espírito aventureiro, foi embarcadiço, correu mundo, voltou a Portugal, trabalhou em hotéis e restaurantes.  Em meados da década de 1960 já se encontra a treinar o Oriental. E é a partir daqui que se começam a ouvir as suas gabarolices. Num jogo contra a CUF, num campeonato de reservas, gabou-se
 de ter ganho sem qualquer guarda-redes. A veracidade da história está por confirmar, mas já nessa altura tinha tudo a ver com ele. A confiança que tinha nos seus jogadores era tão grande que pegou no guarda-redes para ter mais um avançado: "Sem ninguém na baliza, eles até vão ter medo de rematar". Como tinha que inscrever na ficha do jogo alguém na baliza, meteu mesmo um avançado... 

Já no Varzim, um dia, reuniu o plantel antes do treino, e em vez de mandar os jogadores correr ou rematar, mandou-os meditar. Durante cinco, dez minutos, todos os jogadores fecharam os olhos, puseram o futebol de lado, e meditaram sobre a sua vida, a sua família, os seus sonhos. Meirim observava, silencioso. Decretou o fim da reflexão com uma forte salva de palmas, e mandou começar o treino, exceto a três jogadores que os chamou de parte. Sem conhecer nenhum pormenor previamente, perguntou-lhes um a um: "O que se passa? Por que é que estás preocupado?" Tinha acabado de acertar precisamente nos jogadores que estavam com problemas pessoais. Perante a estupefação dos dirigentes do Varzim que assistiram à cena, Meirim explicou, com toda a naturalidade: "Depois de dez minutos a meditar, quem abre os olhos e reage com um semblante alegre e motivado, está bem. Quem acorda triste e cabisbaixo, precisa de ajuda."

Meirim faz declarações surpreendentes e polémicas. E os jornais aproveitam para atirar uma-pedra-no-charco das banalidades: "Não há livres indiretos! Todos os livres são diretos, porque a tendência do guarda-redes é sempre para ir buscar a bola. Qual é o guarda-redes que permite que a bola entre na baliza?" Mesmo nos livres indiretos havia que tentar o golo, na esperança que o guarda-redes se enganasse e ainda fosse tocar na bola antes de ela entrar. Faz as primeiras páginas dos jornais e motiva a curiosidade e a reflexão de alguns dos melhores escritores e jornalistas do ramo: Carlos Pinhão e Mário Ventura-Henriques, são alguns deles. Pinhão, após a melhor classificação de sempre do Varzim, onde o guardião Benje assume o papel de estrela maior, escreve um dos mais belos títulos da Imprensa portuguesa: “Varzim rima com Meirim”; e o escritor Mário Ventura-Henriques assina uma crónica em A Bola que titula assim: “Meirim entrou na vida de todos nós.” José António Saraiva, escreveu em O Comércio do Funchal, 5 de Abril de 1970: "Meirim é o homem que de maneira mais fina entendeu a estrutura caótica, anacrónica, incoerente, do futebol."

O presidente do Leixões despediu-o na hora em que foi conhecida a sua candidatura à presidência da Câmara Municipal de Matosinhos, em nome da então Frente Eleitoral Povo Unido. Como ativista sindical ganhou e perdeu batalhas. Joaquim Meirim não tem o seu retrato em qualquer galeria de honra. E o seu nome é silenciado por muitos dos seus pares. Meirim está na história por outras singulares razões: por ser um cidadão e um treinador que soube empunhar a Esperança e a Audácia. Por ser o único homem do futebol a quem Zeca Afonso, um dos melhores de nós, dedicou um poema escrito durante a sua prisão em Caxias. 

quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

Atentar contra si


Vendo bem as coisas como elas são, a morte provocada pela covid-19 é uma espécie de suicídio do nosso corpo, porque são as reações inflamatórias, decorrentes da ação excessiva da nossa imunidade no combate contra o SARS-CoV-2, que nos matam.

O que não se sabe, os tais mistérios, é porque é que certas pessoas têm o ataque mais nuns órgãos, e outras pessoas noutros. Numas, manifestações mais respiratórias, noutras mais cerebrais, noutras mais cardíacas, noutras mais renais... Também se sabe pelas autopsias que em todos a tiroide está carregadinha de vírus, associado clinicamente ao hipotiroidismo que isso provoca. O que se continua sem perceber é a variabilidade de indivíduo para indivíduo: tanto a variabilidade da infeção como a contagiosidade; quer as sequelas (os estragos que deixa no corpo). Quem morre é quem tem mais inflamação, um aspeto que é paradoxal: as pessoas com as melhores respostas imunológicas são aquelas que ficam pior. É o excesso da resposta imune que se vira contra si próprio. É como nas doenças autoimunes, embora estas aparentemente sem nenhum agente de fora.
E o pior foi perceber que estávamos muito pouco preparados para uma sociedade com fragilidades a muitos níveis … voltamos à pobreza que se agravou, uma assimetria assustadora. Temos fragilidades muito grandes. Para mim, os maiores problemas são, por exemplo, a longevidade crescente. Veja o que está a acontecer no Japão. Onde-é-que-a-gente vai caber? Não sei como vamos resolver isso. Não podemos continuar a viver tempo a mais … a maldade que é um tipo viver muito, mas com mal-estar. Mas, além da pobreza e da longevidade, há ainda o problema do trabalho. Este é o meu triângulo. Se fosse uma coisa piedosa, temos de diminuir o consumo. Os problemas com a biodiversidade, a água, o ozono . . . tudo isto é excesso de consumo. Nós somos predadores consumistas e fomos extraordinários a fazer o homem, quer dizer, é difícil fazer um gajo tão filho da mãe como o homem. 
Há muita gente que acredita que nestas crises há melhorias, nas coisas da informática e da inteligência artificial. E de certeza que há. Não tenho sentido que isto está a ser tão incorporado quanto deveria ser em Portugal. Quer dizer, nós não temos muita tradição de incorporar 'hands on' para progredir em coisas concretas. Temos muita tendência de fazer progressos na retórica porque nós temos muito o valor da palavra e do paleio . . . 
Vamos recuperar?
Não sei, mas há um desgaste. Sinto que estou a somatizar. Dói-me mais o corpo. Viajo menos, a última viagem que fiz foi em fevereiro a Londres. Desde aí, vou todas as semanas a Arouca. E é isso. 
Mas, como diz, isto vai melhorar e vai voltar a fazer essas coisas . . .
Não sei se me apetecerá. Como eu sou velhinho, tenho um cagaço de não ser tão fácil. Provavelmente, se fosse mais novo era outra coisa. Não sei se vou ter garra de retomar. Acho que isto tem um toque de fim de ciclo. [Manuel Sobrinho Simões numa entrevista a Andrea Cunha Freitas, do Público ]

As palavras de Manuel Sobrinho Simões, Prof. Catedrático jubilado de Anatomia Patológica da Universidade do Portosão tocantes quando diz: “é difícil fazer um gajo tão filho da mãe como o homem.” E, por exemplo, quando diz "
Não podemos continuar a viver tempo a mais" , a dizer de boa consciência que a longevidade não é assim tão boa como os 'politicamente corretos' a pintam, é porque não está interessado em passar pelas passas do inferno antes de morrer. Mas, a verdade, é que quem se ocupe da questão da morte voluntária, é porque não está bom da cabeça. Mas quando cai doente, pode não haver cama hospitalar disponível. Ou então não haver vaga nos Cuidados Paliativos porque ainda são raros. Ou o quarto individual não estar disponível. Mas, quem se decida a inclinar a sua vontade para a morte voluntária, a sociedade, que até aí pouca preocupação revelara pela sua existência, e pelo seu ser de uma certa maneira, é a mesma sociedade que o rodeia de uma maquinaria com um aspeto sinistro, entregue às mãos de especialistas súper, cuja ambição é inscrevê-lo na lista da “salvação”, quais desportistas caçadores a arrebatar à morte a caça abatida. Entretanto a eclosão de uma guerra foi fomentada, e alguém teve de ser arrancado à força da sua profissão, para a qual estudou meia vida, para prestar serviço militar. Com ordens de se opor ao inimigo com firmeza, tem de se salvar entre sangue e aço. Ma se salvou, se sobreviveu do campo de batalha, teve de se contentar ficar desempregado, com um subsídio de esmola, é certo, para gastá-lo consumindo-se e desgastando-se.

E, todavia, quando pagamos impostos, há uma série de pressupostos, que fazemos de conta que são sagrados, que os nossos concidadãos também pagam. Porque só há duas coisas certas na vida: a morte e os impostos. Em primeiro lugar, deve-se partir do princípio de que os nossos concidadãos também vão pagar os seus impostos, afinal somos todos irmãos, que importa uns serem ricos e outros serem pobres. E em segundo lugar, confiamos naqueles a quem demos autorização para gerir o que é nosso, porque certamente o vão fazer com competência e honestidade. No fim de contas, se descobrirmos que eles delapidaram o erário público sem rei nem roque, é sempre tarde demais para reparar os danos. Por isso, só nos restam três coisas: fé, esperança e caridade. Que em linguagem laica se resume a uma palavra chave: Confiança.

Então, o que é que define o putativo alcance de uma comunidade de confiança? Fica bem dizer aos intelectuais que é o cosmopolitismo desenraizado. Mas a maioria das pessoas vive numa bolha muito concreta: um lugar no espaço e no tempo; uma língua; na maioria dos casos uma religião. E se calhar, por lamentável que seja, não tão raro como os intelectuais querem fazer crer: uma cor, um clube desportivo, e assim por diante. É por isso que os holandeses torcem o nariz quando se lhes pede, ao abrigo de "todos somos europeus", que subsidiem os portugueses no que quer que seja. É como
 se fosse o caso, por exemplo, alguém do Alabama ver com bons olhos que os seus impostos iam servir para construir pontes na Malásia. A ninguém do Alabama iria passar pela cabeça que o seu homólogo malaio, mais tarde, iria fazer voluntariamente o mesmo por ele. O Brexit é, na atualidade, o paradigma irónico de tudo o que se vem dizendo acerca de qualquer habitante da Europa se definir, em primeiro lugar, como europeu. Ora, é mais plausível alguém de Monção definir-se como minhoto, ou galego tem dias  . . . do que dizer que se considera um europeu convicto. E o mesmo se podia dizer de um residente de ‘Putney’ - um dos muitos subúrbios de Londres. 

terça-feira, 15 de dezembro de 2020

«E eu só pensei: “Ok, já foste.” »




Se calhar, o momento mais difícil de todos os que tive foi quando me disseram: “Dr. Ferraz, vai ser entubado. É uma semaninha.” E eu só pensei: “Ok, já foste.” A primeira coisa que fiz foi mandar aos meus filhos uma mensagem de despedida e a dizer: “O código para desbloquear o telemóvel é ‘x’.” Acho que foi o momento em que bati no fundo, naquela meia horita em que me disseram que ia para os cuidados intensivos. A gente sabe que vai, mas às vezes não volta. 
© Cristina Faria Moreira – Público 


O primeiro doente com covid-19 em Portugal foi confirmado a 2 de março. E a 18 de março o Hospital Distrital da Figueira da Foz confirma os dois primeiros casos positivos de doentes infetados com covid-19 nesse hospital. No dia em que chegaram, logo nessa tarde, o Diretor do Serviço de Medicina Interna (Dr. Ferraz), responsável pela adaptação do Serviço para receber doentes covid, começou a sentir sintomas: muita tosse e depois febre. E nesse mesmo dia já foi para casa com baixa. Portanto, ele tinha a certeza, não podiam ter sido aqueles doentes a infetá-lo, porque não houve tempo para isso. Ao fim de uns dias em casa sem poder ver comida, com diarreia e muito irritado, de um dia para o outro acordou com falta de ar. Na Urgência do seu Hospital fez uma TAC Pulmonar que revelou uma pneumonia bilateral grave. No dia seguinte foi transferido para o Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra. Passadas 24 horas estava nos cuidados intensivos, ventilado, onde esteve oito dias.

No dia 11 de abril, sábado de Páscoa, o Dr. Ferraz voltou para o Hospital da Figueira, onde permaneceu uma semana antes de ter alta para casa. Mas ainda teve de passar pelo drama de à chegada ao hospital saber que a mulher estava lá internada também com covid. Consciência plena de ter sido ele a infetá-la. Haviam passado quase três semanas sem se contactarem. O Dr. Ferraz emagreceu 12 quilos. Mais de duas semanas sem conseguir tomar um duche em pé, nem conseguir vestir um pijama ou umas calças. Tinha de se sentar sem força alguma.

O prognóstico nesta doença é uma espécie de roleta russa. Já se sabe muita coisa sobre o SARS-CoV-2, mas ainda muito pouco sobre os efeitos a longo prazo. Para este propósito, ainda não passou tempo suficiente. O genoma e a constituição das proteínas do vírus da covid-19, bem como o modo como se replica nas células que infecta, são conhecimentos já seguros. 
Apanhamos o vírus através de gotículas respiratórias quando alguém infetado, tosse, ou espirra contra nós. Ou então por partículas aéreas de muito pequena dimensão que pairam no ar de sítios pouco ventilados que frequentamos (os chamados aerossóis); ou mesmo de superfícies onde o vírus tenha pousado recentemente. As portas de entrada deste vírus são as vias respiratórias, e parece que também pode entrar pelos olhos. Infeta células do trato respiratório superior, logo nas vias nasais, onde temos os recetores em que a proteína à sua superfície do vírus se encaixa. Depois desse encaixe, a membrana da célula cede e o vírus entra na célula, onde se vai replicar à vontade. Depois sai para o exterior da célula envolto com uma camada de lípidos que teve origem na membrana celular, indo infetar outras células ao seu lado, recomeçando o ciclo replicativo. Depois de um número significativo de células infetadas no aparelho respiratório, entra na corrente sanguínea indo infetar outros órgãos que tenham o mesmo recetor (ACE2) permeável à entrada do vírus dentro da célula, indispensável para a continuação da sua replicação. Todos os órgãos que têm recetores para o vírus são potenciais locais onde ele se pode multiplicar e causar danos. Mas de resto, ainda há muita coisa acerca da biologia deste vírus que ainda não se sabe. Essa investigação básica é mais demorada e só terá impacto daqui a uns anos. Geralmente os sintomas predominam ao nível do aparelho respiratório: tosse, dificuldade respiratória, dor torácica, congestão nasal acompanhada por vezes de perda do olfato. Ao nível da cabeça e do sistema nervoso central: dor de cabeça, insónia, ansiedade, problemas de concentração, memória e raciocínio. E sintomas sistémicos: febre, mialgias, fadiga, náuseas, vómitos e perda de apetite. Por vezes diarreia e erupções cutâneas. 

Mas em relação à doença, e a todas as suas complexidades de transmissão, ainda é mais o que não se sabe do que o que se sabe. Os casos documentados de pessoas reinfectadas são poucos. O quadro clínico é muito diversificado. As autópsias ainda são menos. Nunca se investigou tanto em tão pouco tempo. E nunca a informação pública foi tanta. E mais, no meio de tanta informação e desinformação, metade dos estudos publicados contrariam a outra metade. É convicção da maioria dos especialistas médicos que têm estado envolvidos no combate a esta pandemia, que os estudos já publicados nas revistas médicas de melhor referência, e já são da ordem dos milhares, vai valer pouco em termos científicos daqui a um ou dois anos. E no entanto, comunidade científica nunca tinha dado as mãos com tanta força como agora. Uma resposta relâmpago que culminou na administração de uma vacina passado menos de um ano após o aparecimento do primeiro caso.

Entre os vários, para já, mistérios, um é o das crianças poderem albergar cargas virais maiores do que os adultos doentes. Essas crianças na sua enorme maioria ficam assintomáticas, ou têm manifestações leves da doença. Outro é o da imunidade de grupo. Quando a infeção está controlada ao nível da comunidade, os portadores assintomáticos do vírus não parecem originar novos surtos. Mas no caso de a infeção se descontrolar, que é expressa em vários casos de sintomáticos, portanto doentes a necessitar de internamento hospitalar. As incógnitas na imunidade são muitas e complexas.

A imunidade de grupo não será alcançada de forma natural e será mesmo necessária a vacinação. Já houve estudos que apontaram que 20% da população tinha de estar imunizada e outros indicaram cerca de 70%. Estamos, muito provavelmente, numa situação clássica em que se precisará de 70% da população imunizada e de forma natural não vamos conseguir isso.

Quanto às mutações genéticas, elas fazem parte do processo natural de evolução de um vírus. Será que há algumas que podem ser prejudiciais? Para este vírus já se descreveram milhares de mutações e a sua taxa de mutação é de cerca de duas mutações por mês desde o primeiro genoma sequenciado, o que é baixo comparando com a maioria dos vírus deste tipo. Saber exatamente o efeito que têm ao nível da transmissão é extremamente difícil.

Por fim, a vacina. Há ainda muitas incógnitas em relação às vacinas, nomeadamente se é igualmente eficaz em todos os grupos etários ou se a sua eficácia é longa. “Vamos ter de tomar a vacina todos os anos? Ou de dez em dez anos? São tudo questões em aberto. O mais certo é o vírus continuar a acompanhar-nos, tal como nos acompanham outros vírus respiratórios com que temos tido contacto ao longo de séculos.

domingo, 13 de dezembro de 2020

Migrações - Milos Tsernianski (Crnjanski)



«Ele estava cansado de migrar, cansado da inquietação que atormentava as pessoas que ele liderava tanto quanto o atormentava. Se ele deixasse o exército, teria de se juntar ao irmão e viajar como comerciante de cidade em cidade, com a filha atrás. Se permanecesse no exército, ainda seria forçado a viajar. O seu dever é pacificar as populações migratórias.»
Migrations, 1929, romance de Milos Crnjanski (1893-1977), escritor sérvio, do modernismo sérvio, nascido a norte da Sérvia, onde hoje faz fronteira com a Hungria. O romance passa-se na década de 1740. A leitura ou releitura deste romance é apropriada numa altura em que a mesma área é palco de uma dramática saga de migrantes depois de sobreviverem ao naufrágio no Mediterrâneo, ou no Mar Egeu, para chegarem à rota que os levará ao acolhimento putativo dos países mais ricos da Europa.  

Em meados do século XVIII, a Sérvia era alvo da ganância dos impérios otomano e austro-húngaro. E dois irmãos lutam por um sentido de identidade pessoal, num cenário devastado pela guerra. Vuk Isakovic, um oficial romântico a braços com as forças austro-húngaras, e o seu cínico e oportunista irmão, Arandjel, um comerciante que lucra com o caos da guerra. Obcecado pela relação amorosa entre Vuk e Dafina, Arandjel seduz a sua misteriosa cunhada enquanto Vuk está fora em campanha militar. Dafina morre após manobras de abortamento, ao tentar interromper a gravidez resultante desse envolvimento. Temos assim, o remorso de Arandjel, que amou Dafina; e um Vuk muito desiludido com o rumo que a guerra estava a levar: soldados eslavos prontamente executados por violarem o código de honra do seu exército. Embora o romance nunca integre totalmente o drama dos dois irmãos, a prosa apaixonada, muitas vezes mágica, compensa um enredo não tão bem resolvido. 

Um romance histórico, impulsionado pela guerra, um divisor de águas para a população da fronteira militar do império Austro-Húngaro (Habsburgo). A um outro nível, o romance é uma história do povo sérvio, uma história ainda hoje não resolvida. A vários níveis questiona o significado da guerra, do amor, do dinheiro.  

Mercenários sérvios que servem no exército austro-húngaro, numa altura em que a ameaça otomana recuava, saem de casa para lutar contra os franceses numa série de batalhas brutais. As tensões inerentes ao sistema das fronteiras militares foram expostas, espalhando-se em agitação periódica, cujos esforços de reforma nunca foram bem contidos. É o sofrimento do duro e opressivo regime nas zonas de fronteira. E é a sujeição à implantação estrangeira com as suas tentativas de conversão religiosa forçada. Tudo isso a testar a lealdade dos Grenzers à dinastia dos Habsburgo, em oposição à sua lealdade familiar e comunitária. Tais conflitos de lealdade levavam muitas vezes à deserção, e consequente emigração. 

Os habitantes das fronteiras militares sentem que as suas vidas são um ciclo interminável de migração e morte, onde o significado dos seus sacrifícios, o significado de família e amizades são postos em causa. Qualquer esperança de se construir um futuro seguro e pacífico para os filhos é desintegrada na lama que envolve as migrações forçadas. Assentar no Império Austro-Húngaro significava abandonar a identidade nacional. A assimilação significava tornarem-se servos ou trabalhadores. Apenas alguns afortunados podiam desfrutar a cidadania plena através das promoções no serviço militar imperial. 

A experiência das migrações leva as pessoas a sentirem-se sombras de si mesmas. E sombras umas das outras. Sem um sentido seguro do seu lugar e futuro no mundo, elas são incapazes de uma narrativa coerente do Eu e do Outro nas suas vidas. Daí o apego a símbolos e mitos, na tentativa de um rumo para as suas vidas inseguras. É o mito de um reino perdido que só pode ser recuperado através de uma série de andanças e julgamentos. 

Os anos passarão. Quem deve contar os pássaros que migram ou os raios que o Sol carrega de Leste a Oeste, de Norte a Sul? Quem deve prever que povos migrarão, e para onde, nos próximos cem anos?
 Que sementes brotarão no próximo século na Europa, Ásia, América e África?




Milos Crnjanski, a partir de 1913,  vai estudar História da Arte na Universidade de Viena. Em 1914, no início da Primeira Grande Guerra, é recrutado. Um dos poucos sobreviventes, ele já estava tuberculoso mesmo antes de o seu regimento ter sido dizimado. Ithaca, os seus primeiros poemas, narra as experiências de guerra, poemas autobiográficos.  

Após a guerra, vai para Belgrado, onde se matricula na Universidade em Literatura Comparada, História e História da Arte. Mas depois, acaba por vender a casa que era do pai, e muda-se para Paris. Depois viaja por Roma e Florença, onde permanece algum tempo, até que a partir de 1928 passa a ser adido cultural do Reino da Jugoslávia em várias cidades: Berlim, Roma e Lisboa. 
Em 1941 junta-se ao governo exilado em Londres. Depois da guerra, é o regime de Tito, fica por lá no exílio, em grande pobreza, até 1965, embora as suas obras tenham sido publicadas na Jugoslávia, a partir de meados da década de 1950. Mas quando regressa à Jugoslávia é celebrado e premiado com o maior prémio literário jugoslavo NIN. Milos Crnjanski morre na Sérvia a 30 de novembro de 1977, na cidade de Belgrado. 

Ž - Um fotógrafo de guerra desaparecido. De um conto de Alexandra Lucas Coelho




Este conto foi escrito e publicado em Belgrado, em janeiro de 2015, no âmbito da residência de escrita Krokodil em parceria com o Centro de Língua Portuguesa de Belgrado/Instituto Camões

Ð liga para Lisboa, a uma jornalista repórter, chamemos-lhe Alexandra, para lhe perguntar quando poderá ir a Belgrado. Precisava que ela lhe reconstituisse a história de Ž. Ora, foi na noite de 2014 para 2015, quando chegou ao encontro de Ð na fortaleza da capital sérvia, e alguém disse que estavam doze graus negativos oferecendo um golo de rakija

Ž tinha quinze anos a 4 de maio de 1980, quando Tito morreu em Liubliana, Eslovénia.Ž partilhava o quarto com dois irmãos, e tinha de negociar com eles o tráfego de namoradas. Portanto, punks de Dedinje mas não menos punks por isso, fuck off.”

O que poderia Alexandra dizer sobre Ž a quem crescera nas mesmas trincheiras de Ž? Alexandra havia aterrado em Belgrado no começo do inverno, como ela dizia "para uma espécie de garimpo de fora para dentro". Quando Tito morreu, já Рse encontrava a milhas, bolseiro de estudos pós-coloniais, aluno de Edward Said. 

É 25 de dezembro, e Alexandra apanha um táxi em direção à antiga mansão de Tito em Dedinje. O táxi parou junto ao muro de um extenso parque, bem em frente à mansão de Tito, e onde Miloševic se havia instalado nos anos 90. O facto de Miloševic morar na mansão de Tito significava que era a Grande Sérvia a ocupar a Casa da Jugoslávia. A História ia recomeçar nele.
«Caminho ao longo do muro da mansão. O táxi espera do outro lado da estrada. Ninguém nos passeios, nenhum cartaz, nenhuma tabuleta, a jugo-nostalgia contemporânea não parece chegar aqui, talvez porque não se possa entrar, talvez porque Miloševic morou lá dentro, e se Tito deu vida à Jugoslávia, Miloševic enterrou-a, ou talvez por a casa ter sido bombardeada pela NATO em 1999. Os destroços continuam à vista, através do rendilhado de um portão. 
(Há uns curto-circuitos assim no meio de Belgrado, subitamente numa avenida dois edifícios bombardeados, lado-a-lado. Não sei se é uma decisão ou a ausência dela, e até hoje não perguntei.) 
Esta rua — Užicka — entrou para a história do século XX à bomba (já na Segunda Guerra, os Aliados bombardearam os alemães que a tinham ocupado), mas o que me interessa hoje é como ela coincide com o mapa de Ž. Eles, os proto-punks de Dedinje, vinham dos prédios com bicicletas, com trenós, com guitarras, com namoradas, consoante a estação e a idade. Em Dezembro caíam os primeiros nevões, ficava tudo fofo, depois duro, e depois pedregulhos podiam cair se a temperatura subisse de repente, desprendendo o gelo dos telhados, morre-se disso em Belgrado, como nos trópicos de um coco. Árvores em ponto de fuga, silêncio de bosque mais que de bairro: não é Tito nem Miloševic que suponho a atravessar a estrada (também não atravessariam a estrada, imagino), mas sim Ž, as longas pernas de Ž com aquelas calças de pinças, aqueles ténis, aqueles blasers, aqueles pins no blaser, aquelas franjas dos anos 1980 tapando olhos de ressaca, de quem não dá trela a ninguém. Vai fazer vinte anos amanhã, e mais um amigo acaba de morrer. »

Ž decidiu ir para o México, e disse aos pais estudar fotografia. Foram duas temporadas, a primeira, entre os vinte e os vinte e um (1985-86). No formidável campus da Universidade Nacional Autónoma, entre uns biscates, estudava fotografia. A segunda temporada, aos trinta e quatro (1999), a fotografar a violência das fábricas de Ciudad Juárez para a revista do New York Times. 

Ž, em apenas treze anos, catapultou-se para a linha da frente do fotojornalismo, de trincheira em trincheira. A primeira vez que Alexandra o viu foi em Sarajevo. Cobriu conflitos no Irão, Iraque, Roménia, Líbano, Ruanda, Irlanda do Norte, Sudão, Afeganistão, Rússia, Serra Leoa, Argélia, Israel-Palestina e claro, nas repúblicas da ex-Jugoslávia.

Pois é para Sarajevo que Alexandra vai agora, em direção ao aeroporto num táxi arranjado por Ð. Ainda tem tempo para dizer a Ð que no fim de semana vai nevar: 
De Belgrado a Sarajevo são 45 minutos de viagem a tão baixa altitude que se pode observar a passagem da planície sérvia para as montanhas bósnias, como se de súbito o mundo se levantasse num movimento interminável. Uma imagem de contornos esfumados, com a cor e a consistência de um desenho a carvão. Depois, o avião desce, curva para a esquerda e começa a percorrer o vale de Sarajevo na última hora de sol. Sarajevo estende-se como uma grande reta ao longo do rio Miljacka, montanhas de um lado e do outro e ao fundo. Lá mais para o fundo começa o pedaço austro-húngaro, palacetes e pracetas, igrejas e pontes, incluindo a graciosa Ponte Latina junto à qual foi assassinado o arquiduque Franz Ferdinand, que assim, tão involuntariamente, teve para sempre o seu nome associado ao início da Primeira Guerra, em 1914. Neva toda a noite. Domingo de manhã, os carros são contornos brancos nos passeios, difícil distinguir o passeio da estrada. Um repórter veterano, antigo parceiro de Ž, leva-a pelas montanhas. Vê então Sarajevo de onde a viam os atiradores, com os seus restos de castelos otomanos, o seu casario, as suas florestas. E recorda então os últimos meses do cerco a Sarajevo. 29 de dezembro, continua a nevar. Passeia ao longo do rio com o filho de um soldado que Ž fotografou em 1993, e a que depois voltou várias vezes. O seu parceiro de caminhada tem 27 anos. Todas as suas primeiras memórias são de guerra. Aos cinco já se escondia de snippers e sabia distinguir granadas. Volta e meia tinham de ir para uma cave a noite inteira, todo o bairro ia. Muitos prédios tinham abrigos, vinha do tempo da Jugoslávia. Ele ia com a mãe e a irmã bebé, porque o pai estava a combater, operava um lança-chamas, ficava fora durante meses, voltava por um mês, às vezes trazia latas de comida. Às vezes também conseguiam comida da ajuda humanitária, e a mãe tinha uma horta. As pessoas escavavam para encontrar água e toda a gente ia com recipientes, por trás das casas, encostada aos prédios. As crianças sabiam que não podiam brincar no meio dos pátios. A escola também era numa cave, mas ele ia às aulas quase todos os dias. Como quase sempre não havia luz, acendiam velas, candeeiros a gás e pedalavam uma bicicleta até fazer o rádio funcionar, só cinco minutos para ouvir as notícias, ora ele, ora a mãe. Em suma, o que ele sabia era que os sérvios atacavam e eles se defendiam. O filho resume isto de forma implacável, diz que teve de assumir o controlo das coisas muito cedo, e desde então nunca deixou de o fazer. Um dia avisou o pai de que o mataria se voltasse outra vez a casa embriagado, o pai desapareceu uma semana, mas nunca mais bebeu. Agora está tudo ok, tanto quanto depende dele. Arranjou o seu próprio apartamento. Não vai à mesquita, é ateu. Continua a namorar a rapariga de Belgrado, ela vem para a passagem de ano, ele ficará a morar aqui, é certo. Adora a adrenalina do que faz, todos os dias aviões diferentes, a diferentes altitudes, a diferentes velocidades, que não podem chocar, ou entrar numa daquelas nuvens com trovoada. O trabalho dele é pensar depressa. Terça, 30 de dezembro, regressa a Belgrado, onde também nevou. 
«Gosto daquele velho amigo de Ž (o do cão encantador). Diz coisas tão inesperadas para um sérvio como ter sido a favor das bombas da NATO sobre os alvos de Miloševic (apesar dos erros, apesar dos erros, incluindo um hospital). A capacidade autocrítica destes sérvios só se compara ao humor negro dos bósnios, que fazem da morte a mais escandalosa anedota. Mas nada é mais escandaloso, mesmo. 
(E viciante? Toda uma bibliografia sobre como a guerra pode ser aditiva, toda uma medicina, endorfinas, dopamina. A urgência, a intensidade, a alucinação. A segunda oportunidade que é a compaixão? A certeza de, enfim, ter um coração? Ð sabia que o assunto me interessava, era esse o assunto que levava a Ž: a guerra como única forma de estar vivo.) 
Toda a gente fuma três maços por dia em Belgrado, em virtualmente todos os lugares fechados, incluindo o elevador do meu prédio. O tabaco é barato, as rendas são baratas, a cidade tem dois rios e os homens são grandes. Do que entendi até agora parece que o único impedimento de Belgrado é que se eu beijar uma mulher na rua dá insulto, e homem com homem dá hooligans. Ó gente viril, é mesmo isso, não basta Putin? Se os hooligans não têm objectivo, qual é o objectivo dos não-hooligans? Cura, limpeza, salvação? Hitler era um homossexual reprimido. Matou seis milhões mas manteve-se virgem. Isso dá-lhe créditos no inferno? 
Já agora, em que inferno penará Arkan, que chegou a comandar uma claque do Estrela Vermelha quando já tinha uma sólida carreira de bandido internacional, e depois fez dos seus hooligans a mais temida milícia dos Balcãs, raptos, torturas, execuções, extorsões? Fascinante imaginar as conversas dele com deus quando se refugiava num mosteiro ortodoxo com os seus tigres armados, todos bem acolhidos, quem sabe até o seu tigre bebé. 
Mais um rapaz de Dedinje, Arkan, mas uma geração antes de Ž. A única vez que se cruzaram foi quando Ž o fotografou no instante da morte, coincidência raríssima na história da fotografia. Porque, por acaso, às cinco da tarde de 15 de Janeiro de 2000, Ž estava no foyer do Hotel InterContinental de Belgrado à espera de alguém. Como não vinha para fotografar tinha só uma pequena câmara na mochila, com um filme já a meio, e pegou nela discretamente ao avistar o gangue de Arkan: os homens que o guardavam, a interacção com tudo em volta. Minutos depois os assassinos entraram no seu campo de visão. Em 38 tiros, três foram fatais, boca, têmpora, olho. A última imagem de Ž capta o momento em que a senhora Arkan — Ceca, inflada diva do turbo-folk — vem a correr da loja onde fazia compras. Depois, o filme acaba. 
Ž publicou as fotografias, com uma curta declaração sobre o acaso que o levara ao hotel, mas recusou-se uma vez mais a dar entrevistas. Anos de especulação mundial. Uns viram nisso uma ligação de Ž ao assassinado, outros uma ligação de Ž aos assassinos. Os acasos têm péssima fama. 
A segunda vez que vi Ž, em 2002, ele contou-me como o caso Arkan gerou nele uma repulsa que o afastou da ex-Jugoslávia para sempre. Estávamos bem longe daqui, numa Ramallah invadida por tanques israelitas, sob recolher obrigatório. Não lhe contei o que acontecera da primeira vez, não valia a pena. Eu decidira sozinha, e neste fim de 2014, em Belgrado, brindo a isso de nenhuma portuguesa ainda ter de abortar clandestinamente. 
Rakija de alperce: amanhã, antes de o ano acabar e subirmos ao Kalemegdan, vou dizer a Ð que não consigo reconstituir a história de Ž. Cada vez tenho menos certezas sobre ele, o que provavelmente significa que ele será cada vez mais ele próprio. Portanto a história continua, Ž só decidiu desaparecer no mundo, como o seu herói J. D. Salinger. Mas eu também não gostaria de escrever a história de Salinger contra o seu próprio silêncio. 
Uma banda de outro planeta ataca numa antiga igreja transformada em teatro, clube, bar. Eu achava que ia só ouvir jazz, mas em Belgrado nunca é tão simples. Eles têm um DJ, eles misturam Marvin Gaye com música iraniana, eles querem que a gente dance. E quando vou lá perguntar se já gravaram um disco dizem que não estão interessados, que é só pelo gozo de estarmos todos vivos, ao mesmo tempo, aqui. Coitado do Kusturica. Quem? »

Contos Jugoslavos




Os contos e lendas sérvias constituem um manancial do imenso legado, de longa tradição, de contos de origem eslava. Um deles é o conto do Sem Barba e o Rapaz:
«O pai manda o filho ao moinho com cereal para moer. Mas recomenda-lhe que se ao chegar ao primeiro moinho encontrar por lá o Sem Barba, nome porque é conhecido um burlão ardiloso, não deverá  entrar nesse moinho, e ir moer a outro moinho. Assim, quando chega ao primeiro moinho, vê o Sem Barba a moer o seu grão. Então o Rapaz vai procurar outro moinho. Mas quando o encontra, já já estava o Sem Barba a moer o seu grão. E a cena repete-se em mais uns tantos moinhos. Por fim o Sem Barba desafia o Rapaz para um jogo. Quem mentir melhor fica com o pão todo. As rábulas desfiam-se umas atrás das outras até que ao fim de um longo tempo por um bom troço de tempo até que o Rapaz conta a seguinte estória: "No sítio da cabeça ela não estava, apercebi-me de que me tinha esquecido dela. Voltei para trás a correr à procura da cabeça. Até que encontrei uma raposa; e reparei que ela estava a comer o meu cérebro. Esgueirei-me de mansinho por trás de uma moita, e dei-lhe um pontapé no traseiro. A raposa assustou-se e deu um grito. Ao fugir deixou cair um papel que dizia: "para o Rapaz pão, para o Sem Barba nada." O Rapaz recolheu o pão todo e voltou ao lar, onde o pai o esperava confiante na competência do Rapaz

 

sábado, 12 de dezembro de 2020

Les Contes de ma Mère, l'Oye - Charles Perrault




O Barba Azul é um conto popular, sendo a versão mais famosa a de Charles Perrault, publicada em 1695 nos Les Contes de ma mère l'Oye. É também o nome do personagem central da história. É nesta altura que aparecem os contos de fadas, muito em voga no século XVII. Paradoxalmente, mais para adultos de círculos burgueses e aristocráticos,  do que para crianças.

O autor escreve os contos inspirado nos contos folclóricos, e talvez também numa coleção italiana. Perrault terá sido, portanto, um dos primeiros colecionadores, embora não cite as suas fontes. O que Perrault faz é adoçar os contos folclóricos, enriquecendo as versões originais.

O personagem da história do Barba Azul é de um homem rico, cuja barba azul lhe dá uma aparência feia e medonha. Ele teve várias esposas no passado, mas nada se sabe o que lhes aconteceu. Ao pedir às mulheres vizinhas em casamento, elas tinham-lhe medo, pelo que rejeitavam. Mas há um dia em que uma dessas vizinhas aceita casar com ele, seduzida pela sua riqueza. Um mês depois das núpcias, ele diz à esposa que tem de viajar. Confia-lhe um conjunto de chaves que abriam todas as portas do castelo. Uma dessas chaves, é a chave de um armário, que ele lhe transmite com veemência estar proibida de lá entrar. Mas a curiosidade da mulher é irresistível. Entra na sala onde está o armário, abre o armário, e descobre os corpos das outras mulheres. Assustada, deixa cair a chave. Ao baixar-se para apanhar a chave vê-a manchada de sangue. Tenta limpar o sangue, mas o sangue não desaparece. A chave é mágica.

O Barba Azul volta de surpresa e descobre que foi desobedecido. Furioso, prepara-se para a degolar, o mesmo que tinha feito às anteriores. Mas ela, ao vê-lo de volta, e determinado a executá-la com uma faca da cozinha, implora-lhe que lhe dê algum tempo para fazer as suas orações antes de morrer. Sucede que os seus dois irmãos haviam marcado para esse dia fazer-lhe uma visita. Barba Azul concede-lhe então um quarto de hora. Enquanto isso, Anne, uma irmã que estava com ela, sobe a uma torre para ver se os irmãos estão a caminho. A irmã pergunta-lhe desesperadamente se os vê chegar. Anne responde repetidamente que vê apenas o sol e a erva verde. O Barba Azul determina que o tempo acabou e grita segurando-a pelos cabelos, no momento em que os irmãos chegam, a tempo de o poderem matar. Herdeira de toda a fortuna do marido, recompensa generosamente os irmãos. A Anne, trata de lhe proporcionar um bom casamento. E aos irmãos ajuda-os a subir nas carreiras de militar. E ela casa com um homem, que com grande honestidade a faz finalmente feliz.  

O Barba Azul acaba por ser uma variante do Ogre, uma criatura mitológica do folclore europeu. E é uma 'estorinha' que se cruza com a vida real. Por exemplo, Henrique VIII foi conotado com o Barba Azul. Teve seis mulheres, duas delas condenou-as à morte – Ana Bolena e Catherine Howard. E Gilles de Rais, companheiro de armas de Joana D’Arc, foi descrito como o "Barba Azul" em Nantes. Ele foi executado após condenação por ter assassinado várias mulheres após as ter violado, algumas delas ainda muito jovens. Independentemente das origens e das várias versões populares, o personagem “Barba Azul” inspirou muitos escritores, músicos e cineastas, inclusivamente com ligações a mitos muito antigos que remontam à Antiguidade, como por exemplo o mito da Caixa de Pandora, e teorias cabalísticas sortidas. Catherine Velay Vallantin dedica um capítulo do seu livro “A História dos Contos” ao conto do Barba Azul, que ela contrasta com duas canções tradicionais: Renaud, o assassino de mulheres; e La Maumariée ,vingada pelos seus irmãos. 
Catherine Velay Vallantin observa que em algumas variações italianas do conto, o Barba Azul come cadáveres. 


Desenhos de Gustave Doré [1832-1883], da edição de 1862 de Os Contos de Perrault



Ilustrações de Walter Crane [1845-1915], da edição de 1875 de Os Contos de Perrault