segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

Os Xistos de Burgess



Os Xistos de Burgess é uma série de leitos fósseis nas Montanhas Rochosas canadenses que foi notado pela primeira vez em 1886 por Richard McConnell, do Serviço Geológico do Canadá. As suas descobertas e as subsequentes, chamaram a atenção do paleontólogo Charles Doolittle Walcott, que em 1907 reservou tempo livre para reconhecer a área. Ele abriu uma pedreira em 1910 e numa série de viagens de campo trouxe de volta 65.000 espécimes, que ele identificou como da idade do Câmbrico Médio. Em 1924, o professor da Universidade de Harvard, Percy Raymond, recolheu mais fósseis da pedreira de Walcott e mais acima em Fossil Ridge, onde fósseis ligeiramente diferentes foram preservados.



O lago O’Hara aninha-se no sector canadiano das montanhas Rochosas a mais de dois mil metros de altitude, “como uma esmeralda numa taça de montanhas”, escreveu o paleontólogo Charles Walcott em 1911



Foi o cavalo da mulher de Walcott, ao virar uma laje de xisto, que pôs a descoberto crustáceos fósseis de um tipo especialmente antigo e incomum. Caía neve – o inverno chega cedo nas montanhas Rochosas canadenses –, de modo que eles não permaneceram ali, mas no ano seguinte, na primeira oportunidade, Walcott voltou ao local. Reconstituindo a suposta rota da queda da laje, ele subiu 230 metros até quase ao topo da montanha. Ali, 2440 metros acima do nível do mar, encontrou um afloramento de xisto, do tamanho aproximado de um quarteirão, contendo uma série inigualável de fósseis imediatamente posteriores ao momento em que a vida complexa irrompeu numa profusão de tal modo exuberante que ficou famosa como explosão câmbrica. O afloramento tornou-se conhecido como os Xistos de Burgess (Burgess Shale).

Mais de 500 milhões de anos atrás, quando os Xistos de Burgess foram formados, não ficava no alto de uma montanha, e sim na base. Especificamente, era uma bacia oceânica rasa no fundo de um penhasco íngreme. Os mares daquela época pululavam de vida, porém normalmente os animais não deixavam registos, devido ao corpo mole decompor-se depois de morrer. Mas em Burgess, o penhasco desmoronou, e as criaturas em baixo, soterradas sob o deslizamento, foram pressionadas como flores dentro de um livro, e seu aspeto foi preservado em detalhes assombrosos. Tanto na quantidade como na diversidade, a coleção era inigualável. Alguns dos fósseis de Walcott possuíam conchas; muitos outros, não. Alguns eram dotados de visão, outros eram cegos. A variedade era enorme, consistindo em 140 espécies, segundo uma contagem.

Walcott morreu em 1927, e os fósseis de Burgess foram basicamente esquecidos. Por quase meio século, jazeram trancados em gavetas no Museu de História Natural Americano, em Washington, raramente consultados e nunca questionados. Até que, em 1973, um estudante de pós-graduação da Universidade de Cambridge, chamado Simon Conway Morris, fez uma visita à coleção. Ele se espantou com o que achou. Os fósseis eram bem mais variados e magníficos do que Walcott indicara em seus textos. Em taxonomia, a categoria que descreve os planos corporais básicos de todos os organismos é o filo, e ali, Conway Morris concluiu, estavam gavetas e mais gavetas de tais singularidades anatómicas – todas, surpreendente e inexplicavelmente, não reconhecidas pelo homem que as encontrara.

Com o seu supervisor, Harry Whittington, e o colega estudante de pós-graduação Derek Briggs, Conway Morris dedicou os anos seguintes a uma revisão sistemática de toda a coleção, produzindo uma monografia empolgante após outra, à medida que as descobertas se acumulavam. Muitas das criaturas empregavam planos corporais não apenas diferentes de qualquer coisa vista até então ou depois, mas estranhamente diferentes. Uma delas, de nome Opabinia, possuía cinco olhos e um focinho em forma de bocal com garras na ponta. Outra, um ser em forma de disco chamado Peytoia, assemelhava-se a uma fatia de abacaxi. Havia tantas novidades não reconhecidas na coleção que, a certa altura, após abrir mais uma gaveta, alguém ouviu Conway Morris murmurar a frase que se tornou famosa: “Porra, mais um filo!”.

O Câmbrico foi uma época de inovações e experimentações inéditas nos projetos corporais. Durante quase 4 mil milhões de anos, a vida havia vacilado, sem nenhuma ambição detectável em direção à complexidade, e aí, subitamente, no espaço de apenas 5 ou 10 milhões de anos, criara todos os projetos corporais básicos ainda em uso. O mais surpreendente, porém, foi o número de projetos corporais que não conseguiram prosperar, por assim dizer, não deixando descendentes. No todo, segundo Stephen Jay Gould, pelo menos quinze, e talvez até vinte dos animais de Burgess não pertenciam a nenhum filo reconhecido. “A história da vida”, escreveu Gould, “é uma história de retirada maciça seguida de diferenciação dentro de algumas estirpes sobreviventes, não a lenda convencional de um aumento constante da excelência, complexidade e diversidade.” O sucesso evolucionário, ao que parecia, era uma lotaria.

Uma criatura que conseguiu escapar, um pequeno ser semelhante a um verme chamado Pikaia gracilens, possuía, ao que se descobriu, uma coluna vertebral primitiva, o que o tornou o primeiro ancestral conhecido dos vertebrados posteriores, aí incluídos nós próprios. Os Pikaia não eram nada abundantes entre os fósseis de Burgess, de modo que, estiveram por um triz, próximos da extinção. Gould, em uma citação famosa, deixa claro que vê o nosso sucesso hereditário como um acaso afortunado: “Retroceda a fita da vida até aos dias iniciais de Burgess Shale e deixe que seja reproduzida novamente de um ponto de partida idêntico. Tornam-se ínfimas as chances de que algo como a inteligência humana sobreviesse com um replay”.




O livro de Gould foi publicado em 1989; aclamado pela crítica, foi um grande sucesso de vendas. O que em geral se ignorava era que muitos cientistas não concordavam com as conclusões de Gould e que a divergência se tornaria “explosiva”. Na verdade, sabemos agora que organismos complexos existiam pelo menos 100 milhões de anos antes do Câmbrico. Deveríamos ter sabido isso bem antes. Quase quarenta anos após a descoberta de Walcott no Canadá, do outro lado do planeta, na Austrália, um jovem geólogo chamado Reginald Sprigg encontrou algo ainda mais antigo e, à sua maneira, igualmente notável.

Em 1946, Sprigg era um jovem geólogo assistente do governo do estado da Austrália do Sul quando foi enviado para examinar algumas minas abandonadas nos montes Ediacaran, na cadeia Flinders, uma extensão de sertão escaldante uns cerca de 500 Km ao norte de Adelaide. A ideia era verificar se havia minas antigas que pudessem ser reaproveitadas, de forma rentável, utilizando-se tecnologia mais moderna, de modo que ele não estava interessado no estudo de rochas de superfície, e menos ainda fósseis. Mas certo dia, enquanto almoçava, Sprigg por acaso derrubou um pedaço de arenito e surpreendeu-se – no mínimo – ao ver que a superfície da rocha eslava coberta de fósseis delicados, como as impressões deixadas por folhas no lodo. Aquelas rochas antecediam a explosão câmbrica. Ele estava perante os primórdios da vida visível. 

Sprigg submeteu um artigo à Nature, que foi rejeitado. Leu-o, então, na reunião anual seguinte da Associação Australiana e da Nova Zelândia para o Progresso da Ciência, sem conseguir o apoio do presidente da associação, que declarou que as impressões de Ediacaran não passavam de “marcas inorgânicas fortuitas” – padrões produzidos por vento, chuva ou marés, mas não por seres vivos. Sem perder totalmente as esperanças, Sprigg viajou a Londres e apresentou as suas descobertas ao Congresso Geológico Internacional de 1948. E a frustração repete-se, não conseguiu despertar interesse nem crença de grandes eminências da ciência. Finalmente, por falta de um veículo melhor, publicou as suas descobertas nas Transactions of the Royal Society of South Australia. Deixa o emprego público e passa a dedicar-se à exploração de petróleo.

Nove anos depois, em 1957, um estudante chamado James Mason, ao caminhar pela floresta Charnwood, na Inglaterra Central, encontrou uma rocha com um fóssil estranho, semelhante a uma anémona moderna e exatamente igual a alguns dos espécimes que Sprigg encontrara e vinha tentando divulgar. O jovem James Mason entregou a rocha a um paleontólogo da Universidade de Leicester, que identificou o fóssil ser do período pré-câmbrico. Em homenagem a Mason, o espécime foi nomeado Chamia masoni. Atualmente, alguns dos espécimes de Ediacaran originais de Sprigg, assim como muitos dos outros 1500 espécimes que foram encontrados na cadeia Flinders desde aquela época, podem ser vistos em uma caixa de vidro, numa sala do andar superior do South Australian Museum, em Adelaide. 

Ainda há pouco consenso sobre o que eram essas criaturas ou como viviam. Ao que se pode observar, não eram dotadas de boca nem de ânus para absorver e eliminar materiais digestivos, nem de órgãos internos para processá-los ao longo do caminho. Todas as criaturas de Ediacaran eram diploblásticas, o que significa que se constituíam de duas camadas de tecido. Com exceção da medusa, todos os animais atuais são triploblásticos. Alguns especialistas acreditam que não eram animais, e sim mais semelhantes a plantas ou fungos. As distinções entre planta e animal nem sempre são claras, mesmo agora. A esponja moderna passa a vida fixada num só lugar e não possui olhos, cérebro ou um coração pulsante, mas é um animal. “Quando voltamos ao pré-câmbrico, as diferenças entre plantas e animais eram provavelmente ainda menos claras”. Tampouco existe um consenso de que os organismos de Ediacaran sejam, de algum modo, ancestrais de algo vivo hoje (exceto talvez alguma medusa). Muitos especialistas os veem como uma espécie de experiência fracassada, uma tentativa de complexidade que não foi bem-sucedida, possivelmente porque os organismos de Ediacaran foram devorados ou superados pelos animais flexíveis e mais sofisticados do período Câmbrico. A impressão era que, em última análise, eles não eram decididamente importantes para o desenvolvimento da vida na Terra. Muitos especialistas acreditam que houve um extermínio em massa na fronteira entre o Pré-Câmbrico e o Câmbrico. A vida complexa começou realmente com a explosão câmbrica. Pelo menos, essa era a visão de Gould.

Quanto às revisões dos fósseis de Burgess Shale, quase imediatamente as pessoas passaram a questionar as interpretações e, em particular, a interpretação de Gould das interpretações: “Se Stephen Gould conseguisse pensar tão claramente como escreve!”, disse Richard Dawkins, no início de uma resenha no Sunday Telegraph londrino de Vida maravilhosa, reconhecendo que o livro era “incriticável”, mas acusou Gould de se engajar numa falsa representação “grandiloquente e quase insincera” dos factos, ao sugerir que as revisões de Burgess haviam impressionado a comunidade paleontológica. “A visão que ele está atacando – de que a evolução marcha inexoravelmente rumo a um pináculo como o homem – já não o é defendida há cinquenta anos”, declarou Dawkins. Observando a frequência com que é proposta essa ideia – de que não há planos corporais novos –, Dawkins diz: “É como se um jardineiro contemplasse um carvalho e observasse espantado: ‘Não é estranho que nenhum galho novo tenha surgido nesta árvore há anos? Agora, só brotam pequenos ramos’”.

O mais estranho foi a reação de um dos heróis de "Vida maravilhosa", Simon Conway Morris, que surpreendeu muita gente da comunidade paleontológica ao investir abruptamente contra Gould em um livro próprio, The crucible of creation [O cadinho da criação]. O que aconteceu foi que os fósseis do início do Câmbrico começaram a passar por um período de reavaliação crítica. Fortey e Derek Briggs – um dos outros personagens principais do livro de Gould – aplicaram um método conhecido como cladística para comparar os diferentes fósseis de Burgess. Em termos simples, a cladística consiste em organizar os organismos com base em características compartilhadas. Fortey dá como exemplo a ideia de comparar um musaranho com um elefante. Se você considerasse o tamanho avantajado e a presa impressionante do elefante, poderia concluir que ele pouco teria em comum com o minúsculo musaranho. Mas se comparasse os dois com um lagarto, veria que o elefante e o musaranho se desenvolveram, na verdade, dentro do mesmo plano. Em essência, o que Fortey está dizendo é que Gould viu elefantes e musaranhos onde eles viam mamíferos. As criaturas de Burgess, eles acreditavam, não eram tão estranhas e variadas como se afiguravam à primeira vista. “Quase sempre não eram mais estranhas que trilobites”, diz Fortey. “Só que tivemos cerca de um século para nos acostumarmos aos trilobites. A familiaridade, veja bem, gera familiaridade.”

Cabe observar que a falha não decorreu de negligência ou desatenção. Interpretar as formas e as relações dos animais antigos com base em indícios muitas vezes distorcidos e fragmentários constitui uma tarefa delicada. Edward O. Wilson observou que, se alguém tomasse espécies selecionadas de insetos modernos e as apresentasse como fósseis no estilo de Burgess, ninguém notaria que eram todas do mesmo filo, tão diferentes são seus planos corporais. 
Portanto, os espécimes de Burgess Shale não eram tão espetaculares afinal de contas. Mas restava a velha pergunta sobre a origem deles: como foi que surgiram subitamente do nada. O facto é que a explosão câmbrica pode não ter sido tão explosiva como se pensava. Acredita-se hoje que os animais do Câmbrico provavelmente já existiam, mas eram pequenos demais para ser vistos. Outra vez, foram as trilobites que forneceram a pista – em particular, aquela aparição desconcertante de tipos diferentes de trilobites em locais totalmente dispersos ao redor do globo mais ou menos na mesma época. Assim, a aparição súbita de montes de criaturas plenamente formadas, mas variadas, longe de realçar o caráter milagroso da explosão câmbrica, sugere o inverso. Uma coisa é uma criatura bem formada como uma trilobite surgir isoladamente – isso é de facto espantoso. Aparição simultânea de muitos deles, entretanto, todos diferentes, mas claramente relacionados, no registo fóssil em lugares tão afastados como China e Nova York, indica claramente que estamos ignorando grande parte de sua história. Não poderia haver um indício mais forte da existência de um antepassado – alguma espécie-avó que iniciou a linhagem num passado bem anterior.

O motivo pelo qual não encontramos essas espécies anteriores, ao que se acredita, é que são minúsculas demais para serem preservadas. Atualmente, o mar pulula de artrópodes minúsculos que não deixaram nenhum registo fóssil. No entanto, todo o conhecimento sobre os seus ancestrais se resume a um único espécime encontrado no corpo de um peixe fossilizado antigo. A explosão câmbrica, se essa é a palavra certa, provavelmente foi mais um aumento de tamanho do que uma aparição súbita de tipos corporais novos. E aquilo pode ter ocorrido bem rapidamente, de modo que, nesse sentido, foi uma explosão. A ideia é que, assim como os mamíferos aguardaram a sua oportunidade de aparecer durante 100 milhões de anos, até que os dinossauros desaparecessem para então aparentemente irromperem em profusão por todo o planeta, talvez os artrópodes e outros triploblastos aguardassem no anonimato quase microscópico até que os organismos de Ediacaran dominantes saíssem de cena. Os mamíferos aumentaram substancialmente de tamanho após o desaparecimento dos dinossauros. No sentido geológico, a expressão "abruptamente" está a falar de milhões de anos.

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