segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

A moda com astúcia na irracionalidade dos prazeres mundanos

 


Recorte de um fresco de Pompeia

Durante muitos milénios, a vida coletiva humana evoluiu sem o culto das fantasias efémeras da moda. A prioridade esteve na curiosidade do mundo e no desbravar do terreno agreste. Nada disso impediu o gosto e o espanto pelas realidades naturais. No Egito antigo, o mesmo tipo de toga-túnica comum aos dois géneros manteve-se por quase quinze séculos com uma permanência quase absoluta; na Grécia, o peplo, traje feminino de cima, impôs-se das origens até à metade do século VI antes de nossa era; em Roma, o traje masculino — a toga e a túnica — persistiu, com variações de detalhes, dos tempos mais remotos até ao final do Império. A mesma estabilidade na China, na Índia, nas civilizações orientais tradicionais, onde o vestir só excepcionalmente admitiu modificações: o quimono japonês permaneceu inalterado durante séculos; na China, o traje feminino não sofreu nenhuma verdadeira transformação entre o século XVII e o século XIX. 

Na Idade Média, as indústrias têxteis e o grande tráfico comercial permitiram diversificar os materiais que serviam para a fabricação do vestuário: seda do Extremo Oriente, peles preciosas da Rússia e da Escandinávia, algodão turco, sírio ou egípcio, couros de Rabat, plumas da África, produtos corantes (quermes, laca, anil) da Ásia Menor. As indústrias da tecelagem e da tinturaria puderam fabricar tecidos de luxo que circularam em toda a Europa dos poderosos pela via indireta das feiras e do tráfico marítimo: lãs de Flandres e da Inglaterra, linho do sul da Alemanha, panos de cânhamo das regiões de Saône e de Bresse, veludos de Milão, Veneza e Génova. Mas sobretudo, com a expansão das cidades medievais, instaurou-se em alto grau a divisão do trabalho, uma especialização intensiva dos ofícios, que foram dotados, por volta da metade do século XIII, através das corporações de ofícios, de uma organização minuciosa e de uma regulamentação coletiva, encarregada de controlar a qualidade das obras, assim como a formação profissional. 

A moda, tal como a conhecemos, chegou bem tarde na História, no final da Idade Média. A moda do vestuário como sistema, apareceu com as suas metamorfoses incessantes, com os seus movimentos no sentido da extravagância mundana. A história do vestuário é a referência privilegiada deste fenómeno social. É antes de tudo à luz das metamorfoses dos estilos, e dos ritmos precipitados da mudança no vestir, que se impõe essa conceção histórica da moda, na esfera da aparência e do parecer. Em todo o caso, a moda não permaneceu acantonada no campo do vestuário. Paralelamente, em velocidades e em graus diversos, outros setores — o mobiliário e os objetos decorativos, a linguagem e as maneiras, os gostos e as ideias, os artistas e as obras culturais — foram atingidos pelo processo da moda. Mas até aos séculos XIX e XX foi o vestuário, sem dúvida alguma, que encarnou mais ostensivamente o processo de moda; ele foi o teatro das inovações formais mais aceleradas, mais caprichosas, mais espetaculares. Não há teoria ou história da moda que não tome o parecer como ponto de partida e como objeto central de investigação. 




No final da Idade Média, precisamente, inúmeros são os signos que dão testemunho de uma tomada de consciência inédita da identidade subjetiva, da vontade de expressão da singularidade individual, da exaltação da individualidade. O aparecimento da autobiografia, do retrato e do autorretrato “realistas”, ricos em detalhes verdadeiros, revela igualmente, nos séculos XIV e XV, a nova dignidade reconhecida naquilo que é singular no homem, embora em quadros ainda muito amplamente codificados e simbólicos. Com o novo sentido da identidade pessoal e a legitimação da expressão individual, ainda que esteja em vigor nos exclusivos limites do pequeno mundo da elite social, e mais formulada, vivida, do que doutrinal, pôde pôr-se em movimento a lógica proteiforme da moda. 

Durante a mais longa parte da história, as sociedades funcionaram sem conhecer os movimentados jogos das frivolidades. N
ão que os povos pré-históricos, mesmo fora dos trajes cerimoniais, não tenham por vezes o gosto muito vivo das ornamentações e não procurem certos efeitos estéticos, mas nada que se assemelhe ao sistema da moda. O processo e a noção de moda, em tais configurações coletivas, não têm rigorosamente nenhum sentido. Mesmo múltiplos, os tipos de enfeites, os acessórios e penteados, as pinturas e tatuagens permanecem fixados pela tradição, submetidos a normas inalteradas de geração em geração. 

A moda no sentido estrito quase não aparece antes da metade do século XIV. Data que se impõe, em primeiro lugar, essencialmente em razão do aparecimento de um tipo de vestuário radicalmente novo, nitidamente diferenciado segundo os sexos: curto e ajustado para o homem, longo e justo para a mulher. Revolução do vestuário que lançou as bases do trajar moderno. Um traje masculino composto de um gibão, espécie de jaqueta curta e estreita, unida a calções colantes que desenham a forma das pernas; por outro lado, substituiu-a um traje feminino que perpetua a tradição do vestido longo, mas muito mais ajustado e decotado. Transformação que institui uma diferença muito marcada, excepcional, entre os trajes masculinos e femininos. O vestuário feminino é igualmente ajustado e exalta os atributos da feminilidade: o traje alonga o corpo através da cauda, põe em evidência o busto, os quadris, a curva das ancas. O peito é destacado pelo decote; o próprio ventre, no século XV, é sublinhado por saquinhos proeminentes escondidos sob o vestido, como testemunha o célebre quadro de Jan Van Eyck, O casamento dos esposos Arnolfini (1434). 




A curiosidade pelas maneiras “antigas” de vestir-se e a percepção das variações rápidas da moda aparecem ainda na exigência, formulada desde 1478 pelo rei René d’Anjou, de buscar os detalhes dos trajes usados no passado pelos condes d’Anjou. No começo do século XVI, Vecellio desenha uma coleção “de roupas antigas e modernas”. Na França do século XVI, a inconstância do vestuário é notada por diferentes autores, especialmente Montaigne, em Les Essais: “Nossa mudança é tão súbita e tão rápida nisso que a invenção de todos os alfaiates do mundo não poderia fornecer novidades suficientes”. No começo do século XVII, o caráter proteiforme da moda e a grande mobilidade dos gostos são criticados e comentados de todos os lados nas obras, sátiras e opúsculos: evocar a versatilidade da moda tornou-se uma banalidade. A moda muda incessantemente, mas nem tudo nela muda. As modificações rápidas dizem respeito sobretudo aos ornamentos e aos acessórios, às subtilezas dos enfeites e das amplitudes, enquanto a estrutura do vestuário e as formas gerais são muito mais estáveis. 



Retrato de uma Jovem Mulher pela oficina de Sandro Botticelli, início dos anos 1480

Torrentes de “pequenos nadas” e pequenas diferenças que fazem toda a moda, que desclassificam ou classificam imediatamente a pessoa que os adota ou que deles se mantém afastada, que tornam imediatamente obsoleto aquilo que os precede. Com a moda começa o poder social dos signos ínfimos, o espantoso dispositivo de distinção social conferido ao porte das novidades subtis. Impossível separar essa escalada das modificações superficiais da estabilidade global do vestir: a moda só pôde conhecer tal mutabilidade sobre fundo de ordem; foi porque as mudanças foram módicas e preservaram a arquitetura de conjunto do vestuário que as renovações puderam disparar e dar lugar a “furores”. 




Amor pela mudança, influência determinante dos contemporâneos: esses dois grandes princípios que regem os tempos de moda têm em comum o facto de que implicam a mesma depreciação da herança ancestral e, correlativamente, a mesma dignificação das normas do presente social. A radicalidade histórica da moda sustenta-se no fato de que ela institui um sistema social de essência moderna, emancipado do domínio do passado; o antigo já não é considerado venerável e “só o presente parece dever inspirar respeito”.

A alta sociedade foi tomada pela febre das novidades, inflamou-se por todos os últimos achados, imitou alternadamente as modas em vigor na Itália, na Espanha, na França. Tudo o que é diferente e estrangeiro é snobe. Com a moda, aparece uma primeira manifestação de uma relação social que encarna um novo tempo legítimo e uma nova paixão própria ao Ocidente, a do “moderno”. A novidade tornou-se fonte de valor mundano, marca de excelência social; é preciso seguir “o que se faz” de novo e adotar as últimas mudanças do momento.

Certamente, as inovações permaneceram um privilégio de classe, um atributo dos grandes deste mundo. Mas o importante está em outra parte, no fato de que aqueles que estão no mais alto da hierarquia agora se vangloriam de modificar o que é, de inventar novos artifícios, de personalizar sua aparência. Tal transformação nos comportamentos da elite social demonstra a infiltração de uma nova representação social da individualidade no universo aristocrático. Não, a despeito das aparências, um fenómeno de classes, mas a penetração nas classes superiores dos novos ideais da personalidade singular. Estes contribuíram para o abalo da imobilidade tradicional, permitiram à diferença individual tornar-se signo de excelência social. Não se podem separar as variações perpétuas da moda e a personalização mais ou menos exibida do parecer, são duas faces estritamente complementares da nova valorização social daquilo que é singular. O erro das teorias da moda é ter considerado essas questões como estranhas uma à outra. Na realidade, trata-se do mesmo fenómeno: foi porque a individualização do parecer impôs-se como uma nova legitimidade social que a moda pôde ser esse teatro permanente das metamorfoses fugidias. Correlativamente, todas as mudanças, todas as vogas permitirão aos particulares, mesmo a níveis mínimos, uma margem de liberdade, de escolha, de autonomia do gosto.



A modelo argentina Milagros Schmoll desfila a moda primavera 2009

Simples e fantástico em sua formulação, a questão das origens da moda permanece incontornável: por que a moda apareceu e se desenvolveu no Ocidente e em nenhuma outra parte? Como explicar os fluxos e refluxos perpétuos das formas e dos gostos que escandem há seis séculos nossas sociedades? O notável é a pouca elaboração e interrogação teórica que essa questão despertou. Como ignorá-lo: sobre as origens e os móveis da moda, estamos surpreendentemente desprevenidos; os modelos que servem habitualmente de referência foram elaborados no século XIX, e desde então, no fundo, a teoria pouco avançou. 

A moda no tempo da modernidade enveredou pelo ethos de fausto, a extravagância aristocrática, nos antípodas do espírito consagrado à poupança, à previsão, ao cálculo; está do lado da irracionalidade dos prazeres mundanos e da superficialidade lúdica, na contracorrente do espírito de crescimento e do desenvolvimento do domínio da natureza. A sua volatilidade significa que o parecer não está mais sujeito à legislação intangível dos ancestrais, mas que procede da decisão e do puro desejo humano. Antes de ser signo da desrazão vaidosa, a moda testemunha o poder da mulher para mudar e inventar a sua maneira de aparecer; é uma das faces do artificialismo moderno, do empreendimento dos homens para se tornarem senhores de sua condição de existência. Com a agitação própria da moda, surge uma ordem de fenómeno exclusivo dos jogos dos desejos e caprichos frívolos nos exclusivos limites das conveniências e dos gostos do momento. 




Nenhuma teoria da moda pode restringir-se aos fatores da vida económica e material. Mesmo importantes, esses fenómenos não esclarecem em nada as variações incessantes e o excesso das fantasias que definem propriamente a moda. É por isso que tudo convida a pensar que esta encontra a sua força mais na lógica social do que na dinâmica económica. Nenhuma análise mais clássica: a instabilidade da moda se enraíza nas transformações sociais que se produziram no decorrer da segunda Idade Média e que não cessaram de ampliar-se sob o Antigo Regime. Na base do processo, a escalada da burguesia ao poder económico, que favoreceu o impulso de seu desejo de reconhecimento social e ao mesmo tempo as crescentes tendências de imitação da nobreza. À medida que as camadas burguesas conseguem adotar, em razão de sua prosperidade e de sua audácia, tal ou tal marca prestigiosa em vigor na nobreza, a mudança se impõe no alto para reinscrever o afastamento social. Desse duplo movimento de imitação e de distinção nasce a mutabilidade da moda.

É incontestável que com o crescimento da burguesia a Europa viu ampliarem-se os desejos de promoção social e acelerarem-se os fenómenos de contágio imitativo; em nenhuma outra parte as barreiras de classe, os estados e condições foram transpostas com tanta amplitude. Por exata que seja, essa dinâmica social não pode, contudo, explicar a dinâmica da moda, com suas extravagâncias e seus ritmos precipitados. Impossível aceitar a ideia de que a mudança de moda só intervém em razão de um fenómeno de difusão e de imitações ampliadas que desqualificam os signos elitistas. A própria rapidez das variações contradiz essa tese; no mais das vezes, as novidades andam muito mais depressa que sua vulgarização.

A turbulência da moda depende menos das ameaças que se exercem sobre as barreiras sociais do que do trabalho contínuo, inevitável, mas imprevisível, efetuado pelo ideal e pelo gosto das novidades próprios das sociedades que se desprendem do prestígio do passado. Fraqueza da abordagem clássica, que só vê nas flutuações da moda coação imposta de fora, obrigação resultante das tensões simbólicas da estratificação social, ao passo que correspondem à manifestação de novas finalidades e aspirações sócio-históricas.

Assim, a questão do motor da moda não pode deixar de levar em consideração as transformações que afetaram as disposições e aspirações da elite social. Trata-se de compreender como o alto da hierarquia chegou a investir dessa maneira na ordem das aparências, como pôde dedicar-se a destruir a ordem imóvel da tradição e entregar-se à espiral interminável da fantasia. 
Para conquistar e conservar honra e prestígio, as classes superiores devem dar e despender amplamente, devem fazer exibição de riqueza e de luxo, manifestar ostensivamente, por suas boas maneiras, seu decoro, seus adereços, que não estão sujeitas ao trabalho produtivo e indigno. Daí a necessidade, para aliviar-nos do efeito despropositado dessas formas, de novos trajes ridículos do mesmo modo fiéis ao inusitado, mas do mesmo modo contrários ao bom gosto: a moda e o artístico são antinómicos. O reducionismo sociológico encontra-se aqui em seu ponto culminante: os entusiasmos delirantes traduzem apenas nossa aspiração à estima social; só gostamos dos géneros em voga na medida em que permitem classificar-nos socialmente, “demarcar-nos”, tirar deles um proveito distintivo.

A lei do esbanjamento ostentatório e a corrida pela estima impõem-se então mais imperiosamente, tendo por consequência a mudança permanente das formas e dos estilos. A norma do esbanjamento era particularmente imperiosa; no entanto, a moda não pôde encontrar seu lugar de eclosão nesse tipo de sociedade. De facto, o imperativo de exibir riqueza não aumentou no Ocidente moderno, mas manifestou-se de modo diferente; mais exatamente, aliou-se estruturalmente à busca da diferença individual e à inovação estética. Na base do afloramento da moda, não a ascensão em grandeza do esbanjamento para exibição, e sim o aparecimento de novas exigências, de novos valores que certamente se traduziram no código imemorial da prodigalidade ostensiva, mas que daí não se deduzem mecanicamente. 




Longe de ser um epifenómeno, a consciência de se afirmar com destino particular, a vontade de exprimir uma identidade singular, a celebração cultural da identidade pessoal foram uma “força produtiva”, o próprio motor da mutabilidade da moda. Para que aparecesse o impulso das frivolidades, foi preciso uma revolução na representação das pessoas e no sentimento de si, modificando brutalmente as mentalidades e valores tradicionais; foi preciso que se desencadeassem a exaltação da unicidade dos seres e seu complemento, a promoção social dos signos da diferença pessoal.

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