terça-feira, 27 de dezembro de 2022

Walther Schwieger e o submarino U-20




Submarino alemão U-20

Wilhem Otto Walther Schwieger [1885-1917] foi o comandante do submarino da Marinha Imperial Alemã – U-20 (U-boat servisse) – que em 1915, durante a Primeira Guerra Mundial, afundou o transatlântico Lusitânia, que levou com ele 1198 passageiros para o fundo do mar. Este evento levou a que os Estados Unidos entrassem na Guerra. E em 31 de maio de 1917, Schwieger no seu U-boat U-88 afundou o navio Miyazaki Maru durante a viagem desse navio saído de Yokohama em direção a Londres, causando a perda de oito vidas. Em 5 de setembro de 1917 morreu em combate, tendo sido afundado pelo Q-Ship britânico HMS Stonecrop.



Lusitânia

Durante a sua carreira de guerra, Schwieger capitaneou três submarinos diferentes, em um total de 34 missões. Ele afundou 49 navios. Sob o comando de Schwieger, o U-20 tinha pelo menos um cão a bordo. Houve uma ocasião em que havia seis, quatro deles filhotes, todos dachshunds, produto inesperado de um ataque à costa da Irlanda.

Naquela ocasião, seguindo as regras de cruzeiro, Schwieger perseguiu e deteve um navio português. Esperou que os tripulantes fossem embora e ordenou à guarnição de peça que afundasse o barco. Era o seu modo favorito de ataque. Reservava os poucos torpedos de que dispunha para os maiores e melhores alvos. A guarnição de peça tinha boa pontaria, e disparou uma série de projéteis contra a linha de flutuação do cargueiro. Logo o navio sumiu de vista, ou, como disse Zentner, “se ajeitou para fazer um pouco de navegação vertical”. No meio dos destroços que flutuavam na superfície, os homens avistaram uma vaca nadando e mais alguma coisa. O acordeonista barbudo foi o primeiro a ver, e gritou: “Ach Himmel, der kleine Hund!” Apontou para uma caixa. Uma minúscula cabeça e duas patas de uma cadela apareciam na borda. O U-20 se aproximou; os tripulantes içaram a cadela para bordo. Deram-lhe o nome de Maria, em homenagem ao cargueiro afundado. Mas não havia nada que pudessem fazer pela vaca.

O submarino já tinha um cão a bordo, um macho, e não demorou para que Maria ficasse grávida. Ela pariu quatro filhotes. O acordeonista ficou encarregado de tomar conta dos cães. Achando que seis cães eram demais para um U-boat, os tripulantes deram três filhotes a outro navio, mas ficaram com um. Zentner dormia com ele em seu beliche, perto de um torpedo: “Assim, toda noite eu dormia com um torpedo e um filhote de cachorro.”

É irónico constar nas narrativas de que Schwieger era capaz de criar um ambiente muito humano, testemunho da sua habilidade para liderar pessoas, tanto mais imaginando nós como serão as condições dentro de um U-boat. Os navios eram atulhados, em especial no início de uma missão de patrulhamento, com dispensa de alimentos em todos os lugares possíveis, incluindo a latrina. Carnes e hortaliças eram guardados nos locais mais frios, em meio à munição. A água era racionada. Quem quisesse fazer a barba tinha de usar restos do chá da manhã. Ninguém tomava banho. Alimentos frescos duravam pouco. Sempre que possível, os tripulantes saíam em busca de comida. Um U-boat despachou um grupo de caça para uma ilha escocesa e matou uma cabra. Tripulantes rotineiramente saqueavam navios à procura de presunto, ovos, bacon e frutas. O ataque de um avião britânico deu aos tripulantes de um U-boat um inesperado regalo quando a bomba lançada errou o alvo e explodiu no mar. O abalo trouxe à superfície um cardume de atuns aturdidos.

Os tripulantes do U-20 certa vez saquearam um barril de manteiga, mas àquela altura o cozinheiro do navio não tinha mais nada à mão que servisse para fritar. Schwieger saiu às compras. Pelo periscópio avistou uma frota de barcos pesqueiros e emergiu bem no meio deles. Os pescadores, surpresos e aterrorizados, não tiveram dúvida de que seus barcos seriam afundados. Mas Schwieger só queria peixe. Aliviados, eles deram aos tripulantes todo o peixe que puderam carregar.

Schwieger ordenou ao submarino que submergisse, para que a tripulação jantasse em paz. “E então”, disse Zentner, “havia peixe fresco, frito na manteiga, grelhado com manteiga, salteado na manteiga, tudo o que pudéssemos comer”. Porém aquele peixe e seus odores residuais só podiam piorar o que a vida no U-boat tinha de mais desagradável: o ar dentro do navio. Primeiro havia a base de fedor de dezenas de homens que não tomavam banho, cujas roupas de couro não pegavam ar, e que compartilhavam um pequeno lavabo. A sanita de vez em quando exalava para o navio o cheiro de um hospital de cólera, e só se podia dar descarga quando o U-boat estivesse na superfície ou em águas rasas, para que a pressão submarina não impulsionasse material de volta para dentro. Isso costumava acontecer com oficiais e tripulantes novatos e era chamado de “batismo de U-boat”. O odor do óleo diesel infiltrava-se em todos os cantos, fazendo com que toda a chávena de chocolate e toda a fatia de pão torrado tivessem gosto de óleo. E havia ainda as fragrâncias que a cozinha continuava a exalar bem depois que as refeições eram preparadas, mais notavelmente aquele primo legítimo do cheiro do corpo masculino, o cheiro de cebola velha.

Tudo isso era agravado por um fenómeno exclusivo dos submarinos, que ocorria quando estavam submersos. Os U-boats carregavam quantidades limitadas de oxigênio, em cilindros, que injetavam ar no navio a uma proporção que dependia do número de homens a bordo. Fazia-se o ar exalado circular em um composto de potássio para expurgar o ácido carbônico, e injetava-se de novo esse ar processado na atmosfera do navio. Tripulantes de folga eram incentivados a dormir, porque dormindo consome-se menos oxigênio. Quando submerso em grande profundidade, o navio desenvolvia uma atmosfera interior parecida com a de um pântano tropical. O ar ficava desagradavelmente úmido e denso, porque o calor gerado pelos homens, pela emanação dos motores a diesel recém-desligados e pelo aparato elétrico da embarcação aquecia o casco. Quando o navio descia em águas cada vez mais frias, o contraste entre o calor interno e a frieza externa produzia uma condensação que empapava roupas e gerava colónias de bolor. Os tripulantes davam ao fenómeno o nome de “suor de U-boat”. Ele tirava o óleo do ar e o depositava no café e na sopa, produzindo vazamentos de óleo em miniatura. Quanto mais tempo o navio ficasse submerso, piores as condições se tornavam. As temperaturas internas ultrapassavam os 37°C. “Você não faz ideia da atmosfera criada gradualmente nessas circunstâncias”, escreveu um comandante, Paul Koenig, “nem da temperatura infernal que fermenta dentro da concha de aço”.

Os homens ansiavam pelo momento em que o navio subiria para a superfície e a escotilha da torre de comando seria aberta. “A primeira lufada de ar fresco, a escotilha da torre de comando aberta e o despertar dos motores a diesel, depois de quinze horas no fundo, constituem uma experiência que merece ser vivida”, disse outro comandante, Martin Niemöller. “Tudo desperta para a vida e não há alma que pense em dormir. O que todos querem é uma lufada de ar e um cigarro fumado no abrigo do passadiço.” Além disso, todos esses desconfortos eram sofridos num clima de constante perigo, com todos cientes de estarem sujeitos ao pior tipo imaginável de morte: a lenta asfixia em um tubo de aço escuro no fundo do mar. Numa das patrulhas do U-20, essa possibilidade chegou a parecer real e iminente.

Em abril de 1917, o Kptlt. Walther Schwieger recebeu o comando de um novo submarino, o U-88, maior do que o U-20 e com duas vezes mais torpedos. Poucos meses depois, em 30 de julho, foi agraciado com a mais alta condecoração da marinha alemã, uma bela cruz azul de nome francês, Pour le Mérite. Até àquela época, apenas sete comandantes de U-boat tinham recebido uma, sua recompensa por ter afundado 190 mil em arqueação bruta de navios. Só o Lusitânia correspondia a 16% desse total.

Em Londres, no velho edifício do Almirantado, a Sala 40 rastreou Schwieger e seu novo navio durante quatro cruzeiros, um dos quais durou dezanove dias. O quarto cruzeiro começou em 5 de setembro de 1917 e foi consideravelmente mais curto. Logo depois de entrar no mar do Norte, Schwieger deparou com um navio camuflado britânico, o HMS Stonecrop, pertencente a uma classe chamada mystery ships, de navios que pareciam cargueiros vulneráveis, mas estavam, na verdade, fortemente armados. Ao tentar escapar, Schwieger atirou o seu submarino para dentro de um campo minado britânico. Nem ele nem os tripulantes sobreviveram, e o submarino jamais foi encontrado. A Sala 40 assinalou a perda com um pequeno registo a vermelho: “Afundado.”

Na Dinamarca, moradores da costa continuaram a visitar a praia onde o U-20 tinha encalhado, e de vez em quando subiam nos destroços, até que a marinha dinamarquesa destruiu os restos em 1925, com uma explosão espetacular. Nessa época, a torre de comando, o canhão de convés e outros componentes já tinham sido removidos. Hoje residem num museu à beira-mar em Thorsminde, Dinamarca, num austero trecho do litoral do mar do Norte. Separada da base e coberta de ferrugem, a torre de comando fica à frente do museu, com toda a majestade de um fantasma desconsolado da aterradora embarcação que um dia andou à caça pelos mares e mudou a história.


segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

A moda com astúcia na irracionalidade dos prazeres mundanos

 


Recorte de um fresco de Pompeia

Durante muitos milénios, a vida coletiva humana evoluiu sem o culto das fantasias efémeras da moda. A prioridade esteve na curiosidade do mundo e no desbravar do terreno agreste. Nada disso impediu o gosto e o espanto pelas realidades naturais. No Egito antigo, o mesmo tipo de toga-túnica comum aos dois géneros manteve-se por quase quinze séculos com uma permanência quase absoluta; na Grécia, o peplo, traje feminino de cima, impôs-se das origens até à metade do século VI antes de nossa era; em Roma, o traje masculino — a toga e a túnica — persistiu, com variações de detalhes, dos tempos mais remotos até ao final do Império. A mesma estabilidade na China, na Índia, nas civilizações orientais tradicionais, onde o vestir só excepcionalmente admitiu modificações: o quimono japonês permaneceu inalterado durante séculos; na China, o traje feminino não sofreu nenhuma verdadeira transformação entre o século XVII e o século XIX. 

Na Idade Média, as indústrias têxteis e o grande tráfico comercial permitiram diversificar os materiais que serviam para a fabricação do vestuário: seda do Extremo Oriente, peles preciosas da Rússia e da Escandinávia, algodão turco, sírio ou egípcio, couros de Rabat, plumas da África, produtos corantes (quermes, laca, anil) da Ásia Menor. As indústrias da tecelagem e da tinturaria puderam fabricar tecidos de luxo que circularam em toda a Europa dos poderosos pela via indireta das feiras e do tráfico marítimo: lãs de Flandres e da Inglaterra, linho do sul da Alemanha, panos de cânhamo das regiões de Saône e de Bresse, veludos de Milão, Veneza e Génova. Mas sobretudo, com a expansão das cidades medievais, instaurou-se em alto grau a divisão do trabalho, uma especialização intensiva dos ofícios, que foram dotados, por volta da metade do século XIII, através das corporações de ofícios, de uma organização minuciosa e de uma regulamentação coletiva, encarregada de controlar a qualidade das obras, assim como a formação profissional. 

A moda, tal como a conhecemos, chegou bem tarde na História, no final da Idade Média. A moda do vestuário como sistema, apareceu com as suas metamorfoses incessantes, com os seus movimentos no sentido da extravagância mundana. A história do vestuário é a referência privilegiada deste fenómeno social. É antes de tudo à luz das metamorfoses dos estilos, e dos ritmos precipitados da mudança no vestir, que se impõe essa conceção histórica da moda, na esfera da aparência e do parecer. Em todo o caso, a moda não permaneceu acantonada no campo do vestuário. Paralelamente, em velocidades e em graus diversos, outros setores — o mobiliário e os objetos decorativos, a linguagem e as maneiras, os gostos e as ideias, os artistas e as obras culturais — foram atingidos pelo processo da moda. Mas até aos séculos XIX e XX foi o vestuário, sem dúvida alguma, que encarnou mais ostensivamente o processo de moda; ele foi o teatro das inovações formais mais aceleradas, mais caprichosas, mais espetaculares. Não há teoria ou história da moda que não tome o parecer como ponto de partida e como objeto central de investigação. 




No final da Idade Média, precisamente, inúmeros são os signos que dão testemunho de uma tomada de consciência inédita da identidade subjetiva, da vontade de expressão da singularidade individual, da exaltação da individualidade. O aparecimento da autobiografia, do retrato e do autorretrato “realistas”, ricos em detalhes verdadeiros, revela igualmente, nos séculos XIV e XV, a nova dignidade reconhecida naquilo que é singular no homem, embora em quadros ainda muito amplamente codificados e simbólicos. Com o novo sentido da identidade pessoal e a legitimação da expressão individual, ainda que esteja em vigor nos exclusivos limites do pequeno mundo da elite social, e mais formulada, vivida, do que doutrinal, pôde pôr-se em movimento a lógica proteiforme da moda. 

Durante a mais longa parte da história, as sociedades funcionaram sem conhecer os movimentados jogos das frivolidades. N
ão que os povos pré-históricos, mesmo fora dos trajes cerimoniais, não tenham por vezes o gosto muito vivo das ornamentações e não procurem certos efeitos estéticos, mas nada que se assemelhe ao sistema da moda. O processo e a noção de moda, em tais configurações coletivas, não têm rigorosamente nenhum sentido. Mesmo múltiplos, os tipos de enfeites, os acessórios e penteados, as pinturas e tatuagens permanecem fixados pela tradição, submetidos a normas inalteradas de geração em geração. 

A moda no sentido estrito quase não aparece antes da metade do século XIV. Data que se impõe, em primeiro lugar, essencialmente em razão do aparecimento de um tipo de vestuário radicalmente novo, nitidamente diferenciado segundo os sexos: curto e ajustado para o homem, longo e justo para a mulher. Revolução do vestuário que lançou as bases do trajar moderno. Um traje masculino composto de um gibão, espécie de jaqueta curta e estreita, unida a calções colantes que desenham a forma das pernas; por outro lado, substituiu-a um traje feminino que perpetua a tradição do vestido longo, mas muito mais ajustado e decotado. Transformação que institui uma diferença muito marcada, excepcional, entre os trajes masculinos e femininos. O vestuário feminino é igualmente ajustado e exalta os atributos da feminilidade: o traje alonga o corpo através da cauda, põe em evidência o busto, os quadris, a curva das ancas. O peito é destacado pelo decote; o próprio ventre, no século XV, é sublinhado por saquinhos proeminentes escondidos sob o vestido, como testemunha o célebre quadro de Jan Van Eyck, O casamento dos esposos Arnolfini (1434). 




A curiosidade pelas maneiras “antigas” de vestir-se e a percepção das variações rápidas da moda aparecem ainda na exigência, formulada desde 1478 pelo rei René d’Anjou, de buscar os detalhes dos trajes usados no passado pelos condes d’Anjou. No começo do século XVI, Vecellio desenha uma coleção “de roupas antigas e modernas”. Na França do século XVI, a inconstância do vestuário é notada por diferentes autores, especialmente Montaigne, em Les Essais: “Nossa mudança é tão súbita e tão rápida nisso que a invenção de todos os alfaiates do mundo não poderia fornecer novidades suficientes”. No começo do século XVII, o caráter proteiforme da moda e a grande mobilidade dos gostos são criticados e comentados de todos os lados nas obras, sátiras e opúsculos: evocar a versatilidade da moda tornou-se uma banalidade. A moda muda incessantemente, mas nem tudo nela muda. As modificações rápidas dizem respeito sobretudo aos ornamentos e aos acessórios, às subtilezas dos enfeites e das amplitudes, enquanto a estrutura do vestuário e as formas gerais são muito mais estáveis. 



Retrato de uma Jovem Mulher pela oficina de Sandro Botticelli, início dos anos 1480

Torrentes de “pequenos nadas” e pequenas diferenças que fazem toda a moda, que desclassificam ou classificam imediatamente a pessoa que os adota ou que deles se mantém afastada, que tornam imediatamente obsoleto aquilo que os precede. Com a moda começa o poder social dos signos ínfimos, o espantoso dispositivo de distinção social conferido ao porte das novidades subtis. Impossível separar essa escalada das modificações superficiais da estabilidade global do vestir: a moda só pôde conhecer tal mutabilidade sobre fundo de ordem; foi porque as mudanças foram módicas e preservaram a arquitetura de conjunto do vestuário que as renovações puderam disparar e dar lugar a “furores”. 




Amor pela mudança, influência determinante dos contemporâneos: esses dois grandes princípios que regem os tempos de moda têm em comum o facto de que implicam a mesma depreciação da herança ancestral e, correlativamente, a mesma dignificação das normas do presente social. A radicalidade histórica da moda sustenta-se no fato de que ela institui um sistema social de essência moderna, emancipado do domínio do passado; o antigo já não é considerado venerável e “só o presente parece dever inspirar respeito”.

A alta sociedade foi tomada pela febre das novidades, inflamou-se por todos os últimos achados, imitou alternadamente as modas em vigor na Itália, na Espanha, na França. Tudo o que é diferente e estrangeiro é snobe. Com a moda, aparece uma primeira manifestação de uma relação social que encarna um novo tempo legítimo e uma nova paixão própria ao Ocidente, a do “moderno”. A novidade tornou-se fonte de valor mundano, marca de excelência social; é preciso seguir “o que se faz” de novo e adotar as últimas mudanças do momento.

Certamente, as inovações permaneceram um privilégio de classe, um atributo dos grandes deste mundo. Mas o importante está em outra parte, no fato de que aqueles que estão no mais alto da hierarquia agora se vangloriam de modificar o que é, de inventar novos artifícios, de personalizar sua aparência. Tal transformação nos comportamentos da elite social demonstra a infiltração de uma nova representação social da individualidade no universo aristocrático. Não, a despeito das aparências, um fenómeno de classes, mas a penetração nas classes superiores dos novos ideais da personalidade singular. Estes contribuíram para o abalo da imobilidade tradicional, permitiram à diferença individual tornar-se signo de excelência social. Não se podem separar as variações perpétuas da moda e a personalização mais ou menos exibida do parecer, são duas faces estritamente complementares da nova valorização social daquilo que é singular. O erro das teorias da moda é ter considerado essas questões como estranhas uma à outra. Na realidade, trata-se do mesmo fenómeno: foi porque a individualização do parecer impôs-se como uma nova legitimidade social que a moda pôde ser esse teatro permanente das metamorfoses fugidias. Correlativamente, todas as mudanças, todas as vogas permitirão aos particulares, mesmo a níveis mínimos, uma margem de liberdade, de escolha, de autonomia do gosto.



A modelo argentina Milagros Schmoll desfila a moda primavera 2009

Simples e fantástico em sua formulação, a questão das origens da moda permanece incontornável: por que a moda apareceu e se desenvolveu no Ocidente e em nenhuma outra parte? Como explicar os fluxos e refluxos perpétuos das formas e dos gostos que escandem há seis séculos nossas sociedades? O notável é a pouca elaboração e interrogação teórica que essa questão despertou. Como ignorá-lo: sobre as origens e os móveis da moda, estamos surpreendentemente desprevenidos; os modelos que servem habitualmente de referência foram elaborados no século XIX, e desde então, no fundo, a teoria pouco avançou. 

A moda no tempo da modernidade enveredou pelo ethos de fausto, a extravagância aristocrática, nos antípodas do espírito consagrado à poupança, à previsão, ao cálculo; está do lado da irracionalidade dos prazeres mundanos e da superficialidade lúdica, na contracorrente do espírito de crescimento e do desenvolvimento do domínio da natureza. A sua volatilidade significa que o parecer não está mais sujeito à legislação intangível dos ancestrais, mas que procede da decisão e do puro desejo humano. Antes de ser signo da desrazão vaidosa, a moda testemunha o poder da mulher para mudar e inventar a sua maneira de aparecer; é uma das faces do artificialismo moderno, do empreendimento dos homens para se tornarem senhores de sua condição de existência. Com a agitação própria da moda, surge uma ordem de fenómeno exclusivo dos jogos dos desejos e caprichos frívolos nos exclusivos limites das conveniências e dos gostos do momento. 




Nenhuma teoria da moda pode restringir-se aos fatores da vida económica e material. Mesmo importantes, esses fenómenos não esclarecem em nada as variações incessantes e o excesso das fantasias que definem propriamente a moda. É por isso que tudo convida a pensar que esta encontra a sua força mais na lógica social do que na dinâmica económica. Nenhuma análise mais clássica: a instabilidade da moda se enraíza nas transformações sociais que se produziram no decorrer da segunda Idade Média e que não cessaram de ampliar-se sob o Antigo Regime. Na base do processo, a escalada da burguesia ao poder económico, que favoreceu o impulso de seu desejo de reconhecimento social e ao mesmo tempo as crescentes tendências de imitação da nobreza. À medida que as camadas burguesas conseguem adotar, em razão de sua prosperidade e de sua audácia, tal ou tal marca prestigiosa em vigor na nobreza, a mudança se impõe no alto para reinscrever o afastamento social. Desse duplo movimento de imitação e de distinção nasce a mutabilidade da moda.

É incontestável que com o crescimento da burguesia a Europa viu ampliarem-se os desejos de promoção social e acelerarem-se os fenómenos de contágio imitativo; em nenhuma outra parte as barreiras de classe, os estados e condições foram transpostas com tanta amplitude. Por exata que seja, essa dinâmica social não pode, contudo, explicar a dinâmica da moda, com suas extravagâncias e seus ritmos precipitados. Impossível aceitar a ideia de que a mudança de moda só intervém em razão de um fenómeno de difusão e de imitações ampliadas que desqualificam os signos elitistas. A própria rapidez das variações contradiz essa tese; no mais das vezes, as novidades andam muito mais depressa que sua vulgarização.

A turbulência da moda depende menos das ameaças que se exercem sobre as barreiras sociais do que do trabalho contínuo, inevitável, mas imprevisível, efetuado pelo ideal e pelo gosto das novidades próprios das sociedades que se desprendem do prestígio do passado. Fraqueza da abordagem clássica, que só vê nas flutuações da moda coação imposta de fora, obrigação resultante das tensões simbólicas da estratificação social, ao passo que correspondem à manifestação de novas finalidades e aspirações sócio-históricas.

Assim, a questão do motor da moda não pode deixar de levar em consideração as transformações que afetaram as disposições e aspirações da elite social. Trata-se de compreender como o alto da hierarquia chegou a investir dessa maneira na ordem das aparências, como pôde dedicar-se a destruir a ordem imóvel da tradição e entregar-se à espiral interminável da fantasia. 
Para conquistar e conservar honra e prestígio, as classes superiores devem dar e despender amplamente, devem fazer exibição de riqueza e de luxo, manifestar ostensivamente, por suas boas maneiras, seu decoro, seus adereços, que não estão sujeitas ao trabalho produtivo e indigno. Daí a necessidade, para aliviar-nos do efeito despropositado dessas formas, de novos trajes ridículos do mesmo modo fiéis ao inusitado, mas do mesmo modo contrários ao bom gosto: a moda e o artístico são antinómicos. O reducionismo sociológico encontra-se aqui em seu ponto culminante: os entusiasmos delirantes traduzem apenas nossa aspiração à estima social; só gostamos dos géneros em voga na medida em que permitem classificar-nos socialmente, “demarcar-nos”, tirar deles um proveito distintivo.

A lei do esbanjamento ostentatório e a corrida pela estima impõem-se então mais imperiosamente, tendo por consequência a mudança permanente das formas e dos estilos. A norma do esbanjamento era particularmente imperiosa; no entanto, a moda não pôde encontrar seu lugar de eclosão nesse tipo de sociedade. De facto, o imperativo de exibir riqueza não aumentou no Ocidente moderno, mas manifestou-se de modo diferente; mais exatamente, aliou-se estruturalmente à busca da diferença individual e à inovação estética. Na base do afloramento da moda, não a ascensão em grandeza do esbanjamento para exibição, e sim o aparecimento de novas exigências, de novos valores que certamente se traduziram no código imemorial da prodigalidade ostensiva, mas que daí não se deduzem mecanicamente. 




Longe de ser um epifenómeno, a consciência de se afirmar com destino particular, a vontade de exprimir uma identidade singular, a celebração cultural da identidade pessoal foram uma “força produtiva”, o próprio motor da mutabilidade da moda. Para que aparecesse o impulso das frivolidades, foi preciso uma revolução na representação das pessoas e no sentimento de si, modificando brutalmente as mentalidades e valores tradicionais; foi preciso que se desencadeassem a exaltação da unicidade dos seres e seu complemento, a promoção social dos signos da diferença pessoal.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

Os Xistos de Burgess



Os Xistos de Burgess é uma série de leitos fósseis nas Montanhas Rochosas canadenses que foi notado pela primeira vez em 1886 por Richard McConnell, do Serviço Geológico do Canadá. As suas descobertas e as subsequentes, chamaram a atenção do paleontólogo Charles Doolittle Walcott, que em 1907 reservou tempo livre para reconhecer a área. Ele abriu uma pedreira em 1910 e numa série de viagens de campo trouxe de volta 65.000 espécimes, que ele identificou como da idade do Câmbrico Médio. Em 1924, o professor da Universidade de Harvard, Percy Raymond, recolheu mais fósseis da pedreira de Walcott e mais acima em Fossil Ridge, onde fósseis ligeiramente diferentes foram preservados.



O lago O’Hara aninha-se no sector canadiano das montanhas Rochosas a mais de dois mil metros de altitude, “como uma esmeralda numa taça de montanhas”, escreveu o paleontólogo Charles Walcott em 1911



Foi o cavalo da mulher de Walcott, ao virar uma laje de xisto, que pôs a descoberto crustáceos fósseis de um tipo especialmente antigo e incomum. Caía neve – o inverno chega cedo nas montanhas Rochosas canadenses –, de modo que eles não permaneceram ali, mas no ano seguinte, na primeira oportunidade, Walcott voltou ao local. Reconstituindo a suposta rota da queda da laje, ele subiu 230 metros até quase ao topo da montanha. Ali, 2440 metros acima do nível do mar, encontrou um afloramento de xisto, do tamanho aproximado de um quarteirão, contendo uma série inigualável de fósseis imediatamente posteriores ao momento em que a vida complexa irrompeu numa profusão de tal modo exuberante que ficou famosa como explosão câmbrica. O afloramento tornou-se conhecido como os Xistos de Burgess (Burgess Shale).

Mais de 500 milhões de anos atrás, quando os Xistos de Burgess foram formados, não ficava no alto de uma montanha, e sim na base. Especificamente, era uma bacia oceânica rasa no fundo de um penhasco íngreme. Os mares daquela época pululavam de vida, porém normalmente os animais não deixavam registos, devido ao corpo mole decompor-se depois de morrer. Mas em Burgess, o penhasco desmoronou, e as criaturas em baixo, soterradas sob o deslizamento, foram pressionadas como flores dentro de um livro, e seu aspeto foi preservado em detalhes assombrosos. Tanto na quantidade como na diversidade, a coleção era inigualável. Alguns dos fósseis de Walcott possuíam conchas; muitos outros, não. Alguns eram dotados de visão, outros eram cegos. A variedade era enorme, consistindo em 140 espécies, segundo uma contagem.

Walcott morreu em 1927, e os fósseis de Burgess foram basicamente esquecidos. Por quase meio século, jazeram trancados em gavetas no Museu de História Natural Americano, em Washington, raramente consultados e nunca questionados. Até que, em 1973, um estudante de pós-graduação da Universidade de Cambridge, chamado Simon Conway Morris, fez uma visita à coleção. Ele se espantou com o que achou. Os fósseis eram bem mais variados e magníficos do que Walcott indicara em seus textos. Em taxonomia, a categoria que descreve os planos corporais básicos de todos os organismos é o filo, e ali, Conway Morris concluiu, estavam gavetas e mais gavetas de tais singularidades anatómicas – todas, surpreendente e inexplicavelmente, não reconhecidas pelo homem que as encontrara.

Com o seu supervisor, Harry Whittington, e o colega estudante de pós-graduação Derek Briggs, Conway Morris dedicou os anos seguintes a uma revisão sistemática de toda a coleção, produzindo uma monografia empolgante após outra, à medida que as descobertas se acumulavam. Muitas das criaturas empregavam planos corporais não apenas diferentes de qualquer coisa vista até então ou depois, mas estranhamente diferentes. Uma delas, de nome Opabinia, possuía cinco olhos e um focinho em forma de bocal com garras na ponta. Outra, um ser em forma de disco chamado Peytoia, assemelhava-se a uma fatia de abacaxi. Havia tantas novidades não reconhecidas na coleção que, a certa altura, após abrir mais uma gaveta, alguém ouviu Conway Morris murmurar a frase que se tornou famosa: “Porra, mais um filo!”.

O Câmbrico foi uma época de inovações e experimentações inéditas nos projetos corporais. Durante quase 4 mil milhões de anos, a vida havia vacilado, sem nenhuma ambição detectável em direção à complexidade, e aí, subitamente, no espaço de apenas 5 ou 10 milhões de anos, criara todos os projetos corporais básicos ainda em uso. O mais surpreendente, porém, foi o número de projetos corporais que não conseguiram prosperar, por assim dizer, não deixando descendentes. No todo, segundo Stephen Jay Gould, pelo menos quinze, e talvez até vinte dos animais de Burgess não pertenciam a nenhum filo reconhecido. “A história da vida”, escreveu Gould, “é uma história de retirada maciça seguida de diferenciação dentro de algumas estirpes sobreviventes, não a lenda convencional de um aumento constante da excelência, complexidade e diversidade.” O sucesso evolucionário, ao que parecia, era uma lotaria.

Uma criatura que conseguiu escapar, um pequeno ser semelhante a um verme chamado Pikaia gracilens, possuía, ao que se descobriu, uma coluna vertebral primitiva, o que o tornou o primeiro ancestral conhecido dos vertebrados posteriores, aí incluídos nós próprios. Os Pikaia não eram nada abundantes entre os fósseis de Burgess, de modo que, estiveram por um triz, próximos da extinção. Gould, em uma citação famosa, deixa claro que vê o nosso sucesso hereditário como um acaso afortunado: “Retroceda a fita da vida até aos dias iniciais de Burgess Shale e deixe que seja reproduzida novamente de um ponto de partida idêntico. Tornam-se ínfimas as chances de que algo como a inteligência humana sobreviesse com um replay”.




O livro de Gould foi publicado em 1989; aclamado pela crítica, foi um grande sucesso de vendas. O que em geral se ignorava era que muitos cientistas não concordavam com as conclusões de Gould e que a divergência se tornaria “explosiva”. Na verdade, sabemos agora que organismos complexos existiam pelo menos 100 milhões de anos antes do Câmbrico. Deveríamos ter sabido isso bem antes. Quase quarenta anos após a descoberta de Walcott no Canadá, do outro lado do planeta, na Austrália, um jovem geólogo chamado Reginald Sprigg encontrou algo ainda mais antigo e, à sua maneira, igualmente notável.

Em 1946, Sprigg era um jovem geólogo assistente do governo do estado da Austrália do Sul quando foi enviado para examinar algumas minas abandonadas nos montes Ediacaran, na cadeia Flinders, uma extensão de sertão escaldante uns cerca de 500 Km ao norte de Adelaide. A ideia era verificar se havia minas antigas que pudessem ser reaproveitadas, de forma rentável, utilizando-se tecnologia mais moderna, de modo que ele não estava interessado no estudo de rochas de superfície, e menos ainda fósseis. Mas certo dia, enquanto almoçava, Sprigg por acaso derrubou um pedaço de arenito e surpreendeu-se – no mínimo – ao ver que a superfície da rocha eslava coberta de fósseis delicados, como as impressões deixadas por folhas no lodo. Aquelas rochas antecediam a explosão câmbrica. Ele estava perante os primórdios da vida visível. 

Sprigg submeteu um artigo à Nature, que foi rejeitado. Leu-o, então, na reunião anual seguinte da Associação Australiana e da Nova Zelândia para o Progresso da Ciência, sem conseguir o apoio do presidente da associação, que declarou que as impressões de Ediacaran não passavam de “marcas inorgânicas fortuitas” – padrões produzidos por vento, chuva ou marés, mas não por seres vivos. Sem perder totalmente as esperanças, Sprigg viajou a Londres e apresentou as suas descobertas ao Congresso Geológico Internacional de 1948. E a frustração repete-se, não conseguiu despertar interesse nem crença de grandes eminências da ciência. Finalmente, por falta de um veículo melhor, publicou as suas descobertas nas Transactions of the Royal Society of South Australia. Deixa o emprego público e passa a dedicar-se à exploração de petróleo.

Nove anos depois, em 1957, um estudante chamado James Mason, ao caminhar pela floresta Charnwood, na Inglaterra Central, encontrou uma rocha com um fóssil estranho, semelhante a uma anémona moderna e exatamente igual a alguns dos espécimes que Sprigg encontrara e vinha tentando divulgar. O jovem James Mason entregou a rocha a um paleontólogo da Universidade de Leicester, que identificou o fóssil ser do período pré-câmbrico. Em homenagem a Mason, o espécime foi nomeado Chamia masoni. Atualmente, alguns dos espécimes de Ediacaran originais de Sprigg, assim como muitos dos outros 1500 espécimes que foram encontrados na cadeia Flinders desde aquela época, podem ser vistos em uma caixa de vidro, numa sala do andar superior do South Australian Museum, em Adelaide. 

Ainda há pouco consenso sobre o que eram essas criaturas ou como viviam. Ao que se pode observar, não eram dotadas de boca nem de ânus para absorver e eliminar materiais digestivos, nem de órgãos internos para processá-los ao longo do caminho. Todas as criaturas de Ediacaran eram diploblásticas, o que significa que se constituíam de duas camadas de tecido. Com exceção da medusa, todos os animais atuais são triploblásticos. Alguns especialistas acreditam que não eram animais, e sim mais semelhantes a plantas ou fungos. As distinções entre planta e animal nem sempre são claras, mesmo agora. A esponja moderna passa a vida fixada num só lugar e não possui olhos, cérebro ou um coração pulsante, mas é um animal. “Quando voltamos ao pré-câmbrico, as diferenças entre plantas e animais eram provavelmente ainda menos claras”. Tampouco existe um consenso de que os organismos de Ediacaran sejam, de algum modo, ancestrais de algo vivo hoje (exceto talvez alguma medusa). Muitos especialistas os veem como uma espécie de experiência fracassada, uma tentativa de complexidade que não foi bem-sucedida, possivelmente porque os organismos de Ediacaran foram devorados ou superados pelos animais flexíveis e mais sofisticados do período Câmbrico. A impressão era que, em última análise, eles não eram decididamente importantes para o desenvolvimento da vida na Terra. Muitos especialistas acreditam que houve um extermínio em massa na fronteira entre o Pré-Câmbrico e o Câmbrico. A vida complexa começou realmente com a explosão câmbrica. Pelo menos, essa era a visão de Gould.

Quanto às revisões dos fósseis de Burgess Shale, quase imediatamente as pessoas passaram a questionar as interpretações e, em particular, a interpretação de Gould das interpretações: “Se Stephen Gould conseguisse pensar tão claramente como escreve!”, disse Richard Dawkins, no início de uma resenha no Sunday Telegraph londrino de Vida maravilhosa, reconhecendo que o livro era “incriticável”, mas acusou Gould de se engajar numa falsa representação “grandiloquente e quase insincera” dos factos, ao sugerir que as revisões de Burgess haviam impressionado a comunidade paleontológica. “A visão que ele está atacando – de que a evolução marcha inexoravelmente rumo a um pináculo como o homem – já não o é defendida há cinquenta anos”, declarou Dawkins. Observando a frequência com que é proposta essa ideia – de que não há planos corporais novos –, Dawkins diz: “É como se um jardineiro contemplasse um carvalho e observasse espantado: ‘Não é estranho que nenhum galho novo tenha surgido nesta árvore há anos? Agora, só brotam pequenos ramos’”.

O mais estranho foi a reação de um dos heróis de "Vida maravilhosa", Simon Conway Morris, que surpreendeu muita gente da comunidade paleontológica ao investir abruptamente contra Gould em um livro próprio, The crucible of creation [O cadinho da criação]. O que aconteceu foi que os fósseis do início do Câmbrico começaram a passar por um período de reavaliação crítica. Fortey e Derek Briggs – um dos outros personagens principais do livro de Gould – aplicaram um método conhecido como cladística para comparar os diferentes fósseis de Burgess. Em termos simples, a cladística consiste em organizar os organismos com base em características compartilhadas. Fortey dá como exemplo a ideia de comparar um musaranho com um elefante. Se você considerasse o tamanho avantajado e a presa impressionante do elefante, poderia concluir que ele pouco teria em comum com o minúsculo musaranho. Mas se comparasse os dois com um lagarto, veria que o elefante e o musaranho se desenvolveram, na verdade, dentro do mesmo plano. Em essência, o que Fortey está dizendo é que Gould viu elefantes e musaranhos onde eles viam mamíferos. As criaturas de Burgess, eles acreditavam, não eram tão estranhas e variadas como se afiguravam à primeira vista. “Quase sempre não eram mais estranhas que trilobites”, diz Fortey. “Só que tivemos cerca de um século para nos acostumarmos aos trilobites. A familiaridade, veja bem, gera familiaridade.”

Cabe observar que a falha não decorreu de negligência ou desatenção. Interpretar as formas e as relações dos animais antigos com base em indícios muitas vezes distorcidos e fragmentários constitui uma tarefa delicada. Edward O. Wilson observou que, se alguém tomasse espécies selecionadas de insetos modernos e as apresentasse como fósseis no estilo de Burgess, ninguém notaria que eram todas do mesmo filo, tão diferentes são seus planos corporais. 
Portanto, os espécimes de Burgess Shale não eram tão espetaculares afinal de contas. Mas restava a velha pergunta sobre a origem deles: como foi que surgiram subitamente do nada. O facto é que a explosão câmbrica pode não ter sido tão explosiva como se pensava. Acredita-se hoje que os animais do Câmbrico provavelmente já existiam, mas eram pequenos demais para ser vistos. Outra vez, foram as trilobites que forneceram a pista – em particular, aquela aparição desconcertante de tipos diferentes de trilobites em locais totalmente dispersos ao redor do globo mais ou menos na mesma época. Assim, a aparição súbita de montes de criaturas plenamente formadas, mas variadas, longe de realçar o caráter milagroso da explosão câmbrica, sugere o inverso. Uma coisa é uma criatura bem formada como uma trilobite surgir isoladamente – isso é de facto espantoso. Aparição simultânea de muitos deles, entretanto, todos diferentes, mas claramente relacionados, no registo fóssil em lugares tão afastados como China e Nova York, indica claramente que estamos ignorando grande parte de sua história. Não poderia haver um indício mais forte da existência de um antepassado – alguma espécie-avó que iniciou a linhagem num passado bem anterior.

O motivo pelo qual não encontramos essas espécies anteriores, ao que se acredita, é que são minúsculas demais para serem preservadas. Atualmente, o mar pulula de artrópodes minúsculos que não deixaram nenhum registo fóssil. No entanto, todo o conhecimento sobre os seus ancestrais se resume a um único espécime encontrado no corpo de um peixe fossilizado antigo. A explosão câmbrica, se essa é a palavra certa, provavelmente foi mais um aumento de tamanho do que uma aparição súbita de tipos corporais novos. E aquilo pode ter ocorrido bem rapidamente, de modo que, nesse sentido, foi uma explosão. A ideia é que, assim como os mamíferos aguardaram a sua oportunidade de aparecer durante 100 milhões de anos, até que os dinossauros desaparecessem para então aparentemente irromperem em profusão por todo o planeta, talvez os artrópodes e outros triploblastos aguardassem no anonimato quase microscópico até que os organismos de Ediacaran dominantes saíssem de cena. Os mamíferos aumentaram substancialmente de tamanho após o desaparecimento dos dinossauros. No sentido geológico, a expressão "abruptamente" está a falar de milhões de anos.

terça-feira, 6 de dezembro de 2022

A Sabedoria de Kondiaronk



Kondiaronk (c. 1649–1701) (Gaspar Soiaga, Souojas, Sastaretsi), conhecido como Le Rat (O Rato), foi o chefe do povo nativo americano Wendat em Michilimackinac no Canadá francês, no tempo de Louis-Armand Lahontan (1666-1716). A área de Michilimackinac corresponde ao estreito entre os lagos Huron e Michigan (ou, a área entre as penínsulas superior e inferior de Michigan) nos atuais Estados Unidos. Liderou 
os Petune e Huron contra os seus inimigos iroqueses no tempo dos colonos franceses no Canadá. 



«O dinheiro, é um dos piores elementos da vossa “civilização”, pai dos piores comportamentos do mundo – luxúria, lascívia, intrigas, traição …» De um diálogo de Kondiaronk  com o filósofo e explorador francês Louis-Armand Lahontan.

O povo Wendat é um povo indígena das florestas do nordeste da América do Norte. Emergiram como uma confederação de tribos iroqueses ao redor da margem norte do Lago Ontário, e ocupando algum território na parte ocidental do lago.

Os Wyandot, não confundir com o Huron-Wendat, descendem predominantemente da tribo Tionontati. O povo Tionontati nunca pertenceu à Confederação Huron-Wendat. No entanto, os Wyandot têm conexões com os Huron-Wendat através de sua linhagem dos Attignawantan, a tribo fundadora dos Huron. As quatro Nações Wyandot são descendentes de remanescentes dos Tionontati, Attignawantan e Wenrohronon (Wenro), que eram "todas tribos independentes únicas, que se uniram em 1649-50 depois de serem derrotadas pela Confederação Iroquesa".




Após a derrota durante a prolongada guerra com as Cinco Nações dos Iroqueses em 1649, os membros sobreviventes da confederação se dispersaram, alguns fixaram residência no Quebec com os jesuítas e outros foram adotados por nações vizinhas, como os Tionontati para se tornarem os Wyandot. Mais tarde, eles ocuparam território que se estendia até o que é hoje os Estados Unidos, especialmente Michigan, norte de Ohio, Kansas e, finalmente, nordeste de Oklahoma devido às políticas federais de remoção dos EUA.

Eles estavam relacionados a outros povos iroqueses na região, como seus poderosos concorrentes, as Cinco Nações dos Iroqueses, que ocupavam território principalmente no lado sul do Lago Ontário, mas tinham áreas de caça ao longo do rio São Lourenço. No Canadá, a nação irmã Wyandot é conhecida como Nação Huron-Wendat. Depois de 1634, o seu número foi drasticamente reduzido por epidemias de novas doenças infeciosas transmitidas pelos europeus, entre as quais a varíola que era endémica entre os europeus. Os enfraquecidos Wyandot foram dispersos pela guerra em 1649 travada pela Confederação Iroquesa das Cinco Nações, ou Haudenosaunee, então sedeada em grande parte ao sul dos Grandes Lagos, Nova Iorque, e Pensilvânia. Evidências arqueológicas desse deslocamento foram descobertas no Rock Island II Site, em Winsconsin.

No final do século XVII, a Confederação Huron-Wyandot fundiu-se com a nação Tionontati de língua iroquesa (conhecida como Petun em francês, também conhecida como o povo do tabaco por sua principal cultura). Eles podem originalmente ter sido uma colónia dissidente dos Huron, para formar o histórico Wyandot.

Ao contrário do mito de Rousseau, ao longo de milhares de anos do último período glacial - também referido como Idade do Gelo, que decorreu entre 110.000 e 10.000 anos antes do momento presente, as sociedades que precederam o período Neolítico, eram pequenas sociedades desiguais de caçadores-recolectores. Ao passo que no início do período Neolítico formaram-se grandes cidades extremamente igualitárias. Mas mais surpreendentemente, é o facto de nesse período de transição havia sociedades que podiam ser igualitárias no verão e desiguais no inverno, ou vice-versa. Parece que os textos fundadores do Iluminismo e da Revolução Francesa, e em particular o texto de Rousseau sobre a origem da desigualdade entre os homens, foram fortemente influenciados pela crítica dos índios americanos em relação à sociedade ocidental. 

Ora, entre esses índios americanos, a personalidade de Kandiaronk destaca-se como a de um sábio, um orador brilhante que fascinou a elite ocidental francesa e perverteu a juventude ocidental à medida que as suas críticas à sociedade ocidental e à religião cristã se espalhavam dentro da sociedade em França. As desigualdades dos homens seria o preço a pagar pelo progresso técnico e pelo conforto que ele traz.